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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.4 no.7 São João del Rei jul./dez. 2015

 

O corpo que resta à política

 

The body is left to politics

 

Le corps est laissé à la politique

 

El cuerpo se deja a la política

 

 

Rafael Oliveira

Sociólogo, Doutorando do PPGSS/UERJ

 

 


RESUMO

Considerando a centralidade do corpo para lutas sociais contemporâneas, o texto procura uma crítica à centralidade do trabalho. Buscando suporte em autores comprometidos com uma reinterpretação da teoria crítica de Marx sobre a modernidade capitalista, o texto pretende contribuir à discussão sobre a dominação social e suas possíveis vias de superação.

Palavras-chave: corpo; política; revolta; capitalismo.


ABSTRACT

Considering the centrality of the body to contemporary social struggles, the text seeks a critique of the centrality of work. Seeking support for committed writers with a reinterpretation of critical theory of Marx on the capitalist modernity, the text aims to contribute to the discussion of social domination and its possible overcoming routes.

Keywords: body; politics; revolt; capitalism.


RÉSUMÉ

Compte tenu de la centralité du corps à des luttes sociales contemporaines, le texte cherche une critique de la centralité du travail. Recherche soutien pour les écrivains commis avec une réinterprétation de la théorie critique de Marx sur la modernité capitaliste, le texte vise à contribuer à la discussion de la domination sociale et ses circuits surmonter possibles.

Mots-cles: corps; la politique; la révolte; le capitalisme.


RESUMEN

Teniendoencuentalacentralidaddelcuerpo a las luchas socialescontemporáneas, el texto busca una crítica de lacentralidaddeltrabajo. Buscando apoyo para los escritores comprometidos con una reinterpretación de lateoría crítica de Marx sobre lamodernidad capitalista, el texto tiene como objetivo contribuir a ladiscusión de ladominación social y sus posiblesvías de superación.

Palabras clave: cuerpo; política;revuelta; capitalismo.


 

 

INTRODUÇÃO

Para a sensibilidade política e ideológica contemporânea, o desaparecimento do bloco socialista simboliza o êxito das sociedades em que a planificação estatal do mercado e a abolição da propriedade privada revelaram-se incapazes para satisfazer as crescentes e cada vez mais complexas necessidades dos sujeitos, não importando se fossem elas provenientes da imaginação ou do estômago. Decerto que o ocaso da experiência soviética abrangeu limites muito maiores que os indicados por seus impasses políticos e econômicos. Mais precisamente, sem dúvida que pesam sobre os marxistas os cadáveres que os liberais contabilizam quando fazem referência ao stalinismo2, mas não apenas isso. Como se não fosse o suficiente, a meu ver, o fracasso do comunismo do século passado foi também a erosão de certo discurso sobre o mundo, recaindosobre toda iniciativa para um futuro anticapitalista o fardo dos Gulags. Desde 25 de dezembro de 1991, quando Mikhail Gorbachev renunciou ao cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS e a bandeira soviética deixou de tremular no Kremlin russo, basta-nos mudar a nós mesmos.

É provável que a intensidade com que indivíduos foram cativados pelas ambições revolucionárias do socialismo marxista tenha sido proporcional à ressaca moral que lhes abateu, principalmente após Nikita Kruschev tornar público os "crimes de Stálin" em 1956. Não se trata de afirmar que o bolchevismo, o maoísmo ou qualquer outras das encarnações históricas da ideia comunista tenha sonegado a possibilidade de uma ideologia anticapitalista emergir, mas deve-se admitir que algo na história foi simbolicamente bloqueado à prática dos sujeitos após esses episódios revolucionários. Embora o capitalismo não tenha logrado o êxito teorizado por Fukuyama3, é possível afirmar que as formas tradicionais de luta contra o sistema capitalista realmente perderam o sentido. Suas razões podem (e devem) ser investigadas, mas é importante destacar que o marxismo foi evadido da sua autoridade política e socialtanto no enfrentamento das opressões correntes quanto na imagem de futuro que ensejava. Transcorrida mais de uma década no século XXI, é provável que a agência política clássica, pautada pelo marxismo tradicional e os temas do trabalho, tenha caducado.

É bem verdade que o período romântico do socialismo atingiu seu ápice antes mesmo dos anos de 1970 começarem. Avaliando o Maio de 68, Foucault já sugeria uma conexão entre a ascensão de "novos interesses políticos, culturais, concernentes à vida pessoal" (2015, p.42) e o declínio do marxismo. As circunstâncias da época consentiram ao imaginário anticapitalista um horizonte insurrecional mais amplo, contribuindo para um esforço de reconstrução das formas de vida para além dos limites reconhecidos pela dogmática marxista. Numa palavra, às tarefas postuladas pelo marxismo para a emancipação dos indivíduos, orientadas pela identidade proletária e baseadas na centralidade do trabalho, outra gramática se impôs. Sem necessariamente abrir mão de uma crítica das relações de dominação burguesas, ocorre que o repertório anticapitalista acumulou a temática das opressões. Governada por suas palavras de ordem, o pensamento e a práxis anticapitalistas progressivamente incorporaram a noção de que as relações de espoliação econômica ou de exploração do trabalho não deveriam mais permanecer configurando monoliticamente os esquemas de representação do sofrimento das pessoas. Assim que os ideias emancipatórios classicamente regulados pela centralidade do trabalho vieram a ser reconstituídos para uso das lutas sociais contemporâneas com base no universo temático das opressões, e sua relevância pode ser aferida de diversas maneiras. Atílio Boron, importante referência para o pensamento marxista latino-americano, acusando o sexismo de Marx e Engels, por exemplo, flagrou o silêncio do marxismo sobre o debate de gênero (2001, p.67). Arguindo questões semelhantes às de Boron, ainda que por razões, caminhos e objetivos decididamente opostos, Richard Rorty, notório filósofo conversador, colocou o feminismo da virada do milênio no mesmo lugar ocupado pelo comunismo do século XIX (2010, p.228).

