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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.2 no.2 São João del Rei jun. 2013

 

ARTIGOS

 

A estrutura familiar e a infantilização no cuidado de sujeitos psicóticos

 

Family sctructure and infantilization in the care of psychotic subjects

 

La structure familiale et la infantilisation dans le cadre de soins pour des sujets psychotiques

 

La estructura familiar y la infantilización en la atención de personas psicóticas

 

 

Tiago Humberto Rodrigues Rocha I, II*; Maira Rodrigues Silva II**

I Universidade de São Paulo - USP - Brasil
IIUniversidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho teve por objetivo investigar, a partir do referencial psicanalítico, as repercussões subjetivas de familiares de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, na cidade de Uberaba, Minas Gerais, após o diagnóstico de transtorno mental de um de seus membros. De acordo com pesquisas, sofrimento e insegurança são constantes na família diante da situação de adoecimento mental. Para o processo de coleta de dados, optou-se pela forma semiestruturada de entrevista e criou-se um roteiro, contendo 15 questões, que foram aplicadas em cinco familiares cuidadores. Obteve-se como resultados os encargos subjetivos do processo de cuidado, relatos de culpa, superproteção, infantilização e medo. Dentre eles, os encargos subjetivos e superproteção foram os que mais apareceram nas entrevistas, o que pareceu estar relacionado ao fato de os cuidadores terem pouca confiança na autonomia de seus familiares acometidos de sofrimento mental.

Palavras-chave: Psicose; família; sujeito-cuidador; Centro de Atenção Psicossocial.


ABSTRACT

The present study aimed to investigate, from psychoanalysis, the subjective effects of family users a Psychosocial Care Center in the city of Uberaba, Minas Gerais, after the diagnosis of mental disorder. According to surveys, suffering and insecurity are constant in the family before the situation of mental impairment. For the process of data collection was chosen by way of semi-structured interview and created a script containing fifteen questions, which were applied to five family members. Obtained results as overhead feelings, guilt, overprotection, infantilization and fear. Among them, subjective charge and overprotection were most likely appeared in the interviews, which is related to the fact that caregivers have little confidence in the autonomy of their relatives suffering from mental distress.

Keywords: Psychosis; family; subject care provider; Psychosocial Care Center.


RÉSUMÉ

Le présent travail visait à étudier, à partir du référentiel psychanalytique, les effets subjectifs sur la famille des usagers d'un Centre de Soins Psychosociaux dans la ville de Uberaba, dans l'État de Minas Gerais, après un diagnostic de maladie mentale. Selon les enquêtes, la souffrance et l'insécurité sont constantes dans la famille confrontée à une situation de maladie mentale. Pour le processus de collecte des données, la technique d'entrevue semi-structurée a été choisie et un script contenant une quinzaine de questions, qui ont été appliquées aux membres de cinq familles, a été créé. On a obtenu comme résultats, des sentiments de culpabilité, de surprotection, d'infantilisation et de peur. Parmi ceux-ci, le fardeau subjectif et la surprotection ont été les plus apparents durant les entretiens, ce qui a semblé être lié au fait que les soignants ont peu confiance dans l'autonomie de leurs proches atteints de souffrance mentale.

Mots-clé: Psychose; parents; sujet-soignant; centre de soins psychosociaux.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo investigar, desde el psicoanálisis, los efectos subjetivos de los familiares de los usuarios de un Centro de Atención Psicosocial en la ciudad de Uberaba, Minas Gerais, después del diagnóstico de trastorno mental. Según las encuestas, el sufrimiento y la inseguridad son constantes en la familia antes de que la situación de deterioro mental. Para el proceso de recolección de datos fue elegido por medio de entrevista semi-estructurada y creado un script que contiene quince preguntas, que se aplicaron a cinco miembros de la familia. Los resultados obtenidos fueron los gastos generales sentimientos, la culpabilidad, la sobreprotección, la infantilización y el miedo. Entre ellos, la carga subjetiva y la sobreprotección fueron los más recurrentes en las entrevistas, que se relaciona con el hecho de que los cuidadores tienen poca confianza en la autonomía de sus familiares que sufren de angustia mental.

Palabras claves: Psicosis; familia; sujeto-cuidador; centro de atención psicosocial.


 

 

Introdução

Lacan apostou na formação do eu como o sintoma maior do núcleo familiar. No que concerne ao núcleo parental, percebemos o movimento de alienação e antecipação do sujeito como fatores cruciais à estruturação psíquica. Desse modo, não há como falar em sujeito sem haver referência a uma exterioridade. O eu é sempre um Outro que antecipa, reconforta, invade, abandona e ameaça ao mesmo tempo em que se coloca como rival, algoz ou fonte de redenção.

Pensar o psicótico sem uma fina articulação de sua história familiar é como tentar pensar a existência da sociedade sem levar em consideração a injunção do momento histórico ao estabelecimento de laços sociais. Algo impossível de articular e que se passa em um campo de afetação em que a linguagem é o fundamento mais básico do recobrimento ao gozo desmedido de nossa condição pulsional. Algumas pesquisas (Almeida et al., 2010; Pegoraro & Caldana, 2006; Rosa, 2003) apontam a sobrecarga1 do cuidador e o adoecimento mental como se fossem duas exterioridades excessivamente distintas e que, por um mero acaso do destino, coloca um na posição de fragilizado/adoecido e o outro naquela a quem será dada ou cobrada a outorga do cuidado.

