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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.2 no.3 São João del Rei jan. 2013

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e Ciência: problematização da Bioética

 

Psychoanalysis and Science: problematization of Bioethics

 

Psychanalyse et Science: La problématisation de la bioéthique

 

Psicoanálisis y Ciencia: problematización de la Bioética

 

 

Tiago Iwasawa Neves*; Ana Margareth Steinmuller Pimentel**

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo geral do artigo é promover, senão iniciar, uma discussão sobre os obstáculos e impasses conceituais que podem colocar em xeque a já consagrada legitimidade da Bioética em nossos dias. No âmbito de seu enunciado, a Bioética é definida como um saber que visa a determinar os riscos e os possíveis danos que a ciência pode provocar em nossa compreensão da vida e da dignidade ética, medindo e restringindo, assim, os passos que serão dados pelas pesquisas biomédicas e biotecnológicas. Esse enunciado possibilita a construção do objetivo específico do artigo, que é problematizar os conceitos que sustentam essa definição, a saber: ética, natureza humana e ciência. O trabalho encontra-se dividido em duas partes. Na primeira seção, demonstraremos que as noções de ética e natureza humana presentes no discurso dos bioeticistas contemporâneos são falsas e inconsistentes, respectivamente. A ética é falsificada nesse discurso quando é reduzida a um mero problema de generalização de valores morais e verdades jurídicas. Já a noção de natureza humana é inconsistente, uma vez que a definem conceitualmente como uma necessidade que sempre esteve presente no mundo, e não como um conceito historicamente determinado, que, por definição, estaria sempre atrelado às contingências que tornam qualquer mundo humano possível. Na segunda seção, apresentaremos o sentido da seguinte tese: a relação que a psicanálise mantém com a ciência é de compatibilidade lógica. A partir das consequências extraídas dessa tese, o passo seguinte será questionar a legitimidade de uma intervenção ética no domínio científico.

Palavras-chave: Bioética; Psicanálise; Ciência; Ética; Natureza Humana.


ABSTRACT

The overall goal of the article is to promote, otherwise initiate, a discussion on obstacles and conceptual impasses that may put into question the legitimacy of Bioethics already established in our days. Within its statement, Bioethics is defined as knowledge that aims to determinate the risks and possible damage that science can cause in our understanding of life and ethical dignity, measuring and restricting therefore the steps that will be given by research biomedical and biotech. This statement enables the construction of the specific objective of the article that is to problematize the concepts that underpin this definition, namely: ethics, human nature and science. The work is divided into two parts. In the first section we will demonstrate that the notions of ethics and human nature, present in the discourse of contemporary bioethicists, are false and inconsistent, respectively. Ethics is falsified in that discourse when is reduced to a generalization problem of moral and legal values. Yet the notion of human nature is inconsistent once conceptually define as a need that has always been present in the world, and not as a concept historically determined, that by definition, would always be tied to the contingencies that can make any human world possible. In the second section, we will present the meaning of the following thesis: the relationship that psychoanalysis maintains with science is logical compatibility. As of the consequences extracted from this thesis, the next step will be to question the legitimacy of an ethical intervention in scientific domain.

Keywords: Bioethics; Psychoanalysis; Science; Ethics; Human Nature.


RÉSUMÉ

L'objective générale de l'article est promouvoir, sinon commencer, une discussion sur les obstacles et les impasses conceptuelles qui peuvent mettre en la légitimité de la Bioéthique dans notres jours. En vertu de sa énoncé, la Bioéthique se définit comme le savoir qui vise à déterminer les risques et les possibles dommages que la science peut provoquer dans notre compréhension de la vie et de la dignité éthique, mesurer et limiter, ainsi, les étapes qui seront données par le recherches biomédicales et biotechnologiques. Cette énoncé permet la construction de l'objectif spécifique de l'article, qui est problématiser des concepts qui soutiennent cette définition, à savoir: l'éthique, la nature humain et la science. Le texte est divisé en deux parties. Dans la première section, nous démontrons qui les notions de l'éthique et de la nature humaine présent dans le discours des auteurs de la bioéthique contemporaine, sont faussees et inconsistantes, respectivement. L'éthique est faussée dans ce discours quand est réduite à un simple problème de généralisation de valeurs morales et vérités juridiques. Déjà la notion de la nature humaine est inconsistante une fois qui la définissent conceptuellement tandis qu'une necéssité qui toujours était présent dans le monde, et non pas comme une concept historiquement déterminé, qui par définition, serait toujours soumis aux contingences qui font toute le monde humain possiblé. Dans la deuxième section, nous présenterons le sens de la suivant thèse: la relation que la psychanalyse maintient avec la science est de compatibilité logique. à partir des conséquences extraites de cette thèse, la prochaine étape consistera à questioner la légitimité d'une intervention éthique dans le domaine scientifique.

Mots-clé: Bioéthique; Psychanalyse; Science; Éthique; Nature Humaine.


RESUMEN

El objetivo general del artículo es promover, o comenzar, una discusión sobre las barreras e impase conceptuales que puedan poner en jaque la ya consagrada legitimidad de la Bioética en nuestros días. En el ámbito de su enunciado, la Bioética se define como un conocimiento que aspira a determinar los riesgos y los posibles daños que la ciencia puede hacer en nuestra comprensión de la vida y la dignidad ética; medir y limitar, así, los pasos que se darán por la investigación biomédica y biotecnológica. Este enunciado permite la construcción del objetivo específico del artículo que es problematizar los conceptos que sirven como base para esta definición, a saber: la ética, la naturaleza humana y la ciencia. El trabajo se divide en dos partes. En la primera sección se demuestra que los conocimientos de la ética y la naturaleza humana presentes en el discurso de los bioeticistas contemporáneos son falsos e inconsistentes, respectivamente. La ética se falsifica en ese discurso cuando se reduce a un problema de la generalización de los valores morales y de las verdades jurídicas. Ya la idea de la naturaleza humana es inconsistente una vez que la definen conceptualmente como una necesidad que siempre estuvo presente en el mundo, y no como un concepto históricamente determinado que, por definición, siempre estaría vinculado a las contingencias que pueden hacer cualquier mundo humano posible. En la segunda sección, se presenta el significado de la siguiente tesis: la relación que el psicoanálisis mantiene con la ciencia es la compatibilidad lógica. A partir de las conclusiones extraídas de esta tesis, el siguiente paso será poner en duda la legitimidad de una intervención en la ética científica.

