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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.6 São João del Rei jan./jun. 2015

 

Ruptura ou Transvaloração? Os ensaios de Freud sobre a sexualidade

 

Rupture or transvaluation? The Freud's essays on sexuality

 

Rupture ou transmutation? Les essais de Freud sur la sexualité

 

Ruptura ou transmutación? Ensayos de Freud sobre la sexualidad

 

 

Cláudia Mascarenhas Fernandes

Psicanalista, Doutora em Psicologia Clinica pela Universidade de São Paulo, Membro fundador do Instituto Viva Infância. Membro do Espaço Moebius (Salvador-Ba) claudia.mascarenhasfernandes@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo articula a reviravolta da noção de sexualidade de Freud e o conceito de transvaloração de todos os valores de Nietzsche. Foi necessário percorrer como Nietzsche transvalorou as noções de corpo e alma na tradição filosófica. O corpo é elevado a uma categoria positivada em relação a alma. Tomar o corpo como mais primordial é, sem dúvida, o que subverte toda ordem da metafísica e é nesse sentido que o exemplo do binômio corpo/alma resta em Nietzsche favorável à discussão de como Freud também subverte a episme moderna. Freud, ao separar a pulsão e o objeto para modificar a ideia de perversão vigente em sua época, muda a noção de sexualidade, que afinal funda um campo novo de saber. Resta compreender se essa inversão que Freud promove é apenas uma inversão, uma ruptura com o pensamento da época, ou uma transvaloração de valores, segundo Nietzsche.

Palavras-chave: Freud; Nietzsche; Transvaloração dos valores; Sexualidade


ABSTRACT

This article articulates the overturn of Freud's concept of sexuality and the Nietzsche's concept of transvaluation of all values. It was necessary to go as Nietzsche transvalued the body and soul notions in the philosophical tradition. The body is raised to a positively valued category in relation to the soul. Taking the body as the more fundamental is undoubtedly what subverts all kinds of metaphysic's orders, and in this sense, the Nietzsche's example of the binomial body/soul remains favorable to the discussion of how Freud also subverts the modern episme. Freud separates the drive and the object to modify the current idea of perversion in his time. Its changes the notion of sexuality and founded a new field of knowledge. The question is to know if this reversal that Freud promotes is just a reversal, a rupture with the thinking of the time, or a transvaluation of values, according to Nietzsche.

Keywords: Freud; Nietzsche; Transvaluation of values; Sexuality


RÉSUMÉ

L'article articule le bouleversement de la notion de sexualité chez Freud et le concept detransmutation de toutes les valeurs chez Nietzsche. Ilétaitnécessaire savoir comment Nietzsche a transmuté les notions de corps et de l'âmedans la tradition philosophique. Le corps est élevé à une catégorie positive par rapport à l'âme. Prendre le corps comme le plus fondamentale est sans doute, ce qui subvertit tout l'ordre de la métaphysique. C'est dans ce sens que l'exemple du binôme corps / âme chez Nietzsche est favorable à la discussion de comment Freud bouleverse aussi le épistémèmoderne. Freud en séparant la pulsion et l'objet, pour modifier l'idée courante en son temps de la perversion, modifie aussi la notion de sexualité, ce qui a fondé un nouveau champ de connaissances. La question est de savoir si ce renversement qui a fait Freud est juste un renversement, une rupture avec la pensée de l'époque, ou une transmutation des valeurs, selon Nietzsche.

Mots-clés: Freud; Nietzsche; Transmutation des valeurs; Sexualité


RESUMEN

El artículo relaciona la transformación de la noción de sexualidad de Freud y el concepto de transmutación de todos los valores de Nietzsche. Fue necesario recorrer como Nietzche transmutó las nociones de cuerpo y alma en la tradición filosófica. El cuerpo es elevado a una categoría positiva en relación al alma.Tomar el cuerpo como más primordial es, sin duda, el que subvierte toda orden de la metafísica y es en este sentido que el ejemplo del binomio cuerpo/alma resta en Nietzche favorable la discusión de como Freud también subvierte la episme moderna. Freud alseparar la pulsión y el objeto, para modificar la idea de perversión vigente en su época, cambia la noción de sexualidad, que finalmente honda un campo nuevo de saber. Resta saber sí esa inversión que Freud promueve es apenas una inversión, una ruptura con el pensamiento de la época, o una transmutación de valores, según Nietzsche.

Palabras-clave: Freud; Nietzsche;Transmutaciónde los valores; Sexualidad


 

 

Introdução

O pensamento de Freud provocou para o mundo moderno uma série de reviravoltas e, como escreveu Foucault (1966/2000), influenciou toda a "rearrumação" da episteme moderna. O tema da sexualidade no pensamento freudiano aponta para a criação de uma suspeita determinante no pensamento moderno: as ciências humanas não poderiam prescindir dessas referências freudianas. Além desse patamar descrito por Foucault sobre as condições que fizeram a psicanálise freudiana ser um corte na episteme moderna, será que é possível pensar que houve também o que Nietzsche considera uma transvaloração dos valores?

Podemos encontrar algumas interpretações e respostas para o questionamento acima mencionado, porém aqui neste exercício de reflexão, pretendemos buscar na análise pormenorizada de algumas noções freudianas - como normal e patológico, sexualidade e perversão - um modo fundante, uma marca, um estilo, característicos de uma ruptura com o pensamento vigente ou do processo de transvaloração de todos os valores.

