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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.7 São João del Rei jul./dez. 2015

 

O Império das Imagens A Ação Performática entre Acting Out e Passagem ao Ato

 

The Empire of Images The Performative action between Acting Out and Walkway to Act

 

L'Empire des Images L'action performative entre Acting Out et Adoption de la Loi

 

El Imperio de las Imágenes La acción performativa entre Acting Out y Paseo a la Ley

 

 

Clarisse Gurgel

Doutora em Ciência Política pelo IESP, professora adjunta do Departamento de Estudos Políticos da UNIRIO. toscanogurgel@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo pretende apresentar o conceito de ação performática como tática preferencial, hoje, de comunistas e socialistas organizados. Tal apresentação nos conduzirá a reflexões em torno do caráter da ação performática, quanto a sua configuração como um tipo especial de compulsão à repetição. Nestes termos, nosso conceito transitará entre sua caracterização como um Acting Out e como uma Passagem ao Ato, esta última como forma de atuação preponderante em um contexto que alguns psicanalistas têm denominado de Império das Imagens. Esta dificuldade inicial em caracterizar a ação performática nos marcos de uma atuação sintomática será o fio condutor para chegarmos a determinadas considerações acerca de um possível diagnóstico de nosso tempo.

Palavras-chave: protesto; performance; multidão; antagonismo; acting-out.


ABSTRACT

This article aims to introduce the concept of performative action as preferential tactic of today`s organized communists and socialists. Such presentation will lead us to reflections around the character of performative action, as its configuration as a special kind of compulsion to repeat. Accordingly, our concept will transit between its characterization as an Acting Out and as a Passage to the Act, the latter as a way of leading performance in a context that some psychoanalysts have called Empire of Images. This initial difficulty in characterizing the performative action in the framework of a symptomatic action will be the conducting path to reach certain considerations about a possible diagnosis of our time.

Keywords: protest; performance; crowd; antagonism; acting out.


RÉSUMÉ

Cet article vise à introduire le concept de l'action performative comme tactique préférentiel organisé aujourd'hui communistes et socialistes. Cette représentation va nous conduire à des réflexions autour du personnage de l'action performative, que leur configuration comme un type particulier de compulsion de répétition. En conséquence, notre concept reporté de sa caractérisation comme Out intérim et comme un passage à l'acte, ce dernier comme un moyen de meilleures performances dans un contexte que certains psychanalystes ont appelé Images de l'Empire. Cette première difficulté à caractériser l'action performative dans le cadre d'une action symptomatique sera le fil pour accéder à certaines considérations au sujet d'un diagnostic possible de notre temps.

Mots-clés: la protestation; la performance; foule; antagonisme; acting out.


RESUMEN

Este artículo pretende introducir el concepto de acción performativa como táctica preferencial de las organizaciones comunistas y socialistas de hoy. Esta presentación nos llevará a reflexiones en torno a la naturaleza de la acción performativa, a suya configuración como un tipo especial de compulsión a la repetición. En consecuencia, nuestro concepto transitará entre su caracterización como Acting out y como pasaje al acto, esta última como una forma de principal performance en un contexto que algunos psicoanalistas han llamado de Imperio de las Imagenes. Esta dificultad inicial en la caracterización de la acción performativa en el marco de una acción sintomática será el hilo para llegar a ciertas consideraciones acerca de un posible diagnóstico de nuestro tiempo.

Palabras-clave: protestar; rendimiento; multitud; antagonismo; acting out.


 

 

Este artigo pretende apresentar o conceito de ação performática como tática preferencial, hoje, de comunistas e socialistas organizados. Tal apresentação nos conduzirá a reflexões em torno do caráter da ação performática, quanto a sua configuração como um tipo especial de compulsão à repetição. Nestes termos, nosso conceito transitará entre sua caracterização como um Acting Out e como uma Passagem ao Ato, esta última como forma de atuação preponderante em um contexto que alguns psicanalistas têm denominado de Império das Imagens. Esta dificuldade inicial em caracterizar a ação performática nos marcos de uma atuação sintomática será o fio condutor para chegarmos adeterminadas considerações acerca de um possível diagnóstico de nosso tempo.

 

Breve gênese

O conceito de ação performática tem origem na articulação da teoria da ação, com a teoria do teatro de performance, com a filosofia política e a psicanálise1. Ela é uma ação política efêmera, concentrada no tempo presente, com uso extraordinário do espaço e simuladora de radicalidade.

O conceito foi por nós forjado para servir-nos de recurso para compreendermos uma maneira dos partidos revolucionários atuarem, hoje, na busca por visibilidade em um contexto de isolamento, este último entendido como fruto do estigma de sua própria forma de estruturação em partido. Acreditamos que um dos fundamentos para o fenômeno da ação performática encontra-se na cisão histórica entre espontaneidade e organização, razão pela qual as ações performáticas se assemelham à ação direta, em sua aparência, de tal modo que simulem radicalidade e vitalidade e, assim, entrem nas pautas midiáticas, sem que necessariamente representem ameaça real à ordem. Nestes termos, os partidos revolucionários estariam priorizando a metodologia de realização de eventos, nos marcos da ação performática, como substitutivo do trabalho militante e continuado em suas bases sociais.