De fato, o monopólio exercido pelos temas do trabalho inibiu certa subjetividade anticapitalista, ao passo que colaborou para a formação de um sindicalismo profundamente conservador. Porém, o empenho para subtrair-se da centralidade do trabalho para organizar a luta social não fazia parte de uma estratégia política em que os processos de exploração econômica eram necessariamente relegados ao esquecimento, mas expressava uma intenção que não se permitia mais adstringir por um "determinismo econômico"4. Como é bem sabido, o fascismo do século passado esteve amplamente relacionado às organizações sindicais que se voltaram ao Estado para um projeto de sociedade baseado na ideia de comunidade-nacional. Claro que o sindicalismo não é unívoco e representa em cada época histórica ou contexto social tensões muito diversas, mas certamente estão entre elas àquelas de caráter corporativista5. Acomodado ao modo de vida capitalista, pode-se dizer que o corporativismo sindical à forma totalitária manteve um procedimento de coordenação ideológica orientado pela colaboração entre as classes, postulando o poder agregador da divisão social do trabalho para a coesão social da nação. A operação fundamental desse corporativismo consiste, numa palavra, na resistência da massa à intrusão que confunde a unidade orgânica do seu corpo social6.

 

I

Poder-se-ia dizer que para o conceito de gênero, o corpo é um axioma. Muito embora sejam várias as "tramas teóricas" (LOURO, 1992) que determinam seu sentido, a força analítica do conceito de gênero para a teoria social funda-se numa ideia de corpo. Embora os estudos em torno do gênero na academia possam ser referidos aos anos de 1980, de acordo com Louro, eles são tributários dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970. Remontar a trajetória histórica das reflexões acadêmicas sobre gênero implica em reconhecer sua procedência política. Apesar dos diversos significados atribuídos ao conceito de gênero, não restam dúvidas de que o feminismo foi o espaço no qual certa "imaginação sociológica"7 emergiu e se desenvolveu. As lutas protagonizadas pelo feminismo certamente subsidiaram as iniciativas universitárias que procuraram retirar a mulher do lugar de objeto de pesquisa para realoca-la no papel de sujeito da investigação. Pressuposta sua ascendência nos movimentos feministas da segunda metade do século XX, é importante sinalizar que os estudos de gênero suscitaram também uma crítica epistemológica. Para muitos pesquisadores comprometidos com suas temáticas, as tarefas científicas em questão requeriam fortemente uma guinada metodológica, uma vez que os conceitos e categorias reconhecidos como válidos pela academia eram, afinal de contas, determinados pelas relações sociais que combatiam politicamente. Sendo assim, a valorização da mulher como agente da ciência dependeria também de um protagonismo feminino que, por sua vez, só poderia ser obtido a partir da exposição crítica do androcentrismo científico, a saber, a colonização do humano e da realidade pelo masculino nas formas de representa-la e interpreta-la em sua historicidade.

Os estudos de gênero constituíram não apenas um campo de pesquisa cujo epicentro eram as mulheres. O enfoque dos estudos de gênero, como foi construído desde as últimas décadas do século passado, empenhou-se em discriminar sexo de gênero para flagrar os processos de formação do masculino e do feminino nas sociedades. Basicamente, para esses estudos, enquanto sexo se referiria à identidade biológica dos sujeitos, gênero abordaria a construção histórico-social da masculinidade e da feminilidade. A diferença entre essas duas instâncias (sexo e gênero) seria particularmente importante porque, em uma palavra, organizaria o campo de enfrentamento contra explicações biologistas das desigualdades entre homens e mulheres. Seguindo Louro, oescrutínio do caráter social do masculino ergueu-se como parte de uma estratégia tanto científica quanto política para o feminismo, para desnaturalizar as hierarquias sociais entre os gêneros. Porém, de acordo com a autora, esse ângulo também revelou certos limites à compreensão crítica das articulações possíveis e existentes entre sexo e gênero, pois contribuiu para obscurecer que, afinal de contas, essa construção "implica corpos sexuados" (1992, p.11). Ao dizê-lo, acredito que a autora tem em mente o fato de que o social se inscreve no biológico, ou seja, que o biológico não pode ser simplesmente anulado pelos processos antropomórficos que o social mantém em sua historicidade, muito embora possa ser transformado em larga e profunda medida ao longo do tempo histórico-social. Nesse particular, não ocasionalmente, Louro recorre às investigações de Bourdieu para tematizar os problemas que envolvem à opressão feminina.

Em A dominação masculina (BOURDIEU, 1999), o autor investiga o que poderia ser sinteticamente definido como "incorporação da dominação" (1999, p.32). Introduzindo sua análise por meio de considerações epistemológicas críticas à tradição sociológica aberta pelo positivismo de Durkheim, o autor destaca a construção social dos corpos. Com base num estudo da sociedade cabila, o autor descreve como as diferenças entre os sexos, sinalizadas pelos atos sexuais, organizam as práticas dos sujeitos, i.e., como as distinções anatômicas entre homens e mulheres, conformam uma cosmologia que ordena as relações sociais, tornando a sexualidade heurística à apreensão dos processos de socialização que envolvem os indivíduos. A significação social constituída pela sexualidade reconhecida pelo sistema classificatório que orienta essas práticas, não apenas polariza o masculino e o feminino como, além de naturaliza-los, os hierarquiza. Essa cosmologia social baseada na sexualidade normaliza a relação entre os gêneros, distribuindo o poder social conforme a taxionomia que a estrutura, cuja origem é uma concepção de natureza. Ancorada nas dotações corpóreas características de homens e mulheres, a dominação social de gênero progrediria por expressar a ordem natural. Segundo o autor, certas propriedades físicas (seco/úmido, duro/mole, reto/curvo etc.) atribuem qualidades que motivam a posição social que cada qual ocupa na vida da comunidade, que é imaginada como um organismo que totaliza suas partes, cujas necessidades funcionais conferem a cada uma delas sua própria vitalidade. Diz Bourdieu que