Muitas aproximações e distanciamentos foram teorizados entre o pensamento de Nietzsche e Freud. É possível nos determos numa aproximação com a perspectiva relativa, não unicamente ao conteúdo da obra, mas também sobre a sua forma. Ou melhor, na apresentação da sua teoria sobre a sexualidade, Freud realiza algumas operações importantes para chegar a objetivos determinados e parece-nos que podemos contemplá-las à luz da transvaloração nietzschiana. Portanto, nosso interesse restringe-se não em encontrar todas as interpretações possíveis para a originalidade do pensamento freudiano, mas em interrogar se a operação realizada por Freud, no primeiro e no segundo dos Três ensaios sobre a sexualidade (1905/1992), poderia ter o sentido de uma transvaloração e, em caso afirmativo, que sentido seria este? Qual a sua função na obra?

Iniciaremos o trabalho com uma breve descrição do sentido de transvaloração na obra de Nietzsche. Posteriormente, comentaremos alguns pontos levantados pelos autores da sexologia no pensamento moderno para termos embasamento no entendimento da reviravolta freudiana. E assim, percorreremos cada passo realizado por Freud nesses ensaios sobre a sexualidade para verificarmos o nosso objetivo.

 

A transvaloração de todos os valores em Nietzsche

Substancialmente, encontramos em Nietzsche a busca genealógica para resolver o problema do valor. Segundo Bacelar (1996), se genealogia não é pura pesquisa sobre a origem ou mesmo uma historiografia, o que o filósofo pretendeu foi avaliar os valores, ou seja, de modo superficial "trata-se de uma crítica dos valores morais: conhecer as circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram. Fundamentalmente, o que importa ao genealogista é colocar o valor desses valores em questão, saber que valor tem eles" (p.33). Trata-se, como refere o autor, de uma dupla vertente, uma mais superficial (conhecimento dos valores) e outra mais fundamental (questionar o valor dos valores), o que serve como sinal para não assimilarmos tão facilmente essa noção de transvaloração de todos os valores em Nietzsche.

A transvaloração em Nietzsche1 (Umwertung) pode significar duas coisas. Uma delas seria a tarefa da sua própria obra, resultado de sua obra filosófica, que aponta para determinado momento da história da tradição metafísica, em especial, o momento de seu acabamento, de seu fim e de seu recomeço. Assim falou Zarastrustra (1883/1999) seria essa obra por natureza, a qual pode significar também, episódios históricos de transvalorações, sendo constatável na história da cultura como episódios de significações histórico-mundiais de valores.

Assim, são capítulos que podem ser interpretados um a um, mas mesmo desse modo não escapam à crítica maior ao pensamento e ao homem moderno. O cristianismo ou o platonismo podem ser os dois pilares na manutenção da tensão necessária para as forças da crítica nietzschiana. Ambos os pensamentos negativizam a diferença e impedem a pluralidade. A crítica nieztschiana não toma partido, mas pretende tratar das tensões inerentes ao ser humano. Por exemplo, se critica o ceticismo, o faz tanto sobre o dos fracos (naqueles que recuam e se refugiam na abstenção) e o dos fortes (que desdenha seu objeto, pretendendo-se totalitário). Dessa forma, podemos acrescentar que quando a negatividade se torna dominante, falamos em decadence:

Trata-se de um processo inteiramente conduzido pela negatividade; seu conteúdo é a negação da hierarquia a que se contrapõem as forças decadentes, tornadas então dominantes. Estas não criam ou instituem tábuas de valores, apenas revertem o sentido dos valores estabelecidos. Inversão e oposição constituem sua dynamis (Giacóia Junior, 1997, p.22).

A pluralidade de forças e a contradição dos valores são, desse modo, pilares básicos que compõem o ser. O mundo encontra-se num devir permanente e o negar esse movimento encontra-se em franca degenerescência. A vontade de nada, expressão da decadence, apresenta-se na civilização como "amansamento" e constitui uma "sistematização" ou uma "mundanização" (Gioacóia Junior, 1997,p.29).

O corpo é um exemplo rico de como o filósofo realiza sua Umwertung, em que ocorre um mais além da simples inversão de valores, de perspectivas. Desde muito tempo que a noção de corpo (soma) guarda uma ambiguidade e, por que não dizer, um preconceito fundamental: designar na natureza a parte material, o corpo físico e seus seres. Ao afirmar que Nietzsche coloca o binômio corpo/alma numa ordem completamente diferente, comentadores como Bacelar (1996) apontam para essa inversão que estamos discutindo:"a consciência torna-se um mero instrumento do corpo que passa a ser razão" (p. 45).

A frase supracitada já oferece um reservatório de comentários caso, por exemplo, tomemos o corpo para Platão. Em Timeu e em Fédon, projetos distintos para referir-se ao corpo, Platão guarda a mais clara submissão, a mais incisiva manifestação do corpo como obstáculo para o conhecimento, para a contemplação da alma. A anterioridade da alma, sua divinização e superioridade fazem parte do projeto platônico de considerar o corpo como negatividade, como percebemos na concepção de Huisman e Ribes (1992), que dizem que essa contemplação é mal ancorada quando encarnada num corpo, uma prisão para ela. Dessa forma invers,a observamos a razão do filósofo ter na relação corpo/alma uma forma privilegiada da transvaloração:

Fazer do corpo o que há de mais importante, é inverter a escala dos valores da metafísica ocidental e não mais considerar o espírito como um simples instrumento a serviço do corpo, é levar a historia do homem, à história de um organismo em particular naquele que o espírito e o eu são particularmente desenvolvidos (Huisman & Ribes,1992, p.266).