A psicose e toda sua particularidade na constituição ou não de laços sociais, jamais devem ser desarticuladas de sua origem dada à entrada no campo da linguagem. Desse modo, este texto é parte de um projeto de iniciação científica desenvolvido durante o segundo semestre de 2011 e o primeiro de 2012, na Universidade Federal do Triângulo Mineiro e que procurou investigar os encargos subjetivos de familiares cuidadores de psicóticos.

 

Atenção à saúde mental como forma de implicação da família no sintoma do sujeito

No Brasil, após a década de 1970, sob influência da Reforma Psiquiátrica, que se baseava na desinstitucionalização e quebra dos paradigmas relacionados aos manicômios e sua forma de funcionamento, foram realizadas mudanças na política de saúde mental, com propostas que visavam a reduzir o número de pacientes internados e o tempo de internação, maior participação da família na assistência ao doente e definição do papel de cada um na vivência do transtorno.

O modelo seguido para a assistência em saúde mental, nos dias atuais, caracteriza-se por um regime aberto, que possibilita o aprofundamento e preservação dos laços sociais do paciente, de modo que o Núcleo de Assistência Psicossocial (NAPS) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) dos municípios optam por desenvolver atividades que integram os grupos familiares de maneira a promover maior conhecimento sobre a psicose e maior interação entre paciente e familiar, além do convívio entre usuários (M. A. O. Pereira & A. Jr. Pereira, 2003).

Nesse modelo assistencial, as relações de alteridade são preservadas e os laços sociais são fundamentais como reguladores da inconstância do eu, pois como bem lembra Lacan, o eu ";é o sintoma humano por excelência, é a doença mental do homem" (Lacan, 1948/1998, p. 25). A implicação da família nesse processo torna-se importante para o acompanhamento do sujeito na instituição. Muito além da mera presença da família como visitante do familiar adoecido dentro das instituições - fato que não ocorre nas instituições de segregação manicomiais - o projeto terapêutico dos CAPS preza por sua implicação política. Ao trazer para primeiro plano a problematização das relações surgidas no meio familiar, o projeto dos CAPS e NAPS permite a desalienação da ideologia vigente em que o sujeito é o único responsável por seu suposto adoecimento.

Desse modo, é necessário um maior conhecimento não somente sobre o papel do familiar no convívio com o doente, mas, especialmente, sobre as reviravoltas do imaginário no seio familiar em decorrência do diagnóstico da doença que, assim, deixa de ser do sujeito e passa a ser coletiva. O outro, nesse processo, pode portar significantes, como culpa e impotência diante das implicações e especificidades do transtorno, além da dificuldade em lidar com os sintomas mais graves, como as crises ocorridas e as limitações do doente.

Além do período que os usuários dos serviços passam em instituições como CAPS e NAPS, faz-se necessário reconhecer e valorizar o tempo que passam em casa, no convívio com seus familiares, que, de um ou outro modo, possuem alguma representação sobre o adoecimento mental existente. Quando um membro da família adoece gravemente causa certo impacto na família, que pode ser de caráter prático, como alterações no cotidiano, ou de caráter subjetivo, trazido principalmente pelo encargo existente em cuidar do doente.

Em pesquisa realizada por M. A. O. Pereira e A. Jr. Pereira (2003), que investigaram os problemas enfrentados por familiares de sujeitos com algum tipo de doença mental, foram encontrados três tipos de sobrecarga relatada pelas famílias: financeira, física e emocional, identificando ainda alterações nas atividades de lazer e sociabilidade desses familiares. Os autores relatam também a diferenciação entre dois tipos de encargos familiares: objetivos e subjetivos. Sobre esse aspecto, afirmam que:

Os encargos objetivos incluem o tempo utilizado para a assistência, a redução das relações sociais e do tempo livre, dificuldades econômicas e dificuldades quanto ao trabalho. Quanto aos encargos subjetivos, foi identificado o desenvolvimento de sintomas de ansiedade, efeitos psicossomáticos, sentimentos de culpa, vergonha e de desorientação quanto às informações sobre os distúrbios mentais, bem como isolamento social (p. 94).

Albuquerque (2007) afirma que diante das mudanças trazidas pelo diagnóstico de doença mental, a adaptação se torna facilitada quando a família é flexível. Já em casos opostos, quando os membros não conseguem controlar os conflitos existentes ou quando se julgam superiores por estarem sadios, a adaptação dificilmente ocorre. Dessa forma, o sujeito busca seu espaço para conviver com a marca de doente mental ao mesmo tempo em que precisa conviver com os seus familiares que não têm coerência na maneira de agir com ele.

De acordo com Melman (2002), a partir do diagnóstico de transtorno mental, toda a família se afeta de alguma forma, ocorrendo alterações muito significativas no cotidiano e no domínio psicológico dos membros, implicando em adaptações nunca esperadas por eles. O sujeito passa a estabelecer uma relação de constante afetação com o seio familiar, invadindo e sendo invadido pelas marcas das manifestações da loucura. Diante desse contexto, deve-se levar em conta qual a influência que a estrutura familiar pode exercer no cuidado de sujeitos psicóticos e neuróticos graves. É preciso analisar, por exemplo, a relação estabelecida entre os familiares e o sujeito com sofrimento mental e como essa relação colabora ou não para melhor adaptação à condição da doença. Não devemos nos esquecer de que o inconsciente é o discurso do Outro, na medida em que é compostos por falas, objetivos, desejos, faltas e fantasmas daqueles que nos precedem (Lacan, 1949/1998). Dessa forma, a psicose não pode ser concebida como uma condição exclusiva do sujeito, mas sim uma produção a partir das marcas do outro em mim.

