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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.6 São João del Rei jan./jun. 2015

 

Freud e Arendt: a emancipação como princípio do laço social

 

Freud and Arendt: emancipation as a principle of social lace

 

Freud et Arendt: l'émancipationcomme un principe de lien social

 

Freud y Arendt: laemancipación como un principio de vínculo social

 

 

Leandro Nogueira dos Reis

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Alegre-ES. (FAFIA) lnogueirareis@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo traçar algumas articulações entre psicanálise e política e,para realizar este intuito, primeiro recorre a Arendt verificandopor meio de que conceitos ela desenvolve sua teoria. Cumprida esta primeira etapa empreende-se uma incursãoem Freud para investigar as características do laço social, assim como os conceitos a ele relacionados. Só então se inicia a articulação entre as duas áreas, pois, visto que o laço social se caracteriza por sua generalidade, a política é pensada enquanto dispositivo específico e situado historicamente. Em seguida, tanto a psicanálise quanto a política são consideradas em seus aspectos emancipatórios, e se por questões ligadas a constituição do laço social a política encontra obstáculos a sua efetivação, busca-se evidenciar as contribuições da psicanálise na superação dos mesmos.

Palavras-chave: psicanálise; política; laço social; emancipação.


ABSTRACT

This article has as objective to trace some articulations between psychoanalysis and politcs, and in order to accomplish this aim, it first appeals to Arendt verify whereby concepts she developher theory. Once done this first step it engages a scientific research on Freud to investigate the characteristics of the social lace,even as the concepts related to it. Only then begin an articulation between these two fields, seeing that the social lace is characterized by its generality, the politics is thought being a specific device historically situated. After, both psychoanalysis and politics are considered in their emancipatory aspects, and if for questions linked to the constitution of the social lace the politics finds obstacles in order to get its achievement, it concerns to evidence the contributions of the psychoanalysis on overcoming them.

Keywords: psychoanalysis; politics; social lace; emancipating.


RÉSUMÉ

Cet article vise à tirer des liens entre la psychanalyse et de la politique et, pour atteindrecetobjectif, utilised'abord Arendt vérifieroù les concepts qu'ildéveloppesathéorie. Accompli cette première étape à entreprendreun raid sur Freud à étudier les caractéristiques du lien social, ainsique les concepts qui luisontliés. Seulement commence alors la relation entre les deuxdomaines, car, comme le lien social estcaractérisé par sagénéralité, la politiqueestconçuecomme un dispositifspécifique et historiquementsituée. Ensuite, à la fois la psychanalyseet de la politiquesontconsidéréesdansleurs aspects émancipateurs et questions pour la constitution du lien social sont les obstacles politiques à son efficacité, nous cherchons à mettre en évidence les apports de la psychanalyse pour les surmonter.

Mots-clés: la psychanalyse; la politique; lien social; émancipation.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo delinearalgunasarticulaciónes entre elpsicoanálisis y la política y, para lograr este objetivo, utiliza primero Arendt verificando mediante que conceptos elladesarrollasuteoría. Cumplida esta primera etapa se emprendeuna incursiónen Freud para investigar las características del vínculo social, así como los conceptos a élrelacionados. Sóloentoncescomienzalarelación entre las dos áreas, ya que, como ellazo social se caracteriza por sugeneralidad, la política es pensada como un dispositivo específico e históricamente situado. En seguida, tanto elpsicoanálisis y la política son consideradasen sus aspectos emancipatórios. Y si por cuestiones ligadas a laconstitucióndellazo social la política encuentra obstáculos a suefectuación, se busca evidenciar lascontribucionesdelpsicoanálisis em lasuperación de losmismos.

Palabras-clave: elpsicoanálisis; la política; vínculo social; emancipación.


 

 

É bastante comum na atualidade nos depararmos com uma postura, senão avessa, ao menos incompatível com um processo argumentativo aberto e franco. Tal incompatibilidade, a nosso ver, deriva de um posicionamento em que dúvidas e questionamentos parecem não exercer a devida função crítica, tornando a opinião vigente portadora de soluções precisas e definitivas. Deste modo, independente de qual seja o conteúdo do discursoaí defendido, o que se tem como consequência é a desqualificação das divergências, assim como a rotulação dos interlocutores. Este fenômeno torna-se ainda mais evidente quando observamos as discussões travadas nas redes sociais, pois, além de permitir em um mesmo ambiente a reunião das mais diversas opiniões, permite também a formação de variados grupos que interagem entre si.

Atribuímos à atitudeacima descrita o não reconhecimento daquilo que consideramos ser o mais fundamentalpara a promoção das relações políticas, a saber, o contato com a alteridade. Aliás, mais do que um não reconhecimento da alteridade, inerente a toda e qualquer relação humana, entrevemos inclusive um anseio em expurgá-la da sociedade. Neste sentido, por considerarmos que esta atitude se sustenta em uma posição narcísica, fixada nos ideais do eu, julgamos pertinente realizar uma investigação sobre o que a teoria psicanalítica poderia nos dizer sobre tal questão. Pois, desde que se debruça sobre as questões referentes às neuroses e ao inconsciente, o legado freudiano tem sido um instrumento sem igual na análise do psíquico e, portanto, das posições que o sujeito adota em relação ao Outro.

Em outras palavras, pretendemostraçar algumas articulações entre a psicanálise e a política e, a partir de suas intercessões, verificar se, e de que modo, a psicanálise podecontribuir para uma reflexão no âmbito político. Com este intuito, para nos situarmos em relação ao que foi produzido enquanto saber no campo da política, tomaremos como referência o pensamento desenvolvido por Arendt, dando ênfase especial ao percurso traçado em A condição humana (1958/1987). Nossa opção por trabalhar o problema em interlocução com esta autora se justifica pela importância que lhe é atribuída enquanto teórica dessa área. E também porque notamos a fecundidade das aproximações entre as principais noções arendtianas e questões recorrentemente discutidas pela psicanálise.

