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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.2 no.2 São João del Rei June 2013

 

ARTIGOS

 

Difusão, ensino e transmissão da psicanálise sob a ótica da teoria lacaniana dos discursos

 

Diffusion, teaching and transmission of the psychoanalysis under the optics of the theory lacaniane of the discourses

 

La diffusion, l'éducation et la transmission de la psychanalyse dans la perspective de la théorie lacanienne du discours

 

La difusión, la educación y la transmisión del psicoanálisis desde la perspectiva de la teoría lacaniana del discurso

 

 

Júlio Eduardo de Castro*

Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do campo psicanalítico, são aqui abordadas as diferenças elementares entre difusão, ensino e transmissão da psicanálise. Para tal, foi utilizada a teoria lacaniana dos discursos como instrumento de análise diferencial e, mais especificamente, a dimensão da experiência intensiva como elemento indispensável que orienta o psicanalista nos tratamentos por ele conduzidos, em direção à ética do desejo.

Palavras-chave: Psicanálise em intensão; teoria dos discursos; ética da psicanálise.


ABSTRACT

Inside of the field psychoanalytic they are approached here the elementary differences among diffusion, teaching and transmission of the psychoanalysis. For such, the theory lacaniane of the discourses was used as instrument of analysis to differentiate them and, more specifically, the dimension of the intensive experience as indispensable element that guides the psychoanalyst, in the treatments for him led, in direction to the ethics of the desire.

Keywords: Psychoanalysis intensive; theory of the discourses; ethics of the psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Dans le champ psychanalytique, sont ici abordées les différences fondamentales entre la diffusion, la formation et la transmission de la psychanalyse. Pour ce faire, nous avons utilisé la théorie lacanienne du discours comme un outil pour l'analyse différentielle, et plus précisément, la taille de l'expérience intensive comme un élément indispensable qui oriente l'analyste dans les traitements effectués par lui vers l'éthique du désir.

Mots-clé: La psychanalyse en intension; théorie du discours; l'éthique de la psychanalyse.


RESUMEN

Desde el campo psicoanalítico, están aquí abordado las diferencias básicas entre la difusión, el aprendizaje y la transmisión del psicoanálisis. Para ello, se utilizó la teoría lacaniana del discurso como herramienta para el análisis diferencial y, más concretamente, el tamaño de la intensa experiencia como un elemento indispensable que guía al analista en los tratamientos llevados a cabo por él hacia la ética del deseo.

Palabras claves: Psicoanálisis en intension; la teoría del discurso; la ética del psicoanálisis.


 

 

Uma universidade é um lugar onde o saber é ensinado acima de todas as diferenças de religiões e nações, onde a investigação é conduzida, e que se destina a mostrar à humanidade a que amplitude ela pode compreender o mundo a seu redor, e até onde pode controlá-lo (Freud, 1925/1980, p. 365).

Em primeiro lugar, vamos focalizar o conceito de "difusão" da psicanálise no mundo contemporâneo, uma das preocupações de Lacan. Esse conceito, difusão1, merece ser abordado dentro do conjunto dos meios de comunicação - e que inclui, indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas como jornal, rádio, televisão, cinema, outdoor, página impressa, propaganda, site da internet etc. - presentes na vida contemporânea. De modo que o propósito da difusão é fazer circular - mesmo que ao preço do mal-entendido, do uso ideológico e de um grande risco de banalização - os significantes teóricos de uma ciência, disciplina, ofício, arte ou mesmo um produto, transformando, assim, teorias, doutrinas, ensinamentos e produtos em forma de mensagem "apropriada" à divulgação pública. Fazer esses conceitos da teoria circular é uma necessidade que marcou o mundo a partir da modernidade: a necessidade de propagar (difundir) a existência de algo (em forma de saber) para a comunidade. Por esse aspecto, a difusão da psicanálise no mundo pós-moderno - por mais que cumpra a função de propagação de alguns de seus conceitos e premissas - está subordinada à lógica da informação e de sua divulgação, base das novas formas de narrativa moderna.

Segundo essa lógica, a informação é tida ou como coleção de fatos ou de outros dados fornecidos à máquina (informática), a fim de se objetivar um processamento ou, segundo a teoria da informação, como medida da redução da incerteza sobre um determinado estado de coisas por intermédio de uma mensagem. Contudo, para a psicanálise, seria ingênuo supor que uma mensagem - da transmissão à recepção - não estaria sujeita a ruídos e a interferências das mais variadas ordens, estando, por isso mesmo, sujeita a enunciações e interpretações que são efeitos de pontos de vista os mais diversificados. Por essa razão, a difusão da psicanálise está - por mais necessário que seja à psicanálise inserir-se em um mundo de mídia - sujeita ao risco de usos e distorções os mais suspeitos.