De acordo com M. A. O. Pereira e A. Jr. Pereira (2003), faz-se necessário verificar como a não aceitação da doença pelo familiar do paciente pode influenciar no cotidiano do psicótico. Ainda segundo os autores, considera-se a família como a rede social básica da pessoa, fazendo com que a mesma seja a unidade primordial na questão saúde/doença, permitindo intervenções nos problemas do dia a dia, resolução de conflitos, diminuição do estresse e prevenção de possíveis recaídas, tão comuns a transtornos mentais. Muito além de uma rede social básica, o núcleo familiar é o nascedouro do ";eu" enquanto doença mental maior do homem (Lacan, 1953/2009).

Segundo Melman (2002), o adoecimento mental também fere a autoestima dos pais, que relatam a culpa por terem falhado em sua obrigação de criar filhos saudáveis. Há o questionamento sobre onde foi cometido algum erro, ou onde poderia ter havido atitude diferente, que não gerasse o transtorno. É um pensamento comum e incômodo, que pode influenciar diretamente na forma como o cuidador lida com o sujeito psicótico. A condição narcísica parental se coloca a todo tempo ameaçada e limada em suas possibilidades de alcançar algum tipo de Ideal. O ideal egóico dos pais, como bem nos lembra Freud (1914/1996a), prolonga-se aos filhos como extensão própria do eu, levando o autor a afirmar serem os filhos um prolongamento narcísico dos pais.

Para Rosa (2003), é possível reconhecer uma tendência dos familiares a superproteger o sujeito, o que pode ser, além de uma incoerência no cuidado, uma das representações de culpa e fracasso. O psicótico pode ser sentido como o Outro humilhado e que também humilha e fere toda a estrutura familiar. Quanto a isso, Lacan nos lembra de que ";os momentos de identificação e negação do eu se confundem com a acusação da usurpação do outro sobre si" (1948/1998, p. 117). Essa forma de relação vigente entre o familiar-outro-cuidador e o psicótico, na maioria das vezes, desqualifica as capacidades e subjetividade, resultando em uma dependência extrema ao seu cuidador e/ou ao serviço de saúde, já que esses acabam por tornarem-se os balizadores necessários à regulação social das pulsões.

Assim, analisando estudos feitos na área da saúde mental e sua relação com a família, como os de Pace (2005), Melman (2002) e M. A. O. Pereira e A. Jr. Pereira (2003), fica evidente a possibilidade de o Outro familiar ser fator de influência no cotidiano de psicóticos, bem como ser parte fundamental na estruturação da psicose. Assim, a presente pesquisa teve como objetivo principal investigar as reações originadas a partir do diagnóstico de psicose e do convívio com o sujeito psicótico.

 

O contexto de investigação

Foram entrevistados cinco cuidadores de usuários que atendiam aos critérios preestabelecidos. Todos eram familiares responsáveis pela maior parte dos cuidados prestados ao familiar adoecido e que tivessem contato com as atividades realizadas pelos usuários no CAPS. Em relação às características sociodemográficas dos familiares, três eram mulheres e dois eram homens, que foram chamados respectivamente de Joana, Celina, Camila, Cláudio e Paulo, nomes fictícios utilizados para preservar a identidade. A renda familiar média variava de um a seis salários mínimos, e a faixa etária média era de 50 anos. Joana e Celina eram mães de usuários, sendo a primeira casada e a segunda divorciada há 20 anos. Camila, irmã de um usuário, era a mais velha dentre os três irmãos e assumiu o cuidado para ajudar a mãe. Cláudio foi o entrevistado mais jovem e único sem relação de consanguinidade com o usuário do CAPS e Paulo, o mais velho dos entrevistados, morava sozinho com o filho e era o familiar com maior conhecimento sobre o diagnóstico e tratamento.

O estudo foi realizado em um CAPS na cidade de Uberaba, Minas Gerais, que funciona de segunda à sexta-feira e conta com médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e técnicos de enfermagem, terapeutas ocupacionais e equipe de apoio com cozinheira, equipe de limpeza e secretária. Os familiares foram selecionados a partir de prévia conversa com os psicólogos da instituição acerca da interação deles com as atividades propostas pela instituição e interesse no tratamento dos usuários. Posteriormente foram convidados a conhecer a pesquisa e participar, caso tivessem interesse, após esclarecimento e leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Toda a pesquisa foi desenvolvida a partir do referencial psicanalítico e a análise dos dados priorizou aspectos da teoria psicanalítica.

 

O peso de um Outro qualquer

Entre todas as repercussões subjetivas encontradas e analisadas nas entrevistas, o significante mais relevante foi o encargo subjetivo vivenciado pelos cuidadores. Estudos como o de Almeida et al. (2010) e de Pegoraro e Caldana (2006) corroboram o resultado encontrado sobre a ocorrência de sobrecarga. De acordo com a literatura, o termo sobrecarga familiar - aqui tomado como sinônimo de encargo subjetivo - fundamenta-se no impacto provocado pela presença do sujeito com sofrimento mental junto ao meio/ambiente familiar e envolve aspectos econômicos, práticos e emocionais a que se encontram submetidos aqueles familiares que se encarregam do cuidado necessário e exigido pelo sujeito (Melman, 2002). A seguir, observaremos os diversos modos em que esse encargo aparece nos discursos dos familiares.