Se a relação sexual é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas "sexuadas"), em todo o mundo social, e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes (1999, p.17)

A abrangência e a profundidade do poder exercido pelos homens nesse sistema social decorreria de uma estrutura de dominação que, a rigor, dispensaria argumentos de autoridade. Por expressar uma ordem natural em nível social, sua cultura de opressão prescindiria de um discurso, pois a divisão entre os gêneros e suas respectivas funções emanaria de um certo logos sexual. Essa cosmologia sexualizada, que retroalimenta uma visão androcêntrica do mundo e, por consequência, elimina os vestígios sociais das relações que os indivíduos mantém entre si e consigo, naturaliza as configurações presentes e as postula como arranjo futuro. Sua estrutura de dominação mantém a forma como seus objetos (os sujeitos) serão distribuídos em relação a elas. Dado que os significados socialmente valorizados fazem remissão às propriedades atribuídas ao masculino, o feminino representa seu inverso e os reproduz subordinadamente. Por isso, "uma sociologia política do ato sexual" (1999, p.29) é sempre bastante instrutiva para esclarecer aspectos fundamentais da dominação masculina em geral, pois

Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo - o desejo masculino como desejo de posse, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina (1999, p.31)

Enfatizando que apesar de toda banalização em torno da ideia da construção social do corpo, cujos responsáveis, segundo o autor, residiriam na tradição antropológica, Bourdieu reafirma sua pertinência para pensar os mecanismos de dominação que estuda. Destacando que as propriedades naturais dos corpos não constituem as relações sociais de dominação, mas que essas distinções físicas se fazem socialmente operantes apenas por meio da simbolização da qual são resultado, Bourdieu afiança que o poder de nomear, representar e interpretar o mundo não é puramente performativo. Como produto arbitrário de certo modo de construir e distribuir o poder social, a dominação de gênero se inscreve como natural para legitimar a si própria como prática entre os indivíduos. Segundo o autor, o trabalho de construção simbólica que institui esse poder realiza transformações profundas, influindo decididamente na experiência do indivíduo consigo e com o mundo. Como condição da própria sociabilidade existente, fundada numa perspectiva androcêntrica da realidade, a hierarquia entre os gêneros autoriza a opressão do feminino pelo masculino, com base numa certa simbolização dos sexos. Haja vista sua inscrição na prática dos sujeitos, resulta numa ação de formação que disciplina os corpos.

Consciente de que o caso da sociedade cabila poderia ser objetado como insuficiente para descrever o modo de vida nos Estudos Unidos da América ou na Europa, Bourdieu segue citando estudos sobre o sexismo dessas sociedades. Refletindo sobre o que chamou de "arte de se fazer pequena", comandada por uma "espécie de confinamento simbólico" (1999, p.39), o autor enumera as conquistas obtidas pelas mulheres nessas sociedades para destacar seus contrapesos. O autor põe-se a identificar alguns traços no nível da cultura que certamente informam uma autonomização relativa da mulher nessas sociedades em termos comparativos, para pensar a condição feminina. Seguindo Bourdieu nesse particular, por exemplo, poder-se-ia afirmar que embora o vestuário feminino em sociedades não reguladas pela Charia8 sugira maior liberdade às mulheres, seus corpos permanecem coercitivamente regulados. A meu ver, essa situação paradoxal poderia ser interpretada pelo recurso à figura jurídica do usufruto, na qual o gozo de um é outorgado por um terceiro, que regula com base em seus próprios interesses os termos de uso para a posse do bem em questão. Pois, afinal de contas, não estariam as mulheres despossuídas sobre os modos de usar seu próprio corpo?

Vale a pena insistir que, para Bourdieu, essas formas de dominação simbólica não servem para desqualificar as noções de violência tradicionalmente adotadas pela teoria social crítica. Seguindo sua reflexão, com elas se compreende a abrangência do poder social sobre a constituição das individualidades. A dominação masculina é confirmada pelas estruturas que formam a sociabilidade, e está ancorada numa fundamental divisão sexual do trabalho e de sua reprodução, cujo núcleo central é uma visão androcêntrica de mundo que esquematiza os modos de entendê-lo, conservá-lo e transformá-lo. Como poder social indistinto do próprio habitus, pois é a própria sociabilidade, a dominação masculina modula a relação dos indivíduos entre si, consigo e com o mundo. Desse modo, para o autor, o recurso conceitual à violência simbólica reveste de inteligibilidade os processos sociais de violência física que sonegam às mulheres, mas também aos homens, o reconhecimento da opressão efetiva da qual elas são vítimas, ao mesmo tempo que indica suas formas de superação (1999, p.49-50).

 

II

Não é preciso estender-se sobre o significado da dominação simbólica. Está claro que é um modo para tematizar o caráter efetivo do poder que atua socialmente sobre os indivíduos, organizando a relação entre os gêneros, incidindo sobre suas vidas no sentido forte do termo. A própria tradição marxista é consciente do fato de que as relações sociais estão armadas pelas dimensões materiais e espirituais da vida prática dos sujeitos. No entanto, a ideia de que "o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. se funda no desenvolvimento econômico" (ENGELS, 2010, p.104-105) parece contribuir para que se mantenha a desconfiança acumulada contra o marxismo desde a experiência socialista do século passado. Como seu fracasso abrangeu limites maiores que o colapso da URSS, o marxismo tem sido objeto de todo tipo de resistência. Enquanto discurso, a meu ver, o ponto de vista marxista sobre as relações sociais tem sido contestado tanto quanto a noção de sujeito que o constitui não devém problematizada, de maneira que ela poderia ser considerada o cerne da rejeição ao marxismo. Apesar de diversos esforços para reafirmar o aporte do marxismo às lutas sociais, acredito que sua legitimidade contemporânea tem coincidido com sua disposição em rever a noção de sujeito que classicamente articulou para conferir um sentido para seu pensamento e para sua práxis. A meu ver, o marxismo realmente existente, aquele que se reconstrói através dos escombros do chamado socialismo real, não tem podido mais declarar impunemente a classe trabalhadora como o sujeito dos processos emancipatórios que tradicionalmente descrevera um dia.