Tomar o corpo como mais primordial é, sem dúvida, o que subverte toda a ordem da metafísica e é nesse sentido que o exemplo do binômio corpo/alma resta em Nietzsche favorável ao nosso propósito. Citado ainda por Huisman e Ribes (1992), Nietzsche, em seu livro Os desprezadores do corpo, afirma que a criança é corpo e alma, em que se interroga sobre o porquê de não se poder falar como uma criança. Responde então que é corpo inteiro e nada mais que isso, a alma seria apenas uma palavra para designar uma parcela do corpo. É o corpo que possui a sabedoria.

Segundo Corman (1982), ao fazer do espírito um instrumento para o corpo, Nietzsche parte de três argumentos essenciais: 1- Os processos vitais que ocorrem no corpo são superiores em adaptação e em perfeição; 2- Os pensamentos e os sentimentos dependem do corpo, pois ocorrem no corpo de uma maneira inconsciente; 3- Os espíritos estão a serviço do corpo, de onde vem toda a força a qual utilizam num campo limitado, visto que somente há força através do corpo.

Ainda com Corman (1982), "o corpo é o contrário, é o mestre de todas as funções do organismo e o espírito é uma essas funções, é simplesmente um instrumento do corpo" (p. 142). Mais do que uma inversão e fazendo parte da sua crítica ao homem moderno, o corpo deve também ser tomado como ponto de partida metodológico na construção genealógica nietzschiana. Exercício metodológico, pois refere-se que é lícito empregar um fenômeno mais rico para explicar o mais pobre. O autor acrescenta, ao se reportar a Nietzsche: "o corpo humano é um sistema muito mais perfeito que qualquer outro sistema de pensamento ou sentimento, e é mesmo superior a toda obra de arte" (p.142). Assim, estaria livrando a filosofia do pensamento cristão, no qual predomina o privilégio da alma e sua superioridade sobre o corpo. Percebemos, neste instante, que a crítica de Nietzsche é muito mais ampla: aborda a religião e a metafísica.

O questionamento de Nietzsche é sobre o fundamento dos valores, os quais ele entende como sendo demasiadamente humanos, recusando assim, que sejam fruto de um poder superior. Se os valores não são resultados nem da religião nem da metafísica, o que pretende a transvaloração dos valores é fundá-los sob outras bases que não precisem buscar no além mundo as suas razões. Marton (1993) comenta que a teorização nietzschiana de valor opera uma subversão crítica: ela põe de imediato a questão do valor dos valores e esta, ao ser colocada, levanta a pergunta pela criação dos valores.

É exatamente nessa criação dos valores que repousa a tônica nietzcshiana; valores estes que devem ser questionados por serem humanos demasiadamente humanos, sendo, portanto, sobre uma genealogia dos valores que a transvaloração ocorre. Desse modo, realiza-se no processo da transvaloração uma dupla negação: a do homem moderno e a da moral da qual esse homem será representante. Nietzsche posiciona-se contra a moral que se pretende absoluta, que tenta apagar suas condições de existência e de conservação e, assim, não se considerar sob perspectiva como uma interpretação. É uma espécie de "reivindicação da diferença", da contradição e da tensão dos opostos: tornar-se a má consciência do seu tempo. Não basta, contudo, mostrar que os valores foram engendrados a partir de lógicas diferentes, que foram postos por pontos de vista de apreciação distintos. É preciso ainda investigar de que valor essas lógicas partiram para criá-los.

O que precisa ser advertido é exatamente o caráter complexo da Umwertung nas suas duas fases: fase corrosiva e fase negativa e contraditória, para justamente fazer surgir em solo teórico num interior de sua obra a fase construtiva, positiva. Existe uma dupla vertente de negação e afirmação, ou melhor, a partir de uma perspectiva de questionamento da origem dos valores, se sobrecarrega a avaliação deste próprio valor e, assim, pode-se chegar ao seu oposto, causando muito mais uma superação do que simples troca de valores Na ótica nietzschiana, a questão do valor se apresenta com duas vertentes, tanto os valores supõem avaliações, como estas lhes dão origem e conferem valor. Há um movimento genealógico: relacionar valores com avaliações e relacionar avaliação com valor.

Porém, vale pensar que a vida é constituinte de valores, porque eles não podem estar situados fora dela, além dela e, por isso, não poderia ser avaliada. Temos que apresentar que, para ele, a vida é movimento de forças. A vontade de potência é uma força essencial para o ser humano, "[...]que emana diretamente das profundezas da vitalidade como uma força espontânea, inconsciente" (Corman, 1982, p.115). Portanto, o critério de valor não é mais a verdade, e sim a utilidade para a vida dentro das suas necessidades:

Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos coage a instituir valores; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores... Disto segue que também essa contranatureza de moral, que capta Deus como contraconceito e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida (Corman, 1982, p.112).

Transvaloração como ruptura no laço entre moral e conhecimento também nos interessa particularmente. As bases moralmente intrínsecas a respeito da noção de perversão é que vão ser questionadas por Freud. Distintamente de seus contemporâneos, o que Freud vai realizar, assim como Nietzsche, é uma ruptura entre conhecimento e moral. O que se falava sobre a perversão seria característico da perversão como um valor moral ou seria um valor das suas condições genealógicas? Sendo a perversão um valor, ela deveria ser investida e conotada num determinado momento e ponto de vista.

