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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.2 no.2 São João del Rei June 2013

 

ARTIGOS

 

Desejo e passado: observações sobre a tensão entre memória e rememoração na psicanálise freudiana1

 

Past and desire: remarks on the tension between memory and recollection in freudian psychoanalysis

 

Désir et passé: remarques sur la tension entre mémoire et remémoration dans la psychanalyse freudienne

 

El pasado y el deseo: observaciones sobre la tensión entre memoria y recuerdo en el psicoanálisis freudiano

 

 

Léa Silveira*

Universidade Federal de Lavras - UFLA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise freudiana, como se sabe, carrega em seu cerne a ideia de que determinadas inscrições mnêmicas influenciam sobremodo o comportamento sem que a elas a consciência tenha acesso. Por um lado, supõe-se que, especialmente, os acontecimentos da infância marcam profundamente os destinos do funcionamento psíquico e, por outro, que essas marcas são inacessíveis enquanto tais. Acompanharemos algumas pontuações de Freud que se encaminham para o estabelecimento da inteligibilidade, no registro metapsicológico, dessa dupla tese. Isso será feito à luz de alguns dos fenômenos que impuseram, a partir da clínica, o enigma da memória: a lembrança encobridora, a amnésia infantil, o sonho e a transferência.

Palavras-chave: Psicanálise freudiana; metapsicologia; memória.


ABSTRACT

Freudian psychoanalysis carries in its heart the idea that certain mnemonic inscriptions exerts great influence on behavior without consciousness having access to them. On the one hand, it is assumed that the events of childhood profoundly shape the destinies of psychological functioning and, secondly, that such marks are inaccessible as such. We will follow a few of Freud's remarks towards the establishment of the intelligibility of this twofold thesis on metapsychological level. This path will be followed under the light of some clinic phenomena that have imposed the enigma of memory: screen memory, infantile amnesia, dreams and transference.

Keywords: Freudian psychoanalysis; metapsychology; memory.


RÉSUMÉ

La psychanalyse freudienne porte dans son cœur l'idée de ce que certaines inscriptions mnésiques influencent fortement le comportement sans que la conscience en ait accè;s. D'une part, on suppose que ce sont surtout les événements de l'enfance qui marquent profondément les destins du fonctionnement psychique et, d'autre part, que ces marques ne sont pas accessibles en tant que telles. Nous allons suivre quelques propositions de Freud qui fournissent l'établissement de l'intelligibilité de cette double these au niveau métapsychologique. Cet objectif sera poursuivi à la lumiè;re de ceux phénomè;nes qui ont imposé l'énigme de la mémoire à partir de la clinique: le souvenir écran, l'amnésie infantile, le rêve et le transfert.

Mots-clé: psychanalyse freudienne; métapsychologie; mémoire.


RESUMEN

El psicoanálisis freudiano tiene en su centro la idea de que ciertas inscripciones mnémicas ejercen una gran influencia en el comportamiento sin que la conciencia tiene acceso a ellas. Por un lado, se supone que especialmente los acontecimientos de la infancia moldean profundamente los destinos del funcionamiento psíquico y, en segundo lugar, que estas marcas son, em si mismas, inaccesibles. Seguiremos algunas observaciones de Freud que conducen hacia el establecimiento de inteligibilidad, en el registro metapsicológico, esta doble tesis. Esto se hará a la luz de algunos de los fenómenos que han impuesto, desde la clínica, el enigma de la memoria: los recuerdos encubridores, la amnesia infantil, el sueño y la transferencia.

Palabras claves: psicoanálisis freudiano; metapsicología; memória.


