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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.3 no.4 São João del Rei ene. 2014

 

DOSSIÊ

 

Notas sobre a Primeira Tese em Psicanálise no Brasil "Da Psicoanalise" (1914) de Genserico Aragão

 

Notes on the First Thesis in Psychoanalysis in Brazil "Da Psicaoanalise" (1914) of Genserico Aragão

 

Notes sur la première thèse sur la psychanalyse au Brésil "Da Psicoanalise" (1914) de Genserico Aragão

 

Notas sobre la primera tesis en Psicoanálisis en Brasil "Da Psicaoanalise" (1914) de Genserico Aragão

 

 

Christian Ingo Lenz Dunker*

Universidade de São Paulo - USP - Brasil
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traz considerações acerca da tese de Genserico Aragão de Souza Pinto. Nota-se que apesar da disseminação da teoria psicanalítica no Brasil ter acontecido entre pensadores que discutiam a brasilidade, foi à psiquiatria que proporcionou a primeira tese de psicanálise no Brasil, apresentada a faculdade de medicina do Rio de Janeiro em 1914. Lembra-se que a psicanálise chega a nosso país precedida por uma geopolítica alternativa marcada pela oposição a França. Após apresentar as proposições acerca das disciplinas do curso de ciências médicas cirúrgicas, constata-se que a psicanálise surge como um discurso, sem implicações explícitas para um método de tratamento. Finalmente se apresenta os cinco casos clínicos discutidos no final da tese. Ressalta-se que dos cinco casos, apenas um é de um brasileiro. Disso decorre a hipótese que os pacientes aptos a psicanálise são "modernos". Percebe-se, pela descrição dos sintomas e pelo recorte que o médico faz dos relatos dos pacientes, uma tendência a valorização das formas modernas de sofrer. Em contraste a isso, o médico aparece na condição de conselheiro da família e guardião da ascese sexual dos casais.

Palavras-chave: História da Psicanálise; Clínica, Psiquiatria; Neuroses; Sexualidade.


ABSTRACT

The article presents considerations concerning the thesis Genserico Aragão de Souza Pinto. We note that despite the spread of psychoanalytic theory in Brazil have happened between thinkers who discussed the Brazilians was to psychiatry that provided the first thesis of psychoanalysis in Brazil, presented the medical school of Rio de Janeiro in 1914. Remember that psychoanalysis comes to our country preceded by a geopolitical alternative marked by opposition to France. After presenting the propositions about the course subjects of surgical medical sciences, it appears that psychoanalysis emerges as a speech without explicit implications for a method of treatment. Finally we present the five clinical cases discussed at the end of the thesis. It is noteworthy that of the five cases, only one is a Brazilian. It follows the hypothesis that qualified patients psychoanalysis are "modern". It can be seen from the description of the symptoms and the cut that the doctor makes the patient reports a trend appreciation of modern forms of suffering. In contrast to this, the doctor appears in condition family counselor and guardian of sexual asceticism couples.

Keywords: History of Psychoanalysis; Clinical; Psychiatric; Neuroses, Sexuality.


RÉSUMÉ

Cet article apporte une réflexion sur la thèse de Genserico Aragão de Souza Pinto. On note que, bien que la diffusion de la théorie psychanalytique au Brésil se soit déjà faite parmi les penseurs qui se sont interrogés sur sa brasilidade (brésilienneté), c'est à partir de la psychiatrie qu'a été produite la première thèse de psychanalyse, présentée à la faculté de médecine du Rio de Janeiro en 1914. On se souviendra que la psychanalyse est arrivée dans notre pays précédée par une situation géopolitique marquée par une opposition à la France. Après avoir présenté des propositions sur l'enseignement des disciplines dans les cours de Sciences Médicales en Chirurgie, on constate que la psychanalyse y apparait comme un discours théorique, sans implication explicite pour une méthode de traitement. à la fin de la thèse, cinq cas sont étudiés. On peut noter que parmi ceux-ci, un seul concerne un brésilien. On en déduit que les patients aptes à la psychanalyse sont " modernes". On perçoit dans la description des symptômes et dans la découpage que le médecin fait des entretiens avec les patients, une tendance à apprécier la souffrance sous sa forme moderne. à l'opposé de cela, le médecin apparait malgré tout comme le conseiller familial et comme le tuteur des bonnes pratiques sexuelles du couple.

