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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.3 no.4 São João del Rei jan. 2014

 

DOSSIÊ

 

Trajetórias da psicanálise paulista

 

Trajectories of psychoanalysis in São Paulo

 

Trajectoires de la psychanalyse en São Paulo

 

Trayectorias del psicoanálisis en São Paulo

 

 

Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP - Brasil
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - AUPPF - Brasil
Société Internationale d'Histoire de la Psychiatrie et de la Psychanalyse - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traça o percurso de quase um século de presença da psicanálise em São Paulo. Analisa as principais vias de circulação da doutrina assim como o processo de institucionalização da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP que a partir dos anos 70, possibilitaram a expansão da doutrina e a emergência de outras escolas de pensamento, notadamente o lacanismo.

Palavras-chave: História; Psicanálise; São Paulo; Instituições psicanalíticas.


ABSTRACT

The article traces the path of almost one century of the presence of psychoanalysis in São Paulo. It analyses the main circulation paths of the doctrine, as well as, the process of institutionalization of the Brazilian Psychoanalytic Society of São Paulo (SociedadeBrasileira de Psicanálise de São Paulo), SBPSB that from the 70s, made possible the expansion of the doctrine and the emergence of other schools of thought, notably the Lacanism.

Keywords: History; psychoanalysis; São Paulo; Psychoanalytical institutions.


RÉSUMÉ

L'article retrace le parcours de presque un siècle de présence de la psychanalyse à São Paulo. Il analyse les principales voies de circulation de la doctrine ainsi que le processus d'institutionnalisation de la Société Brésilienne de psychanalyse de São Paulo, la SBPSP qui dès les années 70, ont rendu possible l'expansion de la doctrine et l'émergence d'autres écoles de pensée, notamment le lacanisme.

Mots-clé: Histoire; psychanalyse; São Paulo; institutions psychanalytiques.


RESUMEN

Este articulo describe elt rayecto de casi un siglo de presencia de la psicoanálisis en São Paulo. El analiza los caminos principales de la doctrina asi como el proceso de institucionalización de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo, SBPSP, que desde los años 1970, permitieron la expansion de la doctrina, y el surgimiento de otras escuelas de pensamiento, especialmente el lacanismo.

Palabras claves: Historia; Psicoanálisis; São Paulo; Instituciones psicoanalíticas.


 

 

Introdução

Em São Paulo, a temática freudiana emergiu, por iniciativa de Franco da Rocha, o fundador da prática asilar medicalizada, na capital paulista. Foi por ocasião da Conferência inaugural, intitulada "Do delírio em geral", que proferiu para a cadeira de Clínica Neuriátrica e Psiquiátrica da Faculdade de Medicina1. Um ano mais tarde, o "Pinel paulista", como era chamado, assinaria também o primeiro livro brasileiro inteiramente voltado para o tema, O Pansexualismo na doutrina de Freud, em que apresenta os principais conceitos freudianos: o inconsciente, a sexualidade, o sonho, as neuroses, além de um panorama do movimento feito, a partir da leitura de A História do movimento psicanalítico (Freud, 1914). Leitor de Freud em alemão, esse livro é interessante menos pelo seu conteúdo do que pelo que revela: uma leitura em espelho com o debate na Europa sobre o pansexualismo2 (Rocha, 1920). Aliás, boa parte dele é reservada à analise dos conceitos que explicam os desvios da vida sexual, enfatizando principalmente "o erro da psicologia tradicional em ter atribuído grande importância à hereditariedade sem dar atenção à vida sexual infantil" (p. 62), esta sim a grande descoberta de Freud.

A partir de então, o impacto das teses freudianas, no meio intelectual e cultural paulista, aliado ao entusiasmo de um jovem médico, Durval Marcondes, davam origem, em 1927, à primeira Sociedade de Psicanálise na América Latina, a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), fazendo com que os paulistas tomassem a dianteira no processo de implantação dessa doutrina no país.

Porém, apesar de ter sido lançada no meio psiquiátrico, nessa cidade, a doutrina será menos associada à problemática da loucura que à urbana e cultural. Isso por que, contrariamente ao Rio de Janeiro, nessa época, as estruturas de assistência médico-hospitalar paulistas eram bastante frágeis e a psiquiatria praticamente reduzida à experiência do então Hospício do Juquery, fundado por Franco da Rocha em 1898. A primeira Faculdade de Medicina de São Paulo foi criada em 1913, e o ensino da psiquiatria introduzido em 1919, conjuntamente ao de neurologia, na recém-inaugurada cadeira de Clínica Neuriátrica e Psiquiátrica, da qual Franco da Rocha também ocuparia a cátedra.

Acostumado a misturar e experimentar todas as tendências e correntes em voga, sem que isso representasse um problema de ordem epistemológica, a psicanálise é tomada como um método entre outros, e do qual ele passa a se dedicar, já no final da sua vida profissional. Ao se aposentar, em 1923, porém sem abandonar totalmente a cena, de um lado, ele delega a direção do Juquery ao seu discípulo mais próximo, Antonio Carlos Pacheco e Silva, e, de outro, estimula o jovem estudante de Medicina, Durval Marcondes, a dedicar-se aos estudos freudianos. Doravante, os dois herdeiros do pai fundador da psiquiatria paulista vão se distinguir como rivais. O primeiro, organicista e mais interessado pelos pressupostos da psicologia experimental, reinaria durante os próximos 40 anos como o introdutor da prática medicalizada e dos dispositivos que possibilitaram à psiquiatria tornar-se uma disciplina autônoma em território paulista. Ao passo que o segundo, formado em 1925, debutou sua carreira, como médico da Saúde Pública, na vertente higienista, ao mesmo tempo em que abraçou a causa psicanalítica para fazer dela a razão de sua vida.

Na realidade, enquanto no Rio de Janeiro a disciplina nasceu e se desenvolveu no campo da medicina e, em particular, da psiquiatria, em São Paulo, as duas disciplinas, psicanálise e psiquiatria, iriam ser implantadas paralelamente e por vias diferentes, não necessariamente opostas e/ou divergentes, sendo essa uma particularidade da implantação no território paulista.

O processo de estruturação como saber e clínica autônoma foi, no entanto, bastante longo, entre 1920 e 1969, envolvendo três etapas, em que a doutrina circulou por diferentes vias e campos de saber a ponto de penetrar no imaginário social e tornar-se também um saber sobre a cultura, como atesta a expressão popular "Freud explica!".

A partir dos anos 1970, inaugurou-se um novo período de expansão e diversificação teórico-clínica. E, nas últimas décadas, seus praticantes parecem ter tomado consciência de sua importância no cenário internacional, uma espécie de "voltar-se para si mesmo", que levou a uma interrogação sobre a produção nacional. Neste artigo, examinaremos algumas das principais características desse percurso quase centenário e em grande parte liderado pela International Psychoanalytical Association (IPA).

 

I A recepção das ideias Freudianas (1920-1937)

O primeiro tempo da psicanálise, em São Paulo, teve início com a publicação do livro de Franco da Rocha, Pansexualismo na doutrina de Freud, em 1920, e se concluiu com a chegada da primeira analista didata, Adelheid Koch, em 1937.

Nessa época, São Paulo foi a nova metrópole emergente do país. Impulsionada pelo sucesso da economia exportadora do café, foi a cidade brasileira que mais se beneficiou da expansão industrial provocada pela revolução científica e tecnológica dos anos 1870 na Europa. A cidade apresentou um crescimento econômico excepcional, seguido de um extraordinário desenvolvimento tecnológico, artístico e cultural. Classificada como 11a cidade brasileira no primeiro censo nacional de 1887, em 1920, ocupou a 2a posição, atrás da então capital do país, Rio de Janeiro.