A ação performática é uma tática de visibilidade adotada pelos partidos para simularem uma organização política ativa, não burocratizada, mas, ao contrário do que se supõe, a adesão a ela não é uma reação a um processo de burocratização, supostamente imanente à forma-partido, mas efeito da própria burocratização: a ausência de vitalidade pela rigidez de uma máquina burocrática pouco ativa é disfarçada por meio de uma aparente ação direta. A apropriação simulada de feições de ação espontânea gera um efeito sui generis: uma ação política dispersa e diluída, com uma radicalidade obediente por parte de um sujeito rígido, guetificado, com pretensões de ser reconhecido por aquele com quem antagoniza - a mídia de massa. Em síntese, a ação performática é um tipo de ação que se apresenta como solução para os fracassos da esquerda, mas que é, na verdade, sua consequência. É aquela tática que vem ocupar o papel da organização e que se destaca pela centralidade no evento, a exemplo das manifestações, passeatas e demais modos de demonstrações.

Denominá-la performática, portanto, não significa atribuir a ela qualquer grau de performatividade. Esta última está associada a ações que adquirem eficácia, no sentido de sua satisfação, quando são realizadas em circunstâncias apropriadas, seja do ponto de vista dos meios e procedimentos adotados, seja do ponto de vista do sujeito adequado. Segundo John Austin, em How to do things with words,performatividade corresponde a expressões vocais ou mesmo gestos em que "to say something is to do something". O conceito está relacionado a situações em que a emissão de um enunciado implica na realização de uma ação. Austin pretende formular um conceito que ilustre, pela linguagem, atos compreensíveis por si só, atos ilocucionários.

Nos marcos da noção de ato performativo, veremos que a ação performática é seu oposto. Sua ineficácia potencial encontraria suas bases, justamente, no fato de que o sujeito político da ação não obedece às seis regras básicas de que fala John Austin, em especial no que diz respeito à necessidade de as pessoas e as circunstâncias serem apropriados para o invocação do procedimento específico; os pensamentos ou sentimentos serem de fato verdadeiros por parte de quem os invoca; e o procedimento ser de fato subsequente à sua invocação. Ao contrário, a ação performática é uma ação: 1.de um sujeito que não se adéqua a seu conteúdo e forma; 2. efêmera e geralmente sem desdobramentos consequentes e; 3. de fundamento ideológico não reivindicado abertamente por seus atores. Este segundo caráter da ação performática, de efêmero e intermitente, não lhe retira, porém, o aspecto de compulsão à repetição e é a partir deste caráter que temos podido distinguir a ação performática de demais formas de ação que preservam outra dinâmica de rotinização, daquilo que procuramos desenvolver em outros trabalhos como "hábito revolucionário"2.

Quando tratamos de um tipo de ação que reúne as características acima - uma ação efêmera, concentrada no tempo presente, com uso extraordinário do espaço e simuladora de radicalidade - estamos falando de ações que se encerram no evento. Esta limitação geralmente produz situações que nos indicam uma espécie de gozo imediato no ato e que tornam o fenômeno da ação performática permeado de cenas que beiram o patético. Em um artigo relativamente antigo, que intitulamos Atirem os sapatos, mas não acertem o alvo, procuramos ilustrar esta dimensão. O texto citava um ato ocorrido em 2008, no Rio de Janeiro, liderado por partidos revolucionários contrários àocupação americana no Iraque. Seus organizadores programaram jogar sapatos no consulado americano, em alusão ao episódio do jornalista iraquiano que, no mesmo ano, tentou atingir George Bush com um sapato, por ocasião de uma visita surpresa do presidente americano àBagdá. As lideranças partidárias - a despeito dos ímpetos de grupos anarquistas e esquerdistas - gritavam do carro de som para que os manifestantes jogassem os sapatos apenas ao lado do prédio, onde não havia vidraça, de modo a não incomodar a polícia e não gerar prejuízos ao consulado. Em um episódio mais recente, em 2012, setores também ligados àesquerda revolucionária organizaram, em Curitiba, um ato denominado Marcha das Vadias, dedicado às pautas de liberação sexual e de combate ao machismo. Na ocasião, o Movimento Popular por Moradia, o MPM, levou moradores de ocupações para o ato, dentre eles profissionais do sexo. A presença do movimento, de perfil popular, gerou tanto mal estar a um ato de maioria de classe média, que o evento foi interrompido. Tais exemplos ilustram a situação de sujeitos coletivos contra-hegemônicos que, ao adotarem como tática preferencial a realização de eventos simuladores de radicalidade, como meio de sinalizarem vitalidade e versatilidade, acabam agravando sua condição de isolamento, pelo forma performática de lidarem com suas bandeiras e com suas bases sociais.

 

Ação performática como evento: Badiou versus Negri

O evento como tática central de ação política encontra, hoje, suas principais fontes de inspiração naqueles filósofos que incorporaram os diagnósticos de pulverização e fragmentaçãoeconômica e social como aspectos positivos para a luta revolucionária. Autores como Antônio Negri (2003) se destacam entre as organizações da esquerda contra-hegemônica por, justamente, preservarem algumas categorias do marxismo que servem de arcabouço para leitura plenamente otimistas das condições subjetivas, em condições objetivas adversas. Ao ponto de concebermos que o papel de Negri, como alentador em tempos de baixa expectativa política, ser semelhante ao dos próprios eventos: ambos atendem a um necessidade de urgência, de imprimir aos sujeitos uma leve sensação de êxtase, de experimentação de alguma liberdade e de praticidade.

