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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.3 no.5 São João del Rei Dec. 2014

 

ENTREVISTA

 

Wo Es war... la langue1


Entrevista com Jean-Claude Milner

 

 

Danièle Lévy2; Serge Reznik2; Trad. Paulo Sérgio de Souza Jr.

 

 

Che vuoi? - Jean-Claude Milner, obrigado por aceitar este encontro. Ao preparar um número sobre a passagem da psicanálise de uma língua a outra, tivemos o anseio de interrogá-lo, linguista e lacaniano, sobre o que foi essa aposta na língua feita por Lacan: a linguagem, a língua, a linguística e a linguisteria. Mas, é claro, não poderemos nos impedir de evocar também o seu último livro, Les penchants criminels de l'Europe démocratique,3 que dá muito a pensar. Há certamente uma relação entre as especificações que há tempos o senhor tem feito sobre as apostas na língua, ao que significa estar apresado na linguagem, e a sua recente guinada rumo a um pensamento político.

Danièle Lévy - Para começar, gostaria muito de fazer uma pergunta, que tem implicações pessoais, sobre a divina surpresa que constituiu e sempre constitui, para cada um de nós, "Função e campo da fala e da linguagem". Isso ocorreu em 1953, mas continua atual a surpresa diante desse golpe de genialidade que, para uns, coloca as coisas de uma vez por todas no lugar - e especialmente o campo psicanalítico -, enquanto, para outros, continua letra morta, incompreensível, inacreditável.

 

A língua, a letra

Jean-Claude Milner - "Agora todas as disciplinas se encontram restituídas, as línguas instauradas", escreve Gargântua a Pantagruel. Eu sempre percebi no discurso de Roma uma espécie de eco desse júbilo. Lacan, assim como Rabelais, viu-se entusiasmado com a renovação das ciências, por uma renascença, que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi o contrário de um luto. Não é por acaso que isso tenha ocorrido perante os psicanalistas de língua românica, como que em testemunho disso que podia ser percebido como uma translação de saberes: do universo da língua alemã - língua dos saberes do final do século XVIII até 1933 - passávamos a um universo no qual a língua francesa, após 1945, engendraria saberes sem precedentes. O texto de Lacan registra alguma coisa inteiramente nova: uma influência da ciência moderna sobre os Geisteswissenschaften, sobre objetos que, até então, referíamos ao Geist, ao espírito - a saber, a família e a linguagem. Lacan liga a psicanálise a Lévi-Strauss e a Jakobson. Isso lhe permite articular o Galileu literalista de Koyré com as ciências chamadas, em francês, de sciences humaines (linguística, antropologia). Elas são, a partir daí, ciências exatamente no mesmo sentido em que a física matemática. Para trazer só este exemplo, As estruturas elementares do parentesco introduzem na apreensão literalista um objeto - o parentesco - a respeito do qual não preciso sublinhar o fato de ser crucial para a psicanálise.

A descoberta decisiva foi certamente a de Lévi-Strauss: o parentesco se tornou literalizável e matematizável. Lacan vislumbra, então, a possibilidade de uma matematização da antropologia, no sentido estrito em que a física havia sido uma matematização da natureza. Essa esperança durará pouco, mas será infinitamente decisiva. Com relação ao papel de Lévi-Strauss, o de Jakobson foi, sem dúvida, menos importante. Mais que uma literalização, Lacan retém dele figuras de excesso com relação à literalização. O deslocamento poético, essencialmente.

D.L. - Estamos na literalidade, mas ainda não na língua que se fala. Entretanto, o famoso artigo sobre as duas afasias relacionadas às duas figuras da metáfora e da metonímia parece decisivo para a função da fala no campo da linguagem, justificando a engenhosidade do inconsciente tão frequentemente sublinhada por Freud.

J.-Cl. M. - Por conta de seu objeto, Lacan constatará bastante cedo aquilo que ele próprio chama de carência do linguista. Daí a emergência, ao final do percurso, do termo linguisteria, que é a contrapartida dessa constatação. Esse termo é construído como o da pirataria, com um sufixo que remete ao comércio ou à vigarice. Trata-se de coisas que fazemos com o que pegamos dos outros, o que fazemos com elas sem o seu consentimento; trata-se, pois, disso que Lacan fazia com que ele pegava dos linguistas sem levar em conta de modo algum a vontade deles. Ele encontra em Jakobson algo como redes não standard que lhe permitem apanhar peixes no Oceano de Freud. A mesma coisa acontece em Benveniste.