Em 1991, ao seu modo, Iasi enfrentou essa questão. Assentindo ao entendimento de que nem Marx ou Engels formularam uma teoria sobre a opressão da mulher e que foi no limite do nulo a contribuição do socialismo histórico à dissolução da cultura de opressão machista, o autor resgata o argumento marxista de que a emancipação das mulheres envolve sua realização como trabalhadoras para anunciar o equívoco que precisaria ser deslindado. Inicialmente, Iasi considera que os estudos marxistas sobre a questão de gênero permitiram que o próprio marxismo reorganizasse sua teoria das relações sociais entre as classes no capitalismo. De acordo com o autor, as feministas que buscaram o marxismo cooperaram para a revitalização da "totalidade" e da "dialética" perdidas pela tradição, restituindo sua atualidade política e teórica para as lutas sociais contemporâneas. Com elas, prossegue Iasi, pôde-se ampliar o conceito marxista de classe social, resgatando a essência do pensamento de Marx, livrando-o do economicismo. Evidente que Iasi sublinha que o feminismo serve aos objetivos da emancipação social imaginada pelo marxismo tanto quanto for capaz de fazer a mediação entre o "particular" e o "universal", i.e., reconhecer que a transformação da condição de vida das mulheres depende da transformação geral da sociedade. Ao mesmo tempo, o autor enfatiza a necessidade dos homens em reconhecer o caráter distintivo da opressão feminina no capitalismo, cobrando estes para que assumam "perspectiva feminista, por seus próprios interesses" (1991, p.8). No entanto, o que permanece subjacente à reelaboração do autor acerca da maneira como a tradição marxista pensa a questão das opressões, e em particular a questão da violência de gênero, é exatamente aquilo que tem motivado toda sorte de recusa da esquerda pós-URSS ao marxismo. Mas o que Iasi não pôde notar na operação de revisão do conceito de dominação de classe que postula, inelutavelmente matizado pelo reconhecimento de antagonismos de natureza econômica, é que a dominação de gênero apenas tem redimensionada e aprofundada sua subsunção ao marxismo. Não sobrando então nada mais para a teoria social e política comprometida com a temática do gênero que um novo patamar no interior de uma estrutura de invisibilidade9mantida pelo ponto de vista marxista e suas temáticas clássicas.

Acredito que as preocupações de Iasi podem ser postas às pesquisas de Saffioti, apesar da evidente distância entre os autores quanto ao tema. A obra da autora contribuiu para que os estudos de gênero conquistassem espaço na academia, mas também relevância política entre a esquerda identificada com o marxismo. Mais precisamente, as pesquisas de Saffioti consolidaram um importante campo de reflexão para quem identifica na articulação entre os discursos marxista e feminista um proveitoso ângulo à tematização da dominação social. Embora Saffioti indique que estudos marxistas possam ser incapazes de apanhar conceitualmente as formas de violência que se abatem sobre as mulheres nas sociedades capitalistas, a autora fornece um ponto de vista crítico aos estudos de gênero. Como marxista, Saffioti esforçou-se para marcar como o sistema de pensamento inaugurado por Marx poderia instruir às feministas aos seus fins. As críticas dirigidas pelo feminismo ao marxismo são desfeitas pela autora não por uma adesão ingênua ou dogmática à hipótese da "luta de classes", mas para afirmar que "as classes sociais são, desde sua gênese, um fenômeno gendrado" (2004, p.115). Longe de qualquer reducionismo econômico, a autora identificou na sociabilidade capitalista as estruturas de dominação que respondem pela violência de gênero dessa época. Suas elaborações sobre o conceito de patriarcado evidenciam o enfoque que orienta seu modo para tematizar a violência masculina contra a mulher no contexto histórico da sociedade moderna. Para Saffioti, decerto que a cultura patriarcal determina as relações sociais, conduzindo a um processo de dominação e exploração. Mas, ao seu ver, "as bases material e social do patriarcado" (2004, p.123) escoram os mecanismos de submissão feminina à ordem masculina na sociedade moderna, de tal maneira que o sexismo machista não pode ser identificado como um puro preconceito ou algo de antiquado: deve-se afirmar sua serventia aos interesses das classes sociais dominantes.

O vetor dominação-exploração advertido por Saffioti pode ser pensado como um expediente para articular gênero e classe em sua teorização da sociedade capitalista. O pensamento da autora compreende a determinação econômica, marcada por relações sociais de exploração da força de trabalho, mas não negligencia o caráter qualitativo do tipo de coerção que se impõe às mulheres. Através da chave dominação-exploração, em um sentido preciso, está sugerida uma crítica às unilateralidades de marxistas e feministas. Apesar disso, não é preciso muito para reconhecer que ainda sim o marxismo não tem fornecido o ponto de vista mais abrangente sobre o debate de gênero, mesmo quando sujeitos envolvidos nessa discussão o absorvem e o depuram dos "desvios" e "vulgaridades" que identificam. É bem verdade que uma fundamental tensão continua progredindo entre marxistas e feministas, ainda que haja inúmeras concordâncias consagradas sobre o entrecruzamento do universo de problemas que analisam e combatem. Sem me alongar nesse tópico, sugeriria que é provável que toda resistência ao marxismo se relacione ao seu gesto de identificar na exploração da força de trabalho o elemento que articula todas as formas de violência, inclusive àquelas que envolvem o gênero. Por isso que ao insistir na hipótese da luta de classes para pensar as formas de opressão que transitam na época burguesa, o marxismo pensa a questão de gênero nos marcos da emancipação dos trabalhadores, e suscita o mesmo tipo de crítica que imagina superar quando faz suas revisões - por vezes, certamente protocolares. Acredito que seja correto dizer que por persistir na centralidade do trabalho, convertendo-a como a causa imanente de todas as lutas sociais, é que a tradição marxista tem se tornado progressivamente menos relevante junto aos movimentos de dissenso contemporâneos, apesar das organizações ou discursos trabalhistas tradicionais ainda encontrarem uma atualidade.