De uma maneira geral, pode-se dizer que a problemática urbana que circundava a administração local compreendia um conjunto de questões que exigiam respostas não somente no que diz respeito a problemas concretos, como também no terreno da subjetividade. Entre outros, cabe assinalar a efervescência da problemática familiar provocada pela crise do modelo patriarcal rural, pelo enfraquecimento do discurso masculino e, em particular, pela construção de uma nova identidade feminina (Sevcenko, 1993; Schupun, 1997).

O fato é que o processo de urbanização violento, brutal e rápido produziu, na vida quotidiana dos novos citadinos, um clima de tensão, angústia e incerteza, que encontrou eco em um pensamento de base psicológica, sobretudo na psicanálise, cujos conceitos serviram de parâmetro para explicar essa efervescência do social.

 

O movimento modernista

Mas foram principalmente os escritores e, em particular, aqueles que fundaram a Semana de Arte Moderna, em 1922, em São Paulo, os que mais contribuíram para a circulação da psicanálise, dela se servindo de diferentes formas. Alguns para a construção do perfil psicológico de seus personagens, enquanto outros se limitaram a simples comentários, citações que funcionavam como uma espécie de atualização bibliográfica de suas leituras. Foi o caso, por exemplo, de Menotti del Piccha, em seu romance Salomé, ou Alcântara Machado, em Mana Maria3.

Desse grupo, porém, dois escritores vão se distinguir por um debate mais crítico e intenso com os conceitos freudianos, e entre os mais expressivos desse movimento, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. O primeiro introduz as teses freudianas nos seus escritos, em grande parte por influência das leituras que fazia dos psicólogos franceses, em especial de Théodule Ribot e de seu livro Essais sur l'imagination créatrice. Interessado por uma reflexão sobre um novo modelo de construção poética, ele se serve, em particular, dos conceitos de pulsão, consciente, pré-consciente, inconsciente e sexualidade. Isso se verifica, principalmente, em Paulicea Desvairada, escrito em 1920 e publicado pela primeira vez em 1922. E pode ainda ser notado em duas obras significativas, como Amar, Verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). Porém, a partir dos anos 1930, o interesse pelas "coisas freudianas" (1942), como gostava de dizer, parece ter sido deixado de lado, com menções reaparecendo de forma esporádica em uma ou outra obra.

Já o libertário, Oswald de Andrade, faz uma leitura mais polêmica e irônica das teses freudianas e que se prolonga por toda a sua obra. Para ele, se Freud tem o mérito de identificar os pontos deficitários da sociedade capitalista e patriarcal, em contrapartida, os conceitos freudianos de "sublimação" "repressão", "instinto" e "castração" reafirmam as normas rígidas dessa civilização que ele, contrariamente a Freud, queria destruir. Leitor principalmente de Totem e Tabu (1913), e de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Oswald propunha "ultrapassar a contradição permanente do homem e do seu tabu" (Andrade, 1928/1970, p. 18), não pela sublimação das pulsões sexuais sugeridas por Freud, mas pela proposição do "primitivismo". As referências às teses freudianas se encontram mais explicitamente na Revista de Antropofagia, nos Manifestos "Pau Brasil" e "Antropófago", assim como nos ensaios e romances, tais como: Um homem sem profissão (1954) e Memórias sentimentais de João Miramar (1972).

Convém assinalar que, apesar das diferentes apropriações, os dois autores, longe de aderirem às teses freudianas, fizeram dela uma interpretação livre, irônica e criativa, sem nenhum compromisso, preocupação de coerência teórica ou adesão, uma leitura inscrita na prática discursiva própria a esse movimento, a paródia, mas uma análise original, em espelho, invertida da que faziam os surrealistas na França4.

Uma apropriação que fez com que a doutrina fosse difundida menos como um meio terapêutico do que como um sistema de pensamento e onde o debate com o Freud filósofo, pensador da cultura, circulou pela negação, mediante um discurso ao mesmo tempo de aceitação e condenação da psicanálise.

 

Primeiras tentativas de implantação da doutrina

Enquanto os modernistas se divertiam com esse Freud da cultura, numa outra direção, Durval Marcondes se lançava em um trabalho hercúleo de difusão da causa psicanalítica. E isso, desde 1926, quando da publicação de seu primeiro escrito inspirado nas teses freudianas5. Entusiasmado, no ano seguinte, ele participou da fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise, SBP6, criada com a intenção de mobilizar principalmente os educadores, professores em torno do eixo central da doutrina, a teoria da sexualidade infantil, tomada como medida profilática para a formação de uma "juventude sã e equilibrada".

Desde então, juntamente com o grupo carioca que aderiu à instituição no ano seguinte, ele realizou conferências, publicou artigos na imprensa diária e especializada, lançou-se na tradução de Freud, participou das campanhas higienistas, sempre na perspectiva de fundar uma clínica de criança etc. Mas um esforço em vão. Apesar da adesão inicial de personalidades importantes e progressistas da elite intelectual local e carioca, uma vez passada a euforia, muitos desertaram enquanto outros passaram a condená-la de maneira violenta, aliando-se a posições conservadoras claramente avessas à tese da sexualidade infantil7.

Assim, após essa tentativa frustrada e fortemente criticada de implantar a doutrina, chegamos ao começo dos anos 1930 constatando um forte recuo do movimento e a desarticulação dos grupos criados tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. É claro que o fracasso dessa estratégia também resultou da emergência do pensamento autoritário no país, que, calcado em valores morais e conservadores, por meio do golpe de Estado de 1930, preparou a instalação entre 1937 e 1945 do Estado Novo, um regime totalitário, centralizado, nacionalista e baseado na ideologia da Segurança Nacional8, acontecimentos que impuseram uma modificação estratégica no discurso dos analistas. E eles reagiram rapidamente, efetuando um deslocamento na temática sexual para um discurso de base psicológica centrado nos "desvios e normas dos comportamentos", investindo agora na chamada "criança problema". Uma nova roupagem que surtiu efeito nas experiências das Clínicas de Orientação Infantil, tanto no Rio de Janeiro, com Arthur Ramos, entre 1934 e 1938, quanto em São Paulo, com Durval Marcondes, entre 1938 e 1970 (Oliveira, 2012b); experiência que ocorreu conjuntamente ao processo de institucionalização, abrindo uma nova fase da implantação desse saber.

 

II A formação da primeira geração e as principais vias de implantação

Esse período teve início com as chamadas primeiras "análises didáticas". Acontecimento fundador da prática psicanalítica brasileira, regida pelas regras internacionais, ele provoca uma ruptura na forma como até então ela era praticada para introduzi-la no campo institucional que lhe é próprio e que, anos mais tarde, possibilitaria o seu reconhecimento como instituição afiliada à IPA.

Tudo começou com a chegada de Adelheid Koch. Judia, berlinense, médica e, recentemente, formada pelo Instituto de psicanálise de Berlim, ela veio para o Brasil fugindo do nazismo e por indicação de Ernest Jones, então presidente da IPA e responsável pela adoção da política que ficou conhecida como de "salvamento da psicanálise"9. Acolhida, graças a relações pessoais, por membros da comunidade judaica instalada na cidade, a família Koch, chegou a um país marcado pela instabilidade política e que, um ano mais tarde, levaria ao Golpe de Estado que assegurou a permanência de Vargas no poder até 1945.

Alheia aos acontecimentos políticos da esfera nacional, Koch estabeleceu contato com Marcondes somente em meados de 1937 e, apesar da sua falta de experiência, em novembro desse mesmo ano, ela se tornou a primeira e única analista didata da América Latina autorizada pela IPA a formar psicanalistas.

Coube ao casal Koch/Marcondes a responsabilidade de implantar a psicanálise em solo paulista. Recrutados entre os conhecidos de Durval Marcondes, essa primeira geração foi formada por médicos e não-médicos, pois nenhum diploma universitário era exigido nessa época10.

Durante os primeiros anos, o grupo se formou lendo Freud em espanhol, francês e inglês, acompanhados pela analista e supervisora no texto, em alemão, e seguindo a tradição do freudismo clássico do Instituto berlinense, de quem Koch e Marcondes eram tributários.