É por ter sempre como pano de fundo a impossibilidade estrutural de transmissão do saber "não-todo fálico", do saber furado - conforme construído e verificado por meio de dizeres singulares em uma análise, resultado do saber colocado em posição de verdade (a/S2) - que a psicanálise tem em alta consideração esses saberes (singulares), impossíveis que são de serem transformados em informação (universal) para difusão (pública). São dessa ordem todos os saberes que não dispensam a experiência subjetiva como necessária às suas construções teóricas, tratando-se, portanto, de saberes construídos ou durante ou a posteriori da experiência. Nesses saberes, várias nuanças subjetivas estariam, irremediável e estruturalmente, impossibilitadas de propagação e mesmo de transmissão2.

Taxativamente, argumentamos que o desejo não se conforma em ser formatado nos moldes da informação, dos dados, daí assinalarmos aqui a precariedade da expressão "difusão da psicanálise". De modo que, para a psicanálise, a mensagem é algo que vai além da mera troca de informações entre falantes. Para ela, haveria uma ultrapassagem, um mais-além da função comunicativa em toda e qualquer mensagem, abrindo-se a perspectiva ao sujeito da enunciação e ao seu inevitável corolário, o inconsciente.

E é fundado na premissa de que a transmissão em psicanálise é, antes de tudo, ética, que Barros (1996) arrisca uma diferenciação entre a difusão e a transmissão, como também nos traz um instigante problema acerca de suas relações:

[...] transmite-se um estilo, como disse Lacan, e se difunde uma mensagem, sabendo de antemão que a psicanálise tem a ver com ambos, tanto com o estilo quanto com a mensagem. De uma experiência analítica se deve depreender um estilo, mas também se faz forçosamente da doutrina freudiana, como de qualquer outra, uma mensagem. O problema é de se saber que estilo resulta da experiência analítica, e que mensagem pode restar da transmissão do estilo (Barros, 1996, p. 210).

Indo um pouco mais além da questão exposta por esse autor e acossados pela questão do ensino da psicanálise, perguntamos: para aqueles que ensinam psicanálise, como colocar o estilo depreendido da experiência analítica a serviço do ensino, sem, todavia, desconsiderar a ética do desejo? Em suma, como não reduzir o ensino da psicanálise à lógica do escroque, do plágio ou do pastiche? Enfim, como ensinar psicanálise sem, contudo, pretender ou mesmo querer educar?

Com a intenção de diferenciar "estilo" e "mensagem", pudemos, ainda, a partir de Lacan, aproximar os seguintes conceitos: "transmissão" e "psicanálise em intensão". Essa aproximação é extremamente pertinente ao ponto de vista lacaniano acerca da transmissão em psicanálise. Desconsiderá-la seria incorrer na ilusão de que o manejo da transferência é o mesmo tanto no ensino, por meio da "transferência de trabalho", como na transmissão, por meio do "trabalho de transferência" (Lacan, 1967/2003). Confundir, então, "transmissão" com "difusão", ou mesmo com "ensino", tem o inconveniente ético de exportar diretamente para o espaço social, inclusive o do ensino, "as características do poder que vigora na transferência" (Barros, 1996, p. 205).

Uma diferença entre os espaços em que a transferência é constituída, estabelecida e liquidada, é causa da necessidade da seguinte antinomia: a transferência no espaço clínico (movida pela força peculiar do sintoma e da angústia em carne e osso) e a transferência no espaço do ensino (movida pela necessidade da palavra encarnada de "ao menos um" mestre-autor, bem como na suposição de seu saber). Portanto, semblante de objeto a de um lado e semblante de mestre3 do outro; escuta analítica de um lado e voz/letra/texto do mestre-autor do outro, implicação subjetiva de um lado e diluição do sujeito nas identificações ao discurso-teoria do mestre-autor do outro.

Essa dicotomia, ensino-transmissão da psicanálise, nos remete, segundo Laurent (2000), a dois registros inerentes à formação do psicanalista:

1) o ensino de saberes necessários ao saber do psicanalista, ou seja, o ensino do saber doutrinal;
2) a transmissão do estilo pela qual o sujeito - e o que nele restou como objeto - "fez ler o inconsciente como uma coisa viva..." (Laurent, 2000, p. 1).

Consideremos inicialmente o primeiro registro. Se em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades (Freud, 1918[19]/1980) há uma primeira tentativa de inclusão do ensino da psicanálise na universidade, mais especificamente no curso de medicina, Freud mencionou algumas disciplinas universitárias que, por suas conexões, além de poderem sofrer certos efeitos do saber psicanalítico, seriam também passíveis de utilização na formação universitária do médico-psicanalista. São elas: "a história da literatura, a mitologia, a história das civilizações e a filosofia das religiões". Nessa inauguração, Freud acautela-se ao afirmar que essa inclusão não almejaria formar analistas, e sim possibilitar que o acadêmico de psiquiatria "aprenda algo sobre a psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise" (Freud, 1918[19]/1980, p. 220).