Palabras claves: Bioética; Psicoanálisis; Ciencia; Ética; Naturaleza Humana.


 

 

Introdução

Sabemos que a Bioética é uma problemática contemporânea que pode ser definida, sucintamente, como o conjunto de discursos de alerta e precaução sobre as descobertas produzidas pelas pesquisas cientificas, especialmente as biomédicas e de biotecnologia. Segundo Cohen (2008), a Bioética é uma criação cultural, fruto direto da revolução científica do último século que limita a pesquisa experimental com sujeitos humanos a alguns critérios supostamente éticos, uma vez que os últimos avanços da ciência colocariam em risco os valores que sustentam uma determinada ideia de natureza humana.

Em nossa atualidade biotecnológica, conforme demonstra Dominique Memmi (2002), verifica-se cada vez mais a necessidade de criar comitês de especialistas em ética, com o objetivo de emitir pareceres normativos sobre os valores e juízos que a ciência deve imputar ao humano. O fantasma de um bebê clonado, o assombro dos cidadãos de todo o planeta diante das perspectivas abertas pelas pesquisas com células-tronco embrionárias e, ainda, o polêmico debate travado em todos os diferentes níveis da sociedade brasileira em torno do julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade ou não do aborto de fetos anencéfalos são exemplos recentes do medo que mobiliza todo o planeta: a ciência seria, então, uma preeminente ameaça contra a humanidade, contra a espécie humana? Considerando essas perguntas, percebemos que a Bioética é, antes de tudo, um discurso que visa a recusar severamente a contingência que determina o humano, buscando nas normas burocráticas, que padronizam valores éticos - os quais circunscrevem singularmente aquilo que chamamos de vida -, a justificação de sua necessidade. A ética da vida é, sem maiores sobressaltos, assimilada a uma dignidade natural do Homem, que deve ser resguardada por Lei, demarcando de modo preciso o meio mais justo de se fazer ciência.

Percebe-se, então, que a Bioética surge com o objetivo de cumprir uma dupla tarefa. De um lado, busca-se a criação de mecanismos que garantam a dignidade do homem no domínio da vida, tal como a "Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos", produzida pela UNESCO em 2005. De outro lado, verifica-se a criação de comitês para a emissão de pareceres sobre os possíveis riscos relativos às pesquisas que utilizam determinadas técnicas em sujeitos humanos. Porém, se analisamos de perto essa dupla exigência - a Bioética e a garantia dos Direitos Humanos, isto é, do exercício de saber-poder sobre a vida, de um lado, e a Bioética e regulamentação da atividade científica, de outro -, verificamos que o problema é um só: se não há um referência ontológica e absoluta sobre o que é possível e desejável fazer com nossas vidas e de que maneira a ciência deve manipular os corpos, é necessário, no cenário político atual, que o problema sobre a legitimidade e validade da ética humana e da técnica científica seja colocado sob a égide de uma Declaração Universal ou sob a avaliação de um comitê.

O exemplo notável de um empreendimento político, em relação à normatização do problema da ética, foi a criação em 1983 do Comité Consultatif National d'Éthique na França. A criação desse Comitê não objetivou outra coisa senão "a elaboração de normas sob a salvaguarda do saber e a distância de todos os produtos normativos concorrentes: direito, religião, política, moral" (Memmi, 2002, p. 15). Porém, por mais que a definição desse Comitê seja a de uma instância apenas consultiva, que delega aos legisladores políticos a tomada de decisões e sua responsabilidade por elas, ele não comportaria força nem poder. A questão que se coloca é pensarmos, então, se a autoproclamação desse órgão como uma "autoridade moral" seria ingênua e gratuita. Segundo Dominique Thouvenin (2002), a figura de comitês desse tipo deflagra a tese de defasagem do direito constitucional em relação aos avanços técnico-científicos atuais; o "vazio jurídico" é, consequentemente, o que surge como causa de uma passagem da ética ao direito sem maiores constrangimentos. Neste contexto de confusão, entre os limites da ética e do direito, é fato que a adequação da pesquisa universitária a esse modelo normativo não deixa de ser um ponto relevante nesta discussão, uma vez que toda e qualquer pesquisa que envolva seres humanos deve passar por uma avaliação de um comitê universitário de ética e seguir a vera as importantes diretrizes estabelecidas pelos órgãos públicos de financiamento à pesquisa (Guimarães, 1994).

Estamos diante de um cenário no mínimo preocupante, já que, nessa tentativa de regulamentação do que é ser ético ou não, o que está em jogo é uma "política" do consenso, que não objetiva outra coisa senão tamponar, segundo o filósofo francês Alain Badiou (1999), algo que caracteriza a verdadeira dimensão política: a valorização do debate e a possibilidade de rupturas:

Se há somente uma política possível, é que não há política alguma. [...] A política só pode ser um pensamento se ela decide algo; se ela afirma algo ser possível, ali mesmo onde só há declaração de impossibilidade. A política consiste em pensar e praticar o que é declarado impossível pela política dominante. É isso que faz com que uma política seja real. É quando ela força o impossível a existir (Badiou, 1999, pp. 37-38).

Desse modo, a política do consenso em torno dos problemas de Bioética se impõe como um pensamento dominante na sociedade de hoje. O posicionamento crítico em relação a essa política consensual também é assumido pelo filósofo e psicanalista Slavoj Zizek (2005) quando ele afirma que o consenso representativo da ideologia liberal é a principal arma para se evitar o encontro com o real da política. Levando-se isso em consideração, talvez seja pertinente somarmos às duas questões levantadas no primeiro parágrafo o seguinte problema: não seria, portanto, a Bioética, ao contrário de uma "arma" contra as desrazões anti-humanas, uma estranha incitação a-política destinada a provar uma suposta inventividade normativa?