Isolados e ignorando a disputa em Londres pela herança do pai morto que levaram às Grandes Controvérsias (1940-1944), Koch e Marcondes tentaram implantar uma comunidade analítica estruturada segundo o modelo familiar, mas já encarnavam os derrotados, os freudianos da primeira geração, diante de um movimento que começava a ser liderado pelo kleinismo e que, a partir daí, predominaria na escola inglesa11. Por consequência, o processo de reconhecimento como sociedade afiliada seria bastante longo, com muita troca de correspondência e cumprimento de uma série de exigências impostas por normas rígidas e inflexíveis que o grupo desconhecia. Iniciadas as conversações em 1943, seriam necessários quase oito anos para o reconhecimento que só viria em 1951, mas isso concluía apenas o processo formal. Uma série de idas e vindas a Londres, e a adoção do modelo kleiniano de formação com a criação de Institutos e publicações seriam ainda necessárias para que efetivamente o processo de consolidação teórica se concluísse.

 

Outras vias de circulação da psicanálise

Nesse meio tempo, três vias ainda se abriam à psicanálise na capital paulista: o Serviço de Higiene Mental Escolar, o ensino universitário nas Ciências Humanas e algumas experiências isoladas, notadamente as praticadas no então Hospital do Juqueri.

No que diz respeito à primeira, trata-se de um trabalho desenvolvido na Seção de Saúde Mental Escolar12, dirigida por Marcondes, e onde ele fundou, em dezembro 1938, a Clínica de Orientação Infantil e o posto de visitadora psiquiátrica, inaugurando, assim, o primeiro espaço de formação e prática institucional destinado à psicoterapia infantil. Dessa experiência - praticada por professoras primárias com formação em Saúde Pública e submetidas a uma formação especial acrescida de supervisão com Durval Marcondes -, foram cooptadas as futuras analistas, Virgínia Bicudo, Lygia Alcântara Amaral e Judith Andreucci. É interessante lembrar que essa frente de trabalho, que tomou em consideração o sofrimento e os laços afetivos familiares da "criança problema", e tinham como pressuposto a investigação da história familiar, do modo de vida e das práticas sociais de cada indivíduo que participa do universo psíquico da criança, se desenvolveu até meados da década de 1970 embora pouco se conheça que possa elucidar sobre as marcas deixadas na prática pedagógica paulista.

Quanto ao ensino da psicanálise na Universidade, ele foi inicialmente introduzido na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, a ELSP-SP, em 1939, no curso de graduação em Sociologia, sob a responsabilidade de Durval Marcondes, tendo como assistente Adelheid Koch. Nele, a psicanálise foi ensinada como instrumento de compreensão dos fenômenos sociais e método que visava a melhorar as condições de ajustamento psíquico dos indivíduos13. Cabe lembrar que, além da ESP, no começo dos anos 1940, a psicanálise foi igualmente introduzida no programa de curso dos alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo por iniciativa de Roger Bastide e Jean Maugüe. Duas formações que deram uma dimensão da difusão desse saber no meio intelectual e universitário local, sobretudo, dos sociólogos.

Por fim, o terceiro território aberto nos anos 1930 foi o Hospital do Juqueri. Influenciados pelo sucesso da medicina psicossomática, os primeiros psiquiatras a aderir à psicanálise a praticavam como método de escuta que adaptavam do tratamento de certas neuroses, ao mesmo tempo em que aplicavam técnicas medicamentosas, como choque elétrico, malarioterapia e insulinoterapia. Destacaram-se, no início, principalmente Mário Yahn e Paulo Lentino14. Ainda que restrito a algumas experiências, esse trabalho merece destaque por finalmente ter permitido à psicanálise conquistar espaço no discurso sobre a loucura em território paulista.

 

III A institucionalização sob a Égide da IPA (1951-1969)

O terceiro período foi o da estruturação da vida institucional pela definição das referências teóricas e da delimitação das estruturas de formação e poder, principalmente a partir da criação do Instituto de psicanálise em 1961. Além da formação, a psicanálise se expandiu também pela via universitária, participando, como disciplina autônoma, desde a origem dos primeiros cursos de Psicologia e, da década de 1960, sendo introduzida nas Faculdades de Medicina.15

Em 1951, uma vez obtido o reconhecimento internacional para o grupo paulista, restava ainda um longo percurso. Tratava-se, antes de tudo, de sair da certa "marginalidade" e "isolamento", e obter o reconhecimento local como saber e prática autônomos. Duas gerações de analistas, majoritariamente médicos, foram formadas ao longo desse período, ao passo que aumentou de forma considerável a demanda de formação e de tratamento. A SBP de SP foi a única instituição paulista de formação de psicanalistas a responder a essa demanda, ainda que de forma precária e ressentindo-se de estruturas adequadas.

 

Em defesa da analise leiga

O crescimento do interesse pela psicanálise, devido em grande parte ao sucesso da medicina psicossomática no meio psiquiátrico, mas também ao reconhecimento internacional do grupo psicanalítico paulista, fez emergir a problemática do exercício legal da profissão e da formação. O ponto forte do debate foi o 1º Congresso Latino-americano de Saúde Mental.16 A psicanálise fazia parte do programa com uma sessão plenária e uma mesa-redonda, além de uma participação importante na de medicina psicossomática. Essa teria sido a sua entrada triunfal no meio psiquiátrico controlado pelo outro herdeiro de Franco da Rocha, Pacheco e Silva, se as intervenções virulentas das principais personalidades do movimento psiquiátrico brasileiro, principalmente as afiliadas a correntes organicistas, não tivessem lançado o debate, atacando, de um lado, seguindo o tom nacionalista da época, as regras da IPA consideradas como "intromissão estrangeira", e, de outro lado, como também exigia o mercado de trabalho, a "análise leiga". Mais ainda, no fechamento dos trabalhos, os psicanalistas foram surpreendidos pela aprovação de uma moção propondo a legalização da profissão no campo da medicina e condenando a análise leiga17. Transformada em caso jurídico, a resposta dos psicanalistas paulistas viria um ano mais tarde. Em nome da Associação Paulista de Medicina, na qual possuía excelentes entradas, Marcondes enviou ao Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional o seu Parecer sobre o exercício da psicoterapia por psicólogos clínicos e psicanalistas não formados em Medicina (Marcondes, 1955). Após justificar a pertinência da análise leiga, sobretudo por razões de mercado de trabalho que, segundo ele, era "suficientemente grande para todos", ele propôs a criação de uma "categoria profissional de natureza paramédica" com a finalidade de "contribuir de forma preventiva para o bom funcionamento da personalidade". Em contrapartida, essa profissão de psicoterapeuta poderia, segundo ele, ser exercida por "psicólogos clínicos e psicanalistas não-médicos", desde que formados por Sociedades afiliadas à IPA e trabalhando sob o controle do médico).

Cabe notar que, com esse movimento, Marcondes não só inverteu a situação, mas reivindicou a legitimidade freudiana da IPA com o objetivo de obter o controle da formação de analistas. Entre a medicina e a psicologia, mas concebida como saber e prática autônomos, temos, aqui, e, pela primeira vez, um esboço de definição e uma proposição de legalização da profissão de psicanalistas no Brasil. Outras proposições viriam ao longo da década de 1970, e mesmo no início deste século XXI, felizmente sem que a questão seja regulamentada. Aliás, ainda hoje, as posições são divididas no interior mesmo das Sociedades filiadas à IPA. Entre as Sociedades brasileiras, até o começo da década de 1980, somente a SBPSP aceitava membros não-médicos. Por outro lado, até hoje, os psicanalistas paulistas, ditos "leigos", nunca tiveram que responder na justiça por prática ilegal da medicina.

