SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número8Sobre a habilidade de transitar pelas fronteiras índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.5 no.8 São João del Rei jun. 2016

 

RESENHA

 

 

Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco

Psicólogo formado pela Universidade de São Paulo. Possui aprimoramento em Saúde Mental pelo CAPS Itapeva (2009-2010). Pesquisador vinculado ao Laboratório de Intervenções e Pesquisas em Psicanálise - PsiA (Departamento de Psicologia Clínica do IP-USP/SP), conduz atualmente pesquisa no mesmo departamento, em nível de doutorado (com bolsa Fapesp). wilsondeacfranco@gmail.com

 

 

LIMA, R. A. (2015). Por uma historiografia foucaultiana para a psicanálise: o poder como método. São Paulo: Via Lettera.

Publicado em 2015 pela editora Via Lettera, Por uma historiografia foucaultiana para a psicanálise: o poder como método é fruto de investigações iniciadas dez anos antes, em 2005, atravessando uma larga pesquisa inicial, uma iniciação científica, um mestrado e anos de pesquisa no Laboratório de Teoria Social e Filosofia da Psicanálise, sempre em torno do campo de investigação que abriga o livro. O título comprido e o calibre fino do volume (128 páginas) podem ocultar o potencial crítico e transformador da obra, fazendo-o parecer nota técnica a especialistas na subárea que é a teoria da história da psicanálise; esse engodo parece quase consoante aos propósitos do autor, que afirma mesmo que sua proposta é oferecer ao leitor um "cavalo de Troia" metodológico (Lima, 2015, p. 117). Recebe-se, se assim for, um presente, e na calada da noite emergem desse presente invasores que transformam por dentro os destinos da guerra - é assim que funciona o livro, a confiar no autor. Resta entender como isso opera.

O contexto geral de inscrição do livro é o da relação entre Foucault e a psicanálise - relação intensa, próxima e com caracteres frequentemente ambíguos, difíceis de mapear. Mais difícil, ainda, organizar a dispersão da produção comentando essa intersecção: entre defensores da psicanálise, defensores de Foucault, defensores do debate e propositores de diversas chaves de intelecção produziu-se uma imensa quantidade de material heteróclito; como localizar-se? O trabalho de Lima não se propõe a organizar o campo - propõe-se, isso sim, a apropriar-se da intersecção em causa (Foucault e a psicanálise), atravessando-a em diagonal, tendo um propósito específico claramente em vista: a proposição de um método para a historiografia da psicanálise que potencialize ao máximo o poder como conceito operador. Não é, portanto, uma obra de introdução ao tema, não é uma sistematização nem um comentário; é, isso sim, uma proposta, e uma aposta - aposta que terá como mote principal a proposição de uma história da psicanálise que escape ao biografismo e à história institucional, uma história calcada no dispositivo psicanalítico e no encontro clínico.

Sumariamente, o livro se apresenta em cinco capítulos, todos eles muito claramente delineados e sistematicamente conduzidos, seguidos de uma conclusão em que se delineia com clareza o argumento central do texto. Os cinco capítulos de construção do argumento dizem respeito ao mapeamento de vetores de acesso à relação de Foucault com a psicanálise e ao delineamento de uma grade de leitura dessa relação que não se faça "colonial" - Lima trabalha para evitar tanto o Foucault psicanalizado como a psicanálise foucaultizada. Para que isso seja possível, empreende-se uma cuidadosa peregrinação ao largo da obra de Foucault e de sua interlocução com historiadores, filósofos e psicanalistas, guiado por operadores de leitura eleitos e pinçados para fundamentar a aposta e o argumento do livro; mais do que o trabalho de um estudioso, portanto, o livro reflete o trabalho de um estudioso estrategista, atento à necessidade de não perder-se no vasto mar de publicações técnicas dedicadas ao tema e que "se encerram" nele.

No primeiro capítulo ("Introdução"), o autor revisita algumas obras dedicadas ao tema "Foucault e a psicanálise", todas escritas por brasileiros, e as organiza segundo três categorias: críticos internalistas (trata-se de psicanalistas que criticam Foucault como um outsider, e o texto exemplar é "Uma arqueologia inacabada", de Renato Mezan), comentadores técnicos (trata-se de autores que munem-se de leituras metódicas e cuidadosas para um recenseamento do tema e comentários adjacentes, e os exemplos são Joel Birman e Ernani Chaves) e articuladores (aqui apenas um autor comparece, Christian Dunker, propondo uma articulação metodológica inspirada em Foucault para que se faça uma leitura intencional da história da psicanálise, a contrapelo daquela proposta pelo próprio Foucault). Seguindo essa organização, Lima insere-se entre a segunda e a terceira tradição, ou seja: comentando de maneira próxima a Foucault e propondo uma proposta de emprego não redutora. O que se propõe é mais que uma introdução do leitor ao tema: trata-se de introduzir o tema, compreendido pelo autor como campo problemático (o que se denuncia pela sua organização da cena a partir das tradições, proposta por ele e em nome próprio), ao mesmo tempo em que se trata da introdução do autor, apresentando-se "em primeira pessoa" (Lima, 2015, p. 26). Trata-se de explicitar os atravessamentos políticos em causa e de propor o tensionamento do campo, dando-se nome aos bois e deixando claro "a que veio".