Um exemplo: antes mesmo de fazer disso um artigo científico, este último havia explicado a Lacan, numa conversa particular, que a frase marcava, a seu ver, o limite além do qual a linguística não pode ir. Mas também o limite aquém do qual a linguística pode se construir como ciência. Assim, o linguista chama a atenção de Lacan para a frase; mas chama também a sua atenção para além da frase, num domínio em que, segundo Benveniste, a linguística não tem legitimidade, e que ele chama de discurso.

Podemos seguir essa luz no texto de Lacan. Num primeiro momento, o desejo inconsciente é referido à frase - a alusão a Benveniste é evidente, não menos que a alusão a Freud. Pois acontece, aliás, que em Freud a frase fornece uma modelização da fantasia [fantasme]; sua estruturação gramatical é, por si só, princípio de organização. A análise do "Eu, um homem, amo um homem" é testemunha. Em seguida chega um momento em que Lacan usa o termo "discurso". É difícil não levar em conta o fato de que, segundo Benveniste, o discurso se opõe à frase. Que, segundo ele, ele designa muito exatamente aquilo sobre o qual a linguística não tem nada a dizer. Passando da noção de frase inconsciente à teoria dos quatro discursos, Lacan muda sua própria relação com a linguística, mas faz isso usando uma classificação que foi um linguista que fez com que ele conhecesse. Notaremos que o termo linguisteria vai aparecer depois que a teoria dos quatro discursos tiver sido constituída.

Dito isso, mesmo nos quatro discursos, algo da literalização antropológica ou linguística permanece. Sabe-se que Freud, também ele determinado pelo ideal de ciência moderna, construía esquemas espaciais. Mas, se comparamos esses esquemas com as diversas fórmulas de Lacan - grafos, punção, matemas etc. -, uma diferença salta aos olhos. Os esquemas freudianos não são móveis, enquanto que as fórmulas lacanianas são praticamente sempre animadas por uma circulação interna. Pode se tratar de uma circulação espacial (grafos), uma circulação literal (punção) ou uma combinação dos dois (quatro discursos). Essa mobilidade é crucial, ela faz das fórmulas lacanianas verdadeiras máquinas, próprias para produzir, por meio da manipulação, fragmentos de saber. Eu considero que essa diferença entre Freud e Lacan remete à diferença que separa seus ideais de ciência: em Freud, a apreensão da ciência passa pelo fisicalismo; em Lacan, a apreensão da ciência passa pela literalização, cujos exemplos encontram-se, na época do discurso de Roma, tanto em Lévi-Strauss ou Jakobson quanto nos físicos. Ora, os esquemas dos grandes estruturalistas, sejam eles antropólogos ou linguistas, são esquemas de mobilidade interna. Esse traço continua, além disso, depois de findo o estruturalismo; poderíamos até mesmo dizer que ele se acentua nas representações transformacionais das Mitológicas e, muito evidentemente, nos linguistas marcados por Chomsky. Mesmo se Lacan já não mantém com esses trabalhos nada além de uma relação cada vez mais distante, algo essencial permanece. Eu chamaria isso de vontade de construir esquemas que sejam máquinas produtivas de saber, e não somente muletas para o pensamento.

 

A língua, o sujeito

Serge Reznik - No seu último livro, o senhor lança a seguinte proposição: "O nome judeu é um desses nomes que, no espaço de um lampejo, realizam sobre o enunciador a intimação "Wo Es war, soll Ich werden"; o "es" da língua - todo nome, enquanto nome, está em terceira pessoa - torna-se, por um instante infinito e com uma rapidez infinita, o "ich" do ser falante".4 O senhor poderia comentá-la?

J.-Cl. M. - Quando se emprega um nome para qualificar um caso clínico, o que é que se diz? Ele é... neurótico, psicótico, paranoico etc. Assim como Freud, e como toda a psicanálise, Lacan retoma o vocabulário da psiquiatria. Mas ele modifica radicalmente o seu alcance, e a modificação se constata precisamente no registro da subjetivação. A psiquiatria fala em 3ª pessoa, ela utiliza o nome clínico como um predicado, referido a um sujeito gramatical em terceira pessoa: o senhor ou a senhora X (nome real ou fictício) é um Y (nome clínico). Nos textos de Lacan, termos como histérico, obsessivo etc. são empregados em posição de sujeito; não me lembro de exemplo algum em que sejam empregados de maneira predicativa. E, quando empregados como sujeitos, é preciso compreendê-los como lugares-tenentes de uma primeira pessoa. Em psicanálise interpreta-se o nome clínico como um modo de dizer "eu [je]".