 

Freud e seus contemporâneos: desvio e morbidez

Uma reflexão sobre a relação entre a sexualidade e a perversão em Freud merece ser rastreada a partir da distinção operada por esse autor e por teóricos da sexualidade que foram seus contemporâneos. É preciso falar dos contemporâneos de Freud para poder marcar a oscilação do pensamento freudiano quanto à sua época e para poder elaborar melhor as particularidades geradas pela teoria Psicanalítica a respeito da sexualidade. Como veremos mais adiante, se na época de Freud era a perversão a patologia privilegiada para tratar da anormalidade, principalmente em termos médico-legais, e a infância estava ausente nas teorizações sobre o "sexo normal", o autor tinha algum objetivo a ser investigado ao aproximar essas duas noções, porém aqui nos interessa pensar de que maneira realizou tal aproximação.

Alguns contemporâneos de Freud, ao desenvolverem uma clínica psiquiátrica das perversões, no final do século XIX, propiciaram a emergência da discussão sobre uma sexologia com pretensões científicas. "Inversão sexual" e "degenerescência patológica" serão referências chave na diferenciação entre o normal e o patológico para a época. Esse rompimento parece ter sido propiciado, principalmente, pela forma com que Freud trabalhou esses temas. Nossa hipótese é de que a forma encontrada por ele para realizar uma ruptura2 com as teorizações já existentes se deu ao transvalorar esses valores. Acreditamos que essa discussão é essencial para o desenvolvimento da visão que Freud irá instaurar sobre o normal e o patológico.

Descreveremos muito rapidamente, pois este não é o tema deste trabalho, as ideias de alguns contemporâneos de Freud para termos a dimensão de sua elaboração. O primeiro deles, que nos interessa por sua separação entre espírito e instinto animal, é o psiquiatra alemão Jacob Santlus, que elabora um sistema de psicologia e psicopatologia fundado sobre uma teoria dos instintos, mas sua tônica residia na existência de uma separação entre os componentes animais e espirituais do homem. Outro, o psiquiatra Moreau, publica na França em 1844 um tratado sobre desviações sexuais. Mas a invenção científica da patologia sexual foi de Krafft-Ebing, que publica sua Psicopatologia sexual, fundada na observação de indivíduos anormais.

Existia toda uma classificação dos desvios e das aberrações sexuais. Mesmo quando se falava da infância, por exemplo, Maynert e Moll, prosseguiam afirmando que os desvios da infância poderiam causar desvios nos adultos. Aqui temos de ter claro que a questão a ser identificada não é se esses autores não falaram desses temas, mas o que tinha da moral da época nas suas classificações, nas suas justificativas.

Abert Moll, dentre os autores acima referidos, irá em 1897, caracterizar toda atividade sexual infantil como patológica. Segundo o autor, até os sete anos qualquer manifestação sexual é considerada mórbida. Essa consideração da existência do sexual na infância como patologia é muito diferente da configuração de uma sexualidade infantil circunscrita pela normalidade, como pensa Freud.

Há uma concordância entre os comentadores de que concepções de época estavam presentes bem no início da teorização freudiana sobre o sexual, por exemplo, a sexualidade infantil, estando relacionada ao campo do negativo, da morbidez, e a perversão, ao campo do desvio. Porém, a partir do ensaio freudiano sobre a sexualidade, isso se transformará.

É preciso separar qual concepção de sexualidade está sendo tratada por Freud e por seus contemporâneos. A sexologia permaneceu ligada à uma concepção de normalidade relacionada com a genitalidade. Assim, a ampliação do conceito de sexualidade, proposta mais tarde pela psicanálise, foi ignorada. Afinal, a difusão de ideias sobre a sexualidade infantil e sobre auto-erotismo não equivalem ao mesmo discurso que a psicanálise começa a realizar sobre a sexualidade na infância e sobre a perversão, pois esta opera uma superação nas noções de normal e patológico existentes.

A distinção acima citada não é contemplada por Patrick Valas (1990), comentador da obra de Freud: "As noções de manifestações sexuais na criança e a existência de zonas erógenas não genitais são muito difundidas" (p.15). Acreditamos que a discussão sobre a originalidade de Freud não deveria estar voltada para o fato dele ter sido ou não o precursor desses temas, como propõe Valas, mas sobre a forma como ele os tratou. Acreditamos que ao transvalorar os valores das ciências sexuais, Freud efetuou uma operação original que resultou em uma superação da noção de sexualidade existente e dos conceitos a ela vinculados.

Esse debate tem seu ponto culminante na problematização aqui proposta por meio de Foucault (1997/2003) e de Assoun (1987). Acreditamos que apesar de não estarem se contrapondo com visões completamente opostas sobre o tema, seria interessante apontar essa problematização para uma melhor apropriação do que está sendo privilegiado neste trabalho.

Na História da sexualidade de Michel Foucault (1997/2003), tem-se clara a demonstração de que não foi a psicanálise a primeira ou a única a realizar um discurso sobre o sexo e nem que foi ela a única responsável por suscitar, no século XIX, um saber sobre o sexo na infância. Segundo esse autor, há três séculos já existia um discurso e um saber sobre o tema. É nesse sentido que Assoun (1987) faz uma crítica em relação à concepção de Foucault sobre a psicanálise quanto a esse aspecto, apontando sua ambivalência ao tratar do tema: "Parece que o 'Freudismo', apesar de aparentemente movido por essa vontade de dizer o sexo, introduziu nas zonas estratégicas da scientiasexualis uma suspeita determinante" (p.59).

Que suspeita é essa? É exatamente sobre o sentido dela que pretendemos interrogar se o movimento freudiano se encontra entre a ruptura e o transvalorar. Parece que a estratégia de Freud ao instaurar outra forma de conceber noções de época que existiam há três séculos foi determinante para marcar sua diferença.