Como um breve exemplo desta fecundidade poderíamos destacar a noção de pluralidade. Se para Arendt a pluralidade se refere a uma diferença constitutiva entre os homens - ao fato de que, mesmo compartilhando um mundo em comum, os homens possuem diferentes pontos de vista -, para a psicanálise, mesmo que sejam constituídos a partir de um mesmo discurso normativo, os homens guardam sempre o caráter de umasingularidade.Vejamos, portanto, que já neste ponto os problemas levantados por Arendt e pela psicanálise possuem um importante aspecto em comum, pois para ambas a singularidade do sujeito implica, mais do que suas diferenças em relação ao outro, a variabilidade das formas de posicionamento, seja em relação ao mundo ou perante o discurso social vigente. Antes, porém, de abordarmos e discutirmos os pontos de intersecção entre esses pensamentos, faremos uma breve exposição sobre a forma como a autora trabalha a noção de política.

 

Hannah Arendt e a noção de política

A política para Arendt não é algo inerente ou essencial aos seres humanos, mas algo que possui um caráter pontual no tempo e no espaço. O surgimento da política, que para ela coincide com o surgimento da polis grega, se liga intimamente às experiências que existiam dentro do homérico. Isto é, as possibilidades de uma vida entre iguais encontram seu modelo no épico, em que a liberdade e a coragem eram as condições para se alcançar a fama imortal ou imortalidade mundana. É neste aspecto que a autora se refere à frase de Péricles: "a polis precisava ser fundada para assegurar um paradeiro para a grandeza do fazer e do falar humanos, que fosse mais seguro do que a memória que o poeta fixava no poema, tornando-a duradoura" (Arendt, 1993/2009, p. 55). É como se o acampamento do exército de Homero não fosse desfeito a não ser com o regresso à pátria e a fundação da polis, onde encontraria um espaço de reunião permanente.

A política nesta época, como defende a autora, se fundamenta nas ideias de liberdade, igualdade e pluralidade. E enquanto a ideia de pluralidade nos remete às diferenças entre os homens, a de igualdade é o que nos permite falar de uma liberdade política, pois diz respeito a uma questão hierárquica, à isonomia ou isogoria em que cada um tem o mesmo tempo e espaço para se manifestar. A pluralidade, portanto, ainda que comporte a igualdade, se refere ao fato de que a esfera pública conta com a presença simultânea de inúmeras perspectivas. Ao fato de que "o lugar de um não pode coincidir com o de outro, da mesma forma que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço" (Arendt, 1958/1987, p. 67).

Devemos frisar, entretanto, que essas ideias a partir das quais se constitui a política se referem exclusivamente ao espaço público. Se a família, como lócus da vida privada, é o centro da mais severa desigualdade, a polis como espaço público por excelência dela se difere principalmente por permitir a igualdade entre os cidadãos. Nela ser livre significa não estar sujeito às necessidades da vida e nem ao comando de outro, não dominar nem tampouco ser dominado. É por este motivo que na esfera familiar a liberdade não poderia existir, pois o chefe da família só era considerado livre à medida que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais.

Para compreendermos as condições de uma política amparada nos valores ou ideias acima citados é necessário recorrermos ao que se entendia por vitaactiva. Expressão que designava a vida humana enquanto empenhada em realizar algo, e comportava três atividades fundamentais: o labor, o trabalho e a ação. O labor, como a mais básica, era a atividade a partir da qual os homens garantiam sua subsistência, e embora desprezado por ser considerado servil possuía uma importância fundamental para a constituição da vida política. Mesmo estando relegado ao âmbito familiar, ao permitir a vitória sobre as necessidades ele se apresentava como condição para a liberdade na polis.Eera a posse de escravos que permitia ao cidadão ocupar-se dos assuntos públicos, pois o homem livre, ainda que não estivesse à disposição de um senhor, poderia ser forçado pela pobreza a prover para si os meios de sua subsistência.

Diferente do labor que não deixava nenhuma obra digna de ser lembrada, como no caso da escultura e da pintura, o trabalho possuía um valor intermediário, sendo considerado de acordo com o esforço empregado em sua realização. Não obstante, das atividades componentes da vitaactiva, a única realmente valorizada era a ação, pois se referia diretamente à atividade política. Cabe frisar ainda sua indissociabilidadecom o discurso, pois, como afirma Arendt: "a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens" (1958/1987, p. 189).

Outra característica importante da ação é que, pelo fato de os homens agirem e falarem diretamente uns com os outros,ela possui necessariamente um caráter imprevisível, o que se deve, além da pluralidade que lhe é característica, à sua qualidade de iniciar sempre algo novo e inesperado. Além do mais, de acordo com a autora, por implicar uma teia preexistente de relações humanas, "com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela produz histórias" (Arendt, 1958/1987, pp. 196-197).

Trata-se aqui de uma noção moderna de história, em que esta é considerada como um processo e, por isso, sempre imprevisível. Tal noção implica que ninguém é autor da sua própria história, certamente alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor no sentido de quem cria ou inventa algo. Sendo assim, a ideia de sujeito histórico, aqui apontada pela autora, nos permite pensar tanto as determinações quanto a liberdade do agente e, neste aspecto, torna possível entrever algumas interfaces entre o sujeito da psicanálise e aquele que é envolvido na ação política.

Se em determinado momento coube ao próprio Freud superar a teoria da sedução traumática, substituindo um evento datável por uma realidade imaginária ou fantasística - o que implica uma atividade do sujeito em sua construção -, uma das contribuições posteriores à psicanálise foi a valorização, permitida pelos textos freudianos, do real que alicerça essa ficção. Valorizar este real, por sua vez, implica em perceber que os cuidados dispensados à criança se constituem como uma fonte incessante de geração de prazer. E por este motivo, a relação entre o adulto que cuida e a criança em situação de desamparo possui desde muito cedo, antes mesmo da aquisição verbal, uma estrutura de linguagem.