Para além da questão jurídica, nesse período, a formação dos analistas se caracteriza, de um lado, pela sua adequação às normas ipeístas, e, de outro, pela definição das linhas teóricas e práticas dos futuros didatas. No que diz respeito à primeira, lembremos que, até 1950, Adelheid Koch era a única didata em São Paulo, e, somente nessa data, finalmente chegou o segundo didata, Théon Spanudis.18 Com um contrato assinado e o compromisso de formar os novos candidatos, seu currículo era convincente. Membro da Sociedade vienense, desde 1942, formou-se com August Aichhorn e Otto Fleischman, e participou da reconstrução da Sociedade Psicanalítica de Viena em 1946. Além disso, Spanudis vinha recomendado por Grete L. Libring, que ocupava, na época, o posto de secretária da IPA. Tanto por sua formação em medicina, quanto por sua experiência com delinquentes, herdada de sua filiação a Aichhorn, mas também pela sua concepção da psicanálise como ciência entre a biologia e a psicologia, coube a ele formar principalmente os candidatos médicos e, em particular, os que trabalhavam no Hospital do Juqueri, dos quais alguns, por sexismo, se recusavam a deitar-se no divã Koch. Convém lembrar que se tratava de uma mulher tentando impor-se no universo médico eminentemente masculino. Mas, apesar do sucesso de sua clínica, em 1956, Spanudis abandonou a psicanálise, tornando-se crítico de arte. Essa decisão foi tomada após algumas internações em clínica psiquiátrica, na qual foi diagnosticado como esquizofrênico. A ele, deve-se levar em conta também o seu homossexualismo assumido e contrário às normas da IPA, que não somente considerava uma perversão, como proibia homossexuais entre os seus afiliados (Oliveira, 2006).

Acontecimento traumático, a demissão de Spanudis suscitou, no entanto, a necessidade de formar novos didatas. Doravante, eles seriam recrutados no próprio grupo, formado por Virgínia Bicudo, Darcy Uchôa e Margareth Gill, seguidos de Lygia Amaral, Isaías Melshon e Henrique Schlomann. Esses novos mestres foram formados por influência direta ou indireta da escola kleiniana e, em particular, por Frank Philips, assim como através de idas e vindas a Londres. Um percurso que consistia também em uma reanálise e/ou supervisão com Wilfred Bion, Hebert Rosenfeld e Hanna Segal, entre outros, e estágios nas clínicas londrinas e seminários do Instituto. Quanto a Philips, ele veio diversas vezes ao Brasil, onde fez conferências e supervisão. Raros foram os analistas que escaparam a esse percurso, principalmente a partir dos anos 1960, quando o ensino passou a ser ditado pelo Instituto e seu Comitê de ensino.

Concebido e dirigido por Virgínia Bicudo, ele era inspirado no modelo da Sociedade londrina, que ela conhecia bem por ter vivido lá entre 1955 e 1959. Desde então, Bicudo exerceria um papel crucial no movimento psicanalítico paulista fazendo sombra à pioneira Adelheid Koch. Entre 1963 e 1975, ela dirigiu o Instituto e o Comitê de Ensino que elegia seus membros entre os didatas. Despojada, carismática e dinâmica, ela criou diversos dispositivos que permitiram a concretização do trabalho de implantação do movimento psicanalítico paulista. Entre outros, Virgínia Bicudo fundou os órgãos de divulgação, tais como o Jornal de Psicanálise, e participou ativamente da criação da Revista Brasileira de Psicanálise, além de mobilizar os alunos e membros para a construção da nova sede, indicar às editoras a tradução de textos de psicanalistas kleinianos e bionianos, participar de Congressos e estimular a vinda de analistas estrangeiros.19 E, a partir de 1970, ela chegou mesmo a exportar sua experiência e fundar o "grupo de Brasília", dando impulso às chamadas "análises condensadas".

Apesar dos critérios burocráticos de formação instaurados, segundo o modelo da IPA, de quatro ou cinco sessões por semana de análise didática, com uma duração mínima de quatro anos, seguido de duas análises de supervisão, além do curso teórico - organizado, segundo o modelo escolar, e obedecendo a critérios pedagógicos que incluía avaliações, notas e até "diploma" - a demanda de formação não cessava de aumentar, assim como o prestígio do Instituto que reinava sozinho sem nenhuma instituição concorrente para lhe fazer face20.

E quanto mais a instituição crescia, mais o poder era centralizado e verticalizado, e mais a importância do analista didata e da Comissão de Ensino aumentavam, gerando conflitos e tensões. Em 1969, enquanto o número de candidatos inscritos no Instituto resvalava a casa dos 60, o de didatas permanecia praticamente imutável em relação a 1961.21 Os conflitos começavam já na seleção dos candidatos. A ausência de critérios de seleção, por exemplo, provocava e até recentemente provocou polêmicas e litígios, que não raro se transformavam em rumores, trocas de acusações graves, quando não, em crises internas22.

Por outro lado, deve-se notar que, desde a década de 1950, a influência da escola inglesa permitiu a diversificação da clínica. A partir de 1953, começam as primeiras experiências de terapia de grupo de base analítica que deram origem ao Movimento Paulista de Psicoterapia de Grupo, em 1957, e que conheceu um grande sucesso nas duas décadas posteriores, sobretudo após a fundação da Associação Brasileira de Psicoterapia Analítica de Grupo, sob a impulsão de Werner Kemper, em dezembro de 196323.

Ainda que no início a psicoterapia de grupo tenha sido introduzida como uma prática destinada à "população desfavorecida", rapidamente ela seria incorporada à clínica privada que não cessava de aumentar; e isso, apesar da abertura, durante a década de 1960, de novos espaços institucionais em hospitais importantes, como o Servidor e Clínicas, e de onde saíram diversos grupos psicodramatistas ligados aos argentinos Jaime Rojas Bermudez e Dalmiro Bastos.

É claro que o aumento da demanda de análise em consultório privado e a rentabilidade financeira imediata dessa nova profissão fizeram com que grande parte dos psicanalistas abandonasse as experiências institucionais em benefício de uma prática liberal. Aliás, essa constituiu uma das principais mudanças em relação à primeira geração.

Diversos elementos explicam esse aumento da demanda de análise. Entre eles, podemos citar os efeitos da difusão na imprensa local, no cinema hollywoodiano e na televisão24 e sua disseminação no meio intelectual e universitário. Além disso, a psicanálise, assim como as diversas práticas chamadas "psi" se beneficiaram da efervescência econômica, cultural e política dos anos 1960 que revolucionaram os códigos de comportamento e as práticas sociais, ao mesmo tempo em que emergiam ditaduras, sobretudo na América Latina.

Em São Paulo, algumas das questões que, nos anos 1920 e 1930, haviam despertado a curiosidade do público dito esclarecido sobre a psicanálise se tornavam uma realidade a ser enfrentada pelos pais e filhos da geração dos anos 1960, originária de uma classe média em ascensão e, acima de tudo, à procura de sua identidade. A sexualidade, o casamento, a virgindade, o divórcio, a pílula, as drogas, a política, enfim, tudo se misturava numa atmosfera que se caracterizaria por uma violenta repressão política, principalmente após o Golpe de 1964, seguido do endurecimento do regime político com a instauração do terrível Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968. Acontecimentos que, para uma boa parte dos militantes de esquerda, se traduziram em prisão e/ou exílio, quando não em morte nas células dos órgãos militares e paramilitares. Nesse clima de caça às bruxas, de angústia e de medo, o silêncio estava mais do que nunca na ordem do dia, favorecendo a curiosidade pela temática da subjetividade.

Enquanto o regime militar estruturava o seu sistema de terror e uma nova classe média comemorava o "milagre econômico", a psicanálise e sua instituição, a SBPSP, assim como as diversas práticas psicoterapêuticas conheciam os seus "anos dourados". A profissão de psicanalista ou psicoterapeuta tornara-se lucrativa, e para os pacientes era mesmo "chique" estar em análise.