Já Lacan (1975) escreveu sobre as teorias e recursos difundidos pela universidade e úteis ao analista, bem como à sua formação: "Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência (a psicanalítica) uma oportunidade de se renovar" (Lacan, 1975/2003, p. 316). E ele cita quais seriam essas disciplinas tão capazes de renovarem-se a partir da psicanálise, quanto de ela prestarem ajuda com alguns de seus recursos: a Linguística, enquanto ciência da linguagem; a Lógica, enquanto ciência do real capaz de fazer do impossível, escrita/letra; a Topologia, como recurso capaz de fazer, fora de qualquer modelo epistemológico, a mostração do real; e a Antifilosofia4.

No entanto, por mais que a transmissão se articule diretamente à questão sobre o final de análise - sendo em torno desta que Lacan preferencialmente a abordou em suas dimensões (teórica, clínica e institucional) -, pressupomos que o "passe", enquanto dispositivo institucional inventado para a verificação do final de análise e, ainda, à teorização a ser feita sobre esse mesmo final, atesta-nos a seguinte conclusão: o ensino da psicanálise (na vertente "extensiva", enquanto ensino da mensagem doutrinal enunciada nos moldes do discurso científico ou universitário) deve estar subordinado, eticamente, à sua transmissão (na vertente "intensiva", enquanto efeito da liquidação da transferência).

De modo que, quando focalizamos o ensino da psicanálise em algumas instituições escolares de ensino superior - prática governada pela primazia do saber segundo os modelos em voga na pesquisa universitária e, ainda mais, submetida à burocracia universitária - a coisa parece não diferir muito da difusão, principalmente devido ao abuso a priori no emprego de metáforas e analogias (entre os fenômenos estudados e os conceitos da teoria) em sua execução. Reduzir o ensino da psicanálise a procedimentos e métodos da tradição pedagógica, educativa e mesmo investigativa (pesquisa universitária) - agenciadas como o são pelo saber, de acordo com a escrita do discurso universitário - foi um desvio, antes de tudo ético, denunciado categoricamente por Lacan. Incluem-se aqui as várias referências de Lacan às lógicas de apropriação, difusão e transmissão do saber utilizadas na/pela universidade e a seus modos de ensino, sustentado radicalmente na alienação do desejo e na foraclusão do sujeito promovidas pela ciência (Lacan, 1966/1998). E essas referências nos fizeram notar a existência de uma continuidade entre o discurso da ciência e o universitário, o segundo como um desdobramento do primeiro. Lembramo-nos, uma vez mais, da tarefa que a universidade se impôs: ser o 'cão de guarda' do saber científico, principalmente quando voltada para a tarefa de educação e formação das novas gerações. De maneira que o desejo - seja do cientista, do observador, do experimentador, do autor ou do leitor - estaria, então, obscurecido no/pelo discurso que lhe é inerente, o universitário. Obscurecimento do desejo, já visível desde as operações elementares chamadas pela tradição didática de ensino/aprendizagem, inventadas e sustentadas tanto sobre o ideal reluzente/iluminista da transmissão como - mais ainda, na base da estrutura e paradoxalmente - sobre a impossibilidade de educar5, conforme escrito no matema do discurso universitário. Nesse discurso, Lacan localiza tanto a impossibilidade - a de o suposto saber, atribuído à ciência, professor ou autor, agir, na forma de ensino, sobre o objeto a que se destina, os a-studados (S2→a) -, quanto a impotência - a de o sujeito produzido, por esse mesmo discurso, verificar-se no significante-mestre, igualmente mantido sob a barra do recalcamento (S1←$). Portanto, sujeito subordinado ao saber (que o agencia) e, paradoxalmente, alienado dos/aos significantes-mestre que o determinam em seu desejo.

No discurso universitário, quando a serviço do ensino da psicanálise em escolas e instituições6, as metáforas em uso (os conceitos teóricos difundidos pela universidade), por mais ricas que sejam, encontram-se distanciadas da vida e do contexto cotidiano no qual está engajado o estudante - segundo esse mesmo discurso, o estudante é tomado pelo saber como objeto a colocado em posição de Outro (S2→a). Portanto, o discurso universitário somente ratifica o ensino como um empreendimento distanciado do sujeito e de seu desejo e, mais ainda, torna-se meio de produção de um sujeito ($) radicalmente impotente em se verificar nos significantes-mestre sobre os quais ele próprio se formou (destaca-se aqui o significante-mestre enquanto fundamento do saber (S2/S1)).

