SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 issue7The Empire of Images The Performative action between Acting Out and Walkway to ActTowards a listening and Communist music author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.7 São João del Rei July/Dec. 2015

 

Uma investigação sobre a forma de propriedade verdadeiramente humana em Marx

 

An investigation on how to truly human property in Marx

 

Une enquête sur la façon de vraiment humain dans la propriété Marx

 

Una investigación sobre cómo realmente propiedad humana en Marx

 

 

Carlos Augusto Pereira

Doutor em História Comparada pela UFRJ e membro do Círculo de Estudos da Ideia e Ideologia - CEII

 

 


RESUMO

Neste trabalho, aventaremos a hipótese que certos procedimentos institucionais criados pela organização do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia podem ser tomados como "proto-exemplos" da propriedade verdadeiramente humana. Para defender esta hipótese, apresentaremos a diferença entre propriedade privada e propriedade verdadeiramente humana, tal como apresentada nos Manuscritos Econômico Filosóficos de Marx, ii) situar o estilo, tendo com principal autor de referência o psicanalista francês Jacques Lacan, como uma das características da propriedade verdadeiramente humana, iii) sustentar a homologia entre a forma da produção de trabalho no CEII e a propriedade verdadeiramente humana.

Palavras-chave: Emancipação humana; propriedade privada; comunismo.


ABSTRACT

In this study, our hypothesis is that certain institutional procedures created by Circle of Studies of Idea and Ideology (CSII) can be assumed such as "proto-examples" of truly human property. To stand by this hypothesis, we will i) show the difference between private property and truly human property, based on Marx's Economic and Philosophic Manuscripts; ii) place Style as one of the characteristics of truly human property, taking Jacques Lacan as main reference; iii) sustain the homology between the way to produce work at CSII and the truly human property.

Key-words: Human emancipation; private property; communism.


RÉSUMÉ

Danscet article, nous émettons l'hypothèse que certaines procédures institutionnelles créées par l'organisation Idea Study Circle et idéologie peuvent être prises comme des «proto-exemples» de la propriété vraiment humaine. Pour défendre cette hypothèse, nous présentons la différence entre la propriétéprivée et la propriété vraiment humaine telle que présentée dans les Manuscrits économiques et philosophiques Marx, ii) placer le style, et en référence primaire à l'auteur le psychanalyste français Jacques Lacan, commel'une des caractéristiques de la propriétén vraiment humaine, iii) appuyer l'homologie entre la forme du travail de production et des biensdans ERIC vraimenthumaine.

Mots-clés: l'émancipationhumaine; la propriétéprivée; communisme.


RESUMEN

En este trabajo, la hipótesis de que ciertos procedimientos institucionales creados por la organización Idea Círculo de Estudios e ideología pueden ser tomadas como "proto-ejemplos" de propiedad verdaderamente humana. Para defender esta hipótesis, se presenta la diferencia entre la propiedad privada y la propiedad verdaderamente humana tal como se presenta en el Manuscritos económico filosóficos de Marx, ii) colocar el estilo, y con referencia principal al autor el psicoanalista francés Jacques Lacan, como una de las características de la propiedad verdaderamente humano, iii) apoyar la homología entre la forma del trabajo de producción en ERIC y propiedad verdaderamente humana.

Palabras clave: Emancipación Humana; propiedad privada; comunismo.


 

 

A questão da emancipação humana se tornou um dos grandes desafios de reflexão sobre os destinos de uma sociedade pós-capitalista, notadamente diante das contradições do chamado "socialismo realmente existente". Contra a concepção de que essa questão só pode ser colocada num momento pós -capitalista, partiremos do desafio de que exemplos vivenciais do comunismo podem (e devem) ser identificados durante o capitalismo (e a partir disso valorizá-los e ressignificá-los). Uma das principais dificuldades desta empreitada é o estabelecimento de parâmetros de avaliação desses exemplos concretos, agravada pelo fato de Marx ter nos legado poucos estudos sobre o que seria uma sociedade comunista, havendo apenas indícios dispersos.

Todavia, encontramos nos Manuscritos Econômico-Filosóficos um momento privilegiado desta questão. Neles, Marx apresenta, por exemplo, o problema da passagem da propriedade privada capitalista à propriedade verdadeiramente humana comunista. Neste trabalho, aventaremos a hipótese de que certos procedimentos institucionais criados pela organização do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia podem ser tomados como "proto-exemplos" da propriedade verdadeiramente humana. Para defender esta hipótese, faremos o seguinte trajeto de estudo: i) apresentar a diferença entre propriedade privada e propriedade verdadeiramente humana, tal como apresentada nos referidos Manuscritos, ii) situar o estilo como uma das características da propriedade verdadeiramente humana, tendo com principal autor de referência o psicanalista francês Jacques Lacan iii) sustentar a homologia entre a forma da produção de trabalho no CEII e a propriedade verdadeiramente humana.

Na seção Trabalho estranhado e propriedade privada, dos "Manuscritos Econômico-filosóficos", Marx inicia sua descrição da propriedade privada como o fundamento do capitalismo. As leis da propriedade privada, que não são esclarecidas pela economia política, estão fundadas na separação entre trabalho e capital que produz uma série de conseqüências, de tal maneira que a lógica pautada no interesse do capitalista modifica o terreno em que a própria atividade humana se realiza.