Assoun (1987), defensor da originalidade freudiana, ainda aponta a rápida evidência da discordância entre o "freudismo" e a sexologia:

[...] mas logo se evidencia que o primeiro momento, sexológico - aliás originalmente elaborado através de uma classificação das perversões (em termos de valorização de 'objeto' e de 'objetivo' ) - destinava-se a introduzir a tese principal: a 'omissão da criança no estudo da sexualidade'. Foi com essa virada, executada com a habilidade do primeiro para o segundo ensaio - intitulado ' A sexualidade infantil' - que Freud como que disse adeus ao esquema sexológico clássico. É que ficou claro que a 'omissão' devia ser atribuída não apenas à concepção da sexualidade em geral, mas também à moderna sexologia proposta. O gesto freudiano consistiu em buscar na infância libidinal as raízes das patologias dos adultos. Mas, ao fazê-lo, ele modificou a própria noção de patologia sexual (p.58).

É mais precisamente sobre a forma como Freud rompe com essa "omissão" da criança em relação à sexualidade, ou mesmo, como separou conceitos e degenerescência e desvio na perversão, que trouxe consequências para a reviravolta das noções de normal e patológico. Introduziremos essa "forma" encontrada por ele para superar a noção de sexualidade e de infância, o que nos parece ser o germe para uma possível transvaloração operada pelo inventor da psicanálise.

Apontamos aqui para duas operações: uma de ruptura e outra de transvaloração que não são excludentes entre si, mas uma não necessariamente inclui a outra. Por exemplo, para transvalorar realiza-se uma ruptura, mas nem toda ruptura contém os passos de uma transvaloração. Assim, gostaríamos de interrogar se o pensamento de Freud em relação à sexualidade chegou a uma transvaloração ou permaneceu apenas como ruptura ao pensamento existente.

 

Freud: transvaloração ou ruptura?

Um exemplo muito preciso do que estamos tentado abordar encontra-se referido nos dois primeiros ensaios dos Três ensaios sobre a sexualidade, em que Freud (1905/1992) constrói algumas inversões sobre o conceito das perversões, relativas tanto a opinião popular quanto aos cientistas das ciências sexuais da época. Conforme Laplanche (1997): "Quando se lê um texto tão violento quanto os Três ensaios sobre a teoria sexual, o futuro desvio instintual é muito difícil de prever" (p. 22). E continua:

O excelente prefácio de Michel Gribinski à edição Gallimard marca bem o caráter polêmico e forte deste livro. Mesmo que, como ele também lembra, muitas coisas que se encontram nesta obra já fossem 'velhas' (como se diz) - e não se deixou de dizer que Freud apenas reuniu elementos que estavam espaços por toda parte - essa reunião não deixa de ser explosiva (p. 23).

É exatamente esse modo explosivo comentado por Laplanche (1997) que gostaríamos de manter. Ele continua, nessa mesma direção, apontando a característica profundamente perversa dessa obra. Para um leitor desavisado, afirma que esse caráter inteiramente subversivo poderia ser negligenciado. O que isso seria então? Segundo o autor, seria o relato da ausência de normas na sexualidade humana.

Tais inversões têm sentido e direção. Vejamos quais são eles: o primeiro aspecto a ser retratado por Freud (1905/1992) é o caráter da pulsão sexual, em que questiona a "naturalidade" encontrada na relação entre pulsão e objeto. O autor deixa claro, portanto, a composição entre a moral cristã e o seu conhecimento no que tange ao tema das perversões. Em relação à opinião popular sobre a pulsão sexual, comenta sobre o equívoco do fato de se acreditar estar ausente na infância e em achar que se encontraria apenas no encontro de um sexo pelo outro. Afirma Freud: "Mas temos plena razão para ver nesses dados uma imagem muito infiel da realidade; olhando-os mais de perto, constata-se que estão repletos de erros, imprecisões e conclusões apressadas" (p.123). Esses achados de Freud são inicialmente resultados de uma inversão sobre a noção de perversão.

O primeiro dos três ensaios, portanto, encontra-se na contramão da história3. Como nos aponta Rodrigué (1995), Freud "mostra que o sexo supera em muitos os limites impostos pelas teorias instintivistas" (p.121) e, apesar de citar e de comentar diversos teóricos da época a respeito da sexualidade, Freud (1905/1992) deixa nítidas algumas restrições em relação aos pensadores da scientia sexualis:

Tornou-se costume imputar à degeneração todos os tipos de manifestação patológica que não sejam de origem diretamente traumática ou infecciosa. A classificação dos degenerados feita por Magnan faz com que nem mesmo a mais primorosa conformação geral da função nervosa fique excluída da aplicabilidade do conceito de degeneração. Nessas circunstâncias, pode-se indagar que benefício e que novo conteúdo possui em geral o juízo 'degeneração' (p.126).

Por meio do conceito de perversão, Freud realiza a sua segunda inversão: relativa ao pensamento médico-legal. Aqui, seu objeto de oposição são os cientistas da época que acreditavam ser a inversão um sinal de degenerescência nervosa. Para Freud, nem a degenerescência, nem o caráter inato são fontes de explicações universais para tal conceito. O autor, portanto, se opõe a uma posição absolutista do discurso médico.

Basicamente, podemos resumir essas restrições em duas proposições: 1- Algumas formas de degenerescência não são degenerescências: "vários fatos fazem ver que os invertidos não são degenerados nesse sentido legítimo do termo" (p.126) e 2- A concepção bissexual não é de origem orgânica: "é preciso reconhecer, portanto, que inversão e o hermafroditismo somático, são, em linhas gerais, independentes entre si" (p.129).

Segundo Freud (1905/1992), só podemos falar em degeneração apenas quando "1- houver uma conjugação de muitos desvios graves em relação à norma; 2- a capacidade de funcionamento e de sobrevivência aparecer em geral gravemente prejudicada" (p.126).