Por ser o adulto o portador da cultura ele propõe à criança uma série de significantes impregnados de significações sexuais inconscientes, e é neste sentido que se fala de uma sedução originária (Laplanche, 1987/1992). Não obstante, o que mais nos interessa nessa discussão é que ela nos permite pensar a constituição do sujeito em relação ao Outro. Se Arendt nos fala de uma dupla acepção do termo sujeito, é a partir da oposição atividade/passividade que a psicanálise nos permite apreendê-la, pois, ainda que este seja capaz de agir ativamente de acordo com seus desejos e pretensões, ele se constitui a partir de fatores que lhes são contingentes: a cultura na qual será inserido; e a presença do Outro cujos desejos sempre se apresentam como enigmas. Em suma, um dos méritos compartilhados por Arendt e pela psicanálise consiste em superar o falso antagonismo entre liberdade e determinação. E ao permitir assinalar, para além das contingências,o papel ativo do sujeito evidenciam também seu estatuto ético.

Não pretendemos nos alongar além do necessário nas formulações arendtianas a respeito da política. Cabe destacar, entretanto, que por uma série de razões históricas a importância que se conferia à ação na antiguidadevai gradualmente perdendo sua significação. A ideia de governo, que se origina no âmbito familiar e se caracteriza por sua estrutura hierárquica, acaba suplantando os ideais de uma política plural e igualitária. Além do mais, se na antiguidade o governo implicava na existência de um chefe que centralizava o poder, na modernidade o peso dos números em torno de uma opinião permite a construção de um discurso hegemônico em que facilmente se prescinde de um chefe, pois as ideias e bandeiras, muitas vezes propagadas por veículos de comunicação em massa, cumprem ao seu modo esta função.

Embora Arendt privilegie uma noção libertária de política - estruturada em torno das ideias de liberdade, igualdade e pluralidade - é forçoso reconhecer que raramente na história da humanidade se viu o triunfo de tais valores, e se os mesmos vigoraram em determinado momento da história é difícil avaliar até que ponto operavam na prática. Assim sendo, ao utilizar o termo política ela se refere às mais variadas formas de organização, como por exemplo, aos regimes totalitários. Ou seja, emprega-o ao que mais se opõe à noção por ela privilegiada, pois o que caracteriza o totalitarismo é serautoritário, hierárquico e massificado. É certo também que a amplitude semântica do termo não se restringe à pena da autora. Nos dicionários de filosofia ele é difinido como o que "diz respeito à vida coletiva num grupo de homens organizados" (Lalande, 1999, p. 822). Ou como "arte ou a ciência do governo (...) e estudo dos comportamentos intersubjetivos" (Abbagnano, 2007, p. 900).

Dentre os psicanalistas encontramos uma definição que, por explicitar o papel do poder, nos chama bastante a atenção: "o que torna a política uma teoria das relações sociais não é sua referência ao âmbito público (...) mas seu interesse pelas estruturas dinâmicas do poder e da autoridade", dimensões estas "implicadas em todas as outras relações sociais, inclusive as da família" (Brunner, 2000, p. 78).

Considerando as definições acima citadas percebemos que elas têm em comum basicamente os mesmos elementos, relacionando a noção de política às ideias de coletividade, organização e poder. Como este caráter geral não nos permite fazer uma delimitação precisa entre a política e outras modalidades de relação social - como as familiares e religiosas -,é preciso pensar, ainda que em termos de tendências, aquilo que está recoberto por cada uma dessas ideias. E embora um esforço distintivo neste aspecto possa parecer algo arbitrário, esperamos que ele abra caminhos para uma noção mais clara e operacional de política, permitindo delimitar com maior precisão o sentido do problema colocado pelos autores em discussão.

Apenas para evidenciar melhor o impasse podemos disporda discordância que se nos apresenta. Se para Brunner, que é um psicanalista, o que define a política é menos sua referência ao público do que seu interesse pelas relações de autoridade e poder, para Arendt a política se refere exclusivamente à vida pública. Além do mais, nos esforços que a autora realiza para circunscrever a noção de política, é com frequência que recorre à distinção entre o político de um lado e o familiar ou social de outro, sendo cada um desses campos definido justamente pelas formas como se dão as relações de poder (político) e/oude autoridade (chefe da família ou do estado). Antes, porém, de nos ocuparmos com esta discussão é preciso estabelecer os fundamentos do laço social e verificar em que ele consiste, de que modo se constitui e quais suas implicações numa rede de relações humanas.

Com este intuito julgamos pertinente iniciar nosso trajeto pelo legado freudiano, privilegiando os textos em que se abordam as relações do sujeito com o social, mas sem com isso descuidar das questões metapsicológicas que fundamentam a teoria psicanalítica. Neste aspecto, um exame atento dos conceitos a partir dos quais se elabora as relações sujeito/objeto (outro) é indispensável, pois, como afirma Freud, o desconhecimento da disposição humana geral se coloca como o maior obstáculo no caminho do processo civilizatório (Freud, 1933/1996). Devemos destacar ainda que, ao contrário do que se poderia pensar, a divisão dos textos freudianos em sociológicos e clínicos não se sustenta senão como divisão didática, poisem qualquer âmbito que se trate o problema é essencialmente o mesmo, a construção de uma teoria que antes de tudo é clínica, mas que por tratar do sujeito é levada necessariamente a se ocupar do social.