Mots-clé: Histoire de la psychanalyse; Clinique; Psychiatrie; Névroses; Sexualité.


RESUMEN

El artículo presenta las consideraciones relativas a la tesis de Genserico Aragão de Souza Pinto. Tomamos nota de que a pesar de la difusión de la teoría psicoanalítica en Brasil han pasado entre los pensadores que se discutió la brasilidad fue a la psiquiatría que proporcionó la primera tesis del psicoanálisis en Brasil, presentada a la Facultad de Medicina de Río de Janeiro en 1914. Recuerde que psicoanálisis viene a nuestro país precedido por una alternativa geopolítico marcado por la oposición a Francia. Después de presentar las proposiciones acerca de las asignaturas de ciencias médicas quirúrgicas, parece que el psicoanálisis surge como un discurso sin consecuencias explícitas para un método de tratamiento. Finalmente, presentamos los cinco casos clínicos tratados en la final de la tesis. Es de destacar que de los cinco casos, sólo uno es un brasileño. De ello se desprende la hipótesis de que los pacientes capaces de psicoanálisis son "moderno". Se puede observar a partir de la descripción de los síntomas y el corte que el médico hace que el paciente informa de una tendencia a la apreciación de las formas modernas de sufrimiento. En contraste con esto, el médico aparece en consejero condición de familia y guardián de las parejas sexuales ascetismo.

Palabras claves: Historia del Psicoanálisis; Clínica; Psiquiatría; Neurosis, Sexualidad.


 

 

A psicanálise no Brasil é um caso particular de disseminação das ideias e práticas psicanalíticas, pois ela se infiltra, de maneira constitutiva, entre os pensadores que, no início do século XX, estabeleceram as premissas de nossa discussão sobre a brasilidade. Mário e Oswald de Andrade eram leitores da psicanálise e a empregaram como uma teoria do simbolismo universal, no primeiro caso, e como uma antropologia crítica, no caso do segundo. Se A Interpretação dos Sonhos era a chave para entender o primeiro regime de absorção da psicanálise, Totem e Tabu é a efígie do segundo. Não obstante, a primeira tese sobre psicanálise no Brasil não veio das artes ou da teoria social, mas da psiquiatria.

"Da Psicoanalise (a sexualidade nas nevroses)" apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1914, por Genserico Aragão de Souza Pinto, informa, já em sua página de frontispício, que seu autor é natural do estado do Ceará e "filho legítimo de Guilherme Augusto de Souza Pinto e Amalia de Aragão Pinto". A importância da "naturalidade" e o peso da filiação "legítima" talvez não participem por acaso dessa história que, naquele momento, ainda está por vir. Transparece na tese esse espírito de renovação, para não dizer de reação ao domínio francês de nossa cultura intelectual, ainda herdeiro do positivismo que nos deu a República. É nesse sentido que Freud nos chega precedido por uma geopolítica alternativa:

Das grandes nações intelectuais, foi a França a última a manifestar a sua curiosidade neste sentido. Enquanto Viena, Londres, Zurich, Lausanne, New York, Boston, Leipzig, Munich e Varsóvia etc. eram agitadas por constantes discussões psicanalíticas, Paris permanecia, ao contrário, quase completamente indiferente à revolução científica de Freud (Pinto, 1914, p. VI).

É nítido o arroubo contra o "atraso" francês em se engajar na discussão das questões psicanalíticas que permeia a declaração. Desse modo, se até mesmo cidades periféricas como Varsóvia e Lausanne estavam à frente em matéria de recepção freudiana, por que também o Rio de Janeiro não poderia sobrepujar Paris?