Ainda que a noção de evento como modo de resistência preferencial seja elemento chave para Negri e nos sirva de conteúdo para forjarmos nosso conceito de ação performática, julgamosoportuno distingui-la da noção de evento em Badiou, na qual podemos encontrar alternativas a isto que entendemos como uma forma sintomática de ação revolucionaria de nossos tempos. A despeito de traduções frequentemente semelhantes, o termo evento, em Badiou, distingue-se do que Antônio Negri entende como conformação da política ao paradigma da resistência apoiada nas experiências de movimentos antiglobalização. Para Negri (2003), o evento seria um fator constituidor da identidade de sujeitos coletivos, pois, em seus termos, "...processos decisórios revolucionários no estilo Lênin foram desestabilizados, e as estratégias correspondentes tornaram-se completamente inviáveis"(p.129).O deslocamento proposto seria nos instrumentos, que não mais partidários, e na estratégia, agora centrada na resistência, com a perda da perspectiva da insurreição3. Em seu lugar, é a apresentada aestratégia da "auto-valorização imanente do sujeito coletivo".

O ponto de partida de Negri éa derrota do operário fordista e a crescente centralidade de um trabalho vivo intelectualizado. O conceito de Intelecto Geral, de Marx, situado no fenômeno da subsunção real, éconfundido por Negri como Intelecto Comum, termo também de Marx para nomear uma tendência emancipatória em face da crise do valor. Tratam-se de equívocos a partir da leitura de textos de Marx, mais especificamente dos Grundrisse,4 de onde se deriva a tese negriana do trabalho operário como, cada vez mais, um trabalho de gestão da informação, de capacidades de decisão, constituidor de redes de comunicação com potencial libertador. Negri parece não entender aquilo que sugere Moishe Postone, em Tempo, Trabalho e Dominação social: a indeterminação deve ser situada como um objetivo da ação política, mais do que como algo situado na vida social. Esta confusão é o que parece permitirque Negri articule, de maneira ontológica, liberdade e contingência. Ainda que não ontologize na história esta indeterminação - tal como acusa Postone (2006) em relação a algumas teorias críticas do presente -, mas a demarque na dinâmica da produção capitalista, a partir do General Intellect, Negri subestima "... os constrangimentos exercidos sobre a contingência pelo capital enquanto forma de vida social"(p.95).

Para Badiou, ao contrário, o evento ou acontecimento nos insere no terreno da fidelidade, onde o que estáem jogo éum modo de habitar a situação extraordinária, inventando uma nova maneira de ser e de agir dentro dela. Em seus termos, éalgo que inscreve o 'alguém'num instante de eternidade. Aquilo que adiciona ao princípio do interesse de pertencer a uma situação - nos marcos da perseverança do ser -, um princípio subjetivo, em que se dáo enlace do sabido pelo não-sabido. Nesses termos, podemos entender a decisão de ser fiel, o processo real de uma fidelidade a um acontecimento, como verdade. Sendo a verdade algo diretamente vinculado àperspectiva de continuação do acontecimento, desde que, portanto, não se restrinja àquilo que nela captura o sujeito, as intensidades de existências inigualáveis. Segundo Badiou (1995), "... essa continuação supõe uma verdadeiro extravio na 'perseverança do ser'"(p.65). Em suas palavras, "Toda minha capacidade de interesse, minha própria perseverança no ser, éderramada ... sobre a etapa seguinte do processo político, quando a reunião diante da fábrica estiver dispersa"(p.61-62). Assim, se para autores como Negri, o evento engendra o sujeito revolucionário por justamente ser despido de qualquer perspectiva instituinte e, por outro lado, por ser resultado da articulação de identidades em rede, através do saber, para Badiou, o evento institui o sujeito a partir de sua perseverança não no ser, mas no acontecimento, a partir de um não-saber. Em outros termos, o evento em Negri émedido pela efemeridade e pelas identidades que produz e, em Badiou, émedido pela duração e pela não-identidade, pela não-determinação. Estaria aíuma distinção marcante entre Badiou e Negri, para quem "evento"adquire um caráter de contingência como pura contigência ou atémesmo, pela centralidade que adquire, de contigência como necessidade.

 

O partido e sua patologia

Sem prejuízo de nossa filiação às hipóteses de Badiou, as teses de Negri adquirem importância para nós à medida em que os partidos revolucionários parecem incorporá-las em suas práticas, ainda que não as assumam explicitamente como referencial teórico. Ocorre, portanto, o fenômeno da adesão dos partidos a valores que rejeitam sua própria forma, numa espécie de patologia partidária5, na contra mão, pois, de uma perspectiva performativa. Esta adesão manifesta-se, dentre outras formas, na priorização da tática da ação performática, como tentativa de escapar da imagem associada ao stalinismo. Algo que repercute em uma espécie de crise subjetiva, tendo em vista que, nos marcos da ação performática, os partidos convertem a luta contra-hegemônica em luta por reconhecimento, deslocando sua crise ideológica para uma crise de identidade. Isto não só pelo caráter de suas bandeiras e pautas - centradas nas lutas por direito de expressão de gênero, de raça - mas por sua tática e estratégia serem sintetizadas no desejo por reconhecimento de sua própria identidade e de seu direito de expressão revolucionária.

Neste deslocamento, em que a luta revolucionária se converte em luta por expressão e reconhecimento,identificamos uma característica que poderia indicar algum tipo de repetição que estabelece um modo especial de relação com a linguagem. Tal característica parece sugerir que a ação se enquadraria em um modo de atuação anterior à simbolização. Esta posição aparentemente pré-linguística, porém, corresponderia mais ao fato de estarmos tratando de um tipo de compulsão à repetição que resiste às leis fundamentais da linguagem. Algo que se justificaria pelo distanciamento que os partidos revolucionários procuram estabelecer entre eles e o conteúdo simbólico a eles associados.Diríamos que se trata de um tipo de ação interpelado por uma espécie de luto pós-traumático dos partidos revolucionários, que parecem experimentar, hoje, aquilo que Slavoj Zizek (2015) conceituou como um luto sem diagnóstico: um luto impossibilitado, a partir do trauma do stalinismo que parece introjetar Stalin na vida partidária como um fantasma a ser per-seguido. O mesmo Zizek sugerirá o stalinismo como o grande Outro da história que "garante a significatividade de nossos atos"( Zizek, 2015).