Essa questão se impõe, em primeiro lugar, porque não há consenso algum em torno da hipótese epistemológica que diz haver boas razões para acreditarmos que a ciência possa estabelecer para si um limite, a qual supõe uma necessidade de primeira ordem, atribuindo à ciência o imperativo de estabelecer nítidas fronteiras de possibilidade. Para o epistemólogo francês Gaston Bachelard (1996), essa hipótese não é verdadeira já que a atividade científica moderna não se prende a uma necessidade humanista de promoção do progresso, da paz e do bem dos homens. A ciência, ao contrário do que pressupõem os partidários do positivismo e do utilitarismo, não se caracteriza pela produção de um conjunto de previsões e certezas sobre o real objetivado, mas sim pelo trabalho infinito de retificação dos conceitos utilizados, pela produção de novos problemas e pela matematização experimental de seus objetos. Em última instância, a ciência é aquela que produz um saber desprovido de valores e juízos. Ou devemos esperar que o Genoma emita um juízo sobre seu caráter vivo ou não? Por outro lado, seria um absurdo para Bachelard colocar em questão o seguinte impossível: existem coisas que não devemos saber? Não seria isso uma nova versão do antigo argumento conservador de que para mantermos nossa dignidade moral é melhor não sabermos certas coisas? Não seria legislando sobre questões como essas o que leva os especialistas em Bioética a deformarem cinicamente o conceito de ética em benefício de um consenso?

Assim, não é difícil supor que a razão de ser da Bioética se deve, principalmente, à tentativa político-jurídica de constituição de um recurso contra a angústia e desorientação do sujeito, frente ao desenvolvimento científico, que coloca a humanidade em perigo radical. Isso é perfeitamente constatado a partir de inúmeros casos, como o embate diplomático sobre o uso da tecnologia de enriquecimento de urano e a política global do agronegócio com o possível favorecimento de lavouras transgênicas. O que temos de comum acordo em todas essas querelas é a hipótese de que o termo "ética" parece perder seu sentido em função de uma deformação no mínimo forçada. A Bioética como instrumento de legitimação de uma nova ética e de uma ciência inédita parece não ser compatível com o mundo onde a atividade científica é possível. Ela não seria um campo onde se alcançaria a objetividade científica anunciada, mas, antes, um problema de ordem ético-jurídico, campo epistêmico que não pode ser confundido com o da ciência. Em suma, segundo os dizeres de Jacques Lacan (1965/1998) e de Jean-Claude Milner (1996), o mundo moderno da ciência é caracterizado pela disjunção entre o saber científico e a decisão ética, já que a objetividade alcançada pela ciência não é acompanhada de nenhuma espécie de valor ou juízo. Na física, química e genética contemporâneas, a ética não é o elemento constitutivo e referencial do sucesso dessas ciências. É o que também conclui Lecourt (2005) ao afirmar que, em relação ao problema legal da produção de transgênicos, o interessante seria verdadeiramente discutir o modelo agrícola que algumas empresas multinacionais querem impor ao planeta; porém, é lamentável que se atribua um juízo a priori de que a manipulação genética de plantas é uma coisa, em sua essência, diabólica. Seguindo ainda as pistas lançadas por esse autor, podemos afirmar que a urgência de nossos dias é a grande necessidade de outro conceito de ética, que se emancipe da necessidade de "fundamentar" a especular a divisão entre o Bem e o Mal.

Esta posição epistemológica que sustenta que há uma ruptura entre a ciência e a ética é assumida pela psicanálise. A ética da psicanálise não é uma especulação sobre a polêmica divisão entre o Bem e o Mal. Quando Lacan (1965/1998) afirma que o advento da ciência moderna provocou a disjunção entre o saber e a verdade e que, diante dessa nova configuração epistemológica, a psicanálise irá operar sobre o sujeito da ciência, a conclusão que se antecipa é a seguinte: sendo a psicanálise uma clínica pautada pela ética, isto é, pela atenção ao problema que coloca o sujeito, e não uma clínica de cunho cientificista que busca uma objetivação ali onde esse procedimento não é epistemologicamente compatível com a modernidade (objetivar a verdade e o sujeito), cabe a ela se haver com aquilo que fica fora desse discurso, a saber: o campo onde a validade e a legitimidade de escolha e decisão recaem sobre temas como a sexualidade, a vida, a morte, o pai etc. É em função disso que Lacan irá afirmar que a ética da psicanálise não se trata da ética em geral dos filósofos, uma vez que na clínica psicanalítica não está em jogo uma ideia geral sobre a saúde e bem-estar de todos, o que levaria a um modelo de tratamento standard e científico; pelo contrário, a psicanálise afirma que só há ética possível quando há um posicionamento subjetivo. Longe de se ater à dimensão consensual da ética, a psicanálise propõe haver somente uma ética subjetiva.

Diante disso, o objetivo do presente artigo é problematizar o campo epistemológico da Bioética, questionando sua validade e legitimidade. O trabalho encontra-se dividido em duas partes. Na primeira seção, demonstraremos que as noções de ética e natureza humana presentes no discurso dos bioeticistas contemporâneos são falsas e inconsistentes, respectivamente. A ética é falsificada nesse discurso quando é reduzida a um mero problema de generalização de valores morais na organização de verdades jurídicas. Já a noção de natureza humana é um conceito inconsistente, uma vez que se prende a uma necessidade, que sempre esteve presente no mundo, e não como um conceito historicamente determinado, que, por definição, estaria sempre atrelado às contingências que tornam qualquer mundo humano possível. Na segunda seção, apresentaremos o sentido da seguinte tese: a relação que a psicanálise mantém com a ciência é de compatibilidade lógica. A partir das consequências extraídas dessa tese, o passo seguinte será questionar a legitimidade de uma intervenção ética no domínio científico.

 

Ética e Natureza Humana

Em uma conferência proferida no Brasil em 1996 (intitulada Ética e Política), o filósofo Alain Badiou nos adverte sobre a falsa ligação entre ética e políticas de representação (consensuais):

Nas políticas de representação, não pode haver ética, pois, para um Sujeito, a ação ética é justamente aquela que não pode ser delegada nem representada. Na ética, o sujeito se apresenta ele mesmo, decide ele mesmo, declara o que ele quer em seu próprio nome (Badiou, 1999, p. 42).

Outra advertência no mesmo tom é dada por Jacques-Alain Miller quando afirma que "só há ética relativa, isto é, específica ao discurso" (Miller, 1996, p. 109). Em função dessa definição de ética, extraída dos autores citados, vemos surgir um importante impasse: se a ética não é uma problemática relativa ao geral, ao consenso das opiniões divergentes, como a Bioética se serve dela para formular regras e normas sobre o entendimento que a ciência deveria ter do Homem?