 

 

Ao longo de sua carreira como clínico, Freud, naturalmente, teve que lidar com os mais diversos enigmas do psiquismo humano. Dentre eles, houve, no entanto, um que ocupou espaço privilegiado exatamente por consistir na principal via de passagem entre a escuta clínica e a especulação teórica. Trata-se daquele que converge para as seguintes indagações: como se conserva o passado? Seria a memória uma cópia fiel de experiências outrora vividas ou um rearranjo do modo pelo qual elas se inscreveram no psíquico? Nesse caso, quais seriam os componentes de semelhante inscrição, seu regime de funcionamento e de combinações recíprocas? Que relação tal regime teria com o comportamento? Para constatar a centralidade desse tipo de questionamento na obra de Freud, basta lembrar, por um lado, a sua ratificação para a ideia de que a "criança é, psicologicamente, o pai do adulto" (Freud, 1940[38]/1992, p. 187) e, por outro, que o próprio aparelho psíquico - cujo motor é o desejo - é descrito, na chamada primeira tópica, como um "aparelho de memória". Acompanharemos, desde uma perspectiva introdutória, alguns encaminhamentos do autor no sentido de responder às questões acima mencionadas à luz de alguns dos fenômenos que, de fato, permitiram fazê-lo (o sintoma histérico, a lembrança encobridora, a amnésia infantil, os sonhos e a transferência), tendo como fio condutor a delimitação de duas tensões e a indicação dos elementos que devem ser considerados tendo em vista a sua dissolução.

Observemos, inicialmente, esse texto intitulado Lembranças encobridoras, publicado ainda antes de A interpretação dos sonhos e voltado para um tipo específico de recordação descoberto pela psicanálise. Nele encontramos um comentário que nos leva diretamente ao âmago do problema da memória, tal como surge para uma elaboração psicanalítica. Trata-se do seguinte:

Ninguém duvida de que os primeiros anos de nossa infância deixam marcas indeléveis em nossa interioridade psíquica. Mas, se buscarmos em nossa memória quais as impressões que estão destinadas a permanecer e exercer sua influência até o fim de nossa vida, ela nada nos oferece, ou então nos entrega um número relativamente pequeno de recordações dispersas, de valor freqüentemente questionável ou enigmático (Freud, 1899/1992, p. 297).

Esse trecho apresenta a questão da amnésia infantil, a qual será, de pronto, desvinculada da ideia de um suposto estado precário do sistema nervoso da criança - que seria então incapaz de reter esses acontecimentos precoces - e relacionada à operação do recalque, entendido como esforço para desalojar uma ideia ou representação [Vorstellung]. Um dos argumentos que Freud levanta para sustentar esse ponto é a observação de que uma criança com seus três ou quatro anos de idade já revela um funcionamento mental bem organizado tanto do ponto de vista cognitivo quanto do afetivo. Ocorre que o recalque que incide sobre tais acontecimentos se vale - e esse constitui o foco do texto, como já nos informa seu título -, dentre outras coisas, da formação de lembranças encobridoras ou lembranças-tela [Deckerinnerung]. Nelas, temos uma cena que parece irrelevante, mas que, apesar disso, encontra-se muito bem fixada na memória e revestida de especial vivacidade. Ela parece irrelevante porque, na verdade, o valor da lembrança não se circunscreve em torno de seu próprio conteúdo, mas reside no vínculo que este possui com algum outro conteúdo que, devido a seu lugar na dinâmica psíquica, teve que ser suprimido, de modo que o material dos traços mnêmicos [Erinnerungsspur], com os quais a lembrança falsificada foi forjada, permanece desconhecido em sua forma original (Freud, 1899/1992, p. 315).

A lembrança, que mais tarde se descobre ser uma lembrança do próprio Freud, utilizada como exemplo no texto relata o seguinte: há três crianças (dois meninos e uma menina) numa pradaria, e elas estão colhendo flores - dentre elas, o sujeito que lembra (Freud), na idade de dois ou três anos. Os dois meninos roubam as flores da menina que, em resposta ao assalto, corre em direção a uma casa e, como consolo - para cessar seu choro -, ganha um pedaço de pão preto. Também os meninos acorrem à casa e recebem pedaços de pão. A interpretação encontrará nesse relato de uma ocorrência que, à primeira vista, em tudo parece tola, elementos profundamente relacionados ao modo como certos temas fundamentais se configuraram em torno de conflitos e de fantasias inconscientes ao longo da vida do autor da lembrança. São temas que, durante esse período da obra que desenvolve o chamado primeiro dualismo pulsional, são tomados, sempre com a referência a um dos poemas de Schiller (Die Weltweisen), como as mais intensas forças em jogo nos processos psíquicos: a fome e o amor.