É a um deslocamento análogo que assistimos a partir do nome judeu. Em "eu sou francês", francês não é uma maneira de dizer eu, é uma afirmação predicativa clássica, de inclusão ou de pertinência, conforme o caso. Dizemos "eu" e, daí, dizemos "francês", depois ligamos os dois momentos, que estão e permanecem separados mesmo e sobretudo depois que foram ligados. A tese de Sartre nas Reflexões sobre a questão judaica já desloca a análise; ele considera que o nome judeu está sempre em segunda pessoa: "você é judeu" - as proposições em primeira ou terceira pessoa são derivadas dessa. O nome judeu é uma maneira de dizer você - e as línguas são feitas de tal modo que o real do você contém, num primeiro momento, o insulto. Minha tese própria é de que judeu é sempre um nome em primeira pessoa. Mesmo quando parece um nome em terceira pessoa, mesmo quando é lançado como um insulto em segunda pessoa, ele é uma maneira de dizer eu.

Ora, é preciso levar em conta, aqui, um real massivo: é que a língua é, em suma, fundamentalmente falada em terceira pessoa, que é a pessoa dessubjetivada. É esse o estatuto do nome usual. As pessoas subjetivadas - primeira e segunda, nas línguas europeias - devem passar pelas beiradas: é esse o estatuto dos pronomes chamados "de diálogo". O Es de Freud resume esse real; Es war é uma maneira de dizer a língua.

Para retornar à translação dos saberes da língua alemã às línguas românicas, se tivéssemos interrogado Lacan, em 1930, perguntando: "Que língua o pensamento fala?", ele teria respondido: "O pensamento fala alemão". De modo algum por razões metafísicas, mas sim por razões estritamente empíricas. É a época da revista Recherches Philosophiques, fundada por Koyré; Lacan participará dela com textos críticos. Todo um grupo de jovens vai se reunir, ansiosos para arrancar o pensamento francês do seu provincianismo, fazendo com que ele conheça, por meio de traduções, comentários, resumos, o que se andava escrevendo - ou estava escrito - em alemão. Até mesmo Descartes, nas versões que então lhe davam, ficou provinciano; para respirar um pouco, devia-se ter acesso a Hegel, Husserl, Heidegger. Todos os espíritos livres estavam convencidos disso: Sartre, Koyré, Kojève e, é claro, o próprio Lacan - que tanto insistirá na leitura de Freud em alemão.

O fato de que a língua alemã tenha se tornado a língua do não pensamento representou uma catástrofe para toda uma geração - para aqueles que ela era a língua materna, em primeiro lugar; mas também para os outros.

S.R. - Havia anglo-americanos que pensavam, naqueles anos!...

J.-Cl. M. - Não nego. Eu estou constatando, somente, que eles pouco contaram nos meios intelectuais de língua francesa. Nos anos 50, para aqueles que na França haviam sido criados com a convicção de que a língua do pensamento era o alemão, produziu-se, retomo o seu termo, uma divina surpresa. Era a língua francesa que estava se tornando a língua do pensamento: Sartre, Merleau-Ponty, o estruturalismo nascente. Era evidentemente uma ilusão. Mas ela teve um tempo de plausibilidade.

 

Traduzir: Wo Es War...

S. R. - Acaso o senhor veria uma relação entre a passagem de uma língua a outra e a definição freudiana do inconsciente como língua fundamental (Schreber)? Para Freud, o recalque é um defeito de tradução.

J.-Cl. M. - A tradução não supõe que haja duas línguas igualmente constituídas. Ela supõe apenas uma alteridade. Que alteridade? É preciso dar uma definição da língua que leve em conta essa questão.