 

A constituição do sujeito e o laço social na teoria freudiana

Antes que a psicanálise se constituísse enquanto tal, em uma fase denominada pré-psicanalítica, a utilização da sugestão hipnótica como método terapêutico era largamente adotada. Há de se ter claro, entretanto, que o que caracteriza a psicanalise propriamente dita é a ruptura com as práticas sugestivas, assim comoa criação da livre associação. Notemos, porém, que embora estaruptura se dê na própria origem de sua clínica, a sugestão como fenômeno nunca deixou de ser um problema para a psicanálise. Devido à proximidade com a ideia de transferência, ela teve de ser constantemente pensada na condução do tratamento. E além do mais, assim como a transferência, sua abrangêncianão se restringe à relação médico/paciente, manifestando-se amplamente nas relações sociais.

Em Psicologia de grupos e a análise do eu (1921/1996), Freud observa que, em certas condições, quando o indivíduo está inserido em um grupo, ele pensa, sente e age de maneira inteiramente diferente do que seria esperado se não estivesse sob a influência do mesmo.E se por um lado tal influência ocasiona a queda das inibições individuais, deixando o caminho livre para a satisfação das pulsões destrutivas, por outropermite as mais elevadas realizações, manifestas sob a forma de abnegação, desprendimento e devoção a um ideal.

No que se refere à disparidade das disposições observadas atente-se às normas de funcionamento que regem o inconsciente. Assim como neste, nos grupos as ideias contraditórias "podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas" (Freud, 1921/1996, p. 90). Não obstante, o que chama mais a atenção é própria influência gerada pelo grupo, e Freud não se contenta em apontar a sugestão como causa das alterações observadas. Ele buscaexplicar sua natureza e as condições sob as quais ela ocorre, remetendo-nos para tanto ao conceito de libido. Isto é, às pulsões de vida recém-elaboradas,ou se preferirmos, ao Eros responsável pela união dos seres e cuja simples menção já nos suscita a ideia de laço.

Para Freud (1921/1996) a libido ou pulsão de vida é um elemento fundamental na constituição dos grupos e sustenta ao menos dois tipos de laço emocional: o laço com o líder, que para ele é o mais importante; e o laço que é mantido entre os demais membros do grupo. Diga-se de passagem, que o laço emocional com o líder indicaria um tipo de grupo mais primitivo e completo, ainda que uma abstração, em certos casos, possaassumir o lugar daquele. O mais indicado, entretanto, é que abordemos esta diferença entre os laços, assim como a relação entre o líder e sua função abstrata, a partir do processo identificatório.

A identificação, como aponta Freud, é a mais remota expressão de laço emocional e desempenha um papel fundamentalna estrutura edípica. Nela "um menino mostrará um interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele (...) toma o pai como seu ideal" (Freud, 1921/1996, p. 115). Em suma, ela consiste em moldar o eu de uma pessoa segundo características daquele que foi tomado como modelo, e possui uma relação muito próxima com a escolha objetal. Se em alguns casos, como no Édipo masculino,a pessoa tomada como referência assume o papel de rival com relação ao objeto,em outros, como no Édipo feminino, a partir da perda ou recalquea escolha objetal regride para uma forma de identificação. Além do mais, há uma modalidade de identificação que se baseia na percepção de uma qualidade em comum, independente de haver ou não relações com a escolha objetal. Seu mecanismo reside na possibilidade ou desejo de se colocar na mesma situação.

Embora o processo identificatório se dê de modo complexo, constituindo a própria história do sujeito, a última descrição parece retratar bem a relação entre os membros de um grupo. Se cada membro tem no líder um objeto de amor em comum, o que implica também uma demanda de amor, o que os une entre si é o fato de se colocarem em uma situação análoga com relação ao mesmo. Enquanto isso a relação com o líder se mostra tributária de uma identificação mais primitiva e fundamental, relativa à primeira modalidade acima descrita. Deste modo, se para Freud os membros do grupo são colocados no lugar do eu - como semelhantes ao próprio indivíduo - o líder, como objeto privilegiado de identificação, é colocado no lugar do ideal do eu. Isto é, no lugar da instância crítica responsável por verificar a realidade das coisas. E por este motivo se torna indiferente se um líder assume esta função ou se ela é ocupada por elementos abstratos da cultura.

Esta abordagem metapsicológicado problemapermite a Freud comparar o funcionamento dos grupos com a hipnose e as relaçõesamorosas, oferecendo-nos um importante subsídio para compreendermos as relações de poder. E, neste sentido, também nos vem em auxílio uma contribuição de Assoun.Pois, além de defender uma postura freudiana anti-idealista com relação à política,este autor se refere ao "objeto inconsciente do poder (...) sem o qual o próprio político, assim como o vínculo social, seria indecifrável" (2012, p. 180). Trata-se, para ele, de apreender o poder em seu aspecto inconsciente, considerando tanto o lugar que ele ocupa na economia pulsional, como sua realidade no campo discursivo. Entretanto, como o poder não se constitui como pulsão fundamental é preciso pensá-lo por meio dos dualismos pulsionais propostos na grade conceitual psicanalítica.

Levando em conta este apontamento e considerando que até aqui procuramos evidenciar o papel da libido enquanto fator de sugestão, pretendemos ainda, sem nos fixarmos ao recorte temporal da pulsão de morte, fazer algumas considerações sobre o papel da agressividade nas relações sociais. Embora a ocorrência do termo agressividade fosse ínfima antes de 1905, o sentido por ele manifesto aparece frequentemente sob a expressão "impulsos hostis". E já no Rascunho N(1950/1996), contido nos extratos dos documentos dirigidos a Fliess entre 1892-1899, implica tanto no endereçamento aos pais quanto no sentimento de culpa e na necessidade de punição.Posteriormente, outro termo que vai dar consistência a ideia de agressividade é o de ambivalência, utilizado amplamente em Totem e tabu (1913/1996).