Portanto, se a definição clássica de ética ainda for válida, isto é, caso seja possível ainda pensarmos os problemas da ética, em torno de uma máxima subjetiva, ligada a princípios universais, é contraditório e estranho constatar que o cenário de debates e publicações, sobre as temáticas da Bioética, se resume somente a um posicionamento sobre a ética, como valor consensual no âmbito jurídico, sendo, ao mesmo tempo e no fim das contas, funcional para a política continuísta de Estado, isto é, para a política econômica hegemônica:

No estado parlamentar [definido como aquele de representação popular partidária], o referente é a economia de concorrência, a livre circulação dos capitais, o mercado mundial. Ora, a economia capitalista necessita do direito. Necessita da liberdade de escolha e de circulação dos consumidores, mas com a ressalva de que ela libera o direito, na medida em que há um acordo geral acerca das regras do Estado. O Estado parlamentar é um Estado de direito, de modo algum por razões éticas, mas porque há um grande consenso em torno de seu referente central, que é a economia de mercado. Não há, pois, necessidade de se tomar a segurança do Estado como referente principal. O direito é então favorável à economia, logo favorável ao Estado, que tem a economia como referente principal (Badiou, 1999, pp. 42-43, grifos nossos).

Vemos Badiou concluir, então, que a ética "não é representativa, ela se apresenta diretamente; não é jurídica, ela é subjetiva" (Badiou, 1999, p. 44). Em seu livro, Ética (1995), ele afirma que a palavra ética é o termo dos holofotes atuais, a tendência "filosófica" do momento. Diz ele que hoje em dia é impensável que a "ética da política", a "ética dos direitos do consumidor", a "ética ambiental" etc., não estejam assentadas em superestimados direitos naturais do homem. Essa superestimação é fruto direto do claro e evidente entendimento daquilo que é ameaça à essência humana, cujo consentimento força a delimitação universal da representação do Mal. Desse modo, a significação cotidiana do termo "ética" se reduz, nos dias de hoje, à evidente doutrina dos Direitos Humanos que assegura ao sujeito os direitos jurídicos ao não-Mal: não ser maltratado em sua vida, em seu corpo, nem em sua identidade cultural. Consequentemente, o problema que se coloca é: não seria essa determinação negativa e a priori do Mal o que serve de obstáculo ao problema ético por definição, a saber, pensar a singularidade das situações, princípio obrigatório de toda ação humana? Nesse sentido, o problema da ética não pode se limitar a formular proibições e interdições; essa finalidade é precisamente aquela que sustenta todo e qualquer Estado de Direito, na medida em que este somente é requisitado porque autoriza um espaço de identificação do Mal, legitimando os meios para julgar, quando o certo e o errado não parecem ser assim tão inteligíveis. É por essa razão que Zizek (2003) afirma que "o que se perde nessa ética com hífen é simplesmente a ética como tal" (online). Em outras palavras, a regulamentação do saber científico pela Bioética nos parece ser um obstáculo à ética e à ciência simultaneamente.

Com efeito, vemos despontar no cenário político atual a figura dos biocatastrofistas. Esse biocatatrofismo é uma expressão cunhada por Dominique Lecourt, em seu livro, Humano Pós-Humano (2005), para designar um posicionamento supostamente epistemológico (pós-humanidade), que afirma que o avanço do Espírito Científico sem nenhuma regulamentação é nocivo não só em relação à perda de nossa dignidade humana, mas, acima tudo, em relação à própria extinção de nossa espécie - sem sombra de dúvidas, um dos autores de referência nessa aérea da biocatástrofe é Francis Fukuyama, com seu livro Nosso Futuro Pós-Humano (2003). A pós-humanidade, segundo esse autor, é a principal e mais devastadora consequência do avanço indiscriminado das biotecnologias. Sua defesa é de que, mesmo com a evidência da plasticidade do comportamento dos seres humanos, instintos naturais e padrões de comportamento, presentes em nossa espécie, ainda assim, deve-se sustentar a tese fundamental de que existe uma natureza humana, visto que ele considera certas ideias e valores que determinam o humano como universais e inatos.

Fukuyama (2003) analisa as consequências pós-humanas do avanço biotecnológico a partir de quatro temas: a localização biológica de comportamentos humanos, a manipulação de comportamentos e emoções a partir da neurofarmacologia, as técnicas de prolongamento da vida e a engenharia genética. Tais temas podem ser assim sintetizados:

1) a possibilidade de localizar nas funções cerebrais a determinação de comportamentos humanos traz como consequência imediata, por exemplo, uma modalidade de tratamento para a cura da homossexualidade. Uma vez identificados os processos neurais que causariam a inclinação à homossexualidade, o comportamento inaceitável poderia ser tomado como uma "anomalia tratável";

2) com o desenvolvimento desenfreado da neurofarmacologia o uso de substâncias psicotrópicas faria com que as pessoas assumissem um lugar de alienação e submissão, visto que seus comportamentos e emoções passariam a ser controlados a favor da manutenção de comportamentos socialmente aceitáveis. O uso de drogas correria o risco de passar de ferramentas terapêuticas para poderosos controladores sociais. Por outro lado, a preocupação maior seria a deformação das características emocionais, por exemplo, com os medicamentos psicotrópicos que visam à diminuição do sofrimento, privando, assim, o sujeito de uma característica "natural" de reagir à dor, morte e surpresa, e causando a incapacidade de sentir compaixão, solidariedade, coragem e força;

3) as técnicas de prolongamento da vida são problemáticas quando discutidas suas finalidades. Para que o prolongamento da vida em seu sentido biológico e corporal se não há mais vigor físico ou psicológico? Entrevê-se a manutenção de idosos "vegetativos" na sociedade vivendo em função de um corpo cada vez mais resistente ao tempo. Uma consequência seria o aumento significativo da população não-reprodutiva, fato que influenciaria diretamente o futuro de nossa espécie;

4) a engenharia genética e suas descobertas trazem uma polêmica indigesta sobre o início da vida, questionando quando nos tornamos verdadeiramente humanos, dignos de certos direitos inalienáveis. "Um embrião pode carecer de algumas das características humanas básicas que um recém-nascido possui, mas não é um mero grupo de células ou tecidos como outro qualquer, porque tem o potencial de se tornar um ser humano pleno" (Fukuyama, 2003, p. 184). Ao defender que células-tronco possuem um status moral mais elevado que o de outras células comuns, Fukuyama afirma ser necessário impedir as pesquisas que utilizam embriões livremente para clonagem e outras técnicas. A partir de então, defende que é preciso impor limites políticos e legais na utilização descartável de células potencialmente mais humanas que todas as outras.