 

O sujeito-cuidador e os modos de afetação de sua realidade

O encargo objetivo está relacionado às consequências da alteração da rotina e dos projetos de vida dos cuidadores, da diminuição da vida social, da supervisão de comportamentos problemáticos entre outros aspectos. O cuidado com o sujeito não barrado psicótico requer, inevitavelmente, algumas adaptações na vida diária de toda a família, e os cuidadores acabam por alterar ou até mesmo desistir dos seus planos, deixando de viver sua própria realidade e passando a viver uma realidade construída a partir do convívio com o paciente (Almeida et al., 2010). Em nossa pesquisa, encontramos as seguintes falas que representam esse tipo de encargo:

Levei em novos psiquiatras, mas a troca constante da medicação só piorava a situação. Meu filho mais novo voltou para cá para me ajudar (Celina, mãe).
[...] Aí eu larguei, abandonei tudo, fui pra casa da minha mãe que era um sítio, uma chácara, ficou só meu marido aqui (Joana, mãe).

Nesses recortes é possível reconhecer algumas mudanças trazidas no cuidado com psicóticos. No primeiro caso, o filho mais novo voltou para a cidade da mãe, abandonou seu curso universitário em outro estado para ajudá-la no cuidado do irmão, que passava por um período de crise. Já no segundo caso, a mãe - também psicótica - abandonou sua residência e mudou-se para o sítio de sua própria mãe a fim de estabilizar seu momento de crise e também para receber auxílio nos cuidados com seu filho. Abrir mão de projetos como cursar uma universidade e mudar-se para casa de parentes para ajudar no cuidado são ações comuns em casos de famílias que possuem um ente mentalmente adoecido. Porém, tais mudanças no cotidiano dos familiares podem não ser suficientes para proporcionar todo o cuidado que o sujeito necessita. Segundo Petry (2005), desde a desinstitucionalização dos doentes mentais crônicos e alteração na forma de cuidado, percebemos a necessidade de uma rede de serviços que dê suporte ao sujeito e à sua família para amenizar as dificuldades encontradas no cotidiano. São necessárias alternativas além daquelas propostas pelos CAPS dos municípios.

Fazemos praticamente tudo juntos, né? Visitamos o meu pai, aonde eu vou eu carrego ele (Celina, mãe). às vezes ele me ajudava na loja, fazia serviços de bancos, mas depois dos 17 anos que teve um agravamento, ele ficou agressivo, fugia... precisava chamar até a polícia... aí parou, né? Fica mais em casa (Paulo, pai)

Nesses recortes é possível perceber a tensão existente em cada um dos discursos dos familiares. O fato de ser necessário realizar mudanças no cotidiano e na forma de lidar com os sujeitos psicóticos, como levá-los junto para todos os lugares, inclusive nos locais de trabalho, e as alterações de atividades que antes eles realizavam sozinhos, causa incômodo e frustração nos familiares cuidadores, além do desgaste físico decorrente da impossibilidade de ficarem sozinhos. O significante ";carregar", usado por um dos cuidadores ao se referir ao familiar adoecido, nos remete à ideia de que este parece ser percebido como um fardo. Reificar sujeitos com transtornos mentais pode ser uma das medidas defensivas encontradas ante os excessos oriundos da necessidade de cuidados. Aqui, o Outro da loucura alcança seu grau máximo de invasão nas relações que se estabelecem entre os sujeitos. De acordo com Pegoraro e Caldana (2006), a sobrecarga de ordem prática, traduzida pela dependência do sujeito, gera uma tensão cotidiana no cuidador, que agrega essas atividades a outras responsabilidades da vida diária. Consideramos assim que o familiar recebe a outorga do cuidado do sujeito, não sendo devidamente realizada enquanto um pedido, mas sim como uma incumbência da qual participa de forma passiva.

Esse aspecto se agrava ainda mais em cuidadores que sobrevivem com baixa renda:

Antes eu levava ele no carrinho, mas aí quebrou e agora tô sem dinheiro pra poder arrumar. Aí ele vai e volta a pé (Paulo, pai).

O ";carrinho" a que o pai se refere caracteriza o automóvel que antes ele utilizava para levar o filho aos médicos e ao CAPS. Além desse problema, aparece principalmente a dificuldade em comprar a medicação dos familiares (que não possuem sofrimento mental diagnosticado), os quais têm o custo muito elevado para os padrões financeiros dos entrevistados. De acordo com Melman (2002), muitas vezes, após a manifestação da doença, é necessário que toda a família se reorganize, ampliando sua jornada de trabalho devido às novas necessidades financeiras, além do alto custo da medicação, tratamento, alimentação, vestuário e transporte, já que na maioria dos casos, o paciente psiquiátrico encontra-se economicamente improdutivo. Tal questão de improdutividade, muitas vezes, é atestada pela aposentadoria adquirida após diagnóstico de esquizofrenia, por exemplo. O benefício auxilia os familiares, porém, pode acabar estagnando o sujeito, de forma que não faça parte do mercado de trabalho novamente. O diagnóstico, por outro lado, rotula e anula possibilidades de atuação caso o sujeito não fosse sentenciado como inválido.