Com relação ao último, ainda que seja empregado em diversas situaçõeso que mais nos interessa em sua utilização diz respeito à relação com o pai e seus derivados - animais totêmicos e governantes. Isto porque nas diversas ocasiões em que se refere ao complexo-pai, e Freud cumula o texto de exemplos, a ambiguidade dos sentimentos (amor/ódio) é demonstrada em seu mais alto grau. Na refeição totêmica pelo luto obrigatório seguido de regozijo festivo. Na relação com o chefe por ser este adorado como um deus num dia e poder ser morto como um criminoso no outro. E, sobretudo, no mito da hordaprimeva, em que o pai é odiado por seu caráter interditor, mas também amado e admirado.

Embora o texto citado seja rico em fontes e exemplos antropológicos, o elemento mais esclarecedor talvez seja o paralelo traçado entre o tabu e as proibições obsessivas. Em ambos a ambivalência é amplamente demonstrada, entretanto, se no caso do tabu ou dos exemplos acima citados os sentimentos antagônicos se manifestam com frequência sobre o mesmo objeto, na neurose obsessiva a cisão dos afetos parece se dar de modo mais claro.Isto, aliás, nos chama a atenção para o modo como são formados os sintomas. Se o recalque consiste em despojar uma representação conflitiva do seu afeto, impedindo-a de se associar com outras representações, o fracasso do mesmo, especialmente na neurose obsessiva, implica no deslocamento desse afeto para uma representação inócua.

É o caso, por exemplo, do pequeno Hans citado no texto. Devido à incompatibilidade dos afetos, enquanto os sentimentos amorosos conservam seu endereçamento à figura do paios sentimentos hostis são deslocados para uma representação substitutiva, para a figura de um animal. Eis aí o modo como se constitui o sintoma, e se na neurose de angústia este processo costuma se prolongar de modo indeterminado, multiplicando a lista de objetos fóbicos, não podemos deixar de perceber que, também no tabu, uma situação idêntica se verifica na transmissão do mana (poder mágico).Algo semelhante ocorre, por exemplo, nas relações políticas ou sociais, quando a aversão a um partido ou o que ele representa se transmite para seus simpatizantes, suas cores ou qualquer significante a ele relacionado.

Não obstante, ainda nos resta considerar o papel da agressividade em outras passagens da obra freudiana. Parece-nos que com a elaboração da segunda tópica ela ganha um lugar mais destacado na grade teórica. Osupereupassa a ser considerado o herdeiro do complexo de Édipo e, embora lhe sejam atribuídas basicamente as mesmas funções antes atribuídas ao ideal do eu, a ele é reservado o atributo da crueldade (Freud, 1923/1996). A partir de então é ele, enquanto instância, que norteia as discussões sobre a constituição do sujeito, não só no âmbito de uma tríade familiar, como no que diz respeito à civilização de modo geral.Além do mais, junto ou mesmo como causa da formulação do supereu está o segundo dualismo e a pulsão de morte, última tentativa de Freud de ordenar os fenômenos ligados à agressividade.

Cabe afirmar, entretanto, que mesmo com as inovações teóricas que se sucedem a forma como Freud encara a relação do sujeito com a cultura parece apenas se aperfeiçoar, sem com isso desmentir ou romper com as análises empreendidas anteriormente. Se no texto sobre O mal-estar na civilização (1930/1996) ele faz uma analogia entre um supereu individual e um coletivo, este representasobretudo as exigências culturais da civilização (leis ou ideais). E se remete, como quando introjetado, a uma exigência de renúncia pulsional, isto não implica em nenhuma alteração quantitativa da agressividade senão no modo de apreendê-la em suas vicissitudes.Da mesma forma que ela pode voltar-se para o eu, no sentido de adequá-lo ao que lhe é exigido, também pode voltar-se contra a sociedade como um todo ou contra alguma exigência específica desta. Assim sendo, não é pertinente atribuir-lhe qualificativos, mas reconhecê-la como algo inerente e constitutivo do sujeito.

Neste aspecto, antes mesmo de introduzir a ideia de pulsão de morte, Freud sublinhava o papel da agressividade, tanto no que se refere à autopreservação do eu, quanto na consecução de objetivos sexuais. Tendo isto em vista,não restam dúvidas de que, naquilo que se refere às relações de poder, a agressividade exerce uma função não menos importante. Todavia, ainda que inerente e indispensável, cabe problematizar o modo como ela se manifesta. Isto é, quando mais do que uma tendência ela se verifica nas relações sociais de um modo particularmente estruturado, como produto do sintoma. Esta configuração de coisas se relaciona com a desqualificação das divergências e o não reconhecimento da alteridade anteriormente assinalados, antes porém que possamos discuti-la devemos retomar algumas questões deixadas em suspenso.

 

A política enquanto laço social e as contribuições da psicanálise

Havíamos, no final do primeiro tópico, apontado a necessidade de distinguir, ainda que de modo aproximado, as diferenças entre política e laço social. No que se refere ao último acreditamos ter dado, em nosso recurso a Freud, ao menos as indicações básicas para sua apreensão. Não obstante, se fosse necessário resumi-lo, diríamos que se trata da vida em uma sociedade ordenada por uma lei ou cultura comum, com toda generalidade que isto implica. Apenas no mito da horda primeva se tem um grupo regido pela força individual, no mais todo grupo humano, por mais primitivo que possa ser, possui alguma ordenação simbólica. Aliás, uma das vantagens de se considerar o clã totêmico é a de permitir condensar em um mesmo exemplo a função que hoje atribuímos à tríade familiar e a de uma ordem social mais ampla.

Em poucas palavras,se o desamparo infantil éalgo inerente e universal ao gênero humano logo se tem uma demanda de amor, o Eros que liga os membros de um grupo. Isto, por sua vez, implica identificações, interdições e renúncias, mas não pretendemos aqui retomar o trajeto freudiano, ainda que nossa explanação possa ser insuficiente. O que queremos denotar é que,por mais que Freud percorra diversos momentos históricos da civilização, sua abordagem da relação sujeito/sociedade é fundamentalmente estrutural e, por conseguinte, seu poder de análise não depende decisivamente do contexto no qual é aplicado. Se algo corrobora isto talvez seja o grande número de áreas às quais a psicanálise oferece sua contribuição, como o estudo dos mitos, das religiões, da crítica literária, da antropologia social e da educação.