Esses quatro argumentos elencados apontam para o que Fukuyama define como sendo uma biocatástrofe: a perda de nossa natureza humana, a qual seria a soma de características e comportamentos típicos e universais da espécie humana. Sua tese gira em torno da defesa da existência de padrões fixos que predominam mesmo diante da variância cultural dos comportamentos humanos. Um desses padrões é a consciência, definida como um estado subjetivo, capacidade de pensar, aprender e desenvolver linguagem complexa, enfim, expressar emoções. Essa característica seria fundante da natureza humana e nossa capacidade de escolha moral nos tornou dignos e detentores de direitos. A consciência é, assim, produtora da dignidade humana. As provas da existência de uma dignidade humana - que o autor chama de Fator X - não podem ser reduzidas a uma única característica subjetiva do humano:

Se o que nos dá dignidade e um status moral mais elevado que o de outras criaturas vivas está relacionado ao fato de sermos todos complexos em vez da soma de partes simples, fica claro que não há nenhuma resposta simples para a pergunta: que é o Fator X? Isto é, o Fator X não pode ser reduzido à posse de escolha moral, ou razão, ou linguagem, ou sociabilidade, ou sensibilidade, ou emoções, ou consciência, ou qualquer outra qualidade que tenha sido proposta como base da dignidade humana (Fukuyama, 2003, p. 179).

Portanto, a dignidade humana seria uma qualidade essencial e exclusiva de nós, seres humanos, sendo útil na garantia do reconhecimento pelo outro, dos direitos e deveres e da justa igualdade de todos perante a Lei. A dignidade humana seria o que resta no humano ao se despir de suas características contingentes e acidentais. Não buscamos neste trabalho uma crítica ao conteúdo dado por Fukuyama aos conceitos de natureza e dignidade humana, mas privilegiamos, por outro lado, levantar algumas objeções sobre o modo realista como esses conceitos são produzidos. Ora, não seriam exatamente as características que Fukuyama chama de contingentes e acidentais que podem definir o caráter distintivo do humano? É nesse sentido, que Zizek (2003) afirma que a falha da Bioética pode ser entendida a partir de uma crença fetichista: embora saibamos que hoje em dia nossa natureza humana "dependa da insignificante contingência genética, vamos fingir e agir como se não fosse o caso, de modo a mantermos nosso sentido de dignidade e de autonomia" (online). Não experimentaríamos desde sempre nossa disposição humana de modo mediado, não como algo dado imediatamente, mas como algo que pode, em princípio, ser alterado em seu sentido sócio-histórico, sendo, portanto, a natureza humana uma determinação contingente, e não uma ordem necessária? A questão que, com justiça, Fukuyama não se coloca é a seguinte: não seria o desafio de nossos dias, em função das novas condições, impostas pelo desenvolvimento da engenharia genética, repensar as noções de liberdade, autonomia e responsabilidade ética? No entanto, constatamos que Fukuyama escolhe mobilizar-se como porta-voz do alerta sobre a perda do caráter humano, abstendo-se por completo do exercício filosófico de reinventar, ao propor uma ideia nova, a natureza humana.

A conclusão inevitável é que, com a biogenética, não se trata tanto de perdermos a dignidade e a liberdade - na verdade sentimos que nunca as tivemos, para começo de conversa. Se hoje temos 'terapias que tornam imprecisa a separação entre o que conquistamos por conta própria e o que conquistamos devido aos níveis de várias substâncias químicas em nossos cérebros' [Fukuyama, Nosso futuro pós-humano], a própria eficiência dessas terapias não implica que 'o que conquistamos por conta própria' também depende de um grau diferente de 'níveis de substâncias químicas em nossos cérebros?' Então não é como se nos dissessem que, para citar o famoso título de Tom Wolfe, Perdão, sua Alma Acaba de Morrer - o que nos dizem, efetivamente, é que nunca tivemos uma alma, para começo de conversa (Zizek, 2003, online).

É justamente esse "começo de conversa" que não interessa à Fukuyama. Podemos afirmar que se seu interesse não é a filosofia, tampouco é a biologia, já que o desenvolvimento da genética contemporânea prova ser infundada a existência de uma referência biológica que dê fundamento à vida humana, ou seja, de qualquer Fator X ou algo semelhante a isso. A ciência dos sistemas vivos, segundo François Jacob (1983) e Dominique Lecourt (2005), nos mostra que nunca existiu no ser humano um núcleo biológico intangível que pudesse ser nomeado de natureza humana e erigir-se, assim, como uma necessária referência absoluta para a Bioética. Ao contrário disso, a genética contemporânea nos demonstra que, do ponto de vista evolutivo, não há qualquer necessidade que produza a vida humana. Ou ainda, não existe nenhuma necessidade que impere na natureza, mas somente a cega contingência que nos coloca (humanos ou não) sob o imperativo do acaso: todas as formas de vida que conhecemos poderiam ou não existir. Eis a contingência natural, fato que Fukuyama negligencia ou desconhece. Desse modo, nunca será possível provar a existência de um gene ou um núcleo biológico capaz de dar sentido a isso que é chamado de natureza humana, já que essa noção está invariavelmente ligada, no domínio da Bioética, a uma necessidade de primeira ordem.

Mas Fukuyama não desiste fácil. Se a filosofia e a biologia são um terreno tortuoso para ele, nada mais justo e criterioso indicar que a sua defesa da natureza, dignidade e direitos humanos não deve ser baseada apenas nesses saberes. As proteções contra os avanços da biotecnologia devem ser sustentadas em âmbito político. Uma tecnologia consensualmente considerada uma ameaça, tal como a bomba atômica, aparece como um exemplo (contingente) para defender a necessidade de impor limites diplomáticos e jurídicos à ciência. "Mas é hora de passar da reflexão para a ação, da recomendação para a legislação. Precisamos de instituições com poderes reais de impor normas" (Fukuyama, 2003, p. 211). O consenso político em defesa da dignidade humana seria construído de forma democrática, e os cientistas não agiriam mais por suas próprias convicções e ambições, mas subordinados ao poder político regulador. Dessa forma, nosso senso de autonomia e dignidade só pode ser mantido pagando-se um preço alto: limitando a "liberdade" de intervenção científica. A consequência inevitável é, então, a criação de comitês de ética para avaliar o que pode ser feito ou não no domínio da ciência. "O paradoxo, aqui, é que a autonomia só pode ser mantida proibindo o acesso à cega contingência natural que nos determina, isto é, em última instância, limitando a nossa autonomia e a liberdade de intervenção científica" (Zizek, 2003, online). Um exemplo claro de que a ética na Bioética é apenas uma função normativa e tomada em seu sentido genérico é a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que, segundo Poli (2006), não considera as especificidades de cada ciência e seu método. Resoluções como essa buscam garantir a autonomia dos sujeitos da pesquisa mediante a assinatura de um Termo de consentimento livre e esclarecido.