A passagem de uma língua a outra supõe uma reinvenção com relação a uma língua dada. Wo Es war...: uma língua estrangeira, em terceira pessoa, torna-se, uma vez traduzida, uma língua em primeira pessoa. Mas um problema subsiste: o Es não está na mesma língua que o Ich. Por exemplo, quando Baudelaire traduz Poe, ele não conhece bem o inglês. Ele aprende traduzindo. Em suas primeiras tentativas, o Es do inglês é apenas traduzido para o Es do francês. A primeira tradução publicada por Baudelaire não é subjetivada. Na tradução final, pelo contrário, o Es war de Poe torna-se o Ich do texto de Baudelaire. Baudelaire subjetivou a língua inglesa, pelo menos a língua inglesa de Poe.

S. R. - As boas traduções seriam as que fazem passar do Es ao Ich?

J.-Cl. M. - Há alguns exemplos em que se passou do Ich ao Es. Quando Proust decidiu traduzir Ruskin, é a relação com o Ich que prevalece: ele procura fazer de sua tradução uma etapa na ascese que o levará a subjetivar a coleção ilimitada dos seres possíveis e impossíveis, o Es ilimitado daquilo que era (o Tempo é apenas o nome que ele dá a esse ilimitado). Ele procura atingir o Ich de Ruskin para fazer emergir o seu próprio. Daí, a tradução uma vez engatilhada se mostrará como sendo justamente apenas uma etapa da qual se deve ver livre o quanto antes e o quanto mais possível. Deve-se descomprometer o Ich e separá-lo de uma empreitada que, longe de permitir a subjetivação como se esperava, vai atravancá-la. Na tradução de Sésame et le lys, discernimos o esforço de deportar o Ich com a maior elegância possível do lado do Es.

A solução: fazer com que a tradução do texto de Ruskin seja precedida por um longo prefácio intitulado "Sobre a leitura"; acompanhá-la com notas abundantes. Nesses acréscimos Proust interpôs, de algum modo, o que resta do Ich que ele teve a engenhosidade de não fazer passar na tradução.

S. R. - No artigo intitulado "Da linguística à linguisteria",5 publicado na revista La cause freudienne, n. 42, o senhor conclui: "Que isso nunca se cale seria o que o nome linguagem estenografa. Lacan chegou aí, antes de mais nada, pela via do "isso fala", no que a linguística revelou-se decisiva [...] talvez ele tenha se dado conta, um belo dia, de que chegaria melhor a isso pela via de um "está escrito", ao qual as Letras e a reflexão sobre os sexos conduzissem". Poderíamos ilustrar o "isso não se cala nunca" com o antissemitismo?

 

Não traduzir

J.-Cl. M. - Não é só o antissemitismo que não se cala nunca. O notável, mesmo, é mais a persistência do nome judeu.

A raiz do antissemitismo moderno - que prefiro chamar de antijudaísmo - encontra-se na demanda de que isso se cale. Isso o quê? A quadruplicidade: o fato de o ser falante estar inscrito no dispositivo homem/mulher/pais/filho. Por exemplo, a clonagem torna os sobrenomes obsoletos. Resta só o nome - é, no fim das contas, notável que se tenha julgado oportuno botar o nome Dolly no primeiro mamífero clonado. Mas, para um ser falante, um nome só tem sentido porque é dado pelos pais - ou pelos lugares-tenentes de pais. Ora, o que está em jogo na clonagem é que os sobrenomes não tenham mais sentido algum. Se eles não têm mais nenhum sentido, os nomes também não têm.

S. R. - O antijudaísmo moderno estaria ligado à supressão da sexualidade?

J. Cl. M. - É preciso desdobrar a palavra sexualidade. A sexualidade passa pelo Édipo, ou seja, uma estrutura de quatro lugares: homem/mulher/pais/filhos. Não é a materialização mais evidente de um Es war. Quando digo que a sociedade moderna demanda que isso se cale, quero dizer que ela não quer mais fazer a quadruplicidade passar do Es ao Ich.