Devemos, contudo, voltar nossa atenção para a política, pois, uma vez que possua ligações com o laço social, não deve ser com este confundida. É certo que o uso comum das palavras faz com que muitas vezes se extrapole seu sentido original.Porém, se o que chamamos laço social se distingue por sua generalidade,a política nos remete a algo bem mais restrito, e não é por acaso que Arendt menciona seu caráter pontual no tempo e no espaço. Além do mais, o contraste observado nos leva a confrontar os próprios métodos empregados pelos autores em tela. Se como dissemosacima Freud recorre a uma abordagem estrutural dos problemas, Arendt se vale sobretudo da história. E se privilegia uma noção específica de política é justamente por reconhecer sua originalidade.

Por outro lado, se a política não se confunde com a generalidade do laço, isto não quer dizer que seja avessa a este, mas apenas que se configura como um caso particular ou como uma de suas modalidades. Além do mais, o fato de privilegiar uma concepção originada na Grécia antiga não impede Arendt de analisar seus desdobramentos históricos, pelo contrário. As categorias consideradas centrais por ela - liberdade, igualdade e pluralidade - atuam não como propriedades absolutas, mas como condições da política passíveis de serem pensadas em suas gradações, como parâmetros de comparação entre as diversas experiências. Neste sentido, talvez seja mais fecundo considerar não o que é ou deixa de ser a política, mas o grau de politização de uma determinada sociedade.

Aliás, este modo de considerar a questão pode ser o que faça a diferença entre uma concepção arraigada em modelos pré-concebidos, portanto ideológica e anacrônica, e uma postura verdadeiramente crítica. Isto é, que tome as categorias como instrumento de análise e transformação social, contribuindo desta forma com a emancipação do sujeito. Por esta perspectiva, embora raramente fale de política, o legado freudiano é profundamente político. E das categorias ou condições trabalhadas por Arendt e acima citadas, não há uma que não seja, ao seu modo e com seus termos, promovida por Freud. Talvez seja o caso de retomá-las em sequência.

Lembremos que para Arendt a ideia de liberdade se refere tanto a superação das necessidades quanto ao fato de não se estar sujeito ao domínio de outro. Com relação ao primeiro aspecto Freud considera como atributo da civilização não só "os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros, mas, especialmente, a distribuição da riqueza disponível" (1927/1996 p. 16). Já no segundo aspecto, embora atente para as restrições impostas pela cultura, ele reconhece um desejo de liberdade que pode representar uma revolta contra as injustiças existentes, mostrando-se favorável ao desenvolvimento da civilização (Freud, 1930/1996).

Digamos, entretanto, que este reconhecimento teórico é só parte da contribuição freudiana em prol da liberdade, e quesua parcela mais importanteconsiste na escuta clínica do desejo. Ao substituir a hipnose pela associação livre ele abdica de dirigir uma mente artificialmente adormecida, deixa, em suas palavras de reprimir seu 'livre arbítrio'. E mais do que isso, permite que ao elaborar seu sintoma o sujeito se descole parcialmente dos significantes que o determinam, e portanto de ordens provenientes do meio social. Não obstante, embora a questão da liberdade mereça uma atenção maior do que a aqui dispendida, resta-nos verificar a contribuição de Freud no que pesa as outras categorias destacadas por Arendt, a saber, as de igualdade e pluralidade.

Para Arendt a ideia de igualdade é referente à isonomia ou isogoria entre os cidadãos e, portanto, diz respeito a uma igualdade perante a lei.Todavia, se considerarmos a sociedade em que vivemos, esta questão se mostra mais complexado que parece a primeira vista. Embora o texto da lei (em nosso caso a brasileira) preveja a isonomia acima referida, não é difícil perceber o quanto o estado é seletivo em sua aplicação. Não temos, contudo, a intenção de nos debruçar sobre este assunto, o que nos chama a atenção é que também neste casoa psicanálise nos trás seu auxílio. De acordo com Freud, a exigência de igualdade deriva do que originalmente era inveja, mas está na raiz da consciência social ou senso de dever. Ela representa nada menos do que a justiça social, pois se renunciamos a certas satisfações é com o intuito de que também os demais não possam pedi-las (Freud, 1921/1996).

Como podemos constatar até aqui, apesar dos problemas colocados pelos dois autores não terem a mesma origem, é possível observar um grau de concordância considerável em determinados aspectos. E mesmo no que se refere à pluralidade, termo sobre o qual não encontramos referência em Freud, é possível vislumbrar,mais do que uma convergência teórica, uma convergência por parte da prática psicanalítica. Se para Arendt a pluralidade se refere a uma diferença constitutiva entre os homens, o que implica posições ou pontos de vista diferentes, a psicanálise se abre à singularidade de um sujeito desejante,e nisto se difere radicalmente de práticas cientificistas que visam à adequação do sujeito.

Não devemos nos surpreender, aliás, se sobre a questão da pluralidade residir a maior contribuição da psicanálise para a promoção da política.Iniciamos este artigo apontando um tipo de conduta que consideramosser bastante comum na atualidade. Falamos de certa impermeabilidade ao processo argumentativo, do não reconhecimentodas divergências eda rotulaçãodos interlocutores. Talvez, para que fique mais fácil a identificação do fenômeno, possamos nos referir ao seu caráter binário ou maniqueísta, em função do qual toda manifestação é percebida necessariamente como favorável ou contrária. E se, em detrimento da nossa descrição, tal postura ainda se mostrar inacessível, sugerimos que se observe com vagar as discussões sobre política travadas nas redes sociais. Não só os artigos de blogs ou revistas, mas também os comentários dos leitores.