No lugar das perguntas 'como poderemos preservar a autonomia dos sujeitos (o que é afinal autonomia?)?', ou 'de que modo seguir o princípio da beneficência (o que é o bem para o sujeito?)?', e ainda 'como realizar uma ciência justa (o que é mesmo ser justo?)?', estabelecem-se princípios abstratos. A assinatura de um termo de compromisso livre e esclarecido e o preenchimento adequado de formulários parecem bastar para atestar a 'submissão' do pesquisador a esses preceitos (Poli, 2006, p. 11).

Temos, portanto, o problema da autonomia humana decidida burocraticamente. Como indica Braz (1999), "a autonomia, aos poucos, está se tornando uma espécie de fetiche, e levantar quaisquer dúvidas a respeito dele provoca brados de revolta" (p. 7). Preservar a dignidade e a autonomia humana seria, assim, um problema ético que se pode resolver a partir de protocolos e pareceres. Mas, certamente, a ética, nesse contexto, passa longe de seu sentido clássico: Ética refere-se, em grego, à busca de uma boa 'maneira de ser', ou à sabedoria da ação. Desse modo, a ética é uma parte da filosofia, aquela que coordena a existência prática com a representação do bem" (Badiou, 1995, p. 15). Concordamos com Badiou quando afirma que não existe uma ética em sentido geral, e sim uma ética de processos pelos quais se tratam os possíveis de uma situação, ou seja, ética de problemas subjetivos não-padronizáveis, ética das verdades, e não uma ética com fins normativos que pretende determinar e defender a verdadeira natureza do humano. Nesse sentido, a ética para os bioeticistas é um problema de norma, reduzida a uma tentativa de contenção da ameaça futura de uma sociedade pós-humana e de uma biocatástrofe planetária.

[...] o mundo pós-humano poderia ser um mundo muito mais hierárquico e competitivo do que o hoje existente, e, em consequência, cheio de conflito social. Poderia ser um mundo em que toda noção de 'humanidade partilhada' teria sido perdida, porque teríamos misturado genes humanos com os de tantas outras espécies que já não teríamos uma ideia clara do que é um ser humano (Fukuyama, 2003, p. 230).

Mas a pergunta que devemos fazer é: como pensar num instrumento de normatização de pesquisas científicas se é a própria ciência quem estabelece de modo autônomo seus limites e seu alcance? O que é posto em questão pelos bioeticistas é o risco de consequências negativas numa dimensão macro e externalizada das escolhas individuais que se submetem a testagens e intervenções científicas, e, também, os possíveis efeitos colaterais dos resultados da pesquisa biotecnológica em larga escala. Por exemplo, caso os pais pudessem escolher a programação genética dos filhos, os humanos produzidos artificialmente seriam prejudicados em sua dignidade, pois não tiveram autonomia de escolha, quando o normal seria o agrupamento natural e aleatório dos genes. Sendo assim, o "bebê de prancheta" poderia futuramente responsabilizar legalmente os pais por escolherem características genéticas sem consentimento, levantando a questão em torno do direito fundamental da autonomia. Fukuyama questiona: por mais que os pais tenham intenções positivas no melhoramento genético dos filhos, em que escala tais escolhas poderiam afetar a humanidade? Outro exemplo seria a modificação genética de plantações, que faria com que estas desenvolvessem toxinas contra pragas típicas de um determinado vegetal e, por outro lado, seria danosa para os animais conviventes no mesmo meio e para o consumo humano. A questão que Fukuyama procura encaminhar é a necessidade de pensarmos em uma relação de equilíbrio, em um custo-benefício vantajoso à humanidade, no tocante aos produtos da revolução biotecnológica.

O realismo com que Fukuyama expõe suas noções de ética e natureza humana o impede de pensar, por uma via dependente, o conceito de ciência. Percebemos que, para ele, a ciência deve necessariamente estar atrelada à ética, já que ela nada mais é do que um bem conquistado pela humanidade, um valor que se coloca a serviço do desenvolvimento social. Logo, aquilo que se mostra útil adquire respaldo científico em função de um valor supostamente ético; por outro lado, as pesquisas científicas que podem produzir possíveis danos à dignidade e autonomia humanas devem ser rechaçadas, pois, da ciência, os senhores da ética só querem o justo e o necessário.

A ciência se caracteriza pelo trabalho infinito de retificação dos conceitos utilizados pela produção de novos problemas - não existem conteúdos dados a priori - e pela matematização de seus objetos. O saber científico (e não os cientistas) é desprovido de valores e juízos. Dentre os objetivos da ciência, não encontramos respostas para os problemas de orientação do homem. "Determinar o caráter objetivo não significa por a mão num Absoluto, é provar que se aplica corretamente um método" (Bachelard, 1977, p. 34). Assim, encontramos na epistemologia histórica de Gaston Bachelard a hipótese de que ciência e ética não estão localizadas em um mesmo campo de problemas. Sem sombra de dúvidas, uma hipótese que coloca sérias objeções à Bioética. Demonstraremos, a partir de agora, que a imposição de limites éticos à ciência é um erro epistemológico. É importante ressaltar que essa demonstração só se torna possível partindo de duas teses que se complementam. A primeira é de Jacques Lacan em A ciência e a verdade (1965/1998): a disjunção entre o saber (ciência/objetividade) e a verdade (ética/sujeito) com o advento da ciência moderna. A segunda é de Jean-Claude Milner em A obra clara (1996): a psicanálise mantém uma relação síncrona com a lógica de um mundo onde a ciência é possível. A complementaridade das duas teses será abordada a partir do seguinte argumento: ao determinar a configuração epistemológica do mundo moderno da ciência - disjunção entre ciência e ética - é que poderemos postular a relação de compatibilidade lógica que a psicanálise mantém com a ciência. Esse argumento revelará ao fim que a compatibilidade lógica entre a psicanálise e a ciência pode ser uma ferramenta conceitual de grande valia para a problematização da Bioética.