S. R. - O senhor aproxima o antijudaísmo moderno da "promoção da sexualidade como demanda das demandas" e toma como exemplo o caso de Weiniger.6

J. Cl. M. - Façamos história grosseiramente, como os historiadores. Pode-se supor que, nas sociedades em que há escassez, a demanda das demandas é a de comer. Uma vez resolvido o problema da fome, passa-se ao seguinte: esperar que as famílias e os casais passem bem. Na Europa, pode-se dizer que o problema da fome parece resolvido em meados do século XIX; é daí que a demanda das demandas se desloca para o que se chamou de sexualidade. Há, pois, coincidência temporal entre a promoção da sexualidade como demanda das demandas (o amor livre, a satisfação sexual etc.) e a forma moderna do antissemitismo: a Judenhasse era rural, o antissemitismo é urbano. A Judenhasse tinha a ver com a subsistência; o antissemitismo supõe resolvidos os problemas de subsistência. No fundo, ele nasce da decepção com relação ao século XIX europeu: o que fazer agora que resolvemos o que outrora parecia insolúvel - fome, epidemias, guerras incessantes -; como é que não melhorou? Como é que o progresso geral não assegura a felicidade de cada um? Grande questão que remonta minimamente a Rousseau, mas da qual o século XIX dá suas versões particulares. Weiniger testemunha duas inflexões: considerar que a última palavra da felicidade deva ser procurada do lado sexual; considerar que, se o progresso não assegura a felicidade sexual de cada um, é porque há um obstáculo. Ele procede, primeiramente, por introspecção: se eu, Weiniger, não atinjo a felicidade é por causa do que há de judeu em mim; porque, diz ele, o Judeu7 turva o limite entre o masculino e o feminino. Ele prossegue com uma generalização: se o mundo não atinge a felicidade é por causa do que há de judeu no mundo.

 

O nome judeu

S. R. - Sua análise desloca o que seria o núcleo duro da construção das democracias europeias: a tentativa de eliminar a especificidade judaica, por assimilação ou por destruição. Desde a Revolução Francesa os judeus evidenciam-se como um problema a ser resolvido.

O que o senhor chama de nome judeu teria se tornado o símbolo da diferença irredutível, do limite, um tipo de nome do nome. Mas o senhor não fala da história dos Judeus antes do "século das Luzes", nem do que faz o laço judaico, de como eles puderam resistir apesar do antissemitismo. O senhor considera, como Sartre, que se trata de um povo sem história e que "o único laço que os une é o desprezo hostil pelo qual os tomam as sociedades que os rodeiam"?

Substituindo povo judeu por nome judeu o senhor não está fazendo do Judeu um ser abstrato, que só existe com relação ao outro, ilustrando a tese de Sartre: ser é estar em contexto?

Essa designação, nome judeu, é um achado, pois os Judeus estão efetivamente do lado do nome [nom] - e do não [non]. Mas Judeu remete a nome e a história. Os Judeus são um povo de história(s) - só há histórias judaicas. Nome e texto são tecidos com história e exílios.

J. Cl. M. - Tenho uma grande admiração por Sartre, mas minha posição é diferente da dele.

Eu parto da oposição entre o nome em primeira pessoa, que é uma exceção, e o nome que só se diz em terceira pessoa, que é a regra. Como explicar, à luz desses fatos, a persistência do nome judeu? Eu apenas retomo uma questão formulada por Spinoza: como é possível que isso tenha continuado, sem território, sem igreja, sem consenso? Mas minha resposta, num primeiro momento, é: isso continuou porque há gente que diz eu como Judeu, que pronuncia o nome judeu em primeira pessoa.

Nesse grau, minha resposta poderia também valer para outra pergunta, que, afinal, não é menos estranha: como é que o nome "filosofia" continua? Resposta: porque há gente que pronuncia o nome de filósofo em primeira pessoa, para quem se dizer filósofo é uma maneira de dizer eu.

Mas há uma diferença. O filósofo em primeira pessoa é sempre o primeiro - ou o último - dos filósofos. A filosofia não é algo que se receba dos pais, nem sequer algo que se receba dos mestres. Dizer-se filósofo é uma afirmação de descontinuidade. Para o Judeu, ao contrário, a afirmação é uma afirmação de continuidade.

É preciso, então, prosseguir e se interrogar sobre a base material dessa continuidade. Minha resposta é que a única continuidade constatável é a do estudo.

Dizendo isso, dei-me conta, posteriormente, que escolhi Freud contra Spinoza. É verdade que Spinoza fala de um modo bem mais enigmático do que se diz, e suspeito que ele dê a entender muito exatamente o contrário do que ele dá a impressão de dizer; mas, se nos ativermos ao sentido óbvio, a base material da continuidade, segundo ele, é a circuncisão. Freud poderia ter dito isso, mas, justamente, ele não diz: em Moisés e o monoteísmo ele evoca a destruição do Templo e afirma que, depois desse acontecimento, o único elemento que permite que os Judeus continuem a existir é o estudo da Torá. Mais precisamente ainda, para provar que é justamente o estudo que manterá unido o povo dispersado, ele insiste em citar o ponto de partida de um processo que o livro todo dá a entender que ainda dura no momento de sua escrita: a abertura da primeira escola em que se ensina a Torá, em Yabneh (Folio, p. 214).