Para Rosa (2003), a ociosidade constante do psicótico compromete sua autonomia e a liberdade do familiar cuidador. O significante ";aposentado" em nosso contexto social não permite outras formas de circulação e da sobreposição de uma nova significação. Com isso percebemos um fardo oriundo da não presença de outros signos possíveis ao sujeito que não aqueles já previstos pelo que a condição de estar aposentado possa gerar.

No que concerne à preservação de laços sociais, o sentenciamento definitivo da aposentadoria promove uma ruptura nas possibilidades de encontrar outros suportes à condição do adoecimento. O trabalho, mesmo operando como instrumento ideológico de alienação, é local privilegiado para se encontrar aporte social ao sujeito. Os vínculos estabelecidos promovem a sustentação de laços sociais que talvez não precisassem ser buscados na (re)inserção social promovida pelos CAPS. Talvez o radical ";re" da inserção social seja, para alguns casos, um significante de marcha a ";ré", um passo atrás que não precisaria ser retomado caso a preservação de certas formas de trabalho pudessem ainda ser preservadas ao invés de simplesmente alijadas do horizonte do sujeito enfermo.

 

O texto do sujeito-cuidador: a loucura como peso

De acordo com Schene, Tessler e Gamache (1994), a sobrecarga subjetiva é caracterizada por alterações nos aspectos emocionais vivenciadas pelo cuidador ou nas preocupações, considerações sobre o diagnóstico, pessimismo e incômodos existentes no fato de ter que se responsabilizar pelos cuidados de um sujeito psicótico. A pesquisa mostrou significativa diferença de sentidos atribuídos à responsabilidade de cuidar do familiar adoecido. Por um lado, alguns dos entrevistados demonstraram que o cuidar assume um caráter de obrigatoriedade, já que nenhum outro familiar aceitou a responsabilidade e sentem como se não houvesse outra escolha, ou seja, cuidam porque ";alguém tem que cuidar". Nos casos em que não existe o laço sanguíneo, esse modo de se relacionar é ainda mais evidente. Outros assumem o papel de cuidador de uma maneira menos impositiva, principalmente no caso dos familiares mais próximos, como mães e pais.

A seguir, é possível observar uma clara expressão dessa discrepância entre pessoas do mesmo convívio social e que mantêm uma radical distinção na relação com o familiar adoecido:

O irmão dele fala que eu sou muito homem de cuidar dele... disse que se o José sentar perto dele pra comer na mesa ele sai (Cláudio, cunhado).

Muitos familiares, em situação de adoecimento de um dos membros, sentem-se constrangidos pelas alterações no comportamento e pela dificuldade em lidar com os sintomas que aparecem, sobretudo nos momentos de crise, como no caso do relato acima, citado na fala do cunhado. Nesse caso, o cunhado estabeleceu um laço social com a função de cuidar do familiar adoecido, pois percebeu que ninguém além dele e da esposa, irmã do usuário do CAPS, o faria. Alguns sentem receio da agressividade que muitas vezes é comum aparecer nos estágios agudos da doença. Optamos por abordar esse receio da agressividade além dos destacados anteriormente devido ao fato de terem aparecido nas entrevistas mesmo que de forma menos explícita.

Mas ele já passou um susto na gente. Já quebrou vidro. Teve um dia que ele ficou nervoso (Camila, irmã).

Outro aspecto considerável nas entrevistas, por ter aparecido em três delas, é a percepção que alguns familiares têm acerca da doença e seus sintomas como condição exclusivamente orgânica, que implica em conhecimento técnico adquirido inclusive pela realização de cursos sobre o diagnóstico. Como segue:

Tô fazendo até um curso de transtornos pros familiares que é muito bom... Explica que a gente tem que ter controle da paciência (Cláudio, cunhado).
Pelo que eu vi nas palestras que tem sobre isso, o que os médicos explicam o povo do CAPS (Paulo, pai).
Ele é um caso diferenciado, porque tem outras dificuldades além da mental. Pra mim é mais fácil, porque sou pedagoga, fiz vários cursos na área de deficiência. Eu que vou cuidar dele sempre mesmo (Celina, mãe).

Nessas falas, observamos que os familiares acabam por estabelecer novas relações com os sujeitos adoecidos a partir de um discurso apoiado sobremaneira na questão técnica e não na condição subjetiva. Assim, no laço social estabelecido, o saber produz a verdade sobre o sujeito cotidianamente como forma de responder às demandas da angústia provocada pela falta (aqui alçada à categoria de objeto pequeno ";a"). Produzir um conhecimento sobre a doença permite ao familiar livrar-se do encargo do cuidado que o vínculo afetivo possa estabelecer e permite circular pelo campo da loucura sem que se torne implicado subjetivamente com isso. A objetividade da verdade que se passa a produzir sobre a loucura do sujeito psicótico serve como sustentáculo de uma suposta sanidade do cuidador. Assim, percebemos a existência de um discurso sem palavras que estabelece ";certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas" (Lacan, 1969/1992, p. 11). Muito além de enunciados verbalizados, as relações que se estabelecem possuem um caráter cristalizado, em que a circulação dos significantes torna-se estanque e excessivamente empobrecida.