No discurso universitário, o sujeito-estudante está, ainda, impotente de se verificar na condição de objeto-causa (a) a serviço do saber (S2), saber que se impôs por força das ciências, das artes e dos ofícios encampados pela universidade. Nesse sentido, as metáforas (teórico-conceituais) utilizadas pelo agente de ensino psicanalítico, somente nos atestam a sua pretensão de tratar problemas inerentes à pesquisa psicanalítica por meio de semelhanças metafórico-conceituais quanto aos fenômenos estudados. Seu ensino torna-se, assim, uma nomeação acadêmica (simbólica) de fenômenos psicológicos. Isso é ilustrado nas abundantes taxonomias que, cada vez mais, inundam o mundo universitário, revelando aí a necessidade de classificar para conhecer e, antes de tudo, acreditando que, assim procedendo, domina e controla determinado fenômeno ou objeto.

As teorias propagadas segundo o discurso universitário são, então, colocadas em posição de aparência, de serem correlatos analógico-conceituais do real, de serem verdadeiros correspondentes simbólicos de fenômenos e de objetos reais. Do mesmo modo, a referência a um ou mais autores - exigência típica do discurso universitário - geralmente é usada como meio de demonstrar a existência de uma forte semelhança ou dessemelhança entre as ideias defendidas pelo escritor/construtor do texto/discurso com as ideias do(s) autor(es) referenciado(s) como S1.

A metáfora, enquanto mola-mestra desse ensino, indica-nos que, quando alguém se sujeita a esse discurso, torna-se a priori uma metáfora viva dos autores e das teorias que defende e com as quais se identifica. No discurso universitário, enquanto lógica inerente ao ensino-padrão, o conceito pretende equivaler-se à coisa, e o nome, por sua vez, ao fenômeno ou acontecimento. E é nessa suposta equivalência do conceito à coisa, do nome ao acontecimento, que um princípio de similaridade é pressuposto e transmitido nesse mesmo ensino, em geral sustentado no e promovido pelo discurso universitário. Trata-se da predominância da metáfora em ensinos que se propõem a instruir - nos moldes da tradição pedagógica e didática, portanto educacional, ou seja, ao modo de transmissão de informações - sobre psicanálise. Contudo, reduzir o estudo da doutrina psicanalítica a uma tarefa educativa é, certamente, uma forma de destituí-la de sua sustentação ética, ética que pressupõe a "colocação de si" (Lacan, 1968/2003) a partir da experiência intensiva. Esse é um risco permanente para aqueles que se metem a ensinar psicanálise.

Mas haveria outra maneira de ensinar psicanálise sem pretender educar ou sem ser dragado pelo discurso universitário? Haveria outra maneira de ensinar psicanálise além das padronizações promovidas pelo discurso universitário, além da lógica proposicional e profissional características do discurso universitário? Ou seja, seria possível um ensino da psicanálise que fosse além do assunto a ser comentado e debatido ou de uma asserção que vai ser defendida, que fosse além de uma expressão verbal ou simbólica suscetível de ser dita verdadeira ou falsa? Com o conceito de transmissão, relacionado à formação de analistas, com a invenção dos dispositivos institucionais do cartel e do passe, bem como considerando todos os paradoxos e aporias aí envolvidos, Lacan acreditou que sim.

Não se transmitem em psicanálise respostas ou fórmulas universais, válidas para qualquer um, em qualquer momento e em qualquer lugar - a psicanálise não é panaceia. As respostas aí construídas são da ordem da singularidade, cada sujeito inventando a própria maneira de responder ao desejo que o determina enquanto causa, objeto-causa (a→$). Aqui, na dimensão da travessia da fantasia e no estilo próprio de atravessá-la, não cabe a lógica universitas, por mais que interesse à psicanálise o levantamento de questões universais que balizem - dentro da dimensão doutrinal e com o auxílio de mensagens teóricas (enunciados, aforismos, algoritmos e matemas) - temas áridos e modos clínicos de gozo e de discurso, os mais diversificados, de um mesmo sujeito.

Portanto, na dimensão das questões e de seus levantamentos, há um profundo interesse da psicanálise em - a começar de questões formuladas a partir da clínica - desenvolver a teoria e a prática psicanalíticas, principalmente frente a temas e fenômenos afins à transmissão e ao final de análise.