D. L. - Para Freud, o antissemitismo é um deslocamento da angústia de castração.

J. Cl. M. - Ao que me parece, a linguagem freudiana ficou opaca. Mais do que em termos de angústia, eu raciocinaria em termos de demanda. Nossos contemporâneos, pelo menos na Europa, não são movidos pelo medo, mas pela demanda. Eles não têm medo, eles demandam.

 

Não todo e política

S. R. - Eu gostaria de abordar com o senhor questões de método. Pode-se utilizar a teoria psicanalítica (as fórmulas da sexuação de Lacan) para analisar a política? O que autoriza aproximar a distinção ilimitado/limitado (primazia moderna do social sobre o político) da diferenciação lacaniana entre o não todo e o todo? Pode-se falar em fantasia europeia? Não se trataria mais de uma ideologia europeia? Um grupo de nações pode ser assimilado a um sujeito?

J.-Cl. M. - Estou disposto a admitir que avanço nesse espaço de discurso sem cinto de segurança. Exportar o todo/não todo para outro registro que não o da sexuação, isso repousa num axioma: admitindo que os substantivos [noms] "homem" e "mulher" designem duas maneiras distintas, para um ser falante, de se inscrever no registro da multiplicidade, então é permitido estender a escrita formal dos substantivos "homem" e "mulher" a todo procedimento pelo qual os seres falantes se constituam em multiplicidades.

Lacan, na escrita da sexuação, aborda a questão: como é que se passa do ser falante à lógica coletiva dos seres falantes? É uma pergunta recorrente nele. Ele já a abordava no escrito sobre "O tempo lógico",8 com os três prisioneiros. Também a encontramos com a tensão entre o grande Outro e o pequeno outro. Os quatro discursos dão a ela uma forma consumada. Lacan edifica, assim, fio a fio, um dispositivo cada vez mais completo que permite que se diga "seres falantes" (e não "o ser falante").

O passo que eu dou segue o sentido inverso, visto que estou partindo do dispositivo edificado. O que se apresenta a nós desde sempre como pensamento da multiplicidade - a política, a história - era, desde Tucídites e Aristóteles, passível dos operadores tudo e todos. Concluí disso que as escritas da sexuação, enquanto escritas do todo e do não todo, são pertinentes em matéria de história e de política. Opero, apesar disso, um salto, pois as inscrições de seres falantes na sexuação são escritas subjetivas. Eu estendo o alcance a entidades imaginárias como a Europa. Sinto-me autorizado a isso retroativamente pelo resultado. Usando, assim, o todo e o não todo, estou produzindo conhecimentos novos.

S. R. - O que o senhor diria da fórmula: não há relação sexual, logo há política...?

J.-Cl. M. - A fórmula me agrada, seria preciso estudá-la.

S. R. - Poderíamos aproximar do seu trabalho aquilo que Roger Caillois chamou de pecado original das ciências humanas: passar pouco a pouco da conjectura plausível a uma espécie de dedutividade irrecusável, infalível em toda e qualquer circunstância. Qual a validade da abordagem estrutural? Qual o estatuto e o risco da fala profética?

J.-Cl. M. - A fórmula de Caillois é bela; ela não é falsa. Não se tem certeza de que ela caracterize as ciências humanas em sua versão estrutural.

Em minha exposição, a partir de um determinado momento, tudo se deduz. Tudo bem, mas a dedução é um modo de exposição ou um procedimento de descoberta? Há pessoas que trabalham por silogismos, outras mudando de pato pra ganso; eu escolhi a maneira dedutiva. Se, por meio dessa via, chego a coisas que não teriam sido descobertas de outra forma, não se está mais no domínio da exposição, mas no da descoberta; se estamos no domínio da descoberta, não se trata de irrecusável, mas de recusável. O fato é que tenho tendência a pensar que meu trabalho é da ordem da descoberta. Eu parto da ideia de que o que se chama de solução final foi, na verdade, a tentativa de trazer uma solução definitiva a um problema recorrente na história europeia. Para exprimir claramente esse ponto de partida, um esquema é executado, o esquema problema-solução - diferente do esquema pergunta-resposta. De fato é verdade que, a partir dessa oposição de esquemas, procedi de modo dedutivo. Mas a dedutividade não serve para formalizar o que eu sabia no início; ela serviu, pelo contrário, para descobrir coisas que eu não sabia.