O segundo objeto de estudo de Freud para completar a sua inversão é o fetichismo: "Uma impressão muito peculiar resulta dos casos em que o objeto sexual normal é substituído por outro que guarda certa relação com ele, mas que é totalmente impróprio para servir ao alvo sexual normal" (p.139). Nesse ponto, acirra sua descronstrução, pois ao falar de fetichismo, patologia privilegiada pelos sexólogos, continua o seu processo e inversão. Assim, podemos acrescentar mais dois elementos: o normal e o patológico:

O ponto de ligação com o normal é proporcionado pela supervalorização psicologicamente necessária do objeto sexual, que se propaga inevitavelmente por tudo o que está associativamente ligado ao objeto. Por isso certo grau desse fetichismo costuma ser próprio do amor normal, sobretudo nos estágios de enamoramento em que o alvo sexual normal é inatingível ou sua satisfação parece impedida (pp.139-140).

As teses supracitadas sobre a relação intrínseca entre pulsão e objeto fazem parte do que estamos chamando de as duas primeiras inversões. O outro movimento é retirado da interpretação sobre o fetichismo, como nos referimos acima. Temos então uma inversão relativa à opinião popular e outra inversão mais contundente sobre as teses científicas. Ambas as concepções (popular e científica) indicam uma íntima e natural ligação entre a pulsão sexual e o objeto sexual, que aponta uma inversão, e outra relativa à concepção das noções de normal e patológico a partir do fetichismo. Portanto, somam-se duas inversões importantes:

A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto (p.134).

Assim, desfazendo a relação culturalmente, ou mesmo moralmente, estabelecida entre pulsão e objeto, pode-se realizar uma primeira hipótese de transvaloração: "[...] mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas como perversões [....]. Aí estão, portanto, fatores que permitem ligar as perversões à vida sexual normal e que também são aplicáveis à classificação delas" (p.136).

Dessa mesma forma, numa aproximação realizada entre Nietzsche e Sade por Giacóia Junior (1997): "é por isso que a perversão, a contranatureza, é essencial ao desejo e ao prazer" (p.162). Mas o que deverá ser observado, para o propósito deste presente texto, é a comparação de Niezsche com Sade, servindo como trânsito para um questionamento quanto ao pensamento freudiano, pois em Freud encontramos, da mesma forma, que o prazer "normal" é constituído pelo prazer "perverso".

Segundo Freud (1905/1992), a maioria das transgressões citadas pelos autores das ciências sexuais é constituída de componentes que raramente faltam na vida sexual das pessoas normais. Poderíamos considerar Freud, nesse aspecto, também um "imoralista". Desse modo, o autor está revirando o conceito de normal e patológico, o que era considerado normal contém germes da patologia e o que é patológico também se encontra em pessoas normais: "Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão" (p.146).

O autor realiza sua reviravolta em relação aos conceitos de normal e patológico, sexualidade e perversão, porém conserva aspectos retirados da fonte de suas críticas. De aspectos que seriam imputados pela ciência sexual da época como negativos, Freud retira-lhes o caráter meramente moral e os transforma em valores positivos à medida que são encontrados em qualquer personalidade normal. Essa transmutação da negatividade para a positividade também faz parte do processo de transvalorar, o que não retira, ainda na concepção freudiana, os "restos" das teorias vigentes que se tornam diferentes quando tomados sob outra perspectiva, como por exemplo, o que faz um traço ser considerado realmente patológico.

Eram exatamente as características de exclusividade e fixação que definiriam uma patologia, ou melhor, "a exclusividade e a fixação fazem a diferença" (Rodrigué, 1995, p.120). Ambas resultariam de vivencias infantis "com a significação das impressões sexuais precoces" (Freud, 1905/1992, p.140). Logo, parece que o caráter exclusivo e fixo de uma meta preliminar é determinado por fatores da vida infantil do indivíduo, que se torna patológica na medida em que esses fatores não sofreram o processo de repressão e continuam atuando na vida adulta:

Na maioria dos casos podemos encontrar o caráter patológico da perversão, não no conteúdo do novo alvo sexual, mas em sua relação com a normalidade. Quando a perversão não se apresenta ao lado do alvo e do objeto sexuais normais, nos casos em que a situação é propícia a promovê-la e há circunstâncias desfavoráveis impedindo a normalidade, mas antes suplanta (verdrangen) e substitui o normal em todas as circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la como um sintoma patológico (pp.146-147).

Podemos remarcar que Freud não se abstém de conceitualizar o caráter patológico, permitindo assim, uma continuidade em relação à uma concepção dualista entre normal e patológico. Não obstante, a medida para sua demarcação será outra, realizada sob outros parâmetros e não mais sob o judicie do olhar da moral cristã4.

Existe toda uma categorização do pecado que está implicada na determinação da época para as perversões. Essas determinações pecaminosas, de origem católica, apontam para uma relação muito íntima entre as patologias apresentadas pelos sexualistas e as leis da moral cristã. Acrescenta Ellemberger (1994) que "Remy de Gourmont dizia que as noções de patologias sexuais surgiram de duas fontes principais: as obras de teólogos católicos e dos autores pornográficos" (p.326).

Apostamos na originalidade freudiana. Possivelmente, o campo já estava nomeado, mas foi por Freud pervertido5. Não se trata, portanto, de mudar a nomenclatura ou de trabalhar com os opostos. Freud realizou uma dupla reversão, mas será que podemos considerá-la uma transvaloração dos valores ou uma ruptura dos conceitos?