Em 1914, o Brasil era um país essencialmente agrário, que tentava consolidar o sistema republicano pela criação e fortalecimento de instituições no País. O Hospital de Misericórdia, onde Genserico atendeu os casos relatados ao final da tese, passava por um processo de modernização de seu funcionamento. Dez anos depois da Revolta da Vacina, que ocupou as ruas da Capital Federal com barricadas populares contra a intervenção higienista e as modificações das condições de moradia, o processo de regeneração e de metamorfose urbana implicava uma redistribuição espacial da cidade, trazendo fórmulas particularmente drásticas de controle, segregação e exclusão social (Sevcenco, 2010). Nesse contexto, ergueu-se o grande "parque asilar" brasileiro com o início do que poderíamos chamar, não sem certo anacronismo e descompasso, nossa grande internação. A psiquiatria tornava-se um discurso socialmente ascendente.

Além da valorização da medicina como parte do processo civilizatório brasileiro, devemos observar que a própria disciplina tendeu a formar consensos crescentes e a se pensar como uma unidade, antes talvez ainda precária. Isso se manifestou na tese, aparentemente incitado por dever metodológico, de se apresentarem três proposições sobre cada uma das cadeiras do curso de "Siencias Medico-Cirúrgicas"1. Isso obrigava o candidato a extrair consequências e possíveis implicações de seu estudo para todas as áreas da medicina, da obstetrícia à medicina legal, da cirurgia à microbiologia, prática inusual que nos leva a encontrar, no final da tese, proposições como:

História Natural III: 'Segundo Trillier, há na natureza uma tendência notável ao desaparecimento do hermafroditismo, o qual é um 'sintoma' da regressão de parasitas' (Pinto, 1914, p. 113).
Ou
Patologia Médica I: 'Não são raras as perturbações mentais no decurso da uncinariose' (idem, p. 119).
Ou
Terapêutica III: 'O método psicanalítico parece, no momento, o único capaz de uma cura definitiva e radical' (idem, p. 120).
Ou
Clínica Cirúrgica II: 'A neurose é uma consequência possível da osteíte sifilítica' (idem, p. 123).

Esta ideia de que a psicanálise poderia trazer consequências e implicações para todas as áreas das ciências médicas talvez tenha contribuído para sua disseminação como um discurso mais do que como um método de tratamento.

A tese é uma apresentação sumária, mas bastante correta, no seu conjunto, da evolução das ideias de Freud. Apoiada no trabalho do psiquiatra francês Regis, Genserico apresenta a psicanálise principalmente como uma teoria da sexualidade e como um método para tratamento das psiconeuroses e das neuroses atuais. Lembremos que estamos aqui há apenas três anos depois da publicação do Caso Schreber e se trata, portanto, de uma psicanálise que ainda não viu nascer nem a Teoria da Pulsão de Morte, nem as implicações da Teoria do Narcisismo, e muito menos suas consequências para a clínica da psicose. Senão, vejamos as três teses sintéticas nas áreas da Clínica das Doenças Nervosas:

I. Segundo o conceito de Freud, as neuroses são sempre a expressão de traumatismos sexuais.
II. Esses traumatismos podem provir da infância e se acharem no inconsciente ou podem representar desordens no funcionamento atual do aparelho genital.
III. No primeiro caso, teremos as chamadas "psiconeuroses" ou neuropatias de "conteúdo psíquico"; no segundo, as "neuroses atuais" ou neuropatias "sem conteúdo psíquico" (Pinto, 1914, p. 128).

Saliente-se como o conceito de inconsciente parece menos significativo do que o de sexualidade, assim como também como a diagnóstica das neuroses situa-se no campo das doenças nervosas em contraste com as doenças psiquiátricas que são elencadas e discutidas em uma seção subsequente.