Nessa direção, é necessário lembrar que a transmissão em psicanálise somente é feita em consonância com o surgimento de um desejo inédito que venha acompanhado de entusiasmo para com a sua causa (a) - característica essa atribuída por Lacan ao desejo do analista, desejo sustentado no discurso analítico. Esse é o único discurso em que há coincidência entre a causa do laço social e a causa do desejo. E essa coincidência é devida à localização do objeto a no lugar de agente, ou seja, de causa posta no lugar de agente, de causa que leva o sujeito a concluir (a→$), mesmo e apesar das influências e escolhas do eu. Diferentemente, o laço social feito por meio do discurso universitário é marcado pela abordagem do objeto-causa - o estudante, colocado no campo do Outro - através do poder do saber (S2→a). De modo que uma diferença essencial quanto ao modo de fazer laço social fica evidente quando comparamos os matemas dos discursos analítico e universitário: a posição do objeto a e a posição do saber (S2), respectivamente, como agente/semblante. No discurso analítico é o objeto a que age sobre o saber (S2), enquanto no discurso universitário é o saber que age sobre o objeto a incorporado no estudante.

No discurso analítico, ainda, a verdade que sustenta o mais-gozar é o saber inconsciente (a/S2). Além disso, esse mesmo discurso - suposta a possibilidade de transmissão de um estilo - exige que cada um coloque ou tenha colocado de si, tanto na abertura ao inconsciente, possibilitada pelo sintoma, quanto na busca de suas próprias respostas, escolhas e decisões. "Colocar de si" (Lacan, 1968/2003), curiosa maneira de enunciar a necessária particip(a)ção da metonímia nos atos e atitudes de um sujeito já analista - já não mais tão suposto e semelhante ao saber, como ocorre na metáfora, enquanto operação em que vigora o estilo romântico de ser (Jakobson,1988) e, sim, objetivado, caído objeto, objeto metonímico.

Por isso, o des-ser do analista, decorrente da psicanálise em intensão (Lacan, 1967/2003), denota-nos sua posição de rebotalho, de resto metonímico da operação analítica. Metonímia do objeto-causa, metonímia do desejo, deslizamento do desejo na cadeia significante, deslocamento-metonímico - enunciados que já nos são conhecidos a partir da passagem de Lacan pela linguística e que, com razão, firmam/estabelecem a necessária consideração a esse pólo ou eixo da enunciação7, o metonímico, nos fóruns dedicados à abordagem do tema da transmissão em psicanálise, bem como aos linguistas interessados em apreciar a participação do desejo nos atos de enunciação de um sujeito. A afirmativa de que a metonímia é a via permanentemente aberta ao deslocamento do desejo não é uma formulação sem efeitos epistemológicos para a psicanálise e para a linguística. Aos psicanalistas isso serviu de alerta às formas padronizadas (Lacan 1958/1998; 1955/1998) de condução dos tratamentos, conforme promovidos pela International Psychoanalytical Association (IPA). Essas formas padronizadas de tratamento nada mais eram que belas metáforas da cura construídas pelo "eu forte" por meio de suas identificações aos ideais e, por isso mesmo, sem o realismo pulsional característico da metonímia. às belas metáforas da IPA - que propunham um modelo idealizado acerca do que seria uma análise levada a seu último termo - contrapôs-se o estilo lacaniano, estilo fortemente marcado pela metonímia, a começar de seu gosto pelo impromptu (Lacan, 1970), modo mais realista de fazer presente, demonstrando em situação de ensino, a metonímia da fala proposta na associação livre.

"Colocar de si" pressupõe a fala além do código, o desejo além da língua, a combinação além da seleção, a transferência de denominação além da concorrência significante, a sintaxe além da metalinguagem, a contextura além da substituição significante, a enunciação além dos enunciados, o dizer além dos ditos, enfim, colocar de si pressupõe a metonímia além da metáfora. "Colocar de si" envolve, então, dar/tomar o todo (o eu) pela parte que falta ($); o efeito (sintoma) pelo mais-gozar (a); o continente [a totalidade imaginária do eu, i (a)] pelo conteúdo (a parcialidade real da pulsão e seu resto metonímico não significantizado e nem tampouco significantizável, o objeto a).

A própria linguística define o significante como um "elemento discreto", por excelência, nunca havendo um igual a outro, mesmo em se tratando dos sinônimos e dos homônimos ou dos elementos de uma mesma classe gramatical. Cada significante vale, então, por sua diferença em relação a todos os demais. Isso permitiu a Lacan atribuir ao significante o símbolo zero ou mesmo afirmar que ele em si mesmo nada significa. Contudo, tal atribuição somente se sustenta ao se postular um "elemento contínuo" presente em toda e qualquer operação significante, em todo e qualquer uso da linguagem. Elemento esse nomeado, na doutrina freudiana, "desejo" e, com Lacan, "objeto a", sua causa. O desejo, e seu objeto insólito, é um continuum permanente no aparelho psíquico, move-se entre as palavras e mesmo graças e apesar delas, sem se reduzir às mesmas. Somente uma parte desse elemento contínuo postulado pela psicanálise é significantizado, submetido que está à prevalência do gozo fálico inaugurado pela metáfora paterna. A outra parte desliza pelos desfiladeiros do ato e/ou do gozo suplementar feminino e/ou do gozo do Outro (nas psicoses). A continuidade do desejo, sua imortalidade - característica atribuída por Freud - a demonstrar-nos que a psicanálise não é uma operação reduzida à significação fálica e às suas formas típicas de transmissão: a redução de todo e qualquer conteúdo à linguagem da informação/comunicação. Portanto, continuidade do desejo, por um lado, e estruturação do desejo como linguagem, por outro. Clínica do simbólico, neste último caso, e clínica do real, no primeiro.