O fundamento da propriedade privada como sentido de sociedade realiza duas operações: 1) a inversão da relação entre trabalhador e produto do trabalho. A alienação (Entäusserung) do objeto que é própria ao processo de trabalho se torna agora a alienação do homem, fazendo com que o objeto de trabalho, antes dominado, se torne hostil ao trabalhador; 2) e a naturalização e reafirmação constante desta inversão gerada pelo próprio ato de trabalho, de forma que a atividade do trabalhador só aumenta sua condição alienada e sua própria atividade se torna o motor de sua dependência, isto é, o próprio ser do trabalhador é estranhado (Entfremdung).

O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung). (MARX, 2010, p.80)

Na passagem acima podemos perceber de maneira sintetizada como o fundamento da propriedade privada opera. A realização do trabalho se dá na fixação do trabalho em um objeto. Nisto o trabalhador se efetiva enquanto tal, se apropria do produto do seu trabalho no mesmo movimento que o externalizar. No capitalismo ("estado nacional-econômico"), essa efetivação do trabalhador aparece como desefetivação. O trabalho, que antes era objetivação do objeto, se torna servidão ao objeto, ou seja, há uma inversão (o trabalhador não domina o objeto de trabalho, mas o objeto de trabalho é que o domina ele). E a apropriação, que antes era apropriação do produto do trabalho, se torna estranhamento. O ser do trabalhador é alterado em sua essência. Como diz Marx, "o trabalho mesmo se torna um objeto" (op.cit., p.81).

A propriedade privada altera as relações estabelecidas do trabalhador com o mundo, modificando o próprio trabalho. A relação do trabalhador com a natureza não é mais uma relação com o mundo exterior sensível no qual se torna um indíviduo ativo pelo trabalho, mas um processo em que o mundo exterior sensível não lhe aparece mais como meio de vida, ao mesmo que sua condição humana é reduzida a um meio de vida ela mesma, um meio de vida para o capital. Sua existência é reduzida às condições mínimas de sobrevivência. "O auge desta servidão é que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador" (op.cit., p.82).

Das duas operações da propriedade privada descritas acima Marx desdobra uma terceira que as engloba: a propriedade privada promove o estranhamento do gênero humano, "a vida engendradora de vida". Diferente do animal, em que coincide imediatamente com a natureza, o homem mantém distância dela. Essa distância o obriga a lançar mão de suas qualidades individuais para conquistar na relação de objeto sua existência. O animal não possui propriamente seu gênero, ele apenas repete os desígnios naturais determinados pela sua espécie. O homem não coincide com as características de sua espécie porque sua própria natureza é constituir-se. "Um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico" (op.cit., p.85).

A propriedade privada, ao arrancar o homem de sua vida genérica, inocula o estranhamento no interior de sua atividade vital, no seio do trabalho. "Quando arranca do homem o objeto de sua produção, o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica, sua efetiva objetividade genérica" (idem). Marx afirma que a consequência do trabalho estranhado é o estranhamento do homem pelo homem. "A questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência humana" (op.cit., p.86). São os critérios estabelecidos pela propriedade privada que vão fundamentar a relação do trabalhador consigo mesmo e com seus pares.

Neste momento, Marx faz uma pergunta fundamental: "Se minha própria atividade não me pertence, é uma atividade estranha, forçada, a quem ela pertence, então? A outro ser que não eu. Quem é este ser?" (idem). Não são os deuses... Tampouco a natureza, a quem o trabalhador se encontra subjugado. A atividade do trabalhador pertence a um homem. Mas este homem não pode ser o trabalhador, pois os trabalhadores estão estranhando em si e entre si. Então, a atividade pertence a um outro homem que não o trabalhador. Um homem que seja um não trabalhador. Se a atividade do trabalhador no modo de produção capitalista é um martírio, para o não-trabalhador é pura fruição. Ele seria o responsável em fruir a produção possibilitada pelo trabalho estranhado. Este "outro homem", o não-trabalhador, é o senhor do produto alijado do trabalhador, embora por ele forjado.

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho está diante dele, então isso só é possível pelo fato de o produto do trabalho pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem.

(...) Se ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, enquanto objeto estranho, hostil, poderoso, independente dele, então se relaciona com ele de forma tal que um outro homem estranho a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto. Se ele se relaciona com a sua própria atividade como uma atividade não-livre, então ele se relaciona com ela como a atividade a serviço de, sob o domínio, a violência e o jugo de um outro homem. (op. cit, p.87)

Esse não-trabalhador, no entanto, não se restringe a uma figura social predeterminada. Sem dúvida, tanto o trabalhador como o não-trabalhador, por estarem entrelaçados no mundo, são personificados, estão ancorados em nomes que discursivamente existem. No entanto, o fato de podermos dizer que fulano é trabalhador e beltrano é não-trabalhador, nunca nos garantirá a total certeza da assertiva. Não são os lugares sociais ocupados por indivíduos específicos que determinam o que sejam o trabalhador e o não-trabalhador, mas o processo de organização societária que nos atravessa. Para a economia política pouca importa a pessoa que ocupe o lugar social, desde que ela mantenha a função de trabalhador ou não trabalhador. Por exemplo, o ex-operário ou militante de esquerda pode cumprir muito bem a função de não-trabalhador. Os sujeitos não são "em-si", não existe uma essência que possa predeterminá-los. Por isso, o trabalhador e o não-trabalhador são categorias que tentam sustentar a experiência subjetiva - trata-se de uma construção lógica. São modos de ser. "O trabalhador só é, enquanto trabalhador, assim que é para si como capital, e só é, como capital, assim que um capital é para ele" (op.cit.p.91).