E quando se trata da Clínica Psiquiátrica as teses são as seguintes:

I. A aplicação da psicanálise às psicoses representa uma extensão importantíssima e relativamente recente da doutrina de Freud.
II. Os seus progressos diferem, de certo modo, dos empregados na análise da mentalidade dos neuropatas.
III. A demência precoce, a paranoia e a psicose maníaco-depressiva têm constituído, até hoje, o principal campo de observações de Freud e seus discípulos.

A tríade diagnóstica das psicoses, que parece antecipar a divisão canônica ao longo do século XX entre esquizofrenia, paranoia e mania-depressão, já estava presente na tese. O questionamento do conceito de "mentalidade", de extração tipicamente francesa, aparece aqui bem indicado.

Tendo essas considerações em recuo, podemos perceber como o problema da etiologia sexual das neuroses aparecia de modo impactante para a paisagem da psiquiatria brasileira. A nossa tendência a definir a psicanálise como uma forma de tratamento de sintomas gerados pela vida psíquica baseados no recalcamento e na deformação da história individual aparecem aqui em um equilíbrio notável e em uma concorrência pari passu com a psicanálise como uma espécie de discurso de transformação das práticas sexuais e de correção dos laços sociais que se lhe interpenetram. Por exemplo, ao sintetizar os quadros abordáveis pelo tratamento psicanalítico, vemos surgir o seguinte esquema diagnóstico (Pinto, 1914, p. 44):

 

Neuroses Atuais

Psiconeuroses

(Neuropatias sem História Psíquica)

(Neuropatias de Histórias Psíquicas)

Neurastenia
Neurose de Angústia

Histeria
Obsessões
Fobias

 

Enquanto o subgrupo das histerias, fobias e neuroses obsessivas não apresentam nenhuma subdivisão, o grupo das neuroses atuais se divide em uma rede complexa de três categorias definidas pela angústia nas mulheres (Angústia das Virgens, Angústia das Recém-Casadas, Angústia das Esposas, Angústia das Viúvas, Angústia da Menopausa, Angústia dos Abstinentes) pela angústia nos homens (Angústia dos Noivos, Angústia do Congressus Interruptus, Angustia da Senilidade) e pelas angústias que acometem os dois sexos (Angústia dos Onanistas, Angústia sem Causa Sexual Aparente).

Na conclusão da tese, depois de expostos os benefícios do "transporte positivo" (Pinto, 1914, p. 93), que é o principal meio da cura, ressalta-se o papel deste "objeto intermediário" que substitui na figura do médico, a "imagem inconsciente" do pai, da mãe ou da irmã do paciente. Mas se a apresentação das ideias freudianas é sinteticamente razoável e se a apreensão do método consegue capturar seus elementos fundamentais salta aos olhos como nos últimos parágrafos emerge a força da terapêutica, inspirada na psicanálise, que a tinge de um moralismo sexológico completamente distante do tom e do espírito dos textos freudianos. Ou seja, se o autor reforça uma distinção, relativamente tênue em Freud, entre as neuropatias que possuem conteúdo psíquico (psiconeuroses) e as que não possuem conteúdo psíquico (neuroses atuais), enfatizando a importância das segundas e introduzindo ilações muito pouco freudianas quando se trata da sua terapêutica específica:

A terapêutica desta classe de neuropatias é, sem dúvida, muito mais simples que as primeiras e baseia-se necessariamente em um só princípio, traduzido pela prática normal da sexualidade. Já sabemos que a neurastenia e a angústia são o resultado de hábitos sexuais anormais que dão lugar a toda sorte de desordens na função genital: ejaculação precoce, poluções frequentes, dificuldade ou mesmo ausência de prazer sexual (Pinto, 1914, p. 93).