 

Superproteção de quê e para quem?

Outro significante que se destacou nas falas dos entrevistados foi a superproteção. Em grande parte das falas dos entrevistados foi possível perceber a superproteção dos cuidadores em relação ao sujeito, principalmente no caso das mães que cuidam dos filhos adoecidos. De acordo com amostra de pesquisa de Rosa (2003, citado por Pace, 2005), observamos que há grande tendência das mães cuidadoras a serem superprotetoras, enquanto os companheiros reconhecem que os filhos adoecidos têm capacidades de realizar diversas atividades sozinhos e acabam por estimular sua independência e colaborar para diminuir a sobrecarga do cuidador. A fala seguinte, de uma das mães entrevistadas, confirma as considerações da autora:

Eu solto ele um pouco, ele sabe se relacionar, é bem sociável, agradável e criativo. Mas ao mesmo tempo não pode soltar muito (Celina, mãe).

Algumas mães superprotegem tanto seus filhos, que acreditam ser melhor mantê-los em casa, sob seus cuidados, do que permitir alguma liberdade e autonomia. O significante ";soltar", presente na fala dessa mãe, evidencia a dificuldade da mesma em desenvolver o potencial do filho, permitindo alguns momentos de ";soltura" dele em oposição a grande maioria dos momentos em que ele fica ";preso" em casa, no CAPS ou a ela própria, como se ele só existisse enquanto acompanhado por alguém. A condição de superproteção parece estar alçada à categoria de ";enunciado primordial" (Lacan, 1969/1992, p. 11), a partir do qual seu filho pode ser tratado somente por meio de uma relação de indiferenciação. Sobre esse aspecto, Mannoni (1964/1977) questiona a sociedade de forma geral, apontando, no caso de pessoas com deficiência, a inexistência de um lugar através do qual esses sujeitos se posicionem no mundo como falante, desejante e participador da história familiar. Ainda de acordo com a autora, todos os seres humanos têm direito a pertencer a uma família e receber o papel de um membro constituinte da vida familiar, apropriando-se dos elementos simbólicos existentes e estruturando sua personalidade por meio das relações cotidianas, mesmo que seja alguém que não teve o desenvolvimento normal ou recebido diagnósticos como os de lesão cerebral, delinquência ou psicose. Segundo Mannoni (1964/1977): ";Mesmo nos casos em que está em jogo um fator orgânico, a criança não tem só que fazer face a uma dificuldade inata, mas ainda à maneira como a mãe traduz este defeito num mundo fantasmático que acaba por ser comum aos dois" (p. 19).

Portanto, a perda de gozo por adentrar a linguagem vem carregada com a expectativa de que haja sempre um campo de falências simbólicas a circundar ao redor do sujeito. Calligaris (1989) alerta para a brutalidade que aí pode ocorrer até mesmo com certo constrangimento corporal do sujeito que, neste caso, efetivamente testemunha efeitos de uma situação de crise. Ainda para o autor, ";o que aparece é isto: significantes de uma grande brutalidade, que estão escrevendo o destino do sujeito. Não estão abrindo um espaço de significação, mas determinando diretamente um destino" (Calligaris, 1989, p. 29). Portanto, são marcas que surgem para o sujeito no Real, marcas que expressam justamente aquilo que foi foracluído, mas que, no lugar de surgirem enquanto significação, aparecem como imposições do Real. Daí a presença de sintomas psicóticos como resultado do retorno, no Real, daquilo que não se inscreveu, no Simbólico, por meio da metáfora paterna.

Talvez como medida defensiva, o familiar passa a se comportar como um suporte presente e necessário às falhas que, por si só, já estão antecipadas ao sujeito, ao que Calligaris (1989) remete à categoria de brutalidade. A expectativa cria a ocasião e produz uma necessidade condizente à realidade do próprio familiar. Lacan (1948/1998) nos lembra do drama do estádio do espelho ";cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação" (p. 100). Nesse caso, a antecipação está mais alocada em um campo de violência, por ser excessivamente invasiva, do que em um campo em que o sujeito possa afetar a realidade externa se mot-erializando (Lacan, 1969/1992). Ou seja, se materializando a partir da palavra.

A fala de outra mãe vem corroborar o que Rosa (2003) apontou anteriormente:

Eu acho que ele precisava arrumar uma namorada pra e... [pausa]... uma companhia, né? Uma relação. Mas às vezes eu penso que tem muita gente que engana, que não vale a pena... [pausa]. Então às vezes é melhor deixar quieto (Joana, mãe).

Para Joana, afastar o pensamento sobre a possibilidade de o filho constituir um relacionamento afetivo com alguém demonstra a ideia pressuposta de que ela poderia protegê-lo dos sofrimentos que namoros podem trazer, o que ocorre de forma inevitável em todas as relações humanas, sejam elas duradouras ou não. Aliada à superproteção, observamos extrema tendência à infantilização e antecipação dos cuidados prestados ao familiar. Alguns familiares agem diariamente realizando funções básicas como alimentação e higiene pessoal dos sujeitos sem realizar orientações e tentativas para que eles as desempenhem sozinhos e utilizem o potencial que, muitas vezes, existe. Muitos são infantilizados de forma a predominar o pouco desenvolvimento das capacidades individuais:

A gente sente que tem dia que ele fica lúcido, mas depois some tudo e ele fica do mesmo jeito, uma criança (Cláudio, cunhado).
Passa um brinca com ele, passa outro ri pra ele. Tem as vizinhas que levam bolacha que ele gosta (Camila, irmã).
Porque assim, ele é igual um bebê... Tem que estar o tempo todo olhando ele. (Camila, irmã).