Vou dar um exemplo. Numa primeira versão do livro, estava me limitando a constatar a ideia de que a construção da Europa tinha algo a ver com a solução definitiva do problema judaico. Alguém fez uma objeção: isso parece lógico, mas há textos, algo escrito? Então pesquisei documentos. E encontrei. Escolhi o mais explícito: o texto de Giraudoux.9 Ele é tão revelador que não se pode atribuir-lhe uma influência particular; ele não fazia nada além de traduzir em língua precisa o que a maioria das pessoas já pensava. Giraudoux dá prova disso na medida exata em que, em 1939, já era supérfluo. Mas eu não teria pensado em ir pesquisar esse texto se a dedução não tivesse funcionado. A dedução me fez descobrir que um texto que eu conhecia há muito tempo podia fazer as vezes de documento; ela funcionou, então, como procedimento de descoberta de um documento.

Consideremos as coisas de outra forma: minha relação com a ciência acadêmica é com a linguística, ciência que não tem instrumento, nem observatório independente - para ter um, seria preciso se colocar na posição de não ser um ser falante. Daí seu caráter bastante especial. Como se pode pretender cientificidade sem instrumentação, nem observatório? A dedutividade é a única arma autêntica; constata-se que, graças a ela, chega-se a descobrir coisas sobre as línguas que jamais se teria suposto.

S. R. - Quando o senhor fala de dedutividade, está fazendo referência à lógica?

J. Cl. M. - A lógica implica a noção de cálculo, pelas vias do cálculo formal. A dedutividade que eu emprego é tão simples quanto aquela que se utiliza para redigir a declaração de imposto de renda. Usando a dedutividade como procedimento de descoberta, tenho, de fato, consciência de que Lacan avança de outro modo. Em Lacan a descoberta é, na maioria das vezes, fruto do aparecimento súbito, e não da dedução. Permanece o que eu responderia a Caillois: o que faz com que não haja discurso profético, no sentido em que ele o entende, é que se descubram coisas - quer por via dedutiva, quer de outro modo. Descobrir é ir aonde não se esperava que se fosse.

 

 

1 Texto publicado originalmente na revista Che vuoi? n. 21, La psychanalyse en traductions, em maio de 2004. [N. do T.]
2 Transcrição revista pelo autor de uma entrevista com Danièle Lévy e Serge Reznik no dia 12 de março de 2004, quarta-feira.
3 Milner, J.-Cl., Les penchants criminels de l'Europe démocratique. Paris: Verdier, setembro de 2003, apresentado no Le Cabinet de lecture.
4 Milner, J.-Cl., Les penchants criminels de l'Europe démocratique, op. cit., p. 107.
5 La Cause Freudienne, Revista de psicanálise, difusão Seuil Navarin. Publicação da Escola da Causa Freudiana, n. 42, maio de 1999.
6 Otto Weiniger (1880-1903): "Judeu de negação" (cf. J.-Cl. Milner, op. cit., p. 108), autor de "Sexo e negação", obra de um antissemitismo e de uma misoginia virulentos, depois de cuja publicação ele se suicidou. Ele teve um papel na ruptura de Freud com Fliess. Esse último acusava Weiniger de ter plagiado suas concepções da bissexualidade e da periodicidade psíquica, e Freud de tê-las divulgado a Swoboda, amigo de Weiniger!
7 Existe uma distinção entre a escrita do substantivo "judeu", com inicial minúscula, e "Judeu", com maiúscula. O primeiro designa aqueles que praticam a religião judaica, enquanto que o segundo diz respeito aos membros do povo de Israel, aos filhos de Israel. Segundo a Halakha - Lei que rege o quotidiano judaico - um indivíduo continua Judeu ainda que deixe de ser judeu [N. do T.].
8 Lacan, Jacques, "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998; p. 197.
9 Milner, J.-Cl., Les penchants criminels de l'Europe démocratique, op. cit., p. 94.