O primeiro ponto a ser considerado são as duas reversões apontadas acima, uma relativa ao pensamento médico e outra relativa ao binômio normal/patológico. Para essa operação, Freud teve de realizar algumas negações: a pulsão não tem uma relação natural ou intrínseca com seu objeto; não existe degenerescência em algumas situações de perversão (tipo inversão) e o caráter biológico de tais desvios não se explicam por si mesmos. Ou seja, Freud elucida como a moralidade embutida nessas relações impedia o conhecimento sobre elas.

Mas o fato de realizar negações e, posteriormente, inversões, apesar de serem fundamentais para transvalorar, também não justificam por si só uma transvaloração de valores. São necessárias ainda mais duas condições, a saber: abarcar os opostos e a contradição, mantendo a tensão e incluindo o criticado, bem como realizar a operação da superação.

Caso Freud tivesse realizado a negação e a inversão, apenas transformação em opostos, como por exemplo: o que era normal vira patológico e o que seria patológico se transforma em normal, estaríamos possivelmente no âmbito de uma ruptura. Porém, a tensão permanece na sua obra. Temos em Freud, especialmente, a continuidade do padrão de reprodução da espécie como parâmetro para sua época que alimenta a grande tensão na obra. Se a pulsão não tem uma relação intrínseca com seu objeto, como a reprodução será seu alvo final?

Entretanto, o que fez pesar a báscula para o lado da transvaloração foi exatamente a superação da noção de sexualidade, pois essas negações e inversões tiveram suas metas alcançadas, que seria possibilitar o pensamento sobre as vicissitudes da sexualidade infantil. Esta realizou uma reviravolta na própria psicanálise e no pensamento moderno cristão relativo à inocência e à pureza infantil.

O que podemos observar, em relação à sexualidade infantil, é que também Freud fez uma dupla transvaloração. Uma em relação aos valores de normal e patológico e em relação à concepção de sexualidade existente. Outra, que transformou o pensamento que veio depois dele, abarcando toda obra e além dela6.

A partir da transvaloração do valor da perversão, e somente a partir disso, Freud pôde aproximar as noções de perversão e sexualidade infantil. Essa aproximação é sua determinação fundamental: serve para redefinir a noção de sexualidade e é uma crítica implícita à moral cristã, que encampa a inocência infantil como teoria vigente. Consequentemente, podemos comentar a primeira relação feita por Freud entre perversão e sexualidade infantil: a fixação e a exclusividade de alguma meta preliminar são determinadas por vivências infantis. A segunda relação a ser esclarecida é a decomposição da pulsão. Segundo o próprio Freud (1905/1992):

Com isso podemos ter um indício de que talvez a própria pulsão sexual não seja uma coisa simples, mas reuna componentes que voltam a separar-se nas perversões. A clínica nos alertaria, portanto, para a existência de fusões que perderiam sua expressão como tais na conduta normal uniforme (p.148).

E continua em outro fragmento:

Mas devemos dizer ainda que essa suposta constituição que exibe os germes de todas as perversões só é demonstrável na criança, mesmo que nela todas as pulsões só possam emergir com intensidade moderada. Vislumbramos assim a fórmula de que os neuróticos preservaram o estado infantil de sua sexualidade ou foram retransportados para ele. Desse modo, nosso interesse volta-se para a vida sexual da criança, e procederemos ao estudo do jogo de influências que domina o processo de desenvolvimento da sexualidade infantil até seu desfecho na perversão, na neurose ou na vida sexual normal (p.156).

 

Conclusão

Psicólogos e decifradores de enigmas: assim compara sugestivamente Giacóia Junior (1997), em seu ensaio sobre uma interpretação da figura de Jesus do ponto de vista do anticristo nietzschiano. Certamente, podemos realizar sem nenhum desespero essa comparação, pois ambos interpelam a realidade sem tomá-la como absoluta ou óbvia. Em ambos, percebemos uma linha de conflito permanente, seja de modo dualista (Freud) ou de modo pluralista (Nietzsche). Acrescenta o autor: "tanto em Freud quanto em Nietzsche a reconstituição 'histórica' da gênese cultural do ocidente realiza-se a partir de noções como culpa, remorso, ressentimento, esquecimento, memória e repetição" (p.84). Os dois podem ser considerados, no sentido nietzschiano do termo, "imoralistas":

No fundo são duas as negações que o termo imoralista contém em si. Em primeiro lugar, nego um tipo de homem até então considerado como tio supremo, os bons, benevolentes, beneficentes; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, como moral em si, conquistou vigência e domínio - a moral da decadence, dito de maneira mais palpável, a moral cristã (Nietzsche, 13,VI, citado por Giacóia Junior, 1997, p. 30).

No mundo moderno, a existência de um filósofo que irá criticar e inverter os valores do pensamento moderno serve-nos de base para compreendermos sobre a forma como esses valores foram deslocados, pois esse modo de operar sua literatura talvez tenha colocado a possibilidade de uma subversão na história da filosofia. Foi na condição de filósofo radical, crítico do pensamento moderno e, utilizando o procedimento genealógico, que enfrentou a condição de originalidade e criação, por isso pode ser considerado um gênio para o nosso tempo.

Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fez dela um discurso no sentido de uma patologia, além de considerar a doença como um ponto de vista sobre a saúde e vice-versa. Foi como assim o relata Corman (1982), um percursor genial de Freud, principalmente, dentre outras coisas, por considerar o papel privilegiado do inconsciente, domínio essencialmente da vida instintiva.