O stalinismo, assim, seria uma espécie de tabu imposto sobre a experiência do chamado "socialismo real", como se este real, de fato, devorasse a esquerda e a deixasse sem recursos. O custo, entretanto, dessa ordem de patologias, em que os fantasmas da esquerda não são devidamente simbolizados, é seu retorno indelével no real. A ação performática é expressão desta armadilha, dado que, ao pretender substituir a burocratização, por via da centralidade dos eventos como demonstração de vitalidade, ela engessa os partidos, fixando-os como sujeitos retirados de seu trabalho cotidiano - habitual - de organização de base.Esta busca por um distanciamento imaginário e simbólico daquilo que corresponderia à história e à cultura da esquerda apresenta, porém, feições ainda mais especiais, pois estamos tratando de sujeitos coletivos que, ainda que queiram se distinguir do seu passado, preservam seu vocabulário e sua estrutura. E é no modo como insiste, como se apresenta esta preservação, que podemos, talvez, expor as contradições para as quais a ação performática aponta. A indicação que nos fornece Zizek auxilia no exercício que precisamos fazer, dado que a sugestão do stalinismo como o grande Outro da esquerda contemporânea ilustra um fenômeno político que parte da constatação de um abjeto: objeto de aversão, de repulsa que, ao mesmo tempo, constitui um mais-gozar (dejeto/objeto a).

O desafio, portanto, torna-se compreender um tipo de ação que, ao mesmo tempo que rejeita um conteúdo, adota seus termos e modelos práticos a ele associados, tais como "partido revolucionário", "greve geral", "dirigentes", "socialismo", "assembleias gerais", "atos", "protestos", "marchas". Este modo contraditório de insistência enquadra, pois, a ação performática no fenômeno da centralidade nos eventos, mas tambémem um modo especial de nomear tais eventos, no uso das palavras que servem para descrevê-los. Algo que aponta para o uso performático das práticas e também das palavras, como se a palavra que nomeia a prática bastasse para imprimir veracidade à atuação. Deste modo, poderíamos dizer que se preserva um campo simbólico que imprime sentido à ação, ainda que se rejeite este mesmo campo simbólico. Dito de outro modo, a palavra adquire feições ou semblantes de signo, na perspectiva de já carregar um conteúdo objetivo dado. Isto só é possível graças a um processo aparentemente inverso: a imagem adquirindo centralidade, de tal modo que a verbalização é, ela mesma, imaginária. Supondo que a palavra é representação da coisa em si, objetiva, o sujeito a verbaliza como meio de satisfação de uma pulsão. Assim, os termos são mantidos, apoiados formalmente em uma gramática consolidada e, portanto, subentendida, a despeito de sua história.

 

Palavra: imagem meramente ilustrativa

O termo e a ação, ainda que apoiados em um subentendido historicamente construído - portanto, simbolicamente instituído -, se sustentam pela imagem da palavra, pelo que ela produz detradução imediata em termos de legitimidade e eficácia práticas. Entretanto, este uso instrumental da linguagem da esquerda é possível graças à crença na palavra da imagem, como se a ação contra-hegemônica precisasse apenas de legendas. É quando a verbalização torna-se meramente mnêmica e desprendida da ideia e do conteúdo ético de referência. Aqui, portanto, o esforço torna-se compreender os limites das representações das palavras, mas não só porque não remetem a uma única coisa - nem tão somente porque a coisa também se refere a uma sucessão de representações - mas também porque, se a palavra diz muito, se ela diz a partir do que é desfigurado, fugidio, não literal, produzido por imagens, é preciso pensar como a palavra pode ser aquela que nos dá o "fio da meada", a partir do entendimento de que ela, às vezes, não diz nada.

Desta constatação desalentadora, é possível extrair algo nãodito pela aparência de tudo dizer. Este poderia ser um caminho para entendermos alguns fenômenos políticos em que, por exemplo, a evocação da palavra "autonomia", muitas vezes, traveste as práticas mais autoritárias, ou em que a exaltação de deflagrações de greves, como se "dizer que está em greve" bastasse em si mesma, esconde, em sua prática, grevesritualísticas, superestruturais, descoladas de suas bases, com términos predeterminados e com direções vacilantes, descrentes previamente de seu potencial. O mesmo podendo se dizer de lideranças sindicais que alardeiam apalavra de ordem "greve geral" sem qualquer disposição real para uma pauta comum e para métodos de pressão comuns com demais sindicatos. É como se disséssemos "eu não acredito mais em greve, mas os outros acreditam.". Ou, eu não acredito em greve, mas, mesmo assim, alguém acredita".Assim, ao reivindicarem o instrumento de greve e exibirem o número de suas deflagrações, o significante é adotado como se já carregasse uma representação inerente, como se seu significado permanecesse imóvel em enunciados - aquilo que poderíamos situar no campo da universalidade: "toda greve é assim" ou "quando falamos greve, falamos de combatividade". Mas, o sujeito que reivindica o termo, ainda que se apoie em algum Outro que lhe dá o aval ou o "visto" - a história, a cultura - rejeita este mesmo conteúdo, tal como se disséssemos "proibido regras universais" ou, neste caso, "quando falamos greve, não falamos como grevistas". Na forma de conduzir a greve - em sua prática - e em sua concepção (e, aqui, está o caso claro em que a prática produz concepção, pois, a tentativa de sublimação dos fracassos, por conversão em balanços e relatos quase líricos de vitórias, vão forjando os fundamentos fantasiosos de "um novo modo de fazer greve"), o significante, assim, adquire as feições (e só em usar tal palavra, já se nota) de uma insígnia, de um ícone, que poderia nos sugerir um espécie de perversão da esquerda, de um uso leviano, descuidado e irresponsável da linguagem, tal como um uso imaginário do significante, em que a palavra "greve", por exemplo, é uma imagem meramente ilustrativa. Assim, estaríamos diante de uma possível parceria entre um sujeito que sabe que o significante não tem referente garantido e um Outro para quem este significante seria um signo.