Ora, o uso forte da noção de normalidade associada à sexualidade, bem como a extensão de todos os sintomas relativos ao exercício da sexualidade genital, com a neurose atual são relativamente equívocos quando se tem em conta o conceito freudiano de sexualidade. Contudo, o espaço deixado para a reeducação médica dos costumes parece ter sido bem aproveitado por Genserico Aragão. Ele, de fato, parece inaugurar um estilo de recepção das ideias de Freud na psiquiatria, no qual o valor etiológico da sexualidade adquire papel fundamental. Seu orientador, Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, publicou, cinco anos mais tarde, Sexualidade e Psiconeurosis. Talvez essa seja uma influência de Juliano Moreira, que naquela altura já havia estabelecido contato com a psiquiatria germânica no início do século e conhecido Emil Kraepelin, cujo sistema de classificação de doenças tentava demonstrar que as doenças mentais eram doenças na acepção forte da palavra, com desencadeamento específico, curso regular e desenlace previsível, o que Moreira tentou aplicar. Daí, a importância conferida ao problema da etiologia, recuada para o indivíduo e não mais localizada em causas genéricas como a hereditariedade, a família ou as condições culturais.

De fato, essa foi uma das formas fundamentais de absorção da psicanálise ao universo médico higienista dos anos 1920, sucedendo e opondo-se à antropologia hereditarista de extração francesa, dominante nos psiquiatras e neuropatólogos como Nina Rodrigues. Foi esta presença decisiva da sexualidade como tema-chave, em meio ao processo civilizatório vivido pelo Brasil na aurora do século XX, que fez a psicanálise aparecer nos textos de Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda. Casa Grande e Senzala é uma teoria de como o poder engendra e se sustenta em uma prática de dominação cuja raiz é a sexualidade. Raízes do Brasil discutirá o problema do ponto de vista da distribuição sexual das relações entre público e privado. A hipótese do sincretismo e da mistura que caracterizariam a formação étnica do Brasil está explicitamente remetida a Freud no primeiro caso. A dialética entre a família e o indivíduo no entendimento da cordialidade nacional será também remetida à neurose como resistência à individualização e à separação das origens.

Contudo, a parte mais interessante da tese é certamente seus cinco casos clínicos apresentados ao final.

O primeiro é um caso de uma viúva espanhola de 30 anos que apresenta sintomas como: respiração entrecortada, sensação de calor e vácuo na cabeça. Ela está em um "leve estado alucinatório" com sono agitado e sonhos numerosos e aflitivos. Levanta-se durante a noite em uma inquietação constante. Apresenta "dores de toda sorte" pelo corpo, anorexia e amnésia, além de ataques histéricos. "Isolamo-nos diversas vezes com a doente em uma sala silenciosa e captando pouco a pouco sua confiança e sua simpatia, conseguimos arrancar-lhe a sua história minuciosa de vida e da causa de seu mal" (Pinto, 1914, p. 97).

E a história da sua vida e a história de seus males eram as paixões. Primeiro, pelo marido, que veio a falecer oito anos depois do casamento. Depois, passou a morar com um sujeito violento, época em que surgiu o primeiro sintoma histérico. Finalmente, ela enamorou-se de um conterrâneo, espanhol como ela, até que alguém se encarregou de "incutir no espírito de nossa paciente que não havia da parte de seu noivo amor sincero, senão interesse baixo" (Pinto, 1914, p. 98) nas economias que ela possuía. Ela já sofria a essa altura com o que Freud chamava de "angústia dos noivos" (Pinto, 1914, p. 101). Ao se despedirem, ele lançou "duas ou três frases solenes e terríveis" (Pinto, 1914, p. 99); Depois de dois dias, ele caía doente com uma pneumonia. Ela ficou muito abalada com a notícia, e "passa algumas horas deitada sem poder falar e sem poder chorar" antes que lhe eclodissem os ataques histéricos.