O curioso é que o trabalho de análise da lembrança encontra eixos que, a despeito de constituírem um sólido saber sobre o desejo, acham-se fincados num terreno por demais caracterizado por imprecisão, fugacidade e incerteza. Expressões como "algo não está muito correto nessa cena", "tal aspecto surge exageradamente destacado", "tal sensação parece desproporcional relativamente àquilo que de fato pode ter se passado" etc. afastam qualquer tentativa de qualificar a recordação com os atributos de uma recuperação fiel dos acontecimentos. Além disso, contribui decisivamente para a ideia de que a lembrança é construída ou elaborada - e não a simples reprodução de uma impressão recebida. O fato é que o indivíduo tem acesso a ela na posição de observador externo: ele "assiste" a uma cena em que ele próprio atua, desdobrando-se entre ator e espectador.

De posse dessas considerações, Freud leva então ao limite o questionamento da própria noção de "lembrança" e o faz nos seguintes termos:

Talvez seja, em geral, duvidoso o fato de possuirmos lembranças da nossa infância e não, antes, lembranças sobre a infância. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como foram, mas como apareceram em tempos posteriores em que foram despertadas. Nesses tempos de despertar, as lembranças da infância não afloraram, como se costuma dizer; elas foram formadas neles; e uma série de motivos, aos quais é alheio o propósito da fidelidade histórico-vivencial, exerceram influência sobre essa formação assim como sobre a seleção das lembranças (Freud, 1899/1992, p. 315).

O que se sobressai desse estudo de Freud é, em primeiro lugar, uma espécie de tensão que pode assim ser apresentada:

1- Os acontecimentos da infância marcam profundamente os destinos do funcionamento psíquico - "[...] as lembranças ininteligíveis da infância e as fantasias que uma pessoa sobre elas constrói sempre põem em jogo o que há de mais importante em seu desenvolvimento psíquico [...]" (Freud, 1910/1992, p. 85);
2- Mas essas marcas, além de serem ininteligíveis, são inacessíveis enquanto tais.

Além disso, destaca-se uma concepção dinâmica da memória que também se encontra em jogo como um dos eixos centrais da chamada teoria da sedução, vigente entre 1895 e 1897 - ou seja, em período anterior à consolidação na teoria da existência da sexualidade infantil com sua caracterização específica. De acordo com essa teoria2, cenas reais de sedução de uma criança por um adulto ou por outra criança de mais idade estariam na base da causação das psiconeuroses mediante uma concepção da incidência do trauma dividida em dois tempos:

1º - O sujeito sofre passivamente um acontecimento de ordem sexual, sem que seja capaz de lidar com emoções sexuais por motivos relacionados ao fato dele estar inserido em um estágio precoce do desenvolvimento, anterior à fase da puberdade e, por isso, relativamente alheio às condições psíquicas e somáticas indispensáveis à integração de um evento relacionado à sexualidade; a cena assim vivida não é submetida a um recalque.
2º - Um novo acontecimento, que já tem lugar na fase da puberdade, mas que não precisa necessariamente ser de tom sexual em si mesmo, evoca o primeiro por intermédio de elos associativos, dando ensejo a um intenso afluxo de excitação e só então a via encontrar-se-ia traçada para o estabelecimento de um recalque. Temos aí o seguinte estado de coisas: a lembrança do acontecimento é mais patogênica que a própria vivência do acontecimento.