O que nos leva a pensar que a transmissão da psicanálise, em situação de ensino, quando ocorre, é efetivada mais pelos atos e atitudes do analista-ensinante8 do que pelas palavras desengajadas de um professor-instrutor que pretendesse transferir a priori informações, teóricas e técnicas, ao receptor. Do primeiro - o analista-ensinante -, trata-se de destituição subjetiva já consumada, da correlata exoneração do saber suposto a esse mesmo sujeito, agora destituído de algumas identificações ao Outro e aos seus ideais [I (A)], da consequente relativização dos ideais civilizatórios e, sobretudo, de sua resultante queda na condição de "ser de objeto, ser de a-bjeto, anobjeto, dejeto, rebotalho".

Para o analista-rebotalho, portanto, o Outro se tornou sem consistência [S( ">)]. Do segundo - o professor-instrutor -, trata-se da afirmação e manutenção do saber assegurado pela ciência e arquivado pela/na universidade, da afirmação subjetiva de si próprio como agente de transmissão formado no e identificado ao saber (como ocupante, enquanto S2, do lugar de agente), do fortalecimento dos ideais civilizatórios que atribuem à educação e à escola um peso tão ou mais importante que o da família na formação do sujeito e, antes de tudo isso, da manutenção da alienação subjetiva em nome do que é exigido pelo "gozo do saber universitário", ou seja, mais saber, saber sem fim...

Portanto, saber consistente e universal do Outro (ciência) e de sua palavra como critério de validação da verdade, do lado do discurso universitário, e inconsistência do Outro e de seus saberes, que, por terem sido colocados à prova da verdade, se transformaram, aí, em saber do psicanalista, saber prevenido e sustentado na "douta ignorância" (Lacan, 1971[72]/1997), único e verdadeiro suporte do mais-gozar, do lado do discurso analítico:

 

 

Conclui-se, então, que a metonímia é a operação a serviço do desejo, portanto, operação a nos indicar, categoricamente, a necessidade de implicação do sujeito em toda e qualquer formação/transmissão psicanaliticamente possível, ou seja, colocar de si a partir do sintoma, passando pelo gozo do saber em jogo (S2), bem como por seus furos (visto serem esses saberes da ordem do não-todo9). Não nos esqueçamos da decepção de Lacan com o tal "desejo epistemofílico" - também traduzido por "desejo de saber" ou ainda "amor ao saber" - postulado por Freud. Não é ele que move um sujeito a iniciar e mesmo a sustentar uma análise e, sim, essencialmente, o sofrimento proveniente do sintoma, quando condizente ao discurso histérico. Sofrimento esse que é, portanto, condição necessária a toda e qualquer possibilidade de histerização do discurso10. No discurso analítico, não é o saber (S2) que agencia o processo e, sim, o objeto a. Nesse discurso, o saber, em sua dimensão imaginária, é colocado à prova da verdade. E o resultado disso é o saber do psicanalista feito suporte para o objeto a (a/S2). Entendemos que a desimaginarização/desconstrução do saber promovida pela psicanálise em intensão é, portanto, acompanhada do surgimento do saber do psicanalista, principalmente a partir das aporias vividas aí, na experiência intensiva.

A confrontação do saber - saber como meio de gozo situado na intersecção dos registros imaginário e simbólico (Lacan, 1974[75]) - pelo viés do objeto a (enquanto resto metonímico, resíduo do real pulsional que persiste no sintoma, "o incurável" de seu sintoma, o seu núcleo irredutível) é, portanto, uma leitura pertinente ao discurso analítico e que nos é útil por destacar a seguinte dicotomia: por um lado, o saber em análise (a/S2) é meio de gozo (seja narcísico, seja fálico), gozo abalado e desconstruído por meio do que se fez ler das formações do inconsciente e, por outro lado, ele se funda, enquanto saber do psicanalista, no objeto a. No primeiro caso trata-se do saber inconsciente que corre sob transferência e, no segundo, do saber do psicanalista nascido a partir da destituição (subjetiva e transferencial) vivida na experiência intensiva. Este último é, portanto, saber "sob" o objeto, saber sob os auspícios do "objeto causa do desejo". Logo, o desejo, enquanto metonímia da falta-a-ser, nos aponta, uma vez mais, para a vertente ética situada na dimensão da política do psicanalista.