Parte significativa do esforço para constituir uma nova subjetividade anticapitalista, que inclusive reconheça o problema da espoliação econômica assinalada pelas teorias da exploração do trabalho, devém do que poderia ser indexado como a centralidade do corpo10. Não obstante, é preciso salientar o caráter fundante da identidade para as lutas contemporâneas. Deve-se apontar que para a esquerda pós-URSS, não importa se cronologicamente anterior ou posterior ao fracasso do socialismo histórico do século passado, uma alteridade deve ser reconhecida. Assim sendo, recusar o marxismo como uma teoria sobre a dominação social significa abandonar a ideia de que conceitos sobre classes sociais sejam capazes de nomear o modo como os indivíduos sofrem ou esperam viver com base em sua própria experiência social. Ao relativizar a capacidade da subjetivação política pela via das lutas no contexto dos conflitos capital-trabalho, a esquerda contemporânea pretende permitir que os indivíduos representem a si próprios, com base naquilo com que se identificam, inclusive para resistir aos riscos totalitários de subsumir as pessoas às abstrações despóticas de uma ideia11. Mesmo que os processos de exploração econômica sejam declarados como politicamente válidos para orientar a luta social, atualmente parte-se do princípio que uma identidade de classe é menos potente à prática emancipatória do século XXI. Desde a politização da vida privada dos anos de 1960, que trouxe para a cena pública demandas estranhas ao universo de reivindicações trabalhistas, pelas quais a construção e reconhecimento da identidade de mulheres, negros e homossexuais consolidou-se como essenciais à sobrevivência da esquerda anticapitalista, o marxismo tem procurado acrescer à sua noção de sujeito o que aumente sua cotação política, ideológica e social para circular como discurso útil sobre o mundo. Os estudos de Helena Hirata sobre a interdependência das relações sociais entre raça, sexo e classe indicam a relevância das identidades sociais, e sinalizam algumas das condições contemporâneas à política emancipatória. Abordando essa articulação, reconhecidamente movente e produzida tantos pelos indivíduos quanto pela sociedade, Hirata lembra com base no "conceito de conhecimento situado ou de perspectiva parcial da epistemologia feminista" (2014, p.61) que:

a força de trabalho possui uma qualidade única: ela cria valor - ao ser utilizada, ela produz mais e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009 apud HIRATA, 2014, p.62)

Claro está que a resistência contemporânea da esquerda anticapitalista à política de massas não está baseada numa defesa da desigualdade social. Para ela, a desigualdade pode ser aferida como expressão de relações sociais hierarquizadas, geradas inclusive por processos econômicos de exploração, mas a busca da igualdade substantiva como uma alternativa para a vida social não pode direcionar para supressão da diferença. Apenas considera-se que uma experiência política emancipatória envolve o reconhecimento dos singulares, como se a capacidade de refletirem as individualidades que a compõem funcionasse como a causa do sentido que carregam. Numa palavra, os processos de transformação social radical se tornam funções para o reconhecimento do indivíduo porque se o mundo é resultado de suas práticas não existem razões para que a realidade os negue esse espelhamento. Comum nessa operação é a noção de protagonismo, para qual não há nenhuma política possível para além da representação. Vale destacar que essa noção é tão corrente que seções politicamente muito distintas das lutas sociais podem basear-se igualmente nesse princípio sem qualquer prejuízo do antagonismo que mantém entre si. Para ficar em um exemplo e não estender-me mais nessa digressão, basta atinar que a importância do protagonismo e da representação pode ser notada tanto numa iniciativa do Ministério da Cultura de um governo petista para promover a visibilidade da mulher negra12 quanto na aproximação da CSP-Conlutas ao movimento LGBT13.

 

III

Acredito que seja o caso de averiguar em que medida essa operação é capaz de reorganizar o pensamento e a práxis interessada na superação da sociabilidade capitalista, como uma alternativa a teoria social e política marxista. Inicialmente, é oportuno lembrar que mesmo que a tese do "direito ao produto integral do trabalho" tenha sido negada por Engels e Kautsty14, pode-se afirmar que toda a tradição marxista também baseia-se num princípio do reconhecimento. Esse princípio pode ser buscado na tradição marxista, para quem o trabalho é fonte da própria sociabilidade. Em sua análise da sociedade capitalista, na medida em que a força de trabalho é o elemento que cria os produtos que servirão à valorização do capital, claro está que são os trabalhadores que geram as condições para o acúmulo do capitalista. O dispêndio laborativo e intelectivo empregado na produção permite que a classe capitalista enriqueça a partir dos bens produzidos pelo trabalho, mantido sob seu mando por monopolizar os meios de produção utilizados pelos trabalhadores. Ao impedir seu acesso aos trabalhadores, a classe capitalista exerce seu poder, submetendo a classe trabalhadora à produtividade que lhe convém mediante uma remuneração, sem a qual o trabalhador não poderia sobreviver exatamente porque não tem ao seu alcance os componentes, elementos e fatores da produção para garantir sua sobrevivência. Para os marxistas, em síntese:

a força de trabalho possui uma qualidade única: ela cria valor - ao ser utilizada, ela produz mais valor que o necessário para reproduzi-la, ela gera um valor superior ao que custa. E é justamente aí que se encontra o segredo da produção capitalista: o capitalista paga ao trabalhador o equivalente ao valor de troca da sua força de trabalho e não o valor criado por ela na sua utilização [...] O capitalista compra a força de trabalho pelo seu valor de troca e se apropria de todo seu valor de uso (NETTO & BRAZ, 2011, p.110)