O exemplo clássico quanto a esse ponto é o caso clínico de Emma, que padece de uma coerção para não entrar desacompanhada em lojas, sendo isso por ela relacionado à lembrança de algo que lhe acontecera quando contava com doze anos de idade. Certa feita, quando Emma adentrou em uma determinada loja, dois balconistas puseram-se a rir dela, diante do que a jovem foge, tomada por um afeto de terror. Em sua interpretação particular do acontecido, Emma achava que os tais balconistas riam de suas roupas e lembrava-se de ter se sentido atraída por um deles. O trabalho de análise conduz, no entanto, à recordação de outra cena, sucedida quando Emma tinha oito anos: ela fora a uma espécie de mercearia comprar guloseimas e, nessa ocasião, o proprietário lhe tocou as partes genitais por cima de suas roupas. A cena dos doze anos teria, diz Freud, evocado uma liberação de excitação sexual transformada em angústia, isso por intermédio das associações com a primeira cena, aquela dos oito anos, associações essas centralizadas em torno do riso e do estar sozinha em uma loja. Para a teoria da sedução (Freud, 1950[95]/2003, p. 229), o recalque tem lugar quando uma recordação se torna um trauma apenas posteriormente.

Cumpre assim sublinhar que essa concepção dinâmica nos leva à noção de Nachträglich, termo que costuma ser traduzido por "a posteriori" - ou, como foi sugerido por Jacques Lacan, por "só-depois" [aprè;s-coup] - e que tem o sentido de indicar tanto o surgimento de um efeito retardado quanto o de um retorno ao passado, acrescentando-lhe algo (Hanns, 1996, p. 80). Traz a ideia de que o conteúdo da memória é constantemente submetido a remodelações de acordo com as novas configurações da dinâmica psíquica e mostra, como observam Laplanche e Pontalis (1967/1992), que, na psicanálise, não é possível reduzir a influência da história do indivíduo a um determinismo linear do passado sobre o presente, de forma que podemos nos referir objetivamente a um "trabalho" executado pela memória.

Não vamos percorrer aqui toda a discussão acerca da evolução da teoria freudiana das neuroses e a necessária consideração do caráter relativo do "abandono" da teoria da sedução em favor da centralização das fantasias - e, consequentemente, de uma valorização do fator constitucional, agora referido à constituição sexual3 - na etiologia das neuroses.

O que interessa aos nossos propósitos nesse momento é observar que essas ideias são acompanhadas por outra tensão que é, então, correlata do primeira e que podemos assim expor:

1- Lembrar-se de algo não é reproduzir mentalmente um acontecimento "real", mas uma construção regulada por uma dinâmica psíquica atual;
2- Ao mesmo tempo: o inconsciente é atemporal, suas inscrições não sofrem o efeito obliterador do tempo, ideia reiterada em muitos textos de Freud, mas especialmente nos trabalhos de metapsicologia4.

Por outro lado, é importante lembrar aqui uma das principais descobertas de Freud com o fenômeno da transferência: aquilo que não é rememorado é nela repetido como ato (Freud, 1914/1992).

De acordo com essas balizas e com os problemas teóricos que elas levantam, a memória de fato surge como principal elo entre a escuta clínica e a especulação teórica. Cabe, então, perguntar quais os elementos mais importantes desse segundo nível do discurso freudiano no tocante ao tópico aqui proposto.

Antes de mais nada, destaquemos que a memória assume mesmo o lugar de designação do psíquico. Nas primeiras incursões metapsicológicas realizadas por Freud, "o aparelho psíquico é um aparelho de memória".