A partir do já exposto, concebemos uma demarcação necessária entre as significações dos termos ensino e transmissão. Essa demarcação foi feita ao termos contraposto a experiência intensiva à difusão da informação promovida por ensinos sustentados na anteposição dos saberes (selecionados e impostos pela ciência, ofícios e artes11 e expostos/apresentados pelos professores e similares a outros, os a-studados), ou seja, segundo os meandros do discurso universitário. Portanto, o contraponto teórico, com força de impasse, entre o discurso universitário e o discurso analítico, auxiliou-nos a estabelecer, a seguir, uma distinção elementar, a mais genérica possível, entre transmissão e ensino:

1- o ensino é sempre voltado para o enfoque de um saber sistematizado (teórico, doutrinal ou pragmático) a ser preservado e passado às novas gerações em forma de estudo e pesquisa de conceitos da teoria e/ou de técnicas do saber-fazer (know-how);
2- a transmissão em psicanálise envolve, necessariamente, algo além do conceito e das técnicas do saber-fazer. Por ela envolver o estilo, sua natureza é antes de tudo intensiva, sendo ético o seu fundamento.

Intensiva porque o saber inconsciente que se transmite em uma análise (S2) ocorre a partir da fala 'livre' de um sujeito, sendo esse saber transmitido, in loco e em tempo real, do inconsciente ao discurso12, e não de um sujeito a outro. Na intensão, ainda e por decorrência do trabalho de leitura do próprio inconsciente, incluem-se o saber construído/desconstruído pelo analista e o estilo, sempre singular, daí decorrente. Por isso, na intensão não se trata de incluir novos conceitos teóricos e procedimentos técnicos na vida de um sujeito. Essa tarefa é atribuída à educação e, mais especificamente, ao poder peculiar sustentado na sugestão educativa, qual seja, no uso e na manutenção da transferência com a finalidade de formar/produzir um sujeito, seja ele sujeito-instruído (por influência da erudição), sujeito-cidadão (por influência da sociologia política), sujeito-consumidor (por influência do capitalismo) ou sujeito-acadêmico (por influência do discurso universitário). Formar ou produzir esse sujeito é o sintoma típico do educador, compete a ele e não ao analista.

Entretanto, estudar o ensino de Lacan, mais especificamente o seu estilo de dizer e de conduzir seus Seminários, sua maneira de aí proceder - ora provocando, ora instigando, ora fazendo uso de equívocos, ora aprofundando impasses, dirigindo-se a alguns, especificamente, psicanalisantes seus, analistas ou não - demonstrou-nos uma continuidade/afinidade possível entre esses dois termos aqui diferenciados: ensino e transmissão. O ensino de Lacan (seus Seminários e sua Escola) pretendeu ter ares de transmissão, principalmente ao, mais do que retornar a Freud, renovar sua obra em um mundo já marcado pela ciência, pelo capitalismo, pela modernidade.

Assim como Lacan combateu as formas de tratamento-padrão (Lacan, 1955/1998), pretendeu ainda não fazer mera repetição do ensino-padrão promovido pela IPA, ensino esse sustentado na tradição educativa, promotora da reeducação emocional do paciente (Lacan, 1958/1998). Todavia, não fomos capazes de esclarecer até que ponto era um ensino que transmitia ou uma transmissão que ensinava, visto Lacan ter estado nos seus Seminários, e como ele mesmo afirmou (Lacan, 1970/2003), em uma posição correlata à do psicanalisante, qual seja, daquele que demonstra o seu sintoma, no caso querer ensinar, entretanto, fazendo valer o seu estilo. Alerta lacaniano: que o analista saiba que, quando se mete ou se dispõe a ensinar, o faz a partir da posição do sintoma, visto que ensinar implica, correlativamente ao psicanalisante, em 'não saber o que se diz'. Se, por esse aspecto, todo ensino é suspeito, o de Lacan, todavia, procurou estabelecer uma consonância, uma coerência, entre a dimensão doutrinal, por um lado, e a vertente ética, por outro.

Por se expor publicamente no lugar do psicanalisante-sintoma - principalmente em seus Seminários e comunicações verbais, entretanto fazendo valer um estilo - o ensino de Lacan nos demonstrou que nada é mais antianalítico do que sustentar ad infinitu a posição e a função do saber nos moldes do discurso universitário (S2→a). A dissolução de sua Escola que, ainda hoje, o diga...