A aprovação dos novos estatutos, em 1969, sacramentou a implantação. Um capítulo da história da Sociedade estava encerrado. Estatutariamente, a SBP de São Paulo recebia a terminologia que conhecemos hoje: SBPSP. Naquele momento, os velhos freudianos clássicos, pais fundadores, Adelheid Koch e Durval Marcondes, devidamente homenageados, recebiam todas as honrarias pelos gloriosos serviços prestados ao mesmo tempo em que eram gentilmente levados à "aposentadoria compulsória".

Uma característica particular desse movimento paulista: foi um dos raros a não ter conhecido rupturas. Até meados da década de 1970, a psicanálise era praticamente controlada por essa única instituição. Movimento monolítico, ele foi o resultado de um trabalho militante de organização e estruturação de uma instituição baseada no espírito familiar. Os pais fundadores, Marcondes/Koch, são considerados personagens incontestáveis desse movimento. Eles nunca se colocaram num campo de disputa ou de confronto direto. Apesar das diferenças e divergências, cada um cultivando o seu próprio jardim, colaboraram para que tudo se passasse bem e no melhor dos mundos. Cada um tinha seu lugar bem definido e complementar na vida societária, cada um ocupava uma função bem precisa cujo vínculo era a afetividade. Assim, enquanto o pai Marcondes se encarregava da expansão e da abertura de novas frentes e vias para a psicanálise, a mãe Adelheid Koch cuidava da casa, assegurando a formação dos futuros analistas. Já os irmãos mais velhos, em grande parte psiquiatras, cooptavam novos candidatos lhes oferecendo espaços de prática e formação. Entre 1938 e 1970, a manutenção da ligação pulsional necessária à vida societária era dada, de um lado, pelo reconhecimento simbólico do pai fundador, reconhecimento fundado num ato de amor, como lembra Enriquez (1983, p. 68), e, de outro, na certeza de que esse pai podia lhes unir para enfrentar o inimigo. Este, necessário para que a instituição pudesse existir e durar, encontrava-se alhures e encarnado no movimento psiquiátrico, em particular na pessoa de Antonio Carlos Pacheco e Silva, e todos os que discordavam da psicanálise. Um investimento que, embora tenha garantido a unidade do grupo, foi certamente feito em detrimento de uma produção local. Nenhum analista se distinguiu por uma produção inovadora, nem no meio psicanalítico local nem internacional.

Mas naquele começo da década de 1970, já longe, pareciam os tempos em que a psicanálise disputava um espaço no terreno da medicina, e que o principal inimigo era a psiquiatria organicista de Pacheco e Silva. Para essa nova geração, trata-se de definir qual era a "verdadeira psicanálise", e enfrentar a concorrência, marcando sua diferença com as práticas consideradas "menores", as chamadas terapias corporais, reichianas e psicodramatistas25.

 

IV Os tempos da "Verdadeira Psicanálise"

Durante a ditadura militar, a SBPSP não sofreu perseguição do regime. Ela optou por uma posição de "neutralidade", de silêncio, protegendo-se numa prática de base kleiniana que "não deve ser contaminada pela realidade externa" (Bicudo, 1972), acrescida, principalmente, após o retorno de Frank Philips, em 1969, da leitura de Wilfred Bion.

Autoritário, rígido e conservador, Philips26 retornou com um currículo de fazer inveja. Analisado por Klein e Bion, de quem se tornara discípulo, ele se impôs como o analista dos analistas, mas também das novas gerações, tornando-se a "eminência parda" da SBPSP. Como Virginia Bicudo, ele representava a renovação. Doravante, deitar-se no divã do "Mister Philips", quatro ou cinco vezes por semana (a sessão cobrada em dólar), era imperativo, sobretudo quando o candidato desejava seguir uma formação no Instituto da SBPSP e participar das instâncias de poder da Sociedade paulista27.

Convém salientar que a questão financeira ocupa aqui papel relevante, sobretudo quando se trata de um país onde uma parcela significativa da população vivia e ainda vive em condições precárias. Ora, o preço da análise remete indubitavelmente à importância da "realidade externa" no processo analítico. O preço suscita igualmente uma reflexão sobre o significado do sujeito psicanalista como sujeito político, sobretudo quando a resposta a essa questão é revestida do argumento de que a psicanálise se destina a uma "elite", a um "público culto", o que, trocando em miúdos, significa definir a psicanálise como saber endereçado a uma categoria social e economicamente bem definida, a dita "burguesia esclarecida".

 

Diversificação teórica e clínica

Esse mercado de trabalho frutuoso só seria abalado com o surgimento da formação no Instituto Sedes Sapientiae em 1976. Dirigido por Madre Cristina, para estruturar o curso, ela convidou dois personagens "marginais" e "incômodos" à IPA local: Regina Chnaidermann e Roberto Azevedo, o que não deixou de provocar reações violentas da parte dos dirigentes da SBPSP. A primeira, porque teve sua candidatura duas vezes negada embora fosse uma personalidade da vida intelectual paulista; e o segundo, porque, sendo membro da SBPSP, por suas posições controvertidas e marcadas por embates internos, foi ameaçado de expulsão quando aceitou participar dessa formação. Aliás, ele não foi o único. Isaías Melshon e Fábio Hermann também convidados a integrar o curso, foram igualmente ameaçados, mas não punidos.

Logo, os dirigentes da SBPSP compreenderam que essa batalha estava perdida, principalmente porque, nesse momento, muitos analistas argentinos que começavam a chegar a São Paulo, fugindo da ditadura em seu país, eram integrados no corpo de professores desse curso. E, no final das contas, havia campo de trabalho para todos. A psicanálise gozava de prestígio, e a demanda era grande, sobretudo com o crescimento dos cursos de graduação em Psicologia.

Por outro lado, os dirigentes ipeístas também se rendiam a outra evidência: doravante, teriam que enfrentar a diversificação teórica e clínica desse campo, provocada principalmente pela chegada do lacanismo, e não apenas em São Paulo e Campinas, como também no Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte etc.

Inicialmente, a ampliação do freudismo chegou pela via acadêmica, no meio universitário, por meio dos cursos de Psicologia, Filosofia e Comunicação, pela linguística. Mas também pelas pós-graduações que começavam a ser implantadas no País. Chegou, principalmente, na bagagem de jovens intelectuais que retornavam de estada na França, onde o lacanismo dominava o cenário intelectual local. Alguns eram beneficiários de bolsas de pós-graduação, ou de viagens culturais, enquanto outros retornavam de exílios políticos ou mesmo "subjetivos".

Um dos primeiros a se interessar pela temática foi o então filósofo Luiz Carlos Nogueira. Marcado por uma formação com os jesuítas, seu interesse surgiu da leitura de Paul Ricoeur, e, após um mestrado e doutorado na primeira turma de formação doutoral da USP, entre 1968 e 1973, para em seguida fundar o primeiro o curso de pós-graduação na PUC-Campinas e, depois, a cátedra de Psicologia no IP-USP. Foi quando conheceu Durval Checchinato, igualmente filosofo de formação, que acabara de retornar da França, onde frequentara a Escola Freudiana de Paris (EFP) e fora analisado por Moutapha Safouan (Sobeira; Nogueira, 2004)28.

Outra pioneira paulista foi Betty Milan. Jovem estudante de Medicina, em análise com Isaias Melsohn, da SBPSP, ela ouvira falar de Lacan por intermédio de Joseph Attié, um psicanalista francês, membro ativo da Escola Freudiana de Paris (EFP). Mas antes de instalar-se na capital francesa, para, entre 1973 e 1978, analisar-se com Lacan, em 1971, com Regina Chnaiderman, ela organizou um grupo de estudos, reunindo, entre outros, Miriam Chnaiderman e Fábio Herrmann, sob a orientação da filósofa Marilena Chauí29. E foi uma vez instalada em Paris que ela conheceu Magno Machado Dias, então professor do curso de Comunicação da PUC-RJ e das Faculdades Integradas Estácio de Sá e que, desde 1973, difundia a psicanálise na capital carioca. Desse encontro, resultou a fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro em setembro de 1975.