Tais ataques pertenciam a uma linhagem de sintomas que não se devia confundir com os sintomas provenientes da neurose de angústia concomitante. A viúva espanhola sofria, assim, da mesma neurose mista que Freud diagnosticara na maior parte dos casos de seus Estudos sobre Histeria. Havia entre os noivos certo grau de intimidade que permitia que eles passeassem de automóvel até recantos mais afastados e desertos da cidade, onde eles praticavam "atos frustratórios segundo Freud" (Pinto, 1914, p. 99). As crises eram, portanto, combinação de ataques histéricos com ataques de angústia marcados pela escrupulosidade:

Eu tenho a impressão, dizia a doente, de que este mundo acabou para mim. Não tenho mais direito a desfrutar o que a terra produz; o calor deste sol que aí está, eu não sinto mais a claridade do dia, eu não a vejo mais; tudo em mim é sombra (Pinto, 1914, p. 100).

Ela recusava-se a comer e a beber e entendia que tudo isso era um castigo pelo "meu horrível pecado". A neurose atual preparava o caminho para a psiconeurose. O tratamento exigia, portanto, "paciência ainda maior do que a análise dos sintomas. A supressão das práticas sexuais, o meio honesto do hospital foram os auxiliares do tratamento" (Pinto, 1914, p. 100). Dez a 12 dias depois, a paciente apresentava séria melhora; contudo, quando já se verificava "o transporte afetivo positivo", os parentes a retiram do tratamento para "nosso desgosto".

No caso II, trata-se de uma viúva portuguesa de 32 anos, costureira. Sofria com dores articulares, musculares e ósseas. Crises respiratórias, "um grande peso no coração" e incoordenação gástrica e motora completavam o quadro. Desde criança, sofria maus-tratos e ouvia "vozes que lhe falavam por dentro". Depois que o marido, a quem não amava, mas era fiel e dedicada, veio a morrer, ela se refugia na casa de uma família amiga e viveu anos de pobreza. Tem dores de estômago ligadas à fome e à lembrança da fome. Surge-lhe o pensamento de que "Se por acaso eu, algum dia, não puder comer quando tiver fome, as minhas dores de cabeça serão tão grandes que eu, por certo enlouquecerei" (Pinto, 1914, p. 102). A histeria se desencadeia quando as pessoas da casa não "tiveram a delicadeza" de a convidarem para o almoço. Ela espera um vendedor de frutas que poderia passar e lhe dar de comer, mas ele não passou. Veio a fome, veio a dor de cabeça, veio finalmente a histeria para a qual remédio não havia.

Porém, depois de algum tempo ouvindo os sintomas, o médico escuta outra narrativa. Ela amava fortemente um homem casado com quem tinha encontros sexuais frequentes e intensos. Quando ela percebe que ele pretende espaçar os encontros, aparece a falta de ar, a pressão no peito e a ânsia. Em um mês, ela mostra grande melhora e deixa o hospital.

O terceiro caso é relatado por Juliano Moreira. Nele, aborda-se novamente o desencadeamento de uma histeria em uma mulher no contexto em que, em viagem pela Europa, ela faz uma cirurgia ginecológica e deve evitar o conúbio sexual. O marido encontra então uma amante, o que faz com que a paciente apresse sua volta ao Brasil. No entanto, a amante toma o navio seguinte e aparece, andando de automóvel pelas ruas do Rio de Janeiro, com o marido da paciente.

O caso número quatro nos remete a uma francesa insatisfeita com os serviços sexuais de seu marido. Seus sofrimentos morais, de tipo melancólico e com sintomas anoréxicos e insônia, começam quando ela tem 28 anos. Ela diz que "de uns tempos para cá não encontrava mais nenhum prazer sexual com o marido" (Pinto, 1914, p. 107), uma vez que este, ocupado com o trabalho, descuidara dos assuntos amorosos. Em uma conversa, "com muita habilidade para não melindrá-lo", o médico expõe a situação ao marido, ao que ele recobra a "prática normal e muito regular do coito" (ibidem). O caso encontra a cura completa. A paciente "livre de todas as suas torturas morais, sem insônia, muito mais gorda e bem disposta, está completamente curada, em suma" (ibidem).