Também encontramos em Figueiredo (1995) uma descrição bastante compatível com o que buscamos tratar. Ele fala de uma imersão imaginária em que tanto os princípios e ideais (fixados de antemão), quanto a rotina das ações, se constituem como formas de resistência contra a alteridade e as vicissitudes do tempo. Apontemos de passagem que esta imersão imaginária explica de modo suficiente o caráter binário acima referido, não obstante, o autor não se restringe aos traços acima enumerados. Identificando tais traços com o que denomina militância ele afirma que esta não é uma forma de atuação inerente ou exclusiva do campo político, mas um modo de vida que se manifesta nos mais variados campos da experiência, como no religioso, nos negócios e de modo privilegiado, no campo da contracultura.

Para Figueiredo, independente do campo ou da direção em que se exerça a militância - revolucionária, conservadora ou alternativa - ela é sempre da ordem do sintoma. Constitui-se como um processo identificatório que, assim como ele (sintoma), é calcado em procedimentos de exclusão e vedamento, e da mesma forma resulta na repetição estéril do próprio terreno que pretendia transformar. Além do mais, se para o autor "o político é o campo comum e público de encontro das alteridades, que neste encontro se constituem nas e pelas diferenças gerando um processo permanente de diferenciações e mudanças" (1995, p. 118). A militância é sempre o oposto do que seria uma autêntica participação política.

Façamos, entretanto, uma breve ressalva, pois, assim como na apropriação aredtiana da noção de política, o sentido atribuído por Figueiredo ao termo militância se distancia bastante daquele que lhe é dado no uso comum. E embora alguns dicionários da língua conotem certa agressividade, definindo militante como combatente ou agressivamente ativo por uma causa, também é possível encontrá-lo como sinônimo de participante, e neste sentido não se justifica a desqualificação do termo. O nome que se dá, porém, ao fenômeno não é o que mais importa em nossa discussão, e sim o fato de que, identificando o sintoma como obstáculo à política, nos aproximamos de reconhecer os mecanismos contrários à emancipação desejada.

É preciso atentar, contudo, para o papel subjacente que a estrutura do sintoma ocupa, não só na militância, como na própria origem do laço social. É inerente à constituição do sujeito que, por meio da identificação, aquilo que é prazeroso seja introjetado pelo eu, enquanto as experiências desprazerosas são projetadas ou repelidas para o mundo exterior. Isto se verifica na constituição dos grupos, na militância e também nas formações ideológicas de modo geral, sendo este elemento excluído o que permite, enquanto ponto de exceção, a formação de um sistema organizado e fechado. Esta é, de modo bem resumido, uma das formas de se pensar o sintoma.

Por sua vez, se é certo que tal estrutura se apresenta como fundamento do sujeito, possuindo uma anterioridade lógica na relação com ooutro, também é verdade que não esgota suas possibilidades.Para Freud, se o princípio do prazer fracassa ao proporcionar as satisfações esperadas pelo eu, o princípio da realidadesurge não para destituí-lo, mas para complementá-lo e protegê-lo. Com este o processo que avaliava as experiências exclusivamente por seu caráter prazeroso ou desprazerozo, assim como a tentativa de satisfação alucinatória, é substituídopor um julgamentoimparcial que decide se determinada ideia está ou não em concordância com a realidade. E por meio desse julgamento a descarga motora é transformada em ação, sendo empregada na transformação adequada daquela (Freud, 1911/1996).

Vejamos portanto que, se o sujeito é compelido a adotar um mecanismo de funcionamento mais compatível com a realidade, isto se aplica à generalidade dos objetos que compõem o mundo externo, não podendo as relações que estabelece com o outro constituir um exceção.Dessa forma, ainda que primariamente o princípio do prazer predomine na constituição dos grupos, reproduzindo a estrutura de sintoma acima mencionada, é apropriado que ao longo do tempo estes se tornem progressivamente mais desenvolvidos. Neste sentido é indubitável que o surgimento da política representa um momento impar na história da humanidade.

Ela (política) permitiu como nenhuma forma de organização precedente que, no âmbito público onde vigorava, os homens discutissem e trabalhassem suas diferenças, e fez destas um fator dinâmico para a cidade e não um motivo de exclusão ou segregação. Poderíamos dizer, entretanto, que na base dessa formação, que é a polis Grega, está a exclusão de todo aquele que não era considerado cidadão - e estaríamos corretos em afirmá-lo. Não obstante, comparando as diferenças entre os tipos de laços que vigoravam na esfera pública e no âmbito privado podemos reconhecer a especificidade da política assim como seu poder emancipatório. E por isso a discutimos aqui.

 

Conclusão

É certo que os eventos relativos à relação entre sujeito e sociedade são, em sua constituição, necessariamente dialéticos. Do mesmo modo que o sujeito se constitui na relação com o outro, introjetando valores presentes na cultura e por vezes modificando os mesmo, as transformações culturais nunca ocorrem sem antes afetar um número significativo de indivíduos. Neste aspecto, sujeito e cultura se apresentam como polaridades de um sistema dinâmico em que umapossível intervenção possui implicações mútuas nas duas vertentes. Seus efeitos, entretanto, podem ou não se tornar perceptíveis, e o que determina isto são as próprias contingências do processo histórico. A força que uma ideia pode ter ou não na transformação social.

No que diz respeito à política fica patente que seu âmbito de atuação envolve mais diretamente o nível macro. Suas ações requerem uma participação coletiva em que se discute e delibera sobre as diretrizes a serem adotadas por uma comunidade ou estado e, mesmo que seus objetivos recaiam sobre o plano geral da sociedade, sua construção é tributária da contribuição individual do cidadão. Neste sentido, uma política que mereça este nome deve primar não só pela sua formação, como para que esta seja realmente emancipatória. E uma 'politica' que vise sobretudo a cooptação das massas em torno de uma liderança especifica, no modo de quem agrega um rebanho, deve ser tomada por aquilo que é, um simulacro de política.