Entre as categorias trabalhador e não-trabalhador há uma relação de causa. Para Marx, é o trabalhador que engendra o não-trabalhador. Este é conseqüência necessária do trabalho estranhado efetivado pelo trabalhador. Assim como a religião, em que o leigo precisa do sacerdote como uma espécie de mediador com Deus, o trabalhador necessita do não-trabalhador como um senhor capaz de sustentar a sua situação estranhada.

Todo auto-estranhamento do homem de si e da natureza aparece na relação que ele outorga a si e à natureza para com os outros homens diferenciados de si mesmo. (...) Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para com estes outros homens. Assim como ele engendra a sua própria produção para a sua desefetivação, para o seu castigo, assim como engendra o seu próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal como estranha a si a sua própria atividade, ele apropria para o estranho a atividade não própria deste. (op. cit, p.87, negrito meu)

Para que a categoria do não-trabalhador se realize é preciso que a própria produção estranhada seja ocultada e justificada incessantemente - essa é a função da propriedade privada. O sentido da propriedade privada, propalado pelo não-trabalhador, é a tentativa de construir um discurso que inverta as posições entre objeto e produto no processo de trabalho. O modo estranhado como o produto se realiza é tratado como objetivo final do trabalho. Por isso, o sentido da propriedade privada factualiza o estranhamento, tornando-o um destino reconhecidamente irrevogável para o trabalhador.

Contudo, como vimos, é o trabalhador que engendra o não-trabalhador e a relação deste com o trabalho. O não-trabalhador não está em condições de definir a relação de trabalho. Se para a economia nacional é o não-trabalhador que sustenta teoricamente a propriedade privada e, partir dela, justifica a necessidade do trabalhador; para uma perspectiva crítica, é a partir de uma necessidade do discurso do trabalhador que o não-trabalhador se faz presente, erigindo, em decorrência de sua posição, a idéia de propriedade privada. Por isso, Marx nos diz: "a propriedade privada resulta, portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado" (op.cit.p.87).

Numa leitura apressada, poderíamos determinar que o não-trabalhador se encontra "fora" do estranhamento do modo de produção capitalista, já que apenas usufrui do produto do trabalho explorado. Todavia, o não-trabalhador também está atolado no fundamento da propriedade privada. Para o trabalhador, o estranhamento se dá na atividade, no processo de trabalho, na desobjetivação, criando um produto alheio a si; o não-trabalhador, porque só usufrui do produto estranhado, desco-nhece totalmente o processo de trabalho estranhado, vivendo num estado de alienação. Por mais que o processo de trabalho seja aviltante para o trabalhador, é somente ele que se encontra corporalmente envolvido na atividade produtiva; o não-trabalhador é conseqüência - alguém que precisa usufruir o produto do trabalho. É uma conseqüência que enlaça as relações imbricadas no fundamento da propriedade privada , mas apenas conseqüência. É prerrogativa do trabalhador, e não do não-trabalhador, a possibilidade de superação do sentido do trabalho estranhado. O não-trabalhador possui uma espécie de comportamento "teórico", visando a construção de justificativas morais para a necessidade do capitalismo. Já o trabalhador possui um comportamento "efetivo", tendo em vista que o processo de trabalho é desobjetivação, portanto, desefetivação. A cada momento que se consolida o fundamento da propriedade privada, mais o trabalhador age contra si mesmo e o não-trabalhador contra este. O trabalhador não somente forja o não-trabalhador, como "exige" que este adote uma postura contrária à sua existência. Um quadro da relação entre trabalhador e não-trabalhador poderia ser assim montado:

 

 

Paradoxalmente, no entanto, é justamente nessa relação com o não-trabalhador que o estranhamento do trabalhador pode aparecer. Percebe-se que nessa relação o não-trabalhador não é um sujeito "mau", "algoz", mas o resultado da propriedade privada. O não-trabalhador é o mediador, o possibilitador do sentido do trabalho estranhado, o alicerce da relação. O não-trabalhador ocupa essa função porque o trabalhador o engendrou. Ele projeta o domínio daquele que só usufrui, o não-trabalhador.

Em princípio, seria forçado afirmar que o trabalhador engendra o não-trabalhador. Esta afirmação parece ir de encontro à famosa sentença de Marx que "não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, inversamente, seu ser social que determina a consciência". Mas o engendramento não é feito por meio de alguma "vontade" por parte do trabalhador. O engendramento se dá porque o próprio trabalhador incorpora a lógica da propriedade privada. "A propriedade privada se incorpora ao próprio homem e reconhece o próprio homem enquanto sua essência - mas, assim, o próprio homem é posto na determinação da propriedade privada" (op. cit. 99).