Ter abordado os conceitos de difusão, ensino e transmissão dentro do campo psicanalítico - mais especificamente a partir da obra do pioneiro Freud e do ensino interpretativo e criativo de Lacan - nos autoriza aqui a concluir que a raiz ética elementar da psicanálise, corolário da 'regra fundamental' freudiana, transmissível na intensão, não é ensinável, e menos ainda difundível. A psicanálise em intensão é uma experiência singular que exige a colocação em cena do sujeito (e de seu corpo) para, a partir daí, o caminho ser feito através do que ele se desfará durante o caminhar e, mais ainda, do que lhe restará a carregar.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Júlio Eduardo de Castro
E-mail: julioecastro@mgconecta.com.br

Recebido/Received: 6.11.2012/11.6.2012
Aceito/Accepted: 8.1.2013/1.8.2013

 

 

* Psicanalista e professor/pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de São João del-Rei (NUPEP/UFSJ); mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); pós-doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). (Tiradentes, Minas Gerais, Br.)
1 Segundo o dicionário, "Antrop. Processo pelo qual elementos ou características culturais são transmitidos a outras sociedades ou a outras regiões por meio de contato ou de migrações, produzindo semelhanças que não decorrem de invenção independente" (Ferreira, 2002).
2 O passe foi, certamente, uma aposta lacaniana a contornar essa impossibilidade estrutural, principalmente no que tange à transmissão dos pontos essenciais de um processo psicanalítico ou em fase final ou recém-finalizado, com vistas a fazer avançar a teoria sobre o término de uma psicanálise.
3 Assinalamos, aqui, de passagem, o favorecimento aos ideais (do eu e da civilização), portanto, ao recalcamento, propiciado pelo "semblante de mestre", em contraponto ao "semblante de objeto". Enquanto o primeiro é abordado por Lacan como um sintoma inerente ao ensino inspirado no discurso universitário, o segundo é característico da posição, necessariamente objetal, do analista, tanto no estabelecimento da transferência, como em sua destituição.
4 Segundo Lacan (1975/2003), à Antifilosofia caberia "a investigação do que o discurso universitário deve à sua suposição educativa" (p. 318). Não se trata, portanto, para o psicanalista e para sua formação, de fazer ou mesmo recorrer à história das ideias, do pensamento. A via da Antifilosofia foi, a nosso ver, mencionada por Lacan como uma alerta, feita aos analistas, sobre o que há de tradição escolástica no discurso universitário, bem como sobre o risco de os analistas serem formados nesse/por esse mesmo discurso.
5 De acordo com o matema do discurso universitário, a impossibilidade de ensinar se localiza na relação do saber com o objeto (S2→a). Portanto, impossibilidade de o saber agir, enquanto semblante, sobre o objeto em posição de Outro/outro. Impossibilidade estrutural contornada, nesse mesmo discurso, pela elevação e manutenção intocada do sujeito-suposto-saber, pivô da transferência. Portanto, o discurso universitário mantém intocada a ficção de verdade construída e agenciada pelo saber que goza do objeto (S2→a), o que resulta na não queda do objeto - contrariamente ao que ocorre no discurso psicanalítico concomitantemente à destituição da transferência (S2 no quadrante da verdade) e à inconsistência do Outro bem como de seu saber: S().
6 Não é demais lembrar que o discurso universitário não se faz presente somente dentro dos muros das escolas e instituições de ensino, universitárias ou não. Por ser, antes de tudo, um discurso fortemente marcado pela ciência moderna - Lacan, inclusive, o toma como uma involução do discurso do mestre quando influenciado pela ciência - sua presença na vida cotidiana é uma realidade inconteste.
7 Não percamos de vista que é do lado do sujeito da enunciação, e não do sujeito do enunciado, que localizamos a possibilidade de transmissão de um estilo.
8 Assim chamamos o sujeito, não formado, e sim destituído, principalmente por efeito do trabalho conduzido segundo as coordenadas traçadas pela ética da psicanálise (o desejo e o bem dizer) e que se envolve com o ensino da psicanálise.
9 Como nos mostra o matema do discurso psicanalítico, o objeto a é suportado pelo saber do psicanalista (a/S2). Esse saber é, portanto, da ordem do não-todo, marcado pelos princípios da castração, pela parcialidade da pulsão, pela inexistência da relação sexual e pelo saber lidar com o sintoma ou com o que dele restou a partir da experiência intensiva.
10 No discurso histérico, o sujeito está implicado enquanto sintoma ($→S1), mesmo ao visar a um mestre, para nele, mestre, apontar a castração.
11 Segundo o que preconizam os filósofos da ciência acerca dos saberes que são selecionados e incluídos no currículo a ser ensinado nas escolas.
12 Conforme o conhecido aforismo lacaniano que define o significante como 'o que representa o sujeito para outro significante' (S1 →S2).