Tudo se estruturou rapidamente. Já no mês seguinte, eles participavam de outro encontro, reunindo agora os grupos de São Paulo, Campinas e Recife, para juntos fundarem o Centro de Estudos Freudianos (CEF), a primeira instituição nacional psicanalítica lacaniana, reunindo cerca de 30 pessoas. Desde então, uma série de grupos emergiriam para logo desaparecer, dissolver-se, dando o tom da vida societária lacaniana, que, por sinal, segue a tradição da matriz, da mesma forma que o movimento também se expandiu para Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Fortaleza, em muitos casos, fundando movimentos, antes mesmo das instituições ipeistas. Para esse crescimento, igualmente contribuiu a chegada dos analistas argentinos a partir de 1976. Alguns haviam sido alunos de Oscar Mazzota, o iniciador da doutrina na Argentina, e conheciam os Escritos, publicados em espanhol, em 1969, e também haviam tido contato com discípulos de Lacan, como Serge Leclaire, Maud e Octave Manoni, que já haviam estado em Buenos Aires a convite da Associação Psicanalítica Argentina (APA) e tinham seus trabalhos ali traduzidos.

Por outro lado, cabe assinalar que o ensino da psicanálise na universidade não se restringe ao lacanismo. Nos anos 1980, comentadores da doutrina, Marilena Chauí, por exemplo, iriam orientar dissertações e teses na filosofia da USP, formando a geração que iria expandir o freudismo no campo acadêmico na década seguinte; entre outros, Alfredo Naffah Neto, Luiz Roberto Monzani e Renato Mezan. (Oliveira, 2012a)

 

A psicanálise brasileira

Essa expansão do freudismo de maneira alguma abalou a SBPSP, que permaneceu como uma instituição potente, cujo pertencimento é ainda hoje uma boa "referência" para o mercado de trabalho. Após um período tumultuado de transição nos anos 198030, com ameaças de rupturas e cisões, e incluindo intervenções da IPA, na última década do século, uma nova geração, majoritariamente reconhecida como neobioniana, assumiu a direção da instituição. Mais democrática que seus mestres, e também mais consciente de seu peso na geopolítica ipeísta, do lugar que começavam a ocupar no cenário internacional, sobretudo pelo número de membros afiliados, buscou o diálogo com outras instituições e correntes teóricas freudianas, inclusive publicando artigos assinados por lacanianos. Igualmente, ao contrário de seus predecessores, entusiasmados pela produção estrangeira ditada pela escola inglesa, questionou a falta de uma produção original e a tendência a "copiar" produções estrangeiras, curiosamente parecendo sofrer do mesmo mal-estar intelectual de que fala Schwarz (1987): "o caráter imitativo da vida cultural brasileira" (p. 29). Esse "fantasma", desde o século XIX, nos faz de tempos em tempos retomar o eterno debate sobre a necessidade de se elaborar um projeto de cultura nacional, que para os psicanalistas brasileiros em busca de reconhecimento internacional muitas vezes se traduziu na procura de uma "psicanálise brasileira"31.

Porém, um questionamento também esteve na pauta de outras escolas psicanalíticas: foi o caso do II Congresso da Causa Freudiana, em 1985, organizado por Magno, no Rio de Janeiro, e reunindo cerca de 1.000 pessoas em torno da Psicanálise do Brasil32.

O fato é que a preocupação em "voltar-se para si", nas últimas décadas, resultou no crescimento da produção editorial, por meio de livros, revistas, editoras e sites especializados, assim como o intercâmbio cultural, de encontros no país ou no estrangeiro tanto pela via institucional quanto acadêmica; essa última em plena efervescência como atestam as inúmeras publicações universitárias, além da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, fundada por Manoel Berlinck, reunindo 46 membros analistas e professores universitários no país.

Atualmente, a psicanálise está implantada nos mais importantes centros urbanos do País e conta com mais de uma centena de instituições, representando todas as tendências e escolas "psi". Seguindo a tendência internacional, desde meados dos anos 1980, é uma profissão majoritariamente feminina, e seus clínicos oriundos de uma formação universitária em Psicologia.33 Por outro lado, a maioria dos psicanalistas da atual geração, atribuindo pouca importância ao jogo político-institucional, parece mais preocupada com o fenômeno de medicalização, com o crescimento das correntes cognitivistas, das teorias comportamentais que disputam espaços por meio de ataques violentos à doutrina, como foi o caso do Livro negro da psicanálise, em 2006, e, mais recentemente, com as polêmicas em torno do autismo.

 

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Endereço para correspondência
Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira
E-mail: luciavalladares1@igmail.com

Artigo recebido em: 27.4.2014/4.27.2014
Aprovado para publicação em: 12.5.2014/5.12.2014

 

 

 