Dizer que o trabalhador engendra o não-trabalhador significa que a propriedade privada não está mais numa relação de externalidade, mas que foi incorporada. O que antes ele vivia como uma tensão externa diante de sua condição de submissão ao trabalho estranhado, agora "ele próprio se tornou essa essência tensa da propriedade privada" (op. cit., p.100). Essa incorporação da propriedade privada permite que o fundamento do capital possa se expandir ilimitadamente, pois agora é o trabalhador que leva consigo, em seu ser e realizando pelo ato de trabalho, o modo de ser do capital. A propriedade privada foi deslocada "para a própria essência do homem", e com isso acabou por desenvolver "uma energia cosmopolita, universal, que derruba toda barreira, todo vínculo, para se colocar na posição de única política, universalidade, barreira e vínculo" (idem).

Essa incorporação da propriedade privada pelo próprio ser social do trabalhador torna indiferente a relação tensa entre sem propriedade e propriedade, se contradição sujetiva entre a trabalho e capital não for concebida. "O trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada enquanto exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho, são a propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição" (op.cit., p.103). Mas complementa Marx que esta contradição interna radical entre trabalho e capital "tende à solução".

Depois deste diagnóstico preciso e radical, a pergunta imediata que sobrevém é "qual encaminhamento Marx dá ao problema do estranhamento?". Na seção Propriedade privada e comunismo, dos "Manuscritos econômico-filosóficos", Marx tenta apresentar alguns elementos do que, no contexto daquele momento de sua obra, denominou de comunismo. Antes, ele descreve o que o seria uma tentativa, talvez mais imediata, de superação da propriedade privada, que denominará de comunismo rude.

Este comunismo - que por toda a parte nega a personalidade do homem - é precisamente apenas a expressão consequente da propriedade privada, que por sua vez é esta negação. A inveja universal constituindo-se enquanto poder é a forma oculta na qual a cobiça se estabelece e apenas se satisfaz de um outro modo. A ideia de toda propriedade privada como tal está pelo menos voltada contra a propriedade mais rica como inveja e desejo de nivelamento, de tal modo que estes inclusive constituem a essência da concorrência. O comunista rude é só o aperfeiçoamento desta inveja e deste nivelamento a partir do mínimo representado. Ele tem uma medida determinada limitada. Quão pouco esta suprassunção da propriedade privada é uma apropriação efetiva prova-o precisamente a negação abstrata do mundo inteiro da cultura (Bildung) e da civilização; o retorno à simplicidade ||IV| não natural do ser humano pobre e sem carências que não ultrapassou a propriedade privada, e nem mesmo até ela chegou. (op. cit., p.104)

O comunismo rude é apenas a expressão positiva da propriedade privada elevada ao nível universal. O que revela somente a generalização e aperfeiçoamento da propriedade privada sem sua negação. Visa pura e simplesmente à posse imediata, física da propriedade. "A determinação do trabalhador não é supra-sumida, mas estendida a todos os homens" (idem). Por isso que este comunismo rude é "apenas a expressão conseqüente da propriedade privada".

A inveja universal é a inveja da cobiça que marca o capital. O que se busca não é superar esta cobiça, mas satisfazê-la de outro modo. É o nivelamento da personalidade do homem a partir dos critérios estabelecidos pela trabalho estranhado. O que, na melhor das hipóteses, leva uma espécie de "retorno à simplicidade", sem, contudo, considerar o ultrapassar a propriedade privada. Em suma, "o comunismo rude, é, portanto, apenas uma forma fenomênica da infâmia da propriedade privada que quer se assentar como a coletividade positiva" (op. cit. 105). Enquanto o comunismo não apreender "a essência positiva da propriedade privada e muito menos a natureza humana da carência, ele ainda continua[rá] embaraçado na mesma e por ela infectado. Ele certamente apreendeu o seu conceito, mas ainda não sua essência" (idem).

Marx, contudo, falará de um outro comunismo, um comunismo em que há uma supra-sunção positiva da propriedade privada, com a superação do estranhamento e apropriação efetiva da essência humana para e pelo homem. Este comunismo possui a consciência pensante enquanto "movimento concebido e sabido do seu vir a ser" (idem). Enquanto no comunismo rude fica-se preso a uma espécie de "prova histórica", atrelando-se às coordenadas estabelecidas pela propriedade privada, no verdadeiro comunismo a história é concebida no seu próprio vir a ser.

Este verdadeiro comunismo embora conceba sua existência enquanto vir a ser, por outro lado não é uma mera criação ex nihilo. O ponto de partida do comunismo é a propriedade privada material, imediatamente sensível. Mas os modos de ser no capitalismo, com suas instituições como Religião, Estado, família, direito, moral etc, aparecem apenas em suas condições particulares que simplesmente caem sob as leis gerais estabelecidas pela propriedade privada. Mas para o comunismo, "a suprassunção positiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana é, por conseguinte, a suprassunção positiva de todo estranhamento, portanto o retorno do homem da religião, família, Estado etc., à sua existência humana,isto é, social" (op. cit., p.106).