 

A compatibilidade lógica entre psicanálise e ciência e suas consequências

A principal consequência do corte epistemológico, efeito direto do advento da ciência galilaica, foi a disjunção entre os campos de problema científico e ético quando inauguraram-se regiões epistemológicas distintas. A derrocada da Cosmologia aristotélica marca o mundo moderno com o contingente. Deus não é mais a referência absoluta do Universo. A ciência não serve como parâmetro para decisões de como o homem deve se orientar. Essa posição epistemológica é que sustenta nossa tese de que a psicanálise é compatível com a ciência. Um primeiro ponto que deve ser apontado é que a palavra compatibilidade não sugere subordinação. Ora, se o corte epistemológico promoveu uma ruptura entre os problemas científicos e éticos, não cabe à ciência legitimar a região ética, e vice-versa. A ciência apresenta as provas de sua produção, demonstrando que se aplica um método corretamente. O problema de validação da atividade científica se coloca em função de uma articulação; é uma rede conceitual e as relações que ela implica que devem ser consideradas verdadeiras ou falsas, sendo que o inteligível não possui existência a priori. Os objetos produzidos pela ciência se organizam segundo leis, independentes de um juízo subjetivo. A autonomia da ciência apresenta-se como uma recusa de um julgamento do exterior. Ora, como um conhecimento objetivo pode ser dependente de um juízo subjetivo se a objetividade, como dissemos, é fruto de uma relação interconceitual? Como a ciência poderia cuidar de um problema de orientação do homem se o saber produzido é sempre provisório?

Um exemplo esclarecedor do problema colocado no parágrafo anterior foi uma notícia científica que repercutiu até nos grandes portais "jornalísticos" da internet brasileira. No dia 23 de novembro de 2011, o portal Uol publicou a seguinte matéria: "Descoberta que contradiz teoria de Einstein intriga cientistas". Resumidamente, a matéria diz que um grupo de cientistas europeus do Centro Europeu de Investigação Nuclear (Cern), localizado em Genebra na Suíça, descobriu partículas subatômicas capazes de viajar mais rápido do que a velocidade da luz. Os neutrinos enviados por via subterrânea das instalações de Cern para as de Gran Sasso, a 732 km de distância, pareceram chegar ao seu destino frações de segundo mais cedo que a teoria de um século de física faria supor. No final da matéria, um dos cientistas desse grupo disse que a experimentação ainda precisa ser replicada, procurando variar ainda mais as condições para verificar como os neutrinos se comportam. Mas o que realmente devemos esperar de uma notícia como essa? Será que essa suposta descoberta científica traria consequências diretas para o entendimento que os seres humanos possuem de si mesmos? De saída, não sabemos. Segundo Milner (1996), a humanidade espera que a ciência possa revelar a verdade escondida por trás de todos os semblantes do saber, crendo que a todo sábio cabe uma magistratura moral. Uma coisa é certa, nos alerta ele: "se a ética existe, a ciência nada tem a dizer sobre isso e, sem dúvida, como ciência, ela nada tem a fazer com isso" (Milner, 1996, p. 46). Nesse sentido, outra coisa ainda é certa: entre a fissão e fusão nuclear extraída da experimentação dos laboratórios de ponta na química e a decisão norte-americana de bombardear Hiroshima e Nagasaki com artefatos atômicos, há um fosso enorme. Assim como o problema atual entre a comunidade internacional e o programa nuclear iraniano não é de ordem científica; menos ainda, de ética.

Esses problemas, sem dúvida alguma, não poderiam ser colocados no mundo antigo anterior à ciência de Galileu. A física de Aristóteles - antecedente e necessária para a ciência moderna - é condicionada a uma ontologia do ser, imutável e eterna (Koyré, 1991). No mundo moderno, a física matematizada não é formalizada com o objetivo de dar uma resposta última e final sobre as coisas. Portanto, o problema de uma orientação fica excluído do campo da ciência em função do corte epistemológico. Se a ética inscrita nos domínios burocráticos da Bioética é sinônimo de uma tentativa de contenção da contingência perigosa do saber promovido pela ciência, fica complicado pensarmos como essa relação se justifica, uma vez que a ciência, por definição, é justamente o que se coloca como obstáculo epistemológico à aquisição de uma verdade única e compatível com nossos preceitos morais. Pelo contrário, é o avanço da ciência que impõe rupturas ao modo como o homem estabelece suas formações discursivas, as quais dão sentido - inclusive moral - ao laço firmado entre o sujeito e o Outro.

Mas, afinal, o que essa disjunção entre a ciência e a ética implica para o entendimento de que a psicanálise é compatível com a ciência? Significa que o campo de problemas da psicanálise - campo ético de problemas, que envolve a busca da causa de um sujeito - só surge em função dessa disjunção.

Lacan afirmou em A ciência e a verdade (1965/1998, p. 873) que a psicanálise opera sobre o sujeito da ciência. Essa afirmação de Lacan é feita em um momento de discussão sobre a relação da psicanálise com a ciência. Podemos, a partir deste aforismo lacaniano - a psicanálise irá operar sobre um sujeito, e que esse sujeito só pode ser o sujeito da ciência -, apontar duas problemáticas. Em primeiro lugar, há uma exclusão mútua entre os problemas psicanalíticos e os problemas científicos. A psicanálise, ao propor o tratamento clínico para um sujeito, não está buscando uma maneira de objetivá-lo, fazendo com que a experiência analítica seja repetível. Ao contrário, Freud sempre afirmou que todo caso clínico psicanalítico é único e que a única regra desta modalidade clínica, chamada por ele de fundamental, é a associação-livre feita pelo paciente. Dentre outras consequências, a associação-livre marca de forma precisa a impossibilidade de uma objetivação do sujeito, pois colocar o sujeito a associar livremente implica que o psicanalista não detém um saber sobre seu sofrimento. A descoberta fundamental de Freud (1900/1969) é que, para a histeria, não há ainda um saber que dê conta de explicar uma conversão motora sem causa orgânica eficaz. Freud inventou - com toda a força do termo "invenção" - a psicanálise estabelecendo um problema claro e preciso: é necessário estabelecer um saber para dar conta dos problemas que a neurose coloca.