* Psicanalista, Socióloga, Drª pela Université Paris VII. Pós-doutorado em Psicologia Clínica pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. Coordenadora e Profª do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da PUC-SP. Membro da Société Internationale d'Histoire de la Psychiatrie et de la Psychanalyse e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Autora de História da psicanálise. São Paulo 1920-1969. São Paulo: Escuta-Fapesp, 2005.
1 Publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 20 de março de 1919. Nessa Conferência, ele aproxima o delírio dos sonhos, como meio de acesso ao inconsciente entre outros, pela leitura de Freud, mas também de W. Stekel e A. Adler.
2 Termo pejorativo utilizado para denegrir a psicanálise e adotado a partir da publicação de Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) (Roudinesco & Plon, 1998, p. 568).
3 Em pesquisas anteriores, pude constatar que a expressão popular "Freud explica!" apareceu pela primeira vez em uma passagem na obra Alcântara Machado, Mana Maria, romance inacabado e publicado pela primeira vez em 1936, após sua morte (In: Novelas paulistanas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 241) (Oliveira, 1999).
4 Em todo caso, é uma relação muito diferente do envolvimento mais profundo e de adesão que os surrealistas franceses, por exemplo, estabeleceram com a doutrina. Entre outras razões, por que nossos modernistas não se interessavam pela problemática da loucura como tema científico. Desse grupo, nenhum deles era médico, como eram Breton e Aragon, ou, então, sofria de perturbações psíquicas graves, como foi o caso de Antonin Artaud. Ou seja, eles não foram tocados pelo registro da loucura, nem como patologia, nem como prática asilar, mas pela ideia de devaneios, de delírios como uma realidade em si mesma (consciência) que se expressava como uma celebração, uma grande festa, um banquete totêmico, um elogio do primitivismo (Oliveira, 2006).
5 Simbolismo Estético na Literatura. Ensaio de orientação para a crítica literária, baseada nos conhecimentos fornecidos pela psycho-analise. Trata-se de um trabalho escrito, porém recusado, para o concurso para a cadeira de Literatura da Escola Normal.
6 Fundada em 24 de novembro de 1927, a SBP foi a primeira instituição psicanalítica da América Latina. Sua primeira diretoria foi composta por Franco da Rocha (presidente), Raul Briquet (vice-presidente), Durval Marcondes (secretário) e Lourenço Filho (tesoureiro). O ato de fundação foi assinado por médicos, educadores ligados ao movimento escolanovista, intelectuais e escritores. No ano seguinte, o grupo fundava a Seção carioca, com outras personalidades do mundo psiquiátrico e do movimento pedagógico, como Juliano Moreira, Julio Pires Porto-Carrero, Murilo de Campos e Deodato Moraes. Desse movimento, resultou o primeiro e único número da Revista Brasileira de Psicanálise em 1928 (Oliveira, 2006).
7 É o caso do educador Renato Jardim, um entusiasta de primeira hora e atuante na SBP, mas que logo manifestou suas críticas no livro Psychanalyse e Educação, publicado provavelmente em 1931 (Oliveira, 2002). É o caso também do pensador católico, Alceu Amoroso Lima, que, apoiado nas teses de Roma, publicou um opúsculo intitulado Freud, em que afirma: "nenhum pensador contemporâneo ousou expor com tamanha audácia as teorias mais repugnantes sobre o que havia de mais delicado, de mais intangível na alma dos homens: a pureza da inocência infantil. Freud ousou" (Lima, 1929, p. 33).
8 Desde o início, Vargas fez da educação infantil um dos pilares da sua administração, da mesma forma que a responsabilidade para com a infância e, em particular, a criança desamparada. Apenas três dias após o golpe de 1930, em 14 de novembro, ele criava o Ministério da Educação e Saúde, inaugurando o conjunto de diretivas pedagógicas que seriam adotadas ao longo da década. Entre elas, em 1933, a então capital do país, Rio de Janeiro, foi sede da 1ª Conferência Nacional de Proteção à Infância, cujas discussões levaram à criação de estruturas fundamentais, como a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância. Dessa estrutura, além do Departamento Nacional da Criança (DNCr), em 1940, também foi criado o Serviço de Assistência a Menores (SAM), vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores e voltado para o atendimento de menores abandonados ou delinquentes (Merisse, 1996). Intervenções que, por sua vez, iam de encontro aos apelos do conjunto da elite intelectual do País desde a década passada (Oliveira, 2012b).
9 Antecipando-se aos nazistas, Jones implantou uma política que culminou na demissão forçada de todos os membros judeus da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft (DPG) em 4 de dezembro de 1935. Nesse dia, Adelheid Koch apresentava sua conferência de admissão, mas para tornar-se membro não de uma instituição local, como era a regra, mas diretamente afiliada à IPA, como encontramos na lista de membros publicada no International Journal of Psycho-analysis (vol. XVIII, 1936, p. 533).
10 Foram formados no divã de Koch: Durval Marcondes, Flávio Dias, Darcy Uchôa, Virgínia Bicudo, Frank Philips e Nabantino Ramos e, mais tarde, Henrique Mendes, Lygia Alcântara Amaral, Isaias Melshon, Mário Yahn e Margareth Gill. Desse grupo, apenas Nabantino Ramos não fez carreira como analista, tornando-se uma espécie de "propagandista da causa". Diretor, entre 1943 e 1962, do potente conglomerado jornalístico Folha da Manhã, que publica o jornal Folha de São Paulo, foi graças a ele que a psicanálise conheceu uma grande difusão na imprensa. Vale citar o programa radiofônico Nosso Mundo Mental, apresentado por Virgínia Bicudo, na Rádio Excelsior, ou ainda uma série de artigos publicados na imprensa em 1954, assim como a cobertura dada à campanha pela criação da Clínica Psicológica da Universidade de São Paulo no começo da década de 1960.
11 Com o fim da guerra, Londres tornou-se o "território de esplendor da psicanálise" (Girard, 1982, p. 313) e a IPA entrou numa nova fase de estruturação e construção de novas estratégias de expansão. Um quarto da comunidade freudiana emigrou para a Grã-Bretanha, três quartos para os Estados Unidos e uma ínfima minoria para a América Latina (Argentina e Brasil). Essa imigração teve três consequências: o fim da supremacia da língua alemã em benefício da língua inglesa, o reforço do poder burocrático da IPA e a fragmentação do freudismo clássico em diversas correntes e escolas, entre outras, kleinianos, annafreudianos, indendentes na Inglaterra, psicologia do ego, nos Estados Unidos, e, na França, a excomunhão e cisões do lacanismo (Roudinesco & Plon, 1998, p. 343-344).
12 órgão vinculado à Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Durval Marcondes foi nomeado diretor desse serviço quando da Reforma do Sistema de Assistência Médico-pedagógica, dirigida pelo Ministério de Saúde Pública da Ditadura Vargas.
13 Ao longo dos anos 1940, a bibliografia adotada entre as obras freudianas ditas sociológicas procurava destacar a problemática cultural para dar conta da origem do laço social e do percurso que introduz o indivíduo no grupo e na história coletiva. Além da disciplina ministrada por Marcondes, a leitura de certos textos de Freud, assim como de autores freudianos seria também recomendada nas disciplinas de Educação Nacional, sob a responsabilidade de Raul Briquet nessa mesma formação. Desde então, integrando a formação dos sociólogos da Escola de Sociologia e Política, até os anos 1970, essa disciplina foi controlada por membros da SBPSP: Virgínia Bicudo, Oscar Resende de Lima, José Collarile, Virgílio Basan e Armando Ferrari.
14 Em formação analítica com Adelheid Koch, paralelamente Mário Yahn, então diretor do 5º Pavilhão feminino, formou toda uma geração de futuros psiquiatras lhes ensinando a observar, escutar, diagnosticar e acompanhar tanto pelo método psicanalítico como por meios medicamentosos pacientes apresentando perturbações graves. Essa mesma orientação, ele desenvolveu em suas clínicas privadas: Instituto Aché e Clínica Bela Vista. Quanto a Paulo Lentino, ele desenvolveu uma clínica que procurou adaptar os métodos do dissidente e fundador da psicologia individual, Alfred Adler, aos de Freud. Nos anos 1940, ele reuniu um grupo basicamente de médicos estagiários do Juqueri. Contrário às regras de formação da IPA que considerava cara e longa, ele ofereceu aos seus discípulos uma formação teórica e supervisão de casos, abrindo, assim, um outro polo de formação paralelo ao de Koch/Marcondes. Muitos participaram desse grupo, antes de integrarem a SBPSP, tais como: Otávio Salles, Roberto Azevedo, Cléo Lichenchstein e Laertes Ferrão.
15 No que diz respeito à psicologia, a formação universitária de psicólogos clínicos teve início em 1954, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, com a criação do curso de especialização em Psicologia Clínica em dois anos. Na ocasião, Durval Marcondes, assumiu a cadeira da Clínica como professor convidado. Essa formação foi precedida de outra oferecida pela Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, sob a batuta de Madre Cristina, que, desde então, ofereceu em território paulista uma via de expansão a outras correntes psicoterapêuticas. Quanto aos cursos de Medicina, a psicanálise foi introduzida em 1964, na Escola Paulista de Medicina, por Darcy Uchôa e, na Santa Casa de Misericórdia, na disciplina de Psicologia Médica, por Virgínia Bicudo (Oliveira, 2006).
