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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.7 São João del Rei jul./dez. 2015

 

EDITORIAL

 

Psicanálise e a hipótese comunista

 

 

Em novembro de 2015, o NUPEP (Núcleo de pesquisa e extensão em psicanálise) e o CEII (Círculos de estudos da Ideia e da ideologia), junto ao PPGPSI e ao DPSIC-UFSJ realizaram o I Colóquio psicanálise e a hipótese comunista, em São João del Rei. O colóquio reuniu contribuições de participantes do CEII, alunos do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSJ, palestrantes convidados e professores do DPSIC, buscando discutir um tema controverso: a ideia de comunismo ainda faria algum sentido, no mundo atual? E o que a psicanálise poderia contribuir para pensar esta questão? Os textos reunidos nesta edição especial da Analytica-revista de psicanálise, buscam, cada um a sua maneira, colocar tais questões.

Certamente, a ideia de comunismo pode parecer, à primeira vista, uma fóssil de um espécime definitivamente extinto: podemos estudá-la, pensando o tempo em que o animal ainda tinha vida. Mas, de qualquer maneira, o sonho que ele retorne assemelha-se mais a uma hipótese de ficção científica do que à realidade do mundo que se descortina "após a queda do muro de Berlim". Trata-se, como em qualquer sonho, de uma hipótese cuja realização traria o pior dos pesadelos, àquele do totalitarismo.

A aposta que se encontra nos artigos aqui presentes, então, é a de que a negação de uma proposição não implica na afirmação de seu contrário. Em termos históricos, trata-se de afirmar tanto que 1) a negação do socialismo do século XX não implica a afirmação do capitalismo e, da mesma forma, que 2) a negação do capitalismo não implica a afirmação do socialismo do século XX, o retorno à tragédia totalitária.

Mas não repousaríamos em um argumento de dois níveis, no qual o socialismo é rejeitado apenas como um regime histórico, enquanto o capitalismo é rejeitado em seu próprio conceito? Recapitulando o argumento: 1) a negação do socialismo do século XX (do socialismo como regime particular, portanto) não implica a afirmação do capitalismo (em geral, do capitalismo tout court); e, 2) a negação do capitalismo (em geral, do capitalismo como conceito), não implica a afirmação do socialismo do século XX (isto é, desta efetuação/traição histórica daquilo que Badiou chama de "hipótese comunista").

Aqui se encontra a necessidade de uma aposta radical: primeiramente, a de que o capitalismo deve ser rejeitado como Universal, justamente porque nele perdura uma exclusão ôntica/histórica. Tudo no capitalismo é histórico, ficcional, menos a diferença de classes, que é naturalizada. Depois, devemos conceber o fracasso do socialismo no século XX não como o fracasso de um regime particular, o fracasso de uma determinada efetuação histórica de uma hipótese abstrata, de uma Utopia afastada, mas, antes, como o fracasso do próprio Absoluto.

E se única forma de realizar o luto melancólico do fracasso do socialismo histórico, este luto que não cessa de assombrar (como o fantasma enunciado por DerridaemOs espectros de Marx) o mundo atual, for o de elevar este fracasso ao Absoluto?

O que morre no século XX, é o próprio Absoluto, portanto. Por isso trata-se de um Evento, e não de uma simples ocorrência histórica. Enquanto a história é feita de regimes particulares, o Evento redimensiona aquilo mesmo que as formas particulares/históricas significarão, ele constitui o pano de fundo a partir do qual os regimes históricos serão interpretados. O Evento não diz respeito a um setor determinado da sociedade ou da história, mas sim atoda a sociedade e a toda história, pois a partir dele deve-se reinterpretar, transformar, aquilo mesmo que se entende como sendo o "todo".

Neste sentido, a única forma de compreender o fracasso do socialismo no século XX é tratando-o como um fracasso de toda a humanidade, e não como o fracasso de um regime político determinado-é toda a humanidade, inclusive os defensores do capitalismo, que fracassam. Justamente porque o projeto socialista (ao contrário do nazismo e, também, do capitalismo, que é baseado na exclusão de classe) era, de fato, um projeto para toda a humanidade, sem exceções a priori, aquilo que fracassa em sua realização é algo que diz respeito ao universal, como tal.

Sem dúvida, esta é também a lição desencantada e pós-ideológica atual. Tudo depende, então, da maneira como se compreende a negação, o fracasso do Absoluto.

Para o capitalismo, tal fracasso significa que devamos renunciar ao Absoluto; que após a tragédia do século XX,devemos nos contentar com o jogo de aparências, com a particularidade das diferentes culturas, aceitando a exclusão econômica como um dado fundamental da Natureza Humana. Mas podemos nos perguntar, aqui: tal afirmação do puro semblante pós-ideológico não seria realizada a partir da ideia de um Real, equacionado à Natureza humana desvelada pelo mercado? Isto é, a pós-ideologia atual não se desenrolaria, fundamentalmente, contra o pano de fundo de uma Natureza universal? De maneira que, mesmo evitando a questão do Absoluto, esta retornaria, assombrando o capitalismo, mas agora através de nomes como "mercado", "natureza", etc.? Lembremos a crítica do antropólogo Viveiros de Castro a respeito da ideia de "multiculturalismo": esta supõe que, por trás das distintas culturas, há uma Natureza Humana em geral; ela apenas consegue afirmar a diferença através deste pano de fundo neutro, homogêneo.

Isto significa, então, que devamos rejeitar a Ideia de Absoluto (como é a solução do próprio Viveiros de Castro)? Ora, para o desenvolvimento da "hipótese comunista", tal fracasso do Absoluto já é inerente ao próprio Absoluto. Isto é, trata-se de abandonar a ideia do Absoluto como algo de positivo ou, em termos políticos, como a mera reconciliação histórica das divisões sociais, a Utopia de uma sociedade purgada de qualquer negatividade. Pois tal fantasia a respeito do Absoluto é aquela que é sustentadatantopelos utopistas vencidos pela históriaquantopelos próprios defensores atuais do fim das Utopias: embora um busque afirmá-la e o outro negá-la, ambos sustentam a ideia unificada, positiva, do Absoluto,

Tirar todas as consequências da "queda do muro de Berlim", interpretá-la não apenas sociologicamente será, então, realizar uma intepretação capaz de tocar aquilo que a psicanálise chama de Real-Impossível. A "queda do muro de Berlim" é o sítio histórico/temporal de emergência de um Antagonismo no próprio universal, de uma aporia que não pode ser simbolizada. Como transformar tal impotência em causa, tal bloqueio histórico em uma impossibilidade ontológica?

Os textos reunidos neste dossiê possuem a coragem de se confrontar com esta questão.

Pedro Laureano Sobrino

Gabriel Tubinambá

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