A clínica psicanalítica, como afirmou Lacan (1965/1998), só é possível em um mundo moderno, isto é, em um mundo onde há ciência e no qual a ontologia está desarmada com a abolição de Deus como referência absoluta do Universo. Por essa razão é que a psicanálise não procurará apagar as marcas do corte epistemológico. A clínica psicanalítica, em função dessa proposta epistemológica, é ética, pois visa a tratar do sujeito da ciência não a partir de uma objetivação; o sujeito da ciência é uma categoria própria a um mundo sem referências quanto ao problema da orientação. Eis a importância da questão ética. Por outro lado, a ciência, ao tratar especificamente de uma objetivação, exclui de seu campo justamente este sujeito da ciência que coloca o problema da verdade (ética) no mundo moderno. E o que significa esse problema da verdade? Segundo o ponto de vista de Johannes Hessen (2000), a verdade está intimamente relacionada com a ideia de validade universal, que, do ponto de vista da ética, indica que o problema da verdade diz respeito a uma tomada de decisão que seja válida para todos:

É contrassenso falar de uma verdade que não seja universalmente válida. A validade universal da verdade tem fundamento na própria essência da verdade. Verdade quer dizer concordância do juízo com o estado de coisas objetivo. Ocorrendo tal concordância, não faz sentido limitá-la a certo número de indivíduos. Se a concordância existe, existe para todos. O dilema consiste no seguinte: ou o juízo é falso e, então, não vale para ninguém, ou é verdadeiro e, nesse caso, é válido para todos, tem validade universal. Se é assim, está se contradizendo quem se apega ao conceito de verdade e, ao mesmo tempo, afirma que não há verdade universalmente válida (Hessen, 2000, p. 38).

Desse modo, o corte epistemológico desarticula a ciência do problema de uma definição e legitimação ética, isto é, do problema que coloca o sujeito da ciência. A atividade científica não objetiva uma verdade última para o seu campo de problemas. A exigência de uma verdade, isto é, de que alguma lei adquira o caráter de universal e sirva de critério absoluto para legitimar uma experiência ou uma ação já não é uma preocupação do discurso científico. O real produzido está desconectado do problema da verdade e vinculado à objetivação. E uma objetividade se caracteriza pela produção de um saber que produz e determina efeitos no real. Por isso, quando falamos estritamente em um processo de objetivação, não podemos falar no problema de uma ética. É esta a conclusão do texto lacaniano: há uma disjunção entre o saber científico e o problema da ética. E essa tese traz consequências cruciais para a psicanálise, pois, "da verdade como causa, a ciência não quer-saber-nada" (Lacan, 1965/1998, p. 889). É justamente em função deste não querer-saber-nada que a psicanálise constitui seu campo de ação.

Jacques-Alain Miller, em seu artigo "Sobre o transfinito" (2000), diz que o texto de Lacan pode ser lido como uma confrontação entre a ciência e a psicanálise, uma vez que a psicanálise evoca o problema da verdade deixado de lado pelo discurso científico. Mas essa exclusão mútua dos campos de problemas é, na visão de Miller, sede de um paradoxo "na medida em que ciência e psicanálise estão ligadas pela sua relação ao sujeito da ciência" (p. 29). Portanto, não se trata exatamente de uma confrontação entre a psicanálise e a ciência, como atestou Miller:

Igualar-se à ciência é uma ambição totalmente diferente. Essa posição não acentua o que faria falta na ciência [não levar em conta o problema da verdade], ao contrário o acento é colocado sobre o aspecto positivo da ciência. [...] De repente, não cabe mais a psicanálise contestar a ciência, mas ela deve entrar na sua escola na medida em que a ciência visa ao saber presente no real. Trata-se de levar em conta o fato de que, visando ao saber no real, a ciência elabora e transforma um saber que determina esse real (Miller, 2000, pp. 31-32).

A exclusão mútua dos campos de problemas não pode sugerir uma relação de subordinação entre a psicanálise e a ciência. Uma e outra não tratam do mesmo problema. Por essa razão é que Lacan (1959-1960/1988) situa para o campo psicanalítico uma ética: "A questão ética, uma vez que a posição de Freud nos fez progredir nesse domínio articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real". E mais, o sujeito da ciência, sob o qual a psicanálise opera, é um efeito do corte epistemológico. É efeito também do corte a impossibilidade de objetivá-lo. É por isso que a relação de compatibilidade lógica entre psicanálise e ciência não se justifica pelo mesmo campo de interesse, mas pelo mesmo princípio que comanda, na atividade científica, um processo de objetivação e, na psicanálise, o tratamento de um sujeito: o Espírito Científico. Podemos, então, concluir que as consequências da tese de compatibilidade lógica entre a psicanálise e a ciência determinam uma diferente definição para os conceitos de ciência e ética, os quais devem ser encarados como obstáculos à legitimação e validação da Bioética.

 

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi propor ferramentas conceituais para pensarmos qual seria o posicionamento da psicanálise em relação à Bioética. Em suma, a problematização que a psicanálise impõe à Bioética é a seguinte: já que os resultados da ciência representam uma ameaça para nossa autonomia e liberdade, devemos recalcá-los - "o preço que pagamos por essa solução é a separação fetichista entre ciência e ética: 'sei muito bem o que a ciência afirma; não obstante, para manter minha aparência de autonomia, prefiro ignorá-la e agir como se não soubesse'" (Zizek, 2003, online).

No entanto, podemos dizer que existem, sim, intervenções científicas maléficas. Mas essa maldade não deve ser medida em relação à perda daquilo que nunca tivemos. Seria interessante nos questionarmos, por exemplo, sobre o poder exercido pelo capital na ciência. Ou seja, refletir sobre o modelo atual de financiamento de pesquisas, principalmente nas universidades públicas, onde fica cada dia mais claro o domínio do poder econômico sobre os rumos do desenvolvimento científico, assunto que não deve ser de interesse privado, mas sim de interesse público. Enfim, a antiética na ciência seria o uso de financiamento público para o exercício da pesquisa em benefício da lógica de mercado, isto é, abandonando por completo a dimensão do fazer científico comoo uso público da razão. Diante disso, o que a ciência pode produzir de pior não é uma suposta pós-humanidade.

 

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Endereço para correspondência
Tiago Iwasawa Neves
E-mail: tiagoiwasawa@yahoo.com.br

Ana Margareth Steinmuller Pimentel
E-mail: anasteinmuller@hotmail.com

 

Artigo recebido em: 7.10.2013/7.10.2013
Aprovado para publicação em: 15.10.2013/15.10.2013

 

 

* Professor da Unidade Acadêmica de Psicologia (UPSI). Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). (Campina Grande, Paraíba, Br).
** Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Programa Institucional de Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC/UFCG). (Campina Grande, Paraíba, Br).