A superação da sociedade capitalistaenvolveria então o reconhecimento de que o trabalho é a origem da riqueza social, de forma que os sujeitos dessa atividade, a saber, os trabalhadores, sejam tratados na prática social como tais, não mais tendo apropriado por um terceiro aquilo que criam. Em outras palavras, se a vida social resulta da atividade dos sujeitos, o modo de produção que os relaciona deve expressar suas necessidades. Uma vez que se subtraia do sistema social a exploração da força de trabalho, arranjada política, econômica, ideológica, culturalmente etc. pelos capitalistas para dominar os trabalhadores, a civilização progrediria em conformidade com seus objetivos, a partir das possibilidades que desenvolveu ao longo da história. Ocorre que as relações de produção no capitalismo não espelham os produtores, mas apenas a compulsão por acúmulo daqueles que dela usufruem. O conflito entre os capitalistas, que perseguem seus objetivos particulares, e os trabalhadores, que veem sua atividade criadora ser "aprisionada", derivaria da contradição entre o modo de produção e as relações sociais de produção organizadas na época burguesa, cuja resolução dependeria do protagonismo político e social da classe trabalhadora. Como agentes efetivos da própria constituição da vida social, uma vez superada a alienação do trabalho, os trabalhadores finalmente se tornariam os reais proprietários daquilo que formam com seu labor, satisfazendo suas necessidades e reconhecendo-se naquilo fazem.

Se a tradição marxista poderia ser assim sumarizada, é possível concordar com o argumento de Postone (2014), para quem o socialismo prefigura como "uma sociedade em que o trabalho, desempedido das relações capitalistas, estrutura abertamente a vida social, e a riqueza que cria é distribuída de forma mais justa" (2014, p.24). No entanto, para o autor, as diversas correntes políticas e tendências teóricas no interior do marxismo teriam interpretado de modo desajustado à Marx a natureza do trabalho no capitalismo, motivando distorções. De acordo com ele, Marx não atribuiu ao trabalho o papel de fonte da riqueza social para além das circunstâncias históricas especificamente capitalistas. Na sua reinterpretação categorial do pensamento de Marx, o autor afirma que a noção de que o trabalho constitui a vida social deve ser restringida ao contexto histórico capitalista. Declarando que o marxismo tradicional15 termina por deslocar a crítica marxiana do modo de produção capitalista para uma crítica da forma de distribuição, uma vez que estabelece o trabalho como o centro de toda vida social em qualquer época histórica e enfatiza a desigualdade social, Postone indica que essa abordagem trata a dominação social no capitalismo de maneira muito distinta de Marx. Ao seu ver, com base nos seus estudos sobre os Grundrisse (1857-1858), aonde a teoria social marxiana estaria mais acessível do que n'O capital (1867), o núcleo fundamental do capitalismo não reside na contradição entre as forças produtivas e as relações sociais postas pelo modo de produção capitalista (sob a forma da propriedade privada e do mercado), mas no contraste entre o valor e a riqueza material. Para qualificar a estrutura de dominação própria à moderna sociedade capitalista então seria necessário apanhar não como a riqueza circula, mas como ela é produzida: nas condições históricas e sociais propriamente capitalistas, a riqueza é constituída pelo trabalho e tem a forma do valor. Sinalizando com Marx que se as formas da riqueza são historicamente específicas, elas não podem ser as mesmas em todas as sociedades, o autor indica que a abolição do valor (forma social da riqueza no capitalismo) significaria que o tempo de trabalho humano deixaria de servir como medida para a criação da riqueza social. Ao seu ver, nesse caso, a superação da alienação determinada pela exploração do trabalho na sociedade capitalista teria um sentido muito diverso, pois envolveria a própria suspensão do trabalho como fonte de valor.

a superação do capitalismo, como apresentada nos Grundrisse, envolve implicitamente a superação dos aspectos formais e materiais do modo de produção firmado no trabalhado assalariado. Ela deverá resultar na abolição de um sistema de distribuição baseado na troca de força de trabalho, como uma mercadoria, por um salário, com o qual se adquirem os meios de consumo [...] Em outras palavras, a superação do capitalismo envolve também a superação do trabalho concreto executado pelo proletariado (2014, p.44)

Para os fins desse texto, é interessante notar que a reinterpretação categorial proposta por Postone indica que a teoria social de Marx promove uma crítica da forma como a produção se desenvolve no capitalismo, para indicar suas possíveis vias de superação. Nesse caso, ao contrário da marxismo tradicional, Marx não indica uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho, mas faz uma crítica do trabalho no capitalismo. Poder-se-ia então afirmar que a centralidade do trabalho devém da natureza das relações sociais capitalistas, ao invés de ter sido pervertia por elas. Todo o projeto de crítica da economia política de Marx não envolve uma glorificação do trabalho, mas, de acordo com o autor, sinaliza o exato oposto. Porque o pensamento marxiano trata o valor como um categoria social e historicamente própria do capitalismo, o trabalho analisado por Marx está no centro de sua teoria críticasobre a moderna sociedade capitalista. Por isso, ao seu ver, o pensamento de Marx teria mostrado que não é possível caracterizar ou conceituar as relações sociais tipicamente capitalistas sob o enfoque do antagonismos entre as classes. Para o autor, e isso seria particularmente fundamental ante ao fracasso do socialismo real, cujo arranjo social distinguiu-se exatamente pelo fim das classes e da propriedade privada, a dominação social no capitalismo não decorre dos conflitos entre pessoas, grupos sociais ou classes em relação aos produtos do trabalho, mas consiste na dominação dos indivíduos pelas estruturas sociais que constituem através da organização de toda vida social por meio do sistema social erigido pelo trabalho. A compreensão de Marx sobre a dominação social no capitalismo informa que, ao contrário de épocas passadas, a subordinação dos indivíduos não está referida à vínculos de dependência pessoal (baseados nos costumes, tradição ou cultura), pelo fato de que apenas nessa sociedade os sujeitos se conectam como singulares, tendo de garantir com seus próprios meios sua sobrevivência16. Poderia se dizer então que, para Postone, muito embora a propriedade privada dos meios de produção e a distribuição desigual tanto do poder político quanto da riqueza socialmente produzida figure com destaque na teoria marxiana do modo de produção de capitalista, elas não seriam o seu cerne.