O caminho para compreendermos tal contradição pode ter como auxílio o diagnóstico do Império das Imagens, ainda que não nos filiemos à plenitude de suas consequências teóricas, tal como formuladas por alguns psicanalistas. A razão pela qual seguimos os indícios de tal diagnóstico encontra-se no fato de que estamos, indubitavelmente, tratando de um tipo de ação que foca na produção de fachadas - de identificações imaginárias -, em prejuízo de bastidores, cada vez mais despidos de efetividade simbólica. Seguindo este percurso, somos levados, porém, a compreender a ação performática comoum tipo de compulsão à repetiçãomais associada a uma Passagem ao Ato, dado que, para aqueles que apontam para uma Era do Império das Imagens, esta forma de atuação é a preponderante neste contexto de declínio da função paterna. Entretanto, a ação performática reúne também características próximas de um Acting Out, dado que que se confundem com aquelas que sintetizam um tipo de ação inserido em um campo simbólico, em que, portanto, a função paterna é preservada e um referencial cultural é mantido, a despeito de uma possível forma contraditória de manutenção.

Assim, nos marcos do Império das Imagens, nosso conceito apontaria para a inexistência do grande Outro e um tipo de atuação nos moldes de uma Passagem ao Ato. Enquanto uma ação dirigida a um Outro - a mídia de massa, o stalinismo ou mesmo campos teóricos adotados, mas não assumidos, como o negrianismo - com pretensões de descolamento de uma herança simbólica, a ação performática parece reunir, características de um Acting Out. Razão pela qual nosso conceito aparenta reunir, em um só tipo de atuação, aspectos historicamente disjuntos: de Acting Out e de Passagem ao A'o. Tal articulação nos serve como exercício de operação conceitual de tal modo a nos permitir situar os atos e protestos no seio da crise da forma partido.Trata-se, portanto,de uma petição de principio, cuja estratégia metodológica é a criação do binômio ação performática/hábito e a importação dos termos compulsão a repetição, Acting Out e Passagem ao Ato para o campo da ciência política.

 

Acting Out e Passagem ao Ato: recursos clínicos para uma análise política

Em Além do Princípio do Prazer (1996/1920) Freud dedica-se a estudar a repetição por transferência, a partir de uma experiência de neurose traumática. Freud já procurava compreender as consequências possíveis do recalque, do trauma que não é simbolizado, que não é objeto de elaboração. Neste sentido é que irá sugerir um retorno ao recalque, não pela via da elaboração, em que se traduz o trauma em linguagem. Haveria uma outra forma de repetir, por via da produção de uma cena que representaria o trauma, dirigida a um outro. Em O Caso Dora, Freud apontará para uma falha no trabalho interpretativo que daria ensejo a esta forma de atuação: o Acting Out. Em termos gerais, diríamos que, quando o outro a quem se dirige um material analítico não o acolhe, estamos diante da repetição por uma cena, como Acting Out.

O Acting Out seria justamente a atuação como forma de representar um recalque, um trauma que ainda não foi simbolizado e que o Outro, no caso o analista, recusou-se a ouvir. Nestes termos, ao abordarmos a repetição como Acting Out, estamos tratando de uma ação em que seu ator procura se desimplicar, busca imprimir um caráter espontâneo ao ato, sem conteúdo e forma previamente elaborado, de tal modo a que o Outro o subjetive, de maneira que aquela ação sirva como recurso de subjetivação, de determinação daquele sujeito.

A Passagem ao Ato, por sua vez, termo extraído da psiquiatria, corresponde, na psicanálise, àquele ato que parece substituir o pensamento, tal como uma descarga motora, com um caráter frequentemente imprevisível e anti-social, delituoso, violento. Para Lacan (1962/2004), trataria-se do efeito de um modo pré-edipiano de funcionamento psíquico em que dominam processos primários de resolução de angústia, diante da incapacidade de tolerar frustrações. Este tipo de atuação aparece comumente como algo não reivindicado pelo autor, mas sim como algo por ele sofrido ou a ele forçado. Haveria, portanto, um Eu original, ao mesmo tempo fraco e grandioso. Este último, sedento por um controle e uma onipotência sobre os outros. É comum associar à Passagem ao Ato a uma carência de identificação e a um transbordamento do mundo da fantasia na realidade.

A Passagem ao Ato corresponderia a um tipo de atuação inserida no contexto, da identificação pelo gozo, em que o S1, como identificação simbólica, equivale mais a um I (A/). Em outros termos, em lugar de um Grande Outro, estaríamos tratando de vários pequenos outros que atuariam tal como intrusos, em que a identificação constitutiva do Eu se daria por imagens, sem o suporte simbólico. Assim, a passagem do i(a), do falo imaginário, φ, como aquela substância que reúne as características daquilo que, em tese, supre a falta, para o S(A/), para o falo simbólico, Φ, daquilo que imprime valor àquela coisa, àquela substância, e que insere o sujeito na ordem simbólica, seria inviabilizada por um contexto sintetizado pelo I(A/). A angústia de um corpo que não dispõe de um outro que lhe dê sentido - um outro transcendente - , mas apenas de outros que lhes ameaçam desmembrá-lo, encontra meios de superação pela via de uma satisfação no próprio corpo, geralmente por via de algum recurso violento ou espetacular, em "rituais extraordinários" ou em gestos que permitam à sensação de unidade por via de sua própria negação.