No comunismo, o homem produz efetivamente sua relação com o mundo, com a natureza, e com os outros homens, sua relação com o seu trabalho, com as coisas, enfim, com sua própria existência. Mas isso só é possível porque a sociedade já é imediatamente o homem em sua essência. Por isso que Marx vai dizer que no comunismo "o caráter social é o caráter universal de todo o movimento; assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por meio dele" (idem).

Quanto à relação entre homem e sociedade, é importante salientarmos a preocupação de Marx numa compreensão abstrata dessa relação. Compreendendo abstratamente essa relação, conceberíamos uma separação entre homem, que ficaria circunscrita à esfera individual, pessoa, e a sociedade, que se resumiria ao conjunto dos indivíduos de uma dada comunidade. Marx se contrapõe a esta concepção. "O indivíduo é o ser social" (op. cit. 107). Isto significa: o homem é a sociedade e a sociedade é o homem. O próprio "e" conectivo da relação entre homem e sociedade é inapropriado.

Marx apresenta algumas categoriais que devem ser pensadas no comunismo. Uma em especial será elencada para pensarmos a questão proposta por este trabalho: a categoria fruição.

(...) a suprassunção positiva da propriedade privada, ou seja, a apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano objetivo, da obra humana para e pelo homem, não pode ser apreendida apenas no sentido da fruição imediata, unilateral, não somente no sentido da posse, no sentido do ter. O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, ||VII| são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição. (op. cit., p.109)

A primeira definição de fruição que Marx oferece é a partir da oposição dele enquanto propriedade privada. A fruição no comunismo não é como no capitalismo, em que ela é reduzida à posse de algo. É provável que Debord tenha tirado o seu famoso aforismo, "No capitalismo, ser é ter", de A sociedade do espetáculo, dos Manuscritos Econômico-filosóficos. A fruição como mero ter estabelece uma relação de objeto de mero uso: objeto usado, objeto descartado. Uso este imediato e unilateral, em que as potencialidades humanas não são plenamente exploradas. A fruição na propriedade privada aparece imediatamente como trabalho e capitalização.

No comunismo, "o homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total". O prefixo "omni" indica todo. Mas todo aqui não é algo que tende a uma bucas pela completudo. Um fruição omnilaterial não é um fruição total, mas um fruição aberta a todas as possibilidades de fruição. É somente nessa abertura radical que a efetividade da atividade humana, com sua multiplicidade inerente, pode vir a tona. Veja que Marx é cuidadoso no sentido de inserir neste "omni" o próprio sofrimento humano. Portanto, no comunismo não se trata da defesa de um hedonismo piegas, pois o próprio sofrimento humano está em jogo na sua efetivação.

Essa abertura de possibilidade que a fruição omnilateral possibilita lança o homem na múltiplicade de sentidos, na ampliação e descobertas da capacidade de sua individualidade. O caráter utilitário das coisas, muito caro para a economia política (que a reduz a uma mera satisfação pessoal), é elevada para além de sua habitual compreensão egoísta. A utilidade se tornou utilidade humana. Avancemos um pouco mais nessa categoria fruição omnilateral e o sentido nela implicado.

Assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem, assim como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, é nenhum objeto, porque o meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim da maneira como a minha força essencial é para si como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim (só tem sentido para um sentido que lhe corresponda) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, por causa disso é que os sentidos do homem social são sentidos outros que não os do não social; [é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém-cultivados, em parte recém-engendrados. Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada. (op. cit., p. 110)

Marx pensa a fruição a partir de uma relação de objeto. Enquanto no capitalismo o objeto é somente visto sob a lupa de suas possibilidades de lucro, no comunismo o objeto está numa relação de abertura de possibilidade de fruição para os diferentes sentidos do homem. Justamente porque é um conjunto de possibilidade que a esta fruição verdeiramente humana é efetiva. O homem participa, a partir das possibildiades de seus cinco sentidos, na fruição do objeto. Enquanto no capitalismo a fruição já imediatamente estabelecida pela propriedade privada fruída por um não-trabalhador.

Para o trabalhador, um homem carente e preocupado constantemente com sua subsistência física, não tem condições sequer de ampliar seus sentidos para a fruição de um belo espetáculo; por outro lado, o não-trabalhador não vê beleza alguma no espetáculo, mas somente a oportunidade de gerar lucro. Por isso que "a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, é necessária tanto para fazer humanos os sentidos do homem quanto para criar sentido humano correspondente à riqueza inteira do ser humano e natural" (idem). O movimento do comunismo precisa ser duplo: criar as condições para que os nossos maltrados sentidos humanos sejam revigorados e para que a sociedade corresponda aos anseios desta nova busca de ampliação dos sentidos.