Acompanhando o autor, dever-se-ia atinar que a análise de Marx sobre a dominação social na modernidade capitalista representa o desenvolvimento de seus estudos sobre o tema da alienação. Postone acredita que apenas em sua fase madura, i.e., ambientado aos temas da economia política, é que Marx pôde notar que a propriedade privada não é causa, mas a consequência do trabalho alienado e, por conseguinte, que a superação do capitalismo não está condicionada à eliminação da propriedade privada, mas à dissolução das relações sociais que a tornam possível. Sua teoria sobre as estruturas sociais capitalistas e sua dinâmica histórica, pressupondo inclusive a existência das classes e do antagonismo de interesses entre elas face aos bens produzidos pela divisão social do trabalho, não pode ser entendida sob o enfoque da exploração da força de trabalho, ainda que sem dúvida possa esclarecê-la em larga medida. De acordo com Postone, seria o caso de compreender que:

não apenas uma teoria da exploração, ou do funcionamento da economia restritivamente entendida, a teoria crítica do capital de Marx é uma teoria da natureza da história da sociedade moderna [...] a teoria desenvolvida sobre alienação implica que Marx via a negação do núcleo estrutural do capitalismo como aquilo que permite a apropriação do povo dos poderes e conhecimentos historicamente constituídos de forma alienada (2014, p.48)

Se assim, seria possível admitir que a exploração é uma categoria subordinada à dominação na teoria social marxiana. De acordo com Duayer (2011), levando em consideração que as ideias fundamentais que orientaram as experiências socialistas (desenvolvimento econômico, igualdade, socialização dos meios de produção, distribuição de renda etc.) foram articuladas categorialmente pela exploração, e que elas ainda predominam entre os marxistas pós-URSS sem qualquer efeito teórico ou prático mais relevantes às lutas sociais contemporâneas, convém restituir o tema da emancipação social em Marx. O autor afirma que embora o problema da emancipação humana tenha sido progressivamente posto de lado pela tradição marxista, talvez por considerá-lo "especulativo" ou "filosófico", deve-se afirma-lo como o núcleo da teoria marxiana porque, afinal de contas, assim está indicado por seus escritos. Ponderando que se trata de uma categoria que não pode ser omitida em qualquer abordagem de Marx, Duayer sugere que mesmo n'O capital esse é o tema fundamental, e que figura logo em seus primeiros capítulos. Partindo do modo como procede a própria análise marxiana, o autor indica, sumariamente, o seguinte: a troca mercantil pressupõe a conexão dos indivíduos como trabalhadores, proprietários que trocam o produto de seu trabalho; dado que trocam, tem-se que os trabalhadores não produzem tudo o que consomem, do contrário lhes bastaria consumir o que produziram; como os produtos de seus trabalhos individuais precisa ter um uso qualquer para um terceiro, o intercâmbio mercantil devém socialmente arranjado, aonde todos devem participar para poder existir social e individualmente; uma vez que o sentido da produção é a troca, tudo o que os produtores produzem tem serventia para si na medida em que puder ser trocado; assim é que cada produtor busca com sua atividade acessar a riqueza criada socialmente, com base naquilo que produziu; tendo em vista que todos são proprietários de uma mercadoria e participam de um sistema social de troca, os produtores visam trocar seus produtos por outros equivalentes, ainda que distintos; como estão desvinculados entre si, apenas por meio da troca é que os indivíduos asseguram os meios para sua subsistência, mas também os meios para continuarem a produzir; portanto, os indivíduos visam produzir riqueza ao máximo que puderem para terem a possibilidade de terem para si o máximo da riqueza produzida por outros, de tal modo que a produção crescente decorre como o núcleo da própria produção. Salientando que nenhuma outra formação socioeconômica tem por imperativo uma dinâmica dessa natureza, Duayer salienta o caráter automático e espontâneo da produção capitalista.

A natureza abstrata da dominação social no capitalismo está inscrita em Marx. Sem discorrer sobre as inúmeras elaborações do autor sobre a subordinação do capitalista ao automovimento do valor (2013, p.229-230), sem a qual ele não pode realizar seus interesses de acúmulo, é conveniente interpretar que ao dizer que não tratou com "cores róseas" (2013, p.80) sua persona, Marx estaria se "justificando" por não ter atribuído à opressão que o capitalista exerce sobre o trabalhador a fundação e o desenvolvimento do poder social do capital. Assim, de acordo com Duayer "a categoria da exploração, a despeito de sua relevância e objetividade, não é a categoria fundamental" do pensamento de Marx (2011, p.95). Compartilhando com Postone o essencial de seu argumento, i.e., que a superação da sociabilidade capitalista não pode ser identificada com a apropriação do valor, mas por sua substituição por uma outra forma de riqueza social, para o autor, a emancipação social deixa de coincidir com a realização do trabalho. Com efeito, a suspensão das estruturas sociais típicas do capitalismo não é mais redutível ao princípio do reconhecimento do trabalho como a fonte a riqueza social - deve-se ainda notar que a hipóstase marxista sobre a centralidade do trabalho, como afirmado no presente texto, decorre da compreensão de que o trabalho é o sentido de toda vida humana. Segundo Duayer, com base numa interpretação da ontologia lukacsiana, para Marx, o trabalho seria fundante, mas não central para o ser social. Exatamente porque o ser social cria as condições para sua reprodução, de acordo com Duayer, a esfera que o funda não pode ser considerada central no curso de seu desenvolvimento(2012, p.46).