Freud, do mesmo modo, provocou uma suspeita determinante no pensamento moderno, foi criador e autor, também gênio para nosso tempo. Dentre muitas conquistas, a superação da sexualidade é pilar em sua obra, conforme relata Monzani (1989): "O mérito de Freud não foi somente o de falar de uma sexualidade infantil, ou de ter realizado um recuo temporal, [....] Freud operou uma reconstrução absolutamente inédita na semântica da sexualidade" (p.31).

Muito possivelmente uma comparação entre gênios se faça sempre pertinente, porém, ainda nos restam dúvidas sobre a questão colocada no título deste trabalho: Freud realizou em relação à sexualidade uma ruptura ou uma transvaloração?

Apontamos para uma transvaloração por se tratar de operações de negação, inversão e superação; e que além de uma mudança no pensamento, provoca uma crítica aos fundamentos da moral cristã. Porém, nos resta um incômodo nesta aproximação realizada a partir desse trabalho: a intencionalidade em Nietzsche faz a diferença quanto ao propósito de uma comparação da transvaloração para ambos. Nossa hipótese sobre uma possível transvaloração em Freud, se de fato ocorre como a preconizamos, ela ocorre aparentemente sem essa "intenção maior" de uma crítica ao pensamento moderno cristão, apesar de assim mesmo realizá-la.

Esse fator justificaria uma crítica à tal aproximação realizada pelo presente trabalho, pois poderíamos colocar Freud também como um dogmático, pelo fato de ser um fundador de um certo tipo de pensamento. Mas o que se apresenta como relevante é que, nesse caso, um pensamento originário não está separado de um modo fundante para realizá-lo. E esse mesmo modo seria a partir da nossa perspectiva a transvaloração. Certamente que existem diferenças grandes entre ambas as transvalorações, principalmente a intencionalidade de cada uma delas e, essencialmente, as condições de existência e de conservação de cada uma delas: uma, a crítica filosófica e outra, a psicanálise em criação.

Responder à questão apontada no título foi uma dificuldade que se apresentou a cada instante e resistiu numa tensão constante. Agora, podemos apontar que a suspeita determinante, resultada da operação de transvaloração nos dois primeiros ensaios sobre a sexualidade de Freud, possibilitou a criação de um novo campo, mas, muito mais um campo de tensões do que um campo dogmático.

 

Referências

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Corman, L. (1982). Nietzsche psychologue des profundeurs. Paris: Presses Universitaires de France.         [ Links ]

Ellenberger, H. F. (1994). Histoire de la decouverte de l'inconscient. Paris: Fayard.         [ Links ]

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Foucault, M. (2003). História da Sexualidade: a vontade de saber. (15ª ed.). Rio de Janeiro: Graal. (Obra original publicada em 1976).         [ Links ]

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Giacóia Junior, O. (1997). Labirintos da alma. Nietzsche e a auto-supressão da moral. Campinas: Unicamp.         [ Links ]

Huisman, B. &Ribes, F. (1992). Les philosophes et le corps. Paris: Dunod.         [ Links ]

Laplanche, J. (1997). Freud e a sexualidade. O desvio biologizante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Marton, S. (1993). Nietzsche e a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna.         [ Links ]

Monzani, L.(1989). Freud: movimento de um pensamento. Campinas: Unicamp.         [ Links ]

Rodrigué, E. (1995). Sigmund Freud, o século da psicanálise 1895-1995. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Valas, P. (1990). Freud e a perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Recebido/Received: 02.02.2015/02.02.2015
Aceito/Accepted: 03.08.2015/08.03.2015

 

 

1 Para o presente trabalho foi usada parte da tradução das obras de Nietzsche da coleção Os Pensadores e parte do livro Les Philosophes et le Corps de Huisman & Ribes.
2 Segundo Ellenberger (1994), Freud não rompe com a concepção relativa à mulher. Ele parece admitir a inferioridade intelectual da mulher, pois em um dos seus primeiros escritos, atribui esta inferioridade a um recalcamento mais intenso. Mais tarde vem falar de um masoquismo natural da mulher. Este não será objeto deste trabalho, mas vale ressaltar que essa transvaloração realizada por Freud relativa à noção de sexualidade, moralidade, perversão, normal e patológico, não inclui a parte da mulher, permanecendo como seus contemporâneos também a consideravam.
3 O primeiro dos três ensaios é pouco eleito pelos comentadores de Freud. Laplanche (1997) o identifica, apoiando-se em afirmativas inclusive do próprio Freud, que esse primeiro ensaio é apenas uma compilação de argumentos, sem qualquer vontade de originalidade. Já Monzani (1989), enfatiza seu parecer contrário: "o primeiro ensaio situa-se num plano essencialmente polêmico" (p. 28) e "[...] o primeiro dos três ensaios é a longa e a paciente desmontagem desse conceito de sexualidade" (p. 29). Rodrigué (1995) afirma: "O primeiro ensaio, em aparência, não inova. Parte de um saber constituído que não tenta continuar ou refutar, mas perverter" (p.121).
4 Neste aspecto vale à pena ressaltar que Freud permanece dualista na forma de abordar o conflito, e Nietzsche é pluralista, que favorece a uma diferença na abrangência do pensamento de ambos, Nietzsche é neste aspecto mais amplo, mais radical, se é que podemos assim comparar dois pensadores de forma tão simples.
5 Essa perversão de conceitos utilizada por Freud foi comentada, além de Rodrigué (1995), por outros autores como Laplanche (1997).
6 Ainda resta uma dúvida: se o pensamento de Freud apesar de ter transvalorado, ele foi incorporado pelo pensamento moderno, será que mesmo assim poderemos considerá-la como tal ?

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