Neste sentido, a Passagem ao Ato encontra terreno fértil no contexto do Império das Imagens. Tal diagnóstico apoia-se na tese do declínio da função paterna, ou seja, da superação do campo da linguagem como mediação universal, este último tido como um outro terreno da inércia, o da fixação simbólica, por meio de universalismos. O fracasso do simbólico estaria associado ao esgotamento das grandes narrativas, das ideologias e das instituições tradicionais, que não ofereceriam mais um centro de gravidade para as identificações simbólicas. Algo vinculado à constatação de uma ineficácia na luta, nas relações conflitivas, características do terreno da interpretação e da elaboração. O Império das Imagens seria aquele contexto em que reina o silêncio, a alienação e a inércia da repetição compulsiva, em que a formação inconsciente não registra no outro, de modo que a repetição, tal como um vício, nunca é suprassumida, nem encadeada como algo interpretável.

 

Ação Performática e o Império da Imagem

É possível compreendermos o porquê de a ação de sujeitos sob o Império das Imagens tenderem àuma Passagem ao Ato, pois consistiria em trazer para o âmbito da relação com outros imediatos - e não mediados pela cultura - a dinâmica de um gozo, restrita a um tempo presente e experimentada no corpo sem o suporte simbólico. Se antes o sujeito era mediado por algo que apontava para uma alteridade irredutível, indicadora de algo sempre incompleto, fora do tempo e do espaço - e por que não dizermos: utópico?- hoje, o sujeito se encontraria imediatizado em um deserto de identificações imaginárias. Diante deste contexto, o diagnóstico do Império da Imagem e do declínio da função paterna costuma distinguir duas tendências, quais sejam: 1. da debilidade das identificações, produtora de sujeitos desorientados, extraviados, destinados à comunidades de gozo e; 2. de identificações imaginarias radicais, com suporte em um "Mestre Absoluto", "não dialetizáveis", destinadas a comunidades fechadas, "donas da verdade". Os dois como manifestação de uma época de pulverização e atomização social.

Nesta direção, o diagnóstico do Império da Imagem nos serve de ponto de partida metodológico, pois o redirecionamento da investigação a que se propõe, da escuta da fala para a escuta do corpo, nos orienta também à medida em que estamos atentos ao que diz a ação performática quanto ao corpo do partido revolucionário, quanto à sua forma. Partir, portanto, de um sintoma em que o sujeito coletivo rejeita sua própria forma pode ser um sinal de que estamos transitando por fenômenos parecidos. Esta seria, aliás, a semelhança entre um gozo no corpo através de quadros como bulimia e anorexia, ou por via de práticas auto-destrutivas como alcoolismo ou auto-mutilações - que desestabilizam um corpo, em face da ameaça de que esta desestabilização seja produzida por outros - com a ação performática. Todas essas formas de atuação se apoiam na satisfação imediata do ato e em um papel inflacionado das imagens. Um exemplo caricato deste gozo no corpo de sujeitos coletivos, de um equívoco escrito sobre o próprio corpo, de sua forma - se gorda ou magra -, está em partidos que, a despeito de seus registros formais e de sua forma de estruturação, apresentam-se a seu público alvo sob a insígnia de movimentos, assim, muitas vezes, denominando-se. Quanto à satisfação imediata do ato, por meio de gestos extraordinários - como um gozo no corpo tal como descarga de energia ou êxtase pragmático -, o desejo de alguns manifestantes em vivenciar um confronto com a polícia se apresenta como um bom exemplo, em quea experiência de violência serve para imprimir uma sensação de que sujeito da ação é efetivamente ameaçador à ordem.

Deste modo, partimos também da escuta do corpo para propormos três caminhos, que, inicialmente, permitem-nos uma licença teórica de articular alguns fenômenosincompatíveis: 1. um olhar atento ao corpo, levando em conta a presença de um cenário e um Outro a quem se dirige - em que se dáo Acting Out - e, a ação ensimesmada, auto-destrutiva, para a qual os outros são sempre intrusos - em que se dáa Passagem ao Ato; 2. um olhar sobre um corpo, ao mesmo tempo, debilitado - pois em si mesmo desencontrado de si mesmo, ignorante da estrutura que lhe captura -, e fechado - pois certo de sua verdade, despido de laço social e retirado de relações de intersubjetividade simbólica6; e 3. um olhar sobre o corpo que rejeita a história da insígnia que reivindica, cujo abjeto éobjeto a, em que a inércia do simbólico é, ao mesmo tempo, proveitosa, graças à conveniência dos significados inerentes, ao mesmo tempo vergonhosa, pois permeada de um conteúdo pouco elaborado, sob a roupagem do fantasma do stalinismo.

Esses três caminhos chegam a uma figura no mínimo estranha, que, de fato, aponta para algo disjunto, como se estivéssemos tratando de um sujeito que encena sua própria queda, como se subisse à cena para cair dela, ao ponto de concebermos estarmos tratando de um sujeito que simula uma lalíngua. O que é curioso porque, de fato, é como se um militante, ao repetir, como um significante vazio, "greve, greve, greve", retirasse o sentido da palavra, ainda que a repetisse apenas por conta de seu conteúdo histórico..