16 Organizado para a comemoração do quarto centenário da fundação da cidade de São Paulo, em 1954, o Congresso foi presidido por Pacheco e Silva e Durval Marcondes, como vice-presidente. O evento, patrocinado por 18 associações médicas, psiquiátricas e de psicologia nacionais e internacionais, além da SBP de SP, reuniu 466 inscritos vindos dos mais importantes centros urbanos do país, mas também dos Estados Unidos, de Portugal, do Panamá, da Espanha, da Argentina, da Venezuela, da Colômbia, do Uruguai, do Chile, do Paraguai e do Peru. Entre as principais personalidades do movimento psicanalítico, além dos paulistas, participaram os argentinos Celes E. Cárcamo, Angel Garma, David Libermann, Enrique Pichon-Rivière e Arnaldo Rascowsky, e os cariocas Werner Kemper, Danilo Perestrello e Alcyon Baer. (Anais do Primeiro Congresso Latino-americano de Saúde Mental, 1954).
17 Moção proposta pelos médicos Maurício de Medeiros (RJ) e Nelson Pires (BA). Acusados de charlatães, durante um bom tempo, os psicanalistas não-médicos exerceram a profissão sob o medo de se verem obrigados a responder em justiça sobre a prática ilegal da medicina. O temor não era sem fundamento. Em setembro de 1955, o consultório de Werner Kemper, no Rio de Janeiro, foi invadido pela polícia e ele, assim como sua paciente, foram conduzidos à delegacia de polícia.
18 Theon Spanudis nasceu em Smirna, em 1915. De origem grega, ele se instalou em Viena nos anos 1930, onde, como seu avô e seu pai, e mais tarde seu irmão caçula, fez seus estudos de medicina.
19 As primeiras publicações oficiais da SBPSP datam de meados dos anos 1960. Em 1966, foi publicado o primeiro número do Jornal de Psicanálise (JP) e, no ano seguinte, em 1967, a Revista Brasileira de Psicanálise (RBP).
20 No começo dos anos 1960, a fila de espera era de cerca de 40 candidatos (Sagawa, 1994, p. 23). Eles eram em grande parte médicos sensibilizados pela temática psicológica e dispostos a se submeterem a esse processo com o objetivo de aprender a técnica psicanalítica e, assim, obter a validação formal de suas clínicas. Como pude constatar em diversas entrevistas efetuadas com psicanalistas dessa geração, a disputa por uma vaga era tal que alguns candidatos não se privavam de artifícios para obter rapidamente o ingresso no Instituto. O mais simples consistia em começar uma análise com qualquer analista autorizado, em geral um analista menos solicitado, e, desde que uma vaga com um didata se liberasse, bastava solicitar a validação do tempo passado com o primeiro analista. Nessas condições, é claro que a relação transferencial fica, no mínimo, comprometida, quando não completamente excluída do processo analítico (Oliveira, 2006).
21 Em 1961, a Comissão de Ensino era composta de acordo com os Estatutos de seis membros domiciliados em São Paulo: Adelheid Koch, Darcy Mendonça Uchoa, Lygia Amaral, Virgínia Bicudo, Isaías Melshon e Henrique J. Schlomann (Barcelos, 1976, p. 15). Em 1969, eram analistas didatas: Adelheid Koch, Darcy Mendonça Uchoa, Lygia Amaral,Virgínia Bicudo, Isaías Melshon, Margareth Gilll e Judith Andreucci, a mais nova do grupo, que substituiu Schlomann, morto em 1965. Quanto a Margareth Gill, ainda que seu nome, por questões estatutárias, não conste na lista da Comissão de Ensino em 1961, ela ocupava essa função desde 1954 (Oliveira, 2006).
22 Nos anos 1960, o caso mais controvertido foi o de Regina Chnaiderman. Personalidade conhecida do meio intelectual, psicanalítico e de esquerda de São Paulo, diplomada em química e psicologia, Chnaiderman teve sua candidatura à formação recusada por duas vezes, em 1965 e em 1967. Cecília Coimbra (1995), que estudou as práticas psi, em São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos 1960 e 1980, sugere a hipótese de que essa recusa estaria ligada, de um lado, à sua posição de esquerda próxima do Partido Comunista Brasileiro, na época vista com reservas pela direção da SBPSP, e, de outro, ao seu pensamento singular que tentava aproximar Freud da filosofia e não isolar o inconsciente do contexto histórico. No que diz respeito à primeira hipótese, constata-se que, ainda que a direção da SBPSP fosse nessa época majoritariamente de direita, alguns mesmos apoiaram o golpe de 1964 e a ditadura militar; outros, identificados como de esquerda, puderam perfeitamente ocupar espaços na Sociedade sem que isso provocasse algum problema. Já quanto à sua forma de conceber não somente a teoria como a prática psicanalítica, é verdade que Regina Chnaiderman era mais aberta a outras correntes e tendências, e que, pela sua personalidade marcante e liderança natural, ela poderia ter constituído um risco à hegemonia kleiniana e aos mandarins pouco habituados a suportar a diferença. Segundo o didata Isaías Melshon, amigo próximo da família Chnaiderman, a recusa dizia respeito à denuncia de uma outra analista de que sua clínica transgredia as normas estabelecidas (Entrevista concedida em 8 de abril de 1999, in Oliveira, 2006).
23 Em São Paulo, essas experiências tiveram início com Oscar Rezende de Lima, que a adotava na formulação de diagnósticos em seu trabalho na Previdência Social; Lygia Amaral, que a empregava na supervisão dos alunos do curso de Psicologia Clínica da USP; Bernardo Blay Neto, que a instaurou em seu trabalho junto aos internos do Hospital do Juqueri, empregando principalmente técnicas inspiradas do psicodrama (Zimmermann, Bertoni, 1969, p. 42); e Laertes de Moura Ferrão, no Serviço Psiquiátrico do Hospital dos Comerciários de São Paulo, IAPC, com grupos terapêuticos de alcoólatras.
24 Foi o caso do programa Jovem Urgente, animado pelo ilustre representante do psicodrama, Paulo Gaudêncio, na TV Cultura de São Paulo, entre julho de 1968 e fevereiro de 1969, inaugurando a participação de profissionais "psi" em emissões televisivas e com grande sucesso, a ponto de derivar em um livro com diversas edições (Gaudêncio, 1975).
25 Entre 16 e 22 de agosto de 1970, ocorreu no MASP, em São Paulo, o V Congresso Internacional de Psicodrama a Sociodrama, concomitante ao I Congresso Internacional da Comunidade Terapêutica. Um acontecimento que reuniu cerca de 3.000 pessoas, em sua maioria jovens universitários de classe média.
26 Philips foi o primeiro membro da Sociedade paulista a tornar-se didata em 1946. Porém, dois anos mais tarde, ele foi para Londres, onde permaneceu até 1969. Ali, iniciou análise com Melanie Klein (1948-1954) e, em seguida, com Wilfred Bion (1954-1961), para tornar-se membro associado da Sociedade britânica em 1953.
27 Percorrendo os anuários e publicações da SBPSP, é interessante constatar que quanto mais o prestígio e a lenda da "inteligência", da "grande bagagem cultural" e da "fineza de interpretação" de Frank Philips aumentava - aliás, em proporção ao preço da sessão -, mais se fazia necessário lhe atribuir um título de "engenheiro" ou, então, de "doutor", precedendo o seu nome, como se um diploma pudesse justificar a competência que desejavam lhe atribuir ou, quem sabe, o exorbitante preço cobrado, sobretudo quando se tem o controle do mercado de trabalho.
28 A parceria intelectual e a amizade logo se ampliaram para outro encontro importante. Agora, com o jesuíta de origem franco-canadense, Jacques Laberge, na época membro da EFP, mas instalado em Recife.
29 Professora de filosofia moderna da Faculdade de Filosofia da USP, ela acabara de lecionar a disciplina "Merleau-Ponty e a psicologia", para o recém-criado curso de pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP. E, no ano seguinte, apresentou um trabalho intitulado "Linguística e psicanálise em Lacan" (Oliveira, 2012a).
30 Seguindo os ares do fim do milagre econômico e do começo do retorno da democracia ao País, a hegemonia do famoso "grupo bioniano", ou melhor, do estilo "philipiano", seria ameaçada apenas em 1982, quando, pela primeira vez, foi lançada uma chapa em oposição à da direção autocrática da SBPSP.
31 Foi o caso, por exemplo, do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, cujo tema oficial foi "A dimensão teórico-clínica da psicanálise no Brasil: imitação ou criação?". Esse mesmo questionamento resultou ainda, em 1995, na publicação do livro Psicanálise Brasileira.
32 Conhecido como o Congresso da Banana, foi um verdadeiro acontecimento de caráter nacionalista: começou com o Hino Nacional, teve Gilberto Freyre como convidado de honra e, para o encerramento, Joãozinho Trinta e a escola de samba Beija-Flor, gesto com o qual pretendia impedir o domínio do movimento que o casal Miller (herdeiros de Lacan) tentava impor no país.
33 A título de exemplo, na SBPSP, em 1975, 69% dos candidatos inscritos eram homens, e 83% de formação médica, obedecendo, grosso modo, à tendência do período de implantação. O perfil começou a mudar a partir de 1982, quando a proporção de homens e mulheres se equiparou. Em 1985, pela primeira vez, a formação em medicina representou 48% do total de candidatos. Quanto à proporção de mulheres, elas já representam 52% (Oliveira, 2006).