Nessas falas, é necessário demonstrarmos as idades dos usuários em questão, 48 (Cláudio) e 50 anos (Camila). O cuidado e comportamento comuns a essas idades, muitas vezes, são substituídos pelo cuidado real prestado às crianças ou bebês, como os próprios cuidadores se referem aos sujeitos. Muitos agem como se a psicose anulasse a subjetividade e potencialidades de adultos e implicasse em ensinar todas as atividades do cotidiano, como se eles realmente fossem crianças aprendendo tudo pela primeira vez. É muito comum não reconhecer ou valorizar o que esses sujeitos possam fazer sozinhos, de forma a deixá-los ainda mais presos ao estigma de dependentes. Essa infantilização atrapalha a autonomia e tira o lugar de sujeito que ele possa vir a ocupar na família e no mundo. Rosa (2003) aponta que ";a infantilização também pode trazer alguns ganhos secundários para os indivíduos com transtorno mental, pois ele é deslocado de suas atividades e responsabilidades habituais" (p. 254). Por outro lado, afirma que a família também pode obter ganhos secundários, considerando psicótico como o responsável por todos os problemas e dificuldades enfrentadas pela família.

Aqui percebemos um duplo movimento relativo ao estádio da alienação. Por um lado, o sujeito permanece preso às amarras da condição alienante e, de outro, os familiares se mantêm na posição de mestre no discurso que tange à manutenção de um laço social. Cabe lembrar que não se trata meramente de algo enunciado, mas sim que se edifica em ações como, por exemplo, na suposta proteção garantida aos psicóticos que passam a ser tutelados e, de certo modo, aprisionados na redoma da não separação entre S1 e S2. O discurso não garante circulação dos significantes e isso pode ser facilmente apreendido a partir da realidade dos sujeitos que possuem suas relações sociais estreitadas.

 

A culpa é de quem?

Em uma das entrevistas, o significante que mereceu destaque por apresentar-se muito evidente foi a culpa relatada pela mãe do sujeito sobre a doença do filho. De acordo com o relato, ela foi diagnosticada com um tipo de psicose durante a gestação e sentia-se culpada pela possibilidade de havê-la transmitido ao filho e receosa de seus outros filhos também manifestarem algo semelhante. De acordo com Miles (1982), a família pode sentir-se culpada pela doença e também apresentar diversas queixas, como a ansiedade por não saber a melhor forma de lidar com alguns comportamentos dos familiares, por exemplo, o silêncio excessivo, a fala contínua e muitas vezes desordenada ou com a imprevisibilidade em suas ações. Ortiz e Tostes (1992) afirmam que alguns familiares referem-se ao ";peso da responsabilidade" que a psicose de um membro lhes acarreta, sendo frequentemente relatados os sentimentos de raiva, insegurança, medo, ansiedade, culpa e solidão. Tais significantes nos remetem à Freud quando ele nos lembra sobre a estranheza que alguns fenômenos humanos podem nos despertar. Ao se deparar com o termo unheimlich e sua dupla significação estranho/familiar, Freud (1919/1996b) desenvolve uma arqueologia a respeito do tema, chegando à conceituação de que o estranho seria a ";categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (p. 238). As manifestações desorganizadas, o silêncio, o comportamento mimético entre outros seriam justamente essa categoria de um duplo movimento que parece anunciar algo novo, porém que já é bastante comum a todo sujeito: sua própria desrazão.

Tal marca da alteridade, da presença consistente de um Outro, é por vezes justificada e sustentada com base em explicações que possam servir como forma de recobrir o real. De tal forma, explicações são criadas como meio de significar aquilo que a medicina alçou à condição de adoecimento. Assim, a condição narcísica parental pode ser preservada, como veremos a seguir.

 

Ferida narcísica parental

Um último aspecto a ser considerado nos resultados refere-se à condição narcísica dos pais, definida como uma das repercussões subjetivas de maior relevância por ter sido evidenciada nas falas do pai e das mães entrevistadas. Sabemos que desde o período da gestação, os pais criam expectativas acerca do filho, idealizando-o e desejando-o saudável e perfeito. O nascimento biológico é mera confirmação da existência de algo que já é representado desde muito antes no psiquismo dos pais. Porém, apesar de toda a idealização existente, a partir do momento em que os pais precisam entrar em contato com a realidade de um filho psicótico, quebra-se todo o ideal familiar perfeito e os pais precisam enfrentar os transtornos emocionais decorrentes da situação.

De acordo com Goés (2006), para os pais, ocorre uma quase impossibilidade de o filho, antes desejado, assemelhar-se ao filho visível da realidade, pois existe uma distância significativa entre um e outro, determinada pela deficiência constituída. Esse fato dificulta o processo de identificação e provoca perda do objeto idealizado, desilusão, como as características da perda na melancolia. De acordo com Freud (1917/1996c), essa perda possui os seguintes aspectos: ";As causas excitantes se mostram diferentes [comparadas às do luto], pode-se reconhecer que existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (p. 251).