O quinto e último caso descrito na tese de Genserico Aragão é o de um brasileiro de 24 anos que sofria com poluções noturnas, completamente enfraquecido, com prisão de ventre e dispepsia. Diagnóstico: neurastenia. Causa: excesso de estudo. Causa adicional: masturbação entre os 17 e 18 anos. Efeito: grande vergonha e grande hesitação em tudo o que fazia. "O tratamento deste caso, apesar de um pouco longo, não nos foi, contudo, difícil. Mostramos ao doente os grandes inconvenientes e o enorme perigo do onanismo; aconselhando-o com carinho e bondade; reconduzimo-lo à prática normal da genitalidade" (Pinto, 1914, p. 109).

Salta aos olhos como dos quatro casos só um é realmente de um brasileiro e se passa no Brasil. Esse internacionalismo não aponta apenas para o contexto emergente de retomada de fluxos imigratórios, ele sugere também como os pacientes aptos para a psicanálise são "modernos". Todos os casos apresentam alguma variação da neurose atual, seja ela na mulher a neurose de angústia, seja no homem, a neurastenia. É na dilucidação desses casos que Genserico pôde exercer sua prática de persuasão delicada e convencimento pela simpatia. Embora o discurso teórico que o fundamente ressoe fortemente com a pedagogia médica da coerção, na prática dos casos o que isso significa é benevolência, paciência, cuidado e escuta. Ainda que ainda não existissem psicanalistas no Brasil, a psicanálise se antecipava como forma de ginga e de jeito conferido ao trato dos pacientes. A dimensão da mulher é prevalente nas trajetórias apresentadas: a viuvez recorrente, o desencontro ou o desamparo amoroso parecem marcar as trajetórias dos casos. Todos eles são apresentados segundo uma estratégia mais ou menos repetitiva: primeiro, os sintomas; depois, o diagnóstico; em seguida, o "romance familiar", não sem os detalhes das "práticas inconfessáveis", culminando no tratamento pela palavra e seu eventual resultado. Destaca-se ainda como os casos parecem abordar uma variedade de posições de classe. Algumas podem viajar ao estrangeiro; outras vivem o fantasma da fome; várias delas se exprimem por insônias e anorexias. A histeria parece ser sempre a circunstância mais difusa, sobreposta, de fundo, em relação às práticas masturbatórias ou à abstinência.

Pode-se ver, pela descrição dos sofrimentos e também pela maneira como o médico os recorta, que há um impulso de valorizar as formas novas e modernas de sofrer. Em nenhum momento, comparecem nos casos as crenças mágico-religiosas ou animistas, sabidamente frequentes e importantes na interpretação do sofrimento mental na época. Mesmo nos momentos em que a culpa tem um papel ascendente, não há nada de religioso mencionado. Por outro lado, o médico aparece em sua melhor figura foucaultiana do conselheiro da família e do guardião da boa prática íntima entre casais.

 

Referências

Pinto, G. A. S. (1914). Da Psicoanalise: a sexualidade nas nevroses. Tese de doutorado, Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1914.         [ Links ]

Sevcenco, N. (2010). A Revolta da Vacina. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
E-mail: chrisdunker@usp.br

Artigo recebido em: 6.5.2014/5.6.2014
Aprovado para publicação em: 10.5.2014/5.10.2014

 

 

* Psicanalista, professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Rua Abílio Soares, 932 - Paraíso. 04005-003 São Paulo - SP.
1 A prática pode soar bizarra, mas deveria ser recuperada de forma propedêutica. Nenhuma tese em psicanálise ou em psicologia deveria vir a público sem que, nem que seja uma vez, por obrigação protocolar, o seu autor tenha que sair de sua especialidade, ou de seu tema, e estabelecer implicações do que ele está a defender para o campo mais vasto no qual ele se insere. Em tempos de superespecialização e de superespecialização precoce da pesquisa, até mesmo da pesquisa em psicanálise, deveríamos voltar a esse costume dos antigos tempos.