A meu ver, pensar para além do princípio do reconhecimento, consistiria em identificar na forma abstrata da dominação que envolve os indivíduos a própria forma de sua emancipação. Se não se trata mais de postular um indivíduo cujas qualidades devem ser "valorizadas", seja seu corpo ou sua força de trabalho (aliás, qual a diferença?), que serão realizadas a partir da derrocada de todas as formas de opressão, acredito que a real questão não envolve a satisfação das necessidades emergidas do contexto em que elas virão a ser e são frustradas, mas na constituição de um mundo em que tais necessidades simplesmente percam seu sentido, aonde novos desejos então devenham. Apostando que os dilemas enfrentados hoje ainda dizem respeito ao que Therborn qualificou como "dois chifres da modernidade" (2012, p.62), i.e., dominação e emancipação, vale conferir a posição de autores como Badiou, Zizek e outros, para quem comunismo é o nome de uma ideia. Considerando que, no essencial, impera uma completa desorientação sobre o que queremos ao negarmos o capitalismo, e, ao mesmo tempo, que somos governados pelo fantasmadototalitarismo, o pensamento que enunciam corresponde a um sentido de urgência. Mais precisamente, se toda política realmente existente consiste e se estingue no indivíduo, de algum modo, considerando as hipóteses de trabalho do CEII, talvez o comunismo do impossível seja esse em que a operação política emancipatória não vê como totalitário aquilo que é estranho ao indivíduo.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido/Received: 30.11.2015/11.30.2015
Aceito/Accepted: 21.12.2015/12.21.2015

 

 

2 O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão(COURTOIS, 2013), ainda que não saiba, fornece material suficiente apenas para suscitar uma obscena disputa, aonde liberais e marxistas especulam sobre os mortos que cada regime opositor produziu para mutuamente se atacarem, e não para uma crítica ao zênite totalitário do comunismo do século XX.
3 A despeito das divergências acerca de O Fim da História e o Último Homem(1992), justa ou injustamente, resta ao autor o pecha de apologeta acrítico das democracias liberais-ocidentais.
4 A crítica ao economicismo jazia presente nas lutas contra a sociedade burguesa desde o confronto de Lênin aos socialdemocratas da Rússia pré-revolucionária. De acordo com o histórico dirigente bolchevique, as lutas econômicas não poderiam prevalecer à luta política para transformar a realidade social e o modo de vida dos trabalhadores.
5 As considerações de Gramsci sobre o que chamou de "catarse" são um modo de tematizar esse problema à luz do marxismo. Para ele, a constituição do bloco histórico revolucionário deriva em parte da passagem do momento "egoístico-corporativo" para o "ético-político". Esse movimento subjetivo da classe trabalhadora envolve o deslocamento de reivindicações próprias à ordem para outras que a transcendem. O exemplo histórico de Gramsci para qualificar seu conceito é o próprio sindicalismo operário italiano.
6 A relação entre o movimento de massas e o totalitarismo foi consagrada pelos estudos de Hanna Arendt. Seguindo a autora, o totalitarismo poderia ser pensado como o gesto político de dissolução dos particulares (as classes), cujo universal (para o fascismo, a Natureza; para o bolchevismo, a História) suprime o singular (o indivíduo).
7 Termo usado por Charles Wright-Mills para designar a atitude sociológica correta para distinguir o olhar comum do crítico em relação aos fenômenos da vida social. Apesar da ingenuidade positivista subjacente à sociologia do autor, a expressão pode ilustrar a ideia de que a compreensão da realidade cotidiana exigiria algo mais do que uma leitura cotidiana.
8 Código social extraído do Direito Islâmico para o modo de vida muçulmano, cuja fonte é o Corão.
9 Vale notar que apesar da diferença temporal, o discurso de Alexandra Kollontai para trabalhadores na Moscou em 1918 é contemporâneo de Iasi. A líder revolucionária bolchevique cobrava que o proletariado soviético, finalmente reconhecido em seus direitos pela abolição da propriedade privada e o fim da exploração capitalista da força de trabalho, reconhecesse que as mulheres permaneciam "subjugadas ao trabalho doméstico, como escravas dentro da própria família" no socialismo.
10 Entre as iniciativas para a renovação política da esquerda anticapitalista destaca-se às de Lohana Berkins na Argentina. Filiada ao PC local, a travesti fundou a Associação de Luta Pela Identidade Travesti e Transexual (ALITT) no país. Para a militante, o corpo "é o bem mais absoluto que temos" (2000, p.5).
11 No argumento de Badiou, a hipótese comunista, que é uma operação intelectual, envolve a reconstrução da significância política da ideia de verdade para a emancipação coletiva - ainda que, e exatamente por isso, prepondere entre a opinião pública que o "despotismo da Ideocracia" tenha sido o motor conceitual dos regimes totalitários do século XX (2012, p.131-132).
12 Ver em: http://goo.gl/oXu6Vd.
13 Ver em: http://goo.gl/dhUpbm.
14 Em um artigo (1887), esses pensadores refutaram o argumento de Anton Menger para a superação do capitalismo. Ele, que era jurista e socialista, teve suas ideias criticadas por Engels e Kautsty por crer no poder do direito para a transformar a sociedade. Engels e Kautsty, ao contrário de Menger, pensavam que os trabalhadores só poderiam ter acesso ao produto de seu trabalho pela via da política ao invés da jurídica.
15 Como Perry Anderson (2004), Göran Therborn (2012) etc., Postone reconhece as diversas escolas que compõem historicamente o marxismo. Sem prejuízo de suas diferenças internas ou particularidades, o autor argumenta que toda tradição marxista, não importando se "clássica" ou "ocidental", analisa o capitalismo do ponto de vista do trabalho e compreende as relações de classe, sinalizadas pela propriedade privada dos meios de produção, como essenciais à moderna sociedade capitalista.
16 Segundo Marx, a conexão social dos indivíduos, desde a consolidação das relações de troca, estaria determinada pela própria necessidade de cada qual produzir para si os meios de sua subsistência. No entanto, como ninguém produz tudo o que precisa ou quer para si mesmo, a produção de cada qual está condicionada pela produção de cada um: "A dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social. Essa conexão social é expressa no valor de troca, e somente nele a atividade própria ou o produto de cada indivíduo devêm de uma atividade ou produto para si" (2011, p.105).

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