Para os pais, a psicose acaba por anular alguns aspectos que seriam amados no objeto, o filho, e a dificuldade em lidar com a perda desse filho idealizado é evidenciada por certos comportamentos e fala dos pais quando se referem a eles. Os recortes a seguir aproximam-se dessa consideração:

Abrir mão de cuidar? Não, de jeito nenhum. Ele é meu filho. É um pedaço de mim. É meu mesmo (Paulo, pai).
A gente se dá muito bem, trato ele muito como filho (Joana, mãe).
Eu não pude ficar frustrada, não deu tempo de ter raiva. No primeiro surto chorei desesperada (Celina, mãe).

Teixeira e Moraes (2008) afirmam que no momento em que a mãe - cercada por toda essa ligação afetiva - confronta-se com o filho que quebra a imagem construída, é tomada por uma estranheza extrema, que abala, que desterritorializa sua subjetividade, causando angústia e impotência que dificultam a entrega à vivência materna. Para Rosa (2003), o impacto que qualquer doença mental provoca na família relaciona-se diretamente com o papel que o sujeito adoecido ocupa na estrutura familiar. Quando a psicose manifesta-se em um filho, a família sofre impacto em uma dimensão diferente e bem menor do que quando o pai ou a mãe adoecem. Esse fato deve-se à suposta relação de dependência entre o filho e os pais, podendo até exercer uma função positiva de unir o casal, ou, ao contrário, agravar as tensões existentes.

Se considerarmos a condição narcísica dos pais, entreabre-se aí uma questão. Freud (1914/1996a) afirma que ";o amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocadamente revela sua natureza anterior" (p. 98). Pois bem, em que posição ficaria a própria condição narcísica dos pais frente ao objeto agora destituído de sua condição idealizada? Podemos supor, dessa maneira, haver também uma morte própria aos pais e a seu objeto de amor idealizado.

O adoecimento mental de um filho abala, frequentemente e de forma intensa, a autoestima dos pais. O filho com sofrimento mental parece representar, para muitos genitores, uma denúncia das falhas do sistema familiar, que não realizou com sucesso sua função de formar os filhos de maneira saudável (Melman, 2002). Alguns pais, como Joana e Celina nas falas anteriores, não percebem a dificuldade que sentem em enxergar seus filhos como sendo seus e parecem sentir-se mais realizados quando conseguem fazê-lo. É comum a demora em assumir a responsabilidade pelo cuidado, ocorrendo situações em que se busca apoio de outros familiares, pessoas de fora do contexto familiar ou passa-se grande parte do tempo sentindo raiva e impotência diante das implicações da doença mental.

 

Reforma psiquiátrica não garante implicação subjetiva

A partir da discussão e análise dos discursos, foi possível confirmar que o encargo subjetivo existente na vivência desses cuidadores é um dos fatores mais comuns no cotidiano e influencia consideravelmente a dinâmica das famílias. A Reforma Psiquiátrica proporcionou a possibilidade de o cuidado ocorrer em casa, por membros da família. Porém, ela não foi capaz de garantir a implicação da família na percepção da doença mental como uma condição que envolve a todos e não somente um. Isso pode ser observado no caso de Camila, que assumiu sozinha o cuidado de seu irmão e vivencia todos esses excessos, e no caso de Paulo, que é um pai já idoso, não tem muito tempo para cuidar da própria saúde em decorrência das necessidades do filho. A exterioridade da lei que reorganiza todo o sistema de atenção à saúde mental não é capaz de suprir uma condição familiar interna. Não se trata de uma exterioridade a partir da qual se possam reconhecer as falácias da estrutura familiar. Não se trata somente de estar presente nos grupos de família, lembrar-se de dar a medicação ou receber instruções sobre como manejar períodos de crise. O que parece estar para além do alcance da Reforma Psiquiátrica é a implicação do sujeito-cuidador (e essa é uma demanda interna, impossível de advir da exterioridade de uma lei) na manifestação do adoecimento psíquico de um membro da família.

Com relação à pesquisa apresentada, percebemos a necessidade de um programa de atendimento específico para a parcela dos cuidadores, já que os discursos dos familiares entrevistados apontam que as mudanças trazidas pela condição do adoecimento e necessidade de cuidado podem ter consequências subjetivas e trazerem prejuízos para as suas vidas. Propostas que visem ao cuidado do familiar responsável pelo sujeito adoecido auxiliariam na diminuição do desgaste e melhora na qualidade de vida. Sabendo, no entanto, que tal atenção ao familiar não será garantia inequívoca da implicação deste na percepção da doença como um sintoma familiar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Tiago Humberto Rodrigues Rocha
E-mail: tiagohrr@hotmail.com

Maira Rodrigues Silva
E-mail: r_maira@yahoo.com.br

Recebido/Received: 1.2.2013/2.1.2013
Aceito/Accepted: 17.4.2013/4.17.2013

 

 

* Doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP); membro do Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP); professor assistente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). (Uberaba, Minas Gerais, Br.)
** Discente de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). (Uberaba, Minas Gerais, Br.)
1 Para a construção do texto aqui apresentado, optamos por preservar o termo sobrecarga quando se referir a pesquisas consultadas em que os autores utilizam esse termo, uma vez que se trata de um termo comum dentre vários textos utilizados. De outra forma, optamos por utilizar o termo encargo subjetivo uma vez que remete ao significante de algo cuja significação pode ser tomada de maneira compulsória, como um encargo.