Estes parecem ser os vestígios que Marx nos oferece sobre sua compreensão do que seria o comunismo. Podemos ainda encontro ao longo de sua obra outras passagens, mais ou menos dispersas, que tratam do tema, com destaque para famosa sentença "de cada um segundo as suas possibilidade, a cada um segundo suas necessidade", proferida em A crítica ao programa de Gotha. Para fins de estabelecermos o debate proposto aqui, analisemos esta passagem intrigante escrita por Marx em 1841 comentando as censuras recentes à imprensa pelo estado prussiano: "A minha propriedade é a forma. Ela constitui a minha individualidade espiritual. Le style, c'est l'homme. E de que maneira!" (MARX E ENGELS, 1971, p. 71).

Esta frase é realmente intrigante: "A minha propriedade é a forma". No ano de 1841 Marx já tinha se deparado com o texto de Engels sobre economia política e, portanto, já não era em vão que ele usaria a palavra propriedade. Então, o que significa dizer "a minha propriedade é a forma"? No decorrer da passagem ele associa esta frase ao estilo, citando a famosa frase Buffon. Contudo, no contexto buffoniano o estilo tem uma relação maior com estilo literário, de escrita, da capacidade do escritor de entreter o leitor. Para Marx, por outro lado, o estilo parece apontar para algo maior do que somente uma questão de estilo literário. Ele diz que essa é a "individualidade espiritural" dele. Portanto, ela é decisiva.

Nos permitiremos agora uma interpretação um pouco mais especulativa e aventaremos a hipótese de que esta provocativa assertiva de Marx deve ser lida sob o horizonte da categoria fruição tal como aparece no comunismo. Além disso, recusaremos a distinção usual estabelecida pelos campos da Estética e Teoria da Arte entre forma e conteúdo. Diremos somente que esta distinção já estão comprometida com uma interpretação metafísica corrente do fenômeno artístico. Não existe nenhum conteúdo por trás ou por dentro da forma. O conteúdo é a forma. O que geralmente chamamos de conteúdo na verdade são os elementos objetivos que permitem que a forma ganhe corpo. Mas esses elementos objetivos em si mesmo nada são. Ele só são à medida que a forma lhes dá corpo.

Isolemos as três principais palavras que compõem a assertiva de Marx e as analisemos: "minha", "propriedade" e "forma". "Propriedade" parece claro, trata-se da experiência da apropriação do objeto próprio à realização do trabalho. "Minha" parece indicar a qualidade desta apropriação: a propriedade é do Marx. Marx, enquanto autor, participa da apropriação do objeto. De fato, dizer "minha propriedade" é possível justamente no comunismo, tendo em vista que no capitalismo toda propriedade é imediatamente propriedade privada pertencente ao não-trabalhador. Vejam que este "minha" não faz somente uma referência particular ao indíviduo, no caso Marx, mas à qualidade da propriedade que está em jogo. "Minha propriedade" revela o fato de poder dizer quem uma propriedade pode ser verdadeiramente apropriada, que ela pode ser minha. É neste contexto que devemos entender a entrada da palavra "forma". "Forma" não é somente a propriedade efetiva do indivíduo Karl Marx. "Forma" é a propriedade de toda e qualquer propriedade efetiva, e que portanto é imediatamente "minha".

Mas, o que é isso, a forma? Marx nos dá uma dica: forma tem alguma relação com estilo. Não por acaso ele concorda enfaticamente com Buffon: sim, o estilo é o homem - e de que maneira! Mas aqui caímos em outro problema: o que é o estilo? Como estratégia, tentemos definir primeiro o segundo termo da afirmativa, a saber, homem. Se o estilo é o homem, então se soubermos algo do que Marx entende por homem talvez tenhamos algumas coordenadas de definição para o termo que buscamos.

Vê-se como o lugar da riqueza e da miséria nacional-econômicas é ocupado pelo homem rico e pela necessidade (Bedürfnis) humana rica. O homem rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade da manifestação humana de vida. O homem, no qual a sua efetivação própria existe como necessidade (Notwendigkeit) interior, como falta (Not). Não só a riqueza, também a pobreza do homem consegue na mesma medida - sob o pressuposto do socialismo - uma significação humana e, portanto, social. Ela é o elo passivo que deixa sentir ao homem a maior riqueza, o outro homem como necessidade (Bedürfnis). A dominação da essência objetiva em mim, a irrupção sensível da minha atividade essencial é a paixão, que com isto se torna a atividade da minha essência. (MARX, 2010, p. 113)

Na passagem acima, Marx mantém seu procedimento de definição: primeiro ele diz aquilo que o homem não deve ser, introduz a negação, para depois, a partir dos parâmetros estabelecidos por essa negação, gerar o conceito verdadeiro. Para o capitalismo, o homem é ocupado pela riqueza e pela miséria. Não é difícil imaginar que riqueza e miséria estejam atreladas às condições que os lugares de não-trabalhador e trabalhador, respectivamente, ocupam. Por outro lado, no comunismo o homem é rico, mas rico atravessado pela carência (Bedürfnis) humana rica. Mas o que seria essa riqueza atravessada pela carência? Que homem é este atravessado por esta "riqueza carente"? Marx diz: "um homem carente de uma totalidade da manifestação humana de vida". No entanto, essa carência não é a mesma carência como aparece no capitalismo, carência que reduz o trabalhador às suas condições de mera subsistência física, mas carência como necessidade (Notwendigkeit). Essa necessidade é marcada pela falta (Not). Uma falta que é interior e que move o sujeito. Essa necessidade permite perceber o outro homem também como ser carente. O nome do sentimento que essa falta interior causa no sujeito é paixão. A paixão, portanto, não é paixão por alguma coisa. Ela é intransitiva. A paixão é paixão pela própria essência da atividade humana. A paixão, em certa medida, é sem objeto. Ou melhor: o objeto da paixão é o próprio homem apaixonado e lançado nas suas próprias possibilidades essenciais.