Essa centralidade já surge no Projeto de uma psicologia - obra que o autor, como é sabido, optou por não publicar e que só surgiu a público postumamente -, quando o funcionamento psíquico é descrito por parâmetros neurofisiológicos a partir de dois pressupostos: o neurônio e a quantidade. Aí, quando Freud pensa as barreiras de contato para falar da condução da excitação entre os neurônios, ele logo indica a propriedade fundamental que deve ser levada em conta a propósito do "tecido nervoso":

uma característica principal do tecido nervoso é a memória, isto é, em termos bastante genéricos, a capacidade de ser alterado permanentemente por processos únicos, o que dá um contraste muito acentuado com o comportamento de uma matéria que deixa passar um movimento ondulatório e a seguir retorna ao estado inicial. Uma teoria psicológica de alguma relevância tem de fornecer uma explicação da 'memória' (Freud, 1950[95]/2003, p. 178, grifo nosso)

Nesse modelo, a memória é representada pelas facilitações5 entre neurônios específicos, chamados "Ψ", que oferecem resistência ao fluxo da excitação, ao contrário dos neurônios "Φ", que respondem pela função da percepção e que são permeáveis ao mesmo. É a própria passagem da excitação que faz as barreiras de contato caírem, produzindo modificações permanentes em Ψ e tornando as trocas de quantidade que aqui ocorrem assintoticamente mais semelhantes àquilo que se passa em Φ. Uma facilitação [Bahnung] entre neurônios surge quando a passagem da excitação nervosa produz a diminuição da resistência originalmente estabelecida entre dois neurônios. Assim, quando de uma nova excitação, o caminho facilitado será preferencial ao não facilitado. Entretanto, na rede complexa que então se constitui, a repetição exata de um mesmo caminho é praticamente impossível; como explica Garcia-Roza (1991), "a memória não é [...] a reprodução mecânica e idêntica de um traço concebido como algo imutável, mas uma memória constituída pela diferença de caminhos eles mesmos móveis" (p. 100).

Comparece aqui a ideia de que a representação possui uma face quantitativa que receberá guarida na dimensão econômica do discurso metapsicológico. Ela já era distinguida por Freud antes mesmo da redação do Projeto, quando de suas primeiras tentativas para fornecer uma etiologia das neuroses que as explicasse a partir da produção de uma reação de defesa pelo sujeito. No contexto, o autor afirmava que

[...] nas funções psíquicas, cabe distinguir algo (montante de afeto, soma de excitação) que tem todas as propriedades de uma quantidade - ainda que não tenhamos meio algum para medi-la -; algo que é suscetível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga e que se difunde pelos traços mnêmicos das representações como o faria uma carga elétrica pela superfície dos corpos (Freud, 1894/1992, p. 61).

Essa concepção do acontecimento psíquico se apoia na construção do conceito de traço mnêmico ou traço de memória, acima mencionado; é o conceito que responde pela forma como os eventos se inscrevem na memória. Para Freud, tais traços subsistem ininterruptamente, mas só são reativados quando investidos pela energia psíquica. Eles se diferenciam do conceito de engrama, trabalhado pela psicologia clássica, pois, ao contrário deste, não carregam a função de cópia da realidade. Freud não pensa, assim, uma semelhança entre o traço mnêmico e o objeto, ideia que o afasta de um cânone estritamente empirista6.

A capacidade para a memória - que então é distinta da rememoração - é a característica essencial de um aparelho descrito como uma espécie de órgão destinado a administrar os estímulos que incidem sobre o psíquico, sejam eles externos - dos quais o organismo pode fugir - sejam eles internos, posteriormente denominados pulsões [Triebe] e que, por eliminarem a possibilidade da fuga, exigem do psíquico um trabalho em função de sua relação com o corpo (Freud, 1915/2004a).

Outro ponto que precisamos observar aqui é que, quando Freud apresenta, pela primeira vez em uma obra por ele próprio publicada, um modelo do aparelho psíquico, ele o faz atribuindo à sua abordagem uma perspectiva genética, a qual nos informa que, inicialmente, esse aparelho possui uma única forma de funcionamento: o processo primário, no qual a obtenção do prazer é buscada pela via mais curta e mais rápida, o que implica uma energia que se desloca livremente entre as representações. A experiência originária desse aparelho seria a "experiência de satisfação". Nela, o traço mnêmico da satisfação da necessidade (o exemplo é o da nutrição) fica associado ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade e é por referência a esse processo que Freud fornece a definição propriamente psicanalítica de desejo. Ele explica que da próxima vez em que surgir a necessidade,

por causa do enlace assim estabelecido, será suscitada uma moção psíquica que vai procurar investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção e produzir outra vez a própria percepção, vale dizer, em verdade, restabelecer a situação da satisfação primeira. Uma moção dessa índole é o que chamamos desejo [...] (Freud, 1900[01]/1992, pp. 557-558).