Seguramente não nos referimos aqui à aglutinação que ocorre em torno de causas definidas, pois esta se apresenta comoo móvel mais autêntico da discussão pública, e por meio da mesma pode assumir um caráter provisório e dinâmico. Além do mais, neste caso não se verifica uma sujeição a um poder ou autoridade externa, mas somente ao senso crítico que determina os posicionamentos de um sujeito - determinados historicamente, mas caracterizados pelas próprias decisões. Assim sendo, as distinções apresentadas por Arendt entre o modelo de organização familiar e a organização política nos permite fazer uma avaliação justa da última, pois, se nos referimos a sua da importância histórica,é devido ao papel que exerceu na superação de uma tutela hierárquica e paternalista.

Uma vez considerado o papel da política,devemos reconhecer que também a psicanálise, desde que surgiu, oferece seus subsídios para a emancipação do sujeito. A iniciar pelo dispositivo clínico, a elaboração do sintoma permite que se questionem os efeitos de identificações malsucedidas, e com isso relativiza o préstimo de alguns valores sociais introjetados precocemente na história daquele. Sendo assim, é lícito dizer que,por mais que os conflitos psíquicos decorram como resultado da lei em seu sentido mais amplo, a existência dos preconceitos sociais torna ainda mais difícil conciliar as disposições inatas do indivíduo - necessidades ou pulsões que exigem satisfação - com aquilo que lhe é esperado pelo meio que o circunda.

Por este simples fator a psicanálise já revela suas consequências no âmbito social, pois se a cada análise corresponde um sujeito, por pouco que seja, mais desapegado de seus grilhões, não podemos desconsiderar o efeito multiplicador que isto pode gerar. Inclusive se considerarmos os resultados de uma análise como sendo os mais modestos, porquanto não sustentar uma ideologia pode ser mais fecundo do que fortalecê-la num combate sem êxito.Além disso, se reconhecemos os resultados da análise como algo que afeta o campo social, devemos acrescentar que, por suas características, trata-se de resultados eminentemente políticos, uma vez que, como exposto anteriormente, se coadunam com as condições ou categorias sobre as quais se desenvolve a noção arendtiana de política.

Outro fator a ser considerado como contribuição da psicanálise à promoção das relações políticas, ainda que se dê de modo indireto, e que também deve ser contabilizado como fator de emancipação, é sua apropriação pela cultura geral. Além do impacto que teve na área da educação ela também serviu, por sua postura crítica, como subsídio ao movimento de libertação das mulheres e, considerando a importância que este teve no questionamento de uma cultura hegemônica patriarcal, tal contribuição acaba se difundido para outras causas. Além das lutas pela igualdade de gênero e liberdade sexual ela também atua nos movimentos de minorias étnicas e sociais. Devemos atentar, contudo, para aporte direto que a psicanálise tem feito ou pode fazer no âmbito político.

Se como apontamos anteriormente a militância é da ordem do sintoma, constituindo-se como um obstáculo as relações propriamente políticas, a psicanálise pode atuar sobretudo demonstrando as raízes de uma conduta determinada. E, neste sentido, a recusa da alteridade se afigura como uma exclusão das diferenças sustentada pelo próprio processo identificatório, uma vez que toda identificação produz um resto. Trata-se de trabalhar, de modo análogo ao que se faz na clínica, para que tais identificações sejam dialetizadassimbolicamente, mas para que isso ocorra não se pode furtar às discussões que se dão no ambiente público. Esta questão nos remete à critica da ideologia realizada por Zizek.

É preciso, antes de tudo, ter em vista que os discursos ideológicos se apresentam como tentativas de ordenação do gozo, constituindo-se como sistemas homogêneos e fechados. A psicanálise, por sua vez, trata sempre de um gozo rebelde, de um gozo que por ser sintomáticojá traz em si um caráter subversivo. Porém, para tratá-lo ou questioná-lo é preciso que o analista se coloque como um ponto de exceção ao discurso vigente, no lugar do vazio. Neste sentido, como afirma Zizek, a ideologia não é tudo; "é possível assumir um lugar que nos permita manter distância em relação a ela, mas esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada" (1996, p. 23).

A isto o autor acrescenta que no momento em que cedemos à tentação de positivar essa realidade voltamos novamente à ideologia, isto é, acabamos ocupando o lugar do mestre.E neste aspecto, esta observação se harmoniza muito bem com a postura freudiana sobre os discursos sociais, pois recusa terminantemente à psicanálise o caráter de uma weltanschauug, isto é, não convém que a psicanálise se transforme em uma visão de mundo plena de ilusões, mas reserva pra ela o lugar de uma atividade estritamente racional - rejeita, como fonte de saber, qualquer fundamento que não seja a elaboração intelectual baseada em observações cuidadosamente escolhidas.

Por fim, para que fique mais claro o papel da psicanálise como promotora de políticas emancipatórias, resta enfatizar que não se trata de propor um modelo ideal de organização, mas de questionar condutas e pressupostos que vigoram na atualidade. A partir de uma análise de tais fatores pode-se esperar que múltiplas sínteses emerjam do debate coletivo. Além do mais, se grande parte da agressividade verificada nas discussões derivam de um posicionamento binário, com forte conteúdo imaginário, um dos meios para que se alcance a dialetização simbólica das identificações é valorizando o lugar da fala ou enunciação. Promovendo com isto, da melhor forma possível, a flexibilização em torno das palavras de ordem que incorporam o sintoma.

 

Referências

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Recebido/Received: 25.06.2015/06.25.2015
Aceito/Accepted: 24.09.2015/09.24.2015

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