Parece contraditório afirmar que a paixão da efetividade humana é sem objeto. Dizemos mais acima que a atividade humana efetiva é apropriação objetal, um objeto que agora é do homem, verdadeiramente. Mas dizer que a paixão é sem objeto não significa dizer que o movimento que a constitui não tenha. A paixão pela arte, a paixão pela ciência ou a paixão por outro ser humano são exemplos de paixões com objetos definidos. Mas o que Marx está querendo demonstrar é a definição de paixão que está em jogo em todas as paixões determinadas. Toda paixão, seja ela pela arte, pela ciência ou por outrem, está marcada por esta falta interior que o lança nessa essência em ser necessidade, essa "riqueza carente". Mas dizer que a essência do homem é esta falta interior também não nos ajuda muito a definir o que seja o estilo. Aqui nos permitiremos fazer uma breve incursão teórica em outro autor cuja a questão do estilo e o pensamento de Marx são altamente considerados. Trata-se do psicanalista francês Jacques Lacan. No entanto, não entraremos nos pormenores da interpretação lacaniana de Marx. Ficaremos somente com uma passagem célebre, a passagem de abertura de seus Escritos, em que a questão do estilo aparece como central.

"O estilo é o próprio homem", repete-se sem nisso ver malícia, e sem tampouco preocupar-se com o fato de o homem não ser m ais um a referência tão segura. Além do mais, a imagem da roupagem que adorna Buffon ao escrever está aí mesmo para manter a desatenção.

(...) O estilo é o homem; vamos aderir a essa fórmula, somente ao estendê-la; o homem a quem nos endereçam os?

(...) Pois decifram os aqui na ficção de Poe, tão potente, no sentido m atem ático do termo, a divisão onde se verifica o sujeito pelo fato de um objeto o atravessar sem que eles em nada se penetrem, divisão que se encontra no princípio do que se destaca, no fim desta coletânea sob o nome de objeto a (a ser lido: pequeno a).É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulam os logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamam os de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, com o causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e com o suporte do sujeito entre verdade e saber. Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a um a conseqüência em que ele precise colocar algo de si. (LACAN, 1998, p. 10)

Percebemos a partir da passagem acima que aqui tentamos fazer um percurso semelhante ao de Lacan: não aceitamos simplesmente o que seja a definição de homem para Buffon. Aceitamos a assertiva "o estilo é o homem", mas o que seja "homem" é o que não pode deixar de ser pensado. A isto que é o homem Lacan vai definir como o lugar que cai o objeto. No caso do psicanalista francês, o objeto a. Não esmiuçaremos aqui o conceito de objeto a. Consideraremos somente que este objeto de qual fala Lacan é o mesmo de que fala Marx quando trata da efetivação verdadeiramente humana. Ora, não vemos aqui saltar aos olhos as semelhanças entre a paixão no comunismo e o desejo na psicanálise? Ambos são sem objeto. Ambos são marcados por um falta interior que os movimenta. E ambos dizem respeito ao estilo.

Na passagem de Lacan vemos uma referência explícita ao estilo: "Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a um a conseqüência em que ele precise colocar algo de si". O estilo próprio ao texto de Lacan impõe algo, o quê? Impõe levar o leitor a uma consequência e que coloque algo de si. Colocar algo de si não parece o mesmo que se conquista na atividade verdadeiramente humana? E, por seu turno, o que seria produzir algo em que tem algo de si daquele que produz? Mas aquilo que é a propriedade verdadeiramente humana é a forma, e se a forma está relacionada com o estilo, e se o estilo produz algo que têm conseqüência e carrega algo de nós mesmos, então estamos transitando em terrenos semelhantes. Nos permitiremos então esta definição: a propriedade verdadeiramente humana é um produto da atividade humana que gera conseqüência e que tem algo da falta interior daquele que a produz.

Por fim, a partir do que foi exposto, gostaríamos de apresentar brevemente a nossa experiência no Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII) 1, e de como um dos nossos procedimentos institucionais serviu para pensar esta questão da propriedade verdadeiramente humana, a saber, as notas de trabalho.

As notas de trabalho foram criadas para servirem de mecanismo para avaliação de permanência de membros no Círculo. Duas são as exigências mínimas para ser membro do CEII: comparecer a um número de mínimo de reuniões por mês e escrever as notas de trabalho de cada reunião. Mas aqui já encontramos algo curioso: o que são as notas de trabalho?