A realização do desejo seria o reinvestimento da percepção do objeto que promoveu a satisfação original, e esse reinvestimento pode ter lugar sem a presença do objeto na realidade. Nesse caso, o resultado seria a produção de uma alucinação que, apesar de realizar o desejo, deixa insatisfeita a necessidade.

A criança deve, então, atravessar uma aprendizagem que a conduza à capacidade de realizar o chamado "processo secundário" que, para inibir o processo primário, trabalha com energia ligada, permitindo assim um adiamento da satisfação em função de experiências mentais que testam os possíveis caminhos para o seu alcance na direção da percepção, a partir do exterior, de um objeto semelhante àquele da experiência de satisfação. Na sequência, Freud diz algo que ocupa um lugar central na teoria psicanalítica: apenas o desejo pode colocar o aparelho psíquico em ação.

Nesse contexto da primeira tópica, que aqui é o do capítulo VII de A interpretação dos sonhos, os sistemas que constituem tal aparelho são o inconsciente, o pré-consciente e o consciente (os dois últimos são por vezes referidos em conjunto, como que indicando um único sistema "pré-consciente consciente", outras vezes são tratados separadamente - a diferença da referência será regulada pelo teor do problema a cada vez abordado pelo autor). Acompanhando uma observação de Breuer, com quem Freud escrevera Estudos sobre histeria (1893[95]/1992), resta demarcada uma separação entre memória e percepção - sendo esta imediatamente acompanhada de consciência -, sustentada na ideia de que é logicamente impossível que um mesmo sistema realize ambas as funções, uma vez que a primeira exige retenção de informação enquanto a segunda pressupõe um constante retorno do sistema a um estado vazio de conteúdo que o torne apto à recepção de novas informações.

Posteriormente, Freud desenvolverá em mais detalhe esse ponto por meio de uma analogia com o bloco mágico (1925/1992a), analogia que se presta a esclarecer a relação de reciprocidade e de exclusão mútua entre memória e percepção. Cabe notar que, assim como a primeira, a percepção também é vista como uma função ativa do sujeito, algo que também afasta a psicanálise freudiana da psicologia clássica; a percepção, diz Freud,

[...] não é um processo puramente passivo: o eu7 envia de maneira periódica, ao sistema percepção, pequenos volumes de investimento por meio dos quais toma amostras dos estímulos externos para tornar a se retirar depois de cada um desses avanços experimentais (Freud,1925/1992b, p. 256)

Retornando ao capítulo VII de A interpretação dos sonhos, precisamos a partir dele destacar que os processos primários, cuja ocorrência pressupõe a função da memória, possuem uma prioridade cronológica: estão presentes desde o início, enquanto os processos secundários consistem em um desenvolvimento posterior. Donde Freud retira dois resultados, cujo esclarecimento para o problema da memória será explicitado em seguida. São eles:

1- O âmago de nosso ser, constituído por moções de desejo inconsciente, permanece inacessível à compreensão e inibição pelo sistema pré-consciente;
2- Grande parte do material mnêmico fica inacessível aos investimentos do pré-consciente; as condições de desenvolvimento do aparelho indicam a existência de um reservatório de lembranças infantis subtraídas desde o início ao pré-consciente8.

Assim, o que podemos concluir aqui é que os traços mnêmicos mais determinantes para a vida do adulto não são acessíveis à rememoração, porque se inscreveram em uma época em que o único funcionamento do aparelho era o processo primário.