 

Ao mesmo tempo

Seja o Acting Out, seja a Passagem ao Ato, ambos são atuação com algum potencial deauto-destruição do sujeito. O primeiro, porém, preserva algo que está no campo da simulação de uma espontaneidade e se situa em algum cenário em que existe um Outro que o interpela; o segundo é impulsividade sem cenário, em que a alteridade é encarnada em pequenos outros, geralmente persecutórios, e o elemento auto-destrutivo atinge o corpo do sujeito, propriamente. Deste modo, Acting Out e Passagem ao Ato encontram-se em polos opostos, em que, de um lado, só há o Outro, e tudo a ele é dirigido, de outro lado, não há Outro e em que nada sobra. Razão pela qual a Passagem ao Ato se expressa, por excelência, no suicídio, quando nada, nem ninguém sustenta o sujeito em vida.

Nestes marcos, a ação performática assemelha-se a Passagem ao Ato, em que identificações imaginárias são o material para corpos resistindo a toda maneira de enquadrá-lo. Ela é concentrada no tempo, preservando este caráter precário das identificações imaginárias e do uso imaginário dos significantes. Diríamos que a ação performática seria Passagem ao Ato porque age fora de um cenário, fora daquele lugar onde o sujeito atua sob o olhar do Outro. Portanto, uma açãosem suporteno simbólico, vazio de fé instituível, que busca se separar do outro que o persegue: a ideia de unidade, de disciplina, associada à burocratização e, devidamente, repelida pela centralidade na ação, como prova indubitável de vitalidade.

Um relato de um ativista chamado Dave Mitchell7 acerca de um episódio ocorrido em uma passeata no Canadá serve de mais uma ilustração do que estamos chamando de ação performática:

"No dia 20 de abril, primeiro dia das passeatas, marchamos aos milhares em direção à grade, atrás da qual 34 chefes de estado se reuniam para consolidar um acordo mercantil hemisférico. Sob uma chuva de ursinhos de pelúcia catapultados, os ativistas vestidos de preto rapidamente removeram os suportes da cerca usando alicates e a derrubaram usando ganchos, enquanto eram aplaudidos pelos demais. Por um breve momento, nada nos separava do centro de convenção. Nós nos amontoamos sobre a cerca derrubada, mas a maior parte de nós não seguiu em frente, como se nossa intenção o tempo todo tivesse sido a de substituir a cerca e a barreira de concreto colocada pelo Estado com uma feita de gente, de nossa própria criação."

O trecho acima pode ser a síntese do caráter sintomático da ação performática, pois ilustra perfeitamente a situação de uma esquerda servindo de cerca de si mesmo. Algo que parece nos dirigir à hipótese de estarmos tratando, efetivamente, de um ato político que se assemelha a uma Passagem ao Ato, pois talvez não haja exemplo melhor para acreditarmos estarmos diante de um gozo no corpo experimentado por sujeitos políticos auto-destrutivos e impotentes. Mas, a despeito das semelhanças, situamos a ação performática no marco de um Acting Out porque, ainda que caracterizada como uma tática centrada no evento, algo que nos indica se tratar de um ato em si mesmo, a ação segue sendo dirigida a um Outro que lhe dê sentido - ainda que um Outro não assumido. Estaria aí talvez o elemento novo que nos produz confusão: um Outro extraviado, que lhe é abjeto - A Mídia, Stalin e os Agentes do Poder Econômico. Todos esses servindo de endereço, como campos, de fato, bem estruturados e organizados. Neste sentido, a ação performática guarda semelhança com a noção de Acting Out por justamente ser um tipo de ação aparentemente espontânea, porém restaurada, emoldurada, pois dirigida a um Outro, encarregado de lhe dar sentido e que lhe recusou escuta.

E aqui está nosso ponto de virada. Pois estamos tratando de um sujeito que endereça suas demandas a um Outro, mas que, ao mesmo tempo, parece sofrer no próprio corpo as consequências de uma perda de assunção simbólica. Mas isto se deve ao fato de que o partido revolucionário, que pretende extrapolar a democracia representativa, ser, ao mesmo tempo, aquele sujeito encarregado não só de apresentar as demandas, mas de instigar sua produção e de dar-lhes ouvido, de construir um Outro a quem endereçar tais demandas. Portanto, se ele extravia a demanda é ele mesmo o extraviado. Neste sentido, a aparência de Passagem ao Ato se explica porque, ao rejeitar um grande Outro, o partido rejeita a si mesmo. Assim, ao situarmos a ação performática nos marcos de uma compulsão à repetição como Acting Out o que buscamos é desvelar o imaginário da fluidez e da espontaneidade de um sujeito livre e autônomo, despido da ameaça castradora do Pai, como mera tática de um sujeito não só inserido ainda em uma cultura, mas ciente de sua responsabilidade em criar outra.

Deste modo, o fenômeno da ação performática, cujos sujeitos exibem a máscara de uma Passagem ao Ato, mas atuam sob um Acting Out, permite-nos arriscar uma hipótese: de que o Império das Imagens, como recurso interpretativo apropriado pela ciência política para a análise da ação coletiva, corresponderia muito mais a um giro do sujeito, a uma tática, do que a um diagnóstico de época. Algo que nos provocaria a pensar em que medida o grande Outro, para muitos devidamente e inevitavelmente superado, diante do declínio da função paterna dos universalismos transcendentais, não seja propriamente inexistente, mas ocultado e denegado.