As notas de trabalho são comentários feitos por membros sobre as reuniões. Elas têm caráter bastante aberto. Elas só precisam ter alguma pertinência quanto ao que foi dito e debatido nas reuniões a que elas se referem. Não há nenhuma exigência do ponto de vista da formatação e do conteúdo. Elas podem ser somente de um parágrafo ou de quantas páginas quiser. Elas podem apresentar uma reflexão elaborada sobre um tema da reunião ou ser somente uma breve anotação com perguntas. A única exigência é que elas sejam referentes ao debate de uma reunião específica.

No decorrer das atividades do CEII, as notas de trabalho foram paulatinamente ocupando um papel central de instituição. Sobre elas, e às vezes através delas, inúmeros debates foram travados. Um dos problemas que persistia era: por que, apesar do engajamento, muitos membros não conseguiam fazer as notas exigidas? A desculpa de que elas dariam trabalho extra excessivo aos membros não faz sentido, já que elas poderiam ser bastante breves. Imagino que escrever um parágrafo de uma ou duas linhas não deva ser um sacrifício extremo, principalmente considerando um público eminentemente universitário e bastante inserido no mundo das redes sociais, onde se escrever o tempo todo. Então, o impeditivo passa por outros termos.

Saber exatamente os motivos que cada membro levou a não fazer as notas é impossível. No entanto, escutando2 algumas reuniões percebemos uma justificativa recorrente muito curiosa: os membros não botavam as notas em dia porque não queriam que ela fosse feita "de qualquer jeito". Vejam que parece realmente um paradoxo: para ficar no CEII é necessário que se faça as notas, mas como o CEII não "merecia" notas feitas "de qualquer jeito", os membros não faziam as notas, e assim acabavam criando as condições para serem desligados. Então a situação era contraditória: os membros se sentiam verdadeiramente envolvidos com CEII, mas o envolvimento aparentava ser tão exagerado que não conseguiam cumprir com as tarefas totalmente simples que eram exigidas.

No entanto, essa aparente contradição se desfaz se nós pensarmos a situação a partir da relação do objeto causa de desejo na psicanálise. Na psicanálise, o paradoxo do desejo implica que, à medida que o sujeito se aproxima da possibilidade de realização do seu desejo, um horror lhe acomete de tão forma que ele pode vir a buscar um subterfúgio a ele. Ora, não foi exatamente isso que aconteceu com alguns membros que foram desligados do CEII por causa das notas? No CEII eles têm tiveram a total liberdade de pensar e militar a política. A forma e o destino do CEII são abertos - são seus membros que a definem. No entanto, quando esses membros se vêem lançados na condição de terem que assumir esse destino, um destino que em princípio seria do desejo de todos, já que ali estávamos em busca de sustentar uma política emancipatória, eles declinavam. Para aqueles que permaneceram no CEII a situação não é diferente. Volta e meia as notas de trabalho se acumulam e precisamos criar uma pauta específica numa reunião para resolvermos a situação.

Ora, então por que a nossa resistência? Se nós olharmos as notas feitas até o momento, principalmente as feitas pelos membros mais antigos, vamos começar a entender. Na leitura das notas salta aos olhos as qualidades dos textos. Mesmo as notas mais curtas e simples, todas tentam tratar de um tema de forma mais densa e relacionada ao conteúdo das reuniões. Curiosamente, as notas de trabalho cumpriram as exigências dos membros desligados: eles não são notas quaisquer. E o surgimento deste rigor na feitura das notas foi espontâneo. Na verdade, pelo contrário, o que todos salientavam nas reuniões é que as notas deveriam ser simples, de forma que o trabalho não acumulasse e que também não tivéssemos mais trabalho extra. Contudo, a nota ganhou uma dimensão de importância que nós mesmos não esperávamos.

O que gostaria de defender aqui é que estas notas de trabalho acabaram se tornando "proto-exemplos" de propriedade verdadeiramente humana. Nelas vemos operar o estilo de cada um. O estilo aqui considerado como aquilo que traz conseqüências e carrega algo da falta interior que nos constitui. Que as notas produzem conseqüências não tenhamos dúvidas. Consequências para os membros do CEII como também para o público externo (somos conhecidos dentro do Partido Socialismo e Liberdade como um grupo "que produz muito"). Além disso, as notas carregam algo de nós. As nossas aspirações, nossas demandas de políticas, nossos narcisismos estão completamente presentes nelas. Com toda a ingenuidade que isso supõe, digo: nós acreditamos realmente que nossas notas de trabalho podem mudar o mundo. O mundo é que ainda não percebeu que pode ser mudado por elas.

 

Referências

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. Trad. de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010. (versão ebook).         [ Links ]

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre a literatura e a arte. Lisboa: Estampa, 1971.         [ Links ]

 

 

Recebido/Received: 30.11.2015/11.30.2015
Aceito/Accepted: 21.12.2015/12.21.2015

 

 

1 Pelas limitações deste artigo, não é possível apresentar porrmenorizadamente o funcionamento do CEII. No entanto, gostaríamos de convidar o leitor mais curioso a visita nossa página na internet: www.ideiaeideologia.com.
2 As reuniões do CEII são gravadas e depois disponibilizadas para membros e algumas para não membros também.

Creative Commons License