O relato da experiência de satisfação mostra que primeiro há a memória e depois disso, o psíquico pelo desejo. A memória não é, assim, uma função do aparelho; ela é condição para o aparelho. Todas as suas propriedades - o funcionamento progressivo da vida de vigília e o regressivo dos sonhos, a origem do desejo como busca de um objeto perdido a partir da experiência de satisfação, o pensamento - são consequências da inscrição de traços de memória que se organizam segundo sistemas e que inicialmente são submetidos a um único tipo de funcionamento que é o processo primário.

Temos aí a base para a distinção entre memória e rememoração que é retomada no Além do princípio do prazer - portanto, já no contexto do segundo dualismo pulsional - nos seguintes termos:

todos os processos de excitação que ocorrem nos outros sistemas [que não o sistema que engloba percepção e consciência] deixam atrás de si traços duradouros que constituem o fundamento da memória. Esses traços são, portanto, restos de lembranças que nada têm a ver com o tornar-se consciente. Aliás, os traços de lembrança mais intensos e duradouros são justamente aqueles que foram impressos por um processo que nunca chegou a alcançar a consciência (Freud, 1920/2006, p. 149).

Agora podemos discernir porque os problemas colocados acima, aqueles que chamamos de "tensões", na verdade, não guardam nenhum caráter paradoxal. Para entender isso, basta ter em mente:

1- A distinção entre memória e rememoração;
2- A distinção, que está na base metapsicológica da primeira, entre o processo primário e o secundário.

Os traços mnêmicos envolvidos em processos primários inacessíveis nunca são desativados ou arrefecidos - ou seja: eles permanecem intensamente ativos e determinantes relativamente ao comportamento do sujeito -, mas a rememoração, sendo função do processo secundário, exige que eles sejam sempre submetidos a algum nível de elaboração9.

A característica essencial da memória enquanto tal na psicanálise - e nisso reside uma de suas principais contribuições teóricas - não é, assim, promover a função de rememoração, mas a de repetição. Eis então algumas das diretrizes que nos permitem pensar, ao acompanharmos a teoria freudiana, o fato de sermos de algum modo, de um modo que é essencial, aquilo que não podemos lembrar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Léa Silveira
E-mail: leasilveiralea@gmail.com

Recebido/Received: 18.3.2013/3.18.2013
Aceito/Accepted: 1.5.2013/5.1.2013

 

 

* Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA); doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). (Lavras, Minas Gerais, Br.)

1 Este trabalho foi apresentado no V Seminário de Centros de Memória Empresariais e Universidades Brasileiras, realizado pela Associação Pró Casa do Pinhal e pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, São Paulo, em novembro de 2008.
2 Ver, por exemplo, Freud, 1896/1992.
3 Diz Freud em 1905 ao comentar, ele próprio, o "abandono" da teoria da sedução: "Quando as influências acidentais da vivência perderam terreno, os fatores da constituição e da hereditariedade reafirmaram sua primazia. Mas com uma diferença relativamente à concepção dominante: em minha doutrina, a 'constituição sexual' substituiu a disposição neuropática geral" (1906[05]/1992, p. 267) Cf. Laplanche, 1987/1992 e Laplanche & Pontalis, 1964/1988.
4 Ver, por exemplo, O recalque (Freud, 1915/2004b) e O inconsciente (Freud, 1915/2006).
5 A rigor, ela é representada pelas diferenças entre essas facilitações.
6 Cf. Simanke, 2006.
7 O trecho foi extraído do texto A negação, posterior a O eu e o isso (Freud, 1923/1992). Sendo assim, já estamos na segunda tópica, e a função mencionada é exercida pela parte inconsciente do eu. É isso que nos permite entender que, no texto sobre o bloco mágico, contemporâneo do primeiro, Freud atribua esse investimento ao inconsciente (1925/1992a, p. 247).
8 Cf. seção "E" do capítulo VII de A interpretação dos sonhos.
9 Que será dependente do investimento em representações-de-palavra (Freud, 1950[95]/2003; 1900[01]/1992; 1915/2006).