Nesta hipótese, torna-se possível notar em um só corpo politico aquilo que o diagnóstico do Império das Imagens convencionou separar: um aspecto, ao mesmo tempo, de debilidade das identificações - que permite ao sujeito um "mais de gozo do corpo que goza de si mesmo" - e de auto-suficiência- que justifica um sujeitofechado em si mesmo e certo de suas verdades. Manifestações estas passíveis de serem observadas em partidos, ao mesmo tempo, frágeis em sua constituição e em sua capacidade de intervenção e sectários, ensimesmados, crédulos de deterem a titularidade de um ideal por eles encarnado.

Talvez, o caminho para a superação deste sujeito, desorientado, anômico e fechado em si, seja não só a constatação da possibilidade desta fusão, mas que, a partir disto, é possível também atentarmos para o papel dos partidos revolucionários, ao mesmo tempo, na produção das demandas e na construção de uma instância capaz de ouvi-las.

 

Referências

Badiou, A.(1995).Ética, um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relume-Dumará         [ Links ]

Freud, S. (1996/1920). Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago        [ Links ]

Hegel, G.W.F. (1997). Princípios da Filosofia do Direito.São Paulo: Martins Fontes        [ Links ]

Lacan, J. (1962/2004) Le Seminaire, livre 10: l'angoisse. Paris: Seuil,         [ Links ]

Negri, A. (2009)Comnunism: some thought on concept and practice. In. Idea of Communism. Londres: Verso        [ Links ]

______. (2003). 5 lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A        [ Links ]

Postone, M. (2006).History and Helplessness. Public Culture 18:1. New York, Duke University Press, 2006;         [ Links ]

Zizek, S. (2015). Menos que nada. São Paulo: Boitempo;         [ Links ]

______. (2011) Viver no fim dos tempos. Lisboa, Relógio D'Água.         [ Links ]

 

 

Recebido/Received: 30.11.2015/11.30.2015
Aceito/Accepted: 21.12.2015/12.21.2015

 

 

1 Para melhor compreensão da gênese do conceito de Ação Performática ver GURGEL, Clarisse. Ação Performática: sintomas de uma crise política. In. http://www.niepmarx.com.br/MM2015/anais2015/mc56/Tc563.pdf
2 Tais formas alternativas de rotinização têm como fonte de elaboração as reflexões hegelianas acerca da figura do hábito, assim como toda nossa pesquisa é orientada pelas lições de Hegel, permeada pela relação dialética entre universal e particular, entre representação como universalidade formal, em contraposição ao universal concreto. Este aspecto, embora pouco explicitado neste trabalho, pelo caráter conciso que possui, é, aliás, o que confirma a invariância conceitual proposta por Zizek, dado que temos em Hegel o terceiro elemento que nos permite estabelecermos a relação entre a política e a psicanálise, sem cairmos nas armadilhas de conversões diretas;
3 Em outro trabalho, analisamos em que medida a abdicação da disputa pelo aparelho do Estado pode resultar no retorno do conceito de Poulantzas de Estado para o conceito clássico marxiano. Se, em Poulantzas, o Estado não pode ser visto como um simples apêndice-reflexo do econômico, pois tem suas relações e suas matizes modificadas em respostas às tensões de classe, em um contexto em que desaparece a real ameaça de tomada do Estado, por parte da classe trabalhadora, ele parece se tornar impermeável às pressões populares, reaproximando-se de um simples comitêda classe dominante.
4 Negri superdimensiona o potencial revolucionário da crise do valor. Não vêque a passagem da subsunção formal para a subsunção real éa passagem para um modo de submissão apoiado em um modelo de "indústria humana". Para que o tempo livre de trabalho se constitua, de fato, em tempo de "expressão produtiva", de criação com ímpeto libertador, épreciso que a redução da jornada de trabalho seja um dispositivo revolucionário de generalização do trabalho, conforme afirma Marx.
5 Ao estabelecermos a relação entre as análises marxistas e a psicanálise, não abrimos mão de reconhecer a tensão entre o social e o psíquico, mas caminhamos também na direção de uma articulação entre o universal e o particular, na perspectiva de combatermos um psicologismo abstrato, tal como chama Zizek, em Eles não sabem o que fazem. Neste sentido éque tomamos a liberdade de sugerir uma patologia do partido, algo como uma espécie de pervesão partidária. Algo que possui, justamente, como uma de suas hipóteses iniciais ser o stalinismo aquele que faz as vezes do Grande Outro super poderoso, diante de partidos em crises organizacionais.
6 Razão pela qual podemos encontrar elementos do Império da Imagem que expliquem o próprio sectarismo na esquerda: pratica de um sujeito que se constitui ou a partir do olhar de outros a ele contemporâneo, que lhe ameaçam como aquilo que nomeia tudo o que deve ser rejeitado (como intrusos), ou a partir de identificações imaginárias sobre esses outros, em que sobre eles são impostos meras caricaturas. Ainda que possa parecer uma apropriação indevida, Hegel parece nos auxiliar na compreensão da relação possível entre alguns aspectos do "Império das Imagens" e aquilo que encarna hoje uma espécie de mais-de-gozar da esquerda: seu sectarismo como trilha para o eterno fracasso. Hegel, nos Princípios da Filosofia do Direito, aponta para a atitude do sentimento ingênuo de simplesmente "se limitar à verdade publicamente reconhecida, com uma confiante convicção, e de, sobre esta firme base, estabelecer a sua conduta e a sua posição na vida" (HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito.São Paulo: Martins Fontes,1997, p.XXVI). Trataria-se de fundamentar a verdade não no desenvolvimento dos pensamentos, mas no sentimento imediato e na imaginação contingente.
7 relato publicado, em 26 de junho de 2011, em uma resenha intitulada "Stuff white people smash" In: http://rabble.ca/books/reviews/2011/06/stuff-white-people-smash

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