Tendo se apresentado, o autor prossegue na construção de seu método, tarefa que rege os dois capítulos seguintes: o primeiro deles dedicado à constituição de uma "definição operacional de poder", o segundo dedicado a uma leitura diagonal da noção de liberdade e sua operacionalização no contexto do pensamento foucaultiano. Nos dois casos Lima cruza a obra de Foucault do início ao fim, buscando no movimento do pensamento de Foucault os elementos que oferecerão a ele, "em primeira pessoa", os elementos para um pensamento que seja intelectualmente honesto com o autor de referência e que, ao mesmo tempo, não se esgote em um ventriloquismo francofônico, anacrônico e estéril, infelizmente tão comum em labores como esse. Nesse ponto, por sinal, encontra-se um fio condutor infalível para compreender o trabalho: preocupado com as fontes, o rigor e os contextos, Lima não deixará, por isso, de pensar como brasileiro, como psicanalista, como historiador da psicanálise, como negro e como pensador político de esquerda - essa é, com todas as letras, sua introdução "em primeira pessoa" referida no parágrafo acima.

Seguindo com sua proposta, entre os capítulos quatro e cinco Lima apropria-se de seus instrumentos já devidamente afiados (o pensamento foucaultiano a respeito do poder e da liberdade) e avança em direção aos problemas centrais de sua análise: a problematização do lugar dos dois conceitos (poder e liberdade) para e na história da psicanálise, objeto do capítulo quatro, e os impasses no caminho de uma historiografia calcada no encontro clínico como acontecimento psicanalítico, objeto do capítulo cinco.

Toma em apreço, para tanto, um caso escolhido a dedo, o caso do "homem do gravador": trata-se de um texto literário publicado por J. J. Abrams em 1969, em Paris, em que se relata como Abrams teria ligado o gravador em uma sessão de psicanálise, perturbando o psicanalista, tirando-o de seu lugar de "detentor da fala" e espetacularizando uma cena de inversão de papéis. O diagnóstico de Lima é claro: Abrams não denuncia o poder e não promove a liberdade, apenas inverte os polos de um jogo que continua operando incólume; se é possível divertir-se com a cena, não é possível depreender dela uma leitura sobre o poder em jogo na cena clínica, e muito menos superá-lo.

O "Homem do gravador", portanto, é entendido por Lima como plataforma retórica - usada na época por Sartre e outros - para levantar-se contra o "poder na psicanálise", mas não permite uma leitura de como o poder opera na clínica psicanalítica em termos foucaultianos. Isso porque, conforme bem delineado pela definição de poder apresentada no próprio livro, Foucault não entende o poder de forma somente "vertical", entre dominadores que detêm o poder e dominados que sofrem sob o seu peso, mas sim como noção operacional para mapear as relações e jogos de força entre agentes em um determinado contexto. Isso significa, para o contexto da psicanálise, que deve haver mais numa analítica do poder na cena clínica que a denúncia do poder do analista e o testemunho do desamparo do analisante - não que isso não esteja em causa, mas esse expediente não porá em movimento as tramas do poder e da liberdade nem permitirá compreender seu interjogo no horizonte da história da psicanálise. Como contraponto a essa figura de uma "analítica insuficiente", portanto, Lima elencará outras estratégias, tiradas da trajetória intelectual do próprio Foucault - mais especificamente da "Vida dos homens infames" e das obras dedicadas aos "casos" de Pierre Riviére e de Herculine Barbin. O que Lima encontra nesses estudos foucaultianos é uma analítica do poder em um contexto estranho à psicanálise, mas em que se podem ver enovelar expedientes discursivos diversos incidindo sobre a liberdade, a linguagem e o sexo de "desviados sociais", e essa composição oferecerá ao autor os elementos a partir dos quais propor a historiografia psicanalítica calcada na categoria de poder (propósito maior do livro).

Cabe lembrar ao leitor que "A vida dos homens infames" é um trabalho em que Foucault analisa cartas endereçadas ao rei nas quais cidadãos (vizinhos, pais, cônjuges, ex-cônjuges etc.) pedem intervenção por virtude de um desvio percebido por eles na conduta de um conhecido; nessa medida Foucault encontra ali a expressão residual de como o poder é convocado a operar nas pequenas relações ou, mais precisamente, de como o poder efetivamente opera nas relações. As obras dedicadas a Pierre Riviére e Herculine Barbin se organizam em torno de uma grade analítica semelhante - trata-se de casos em que, a partir de um feito que inscreve o cidadão sob os olhos da lei, passa-se a um escrutínio a respeito de seus desejos, desígnios, sua retidão e seus desvios. O uso que Lima fará desses trabalhos será o de uma proposição: a proposição de uma historiografia que contemple a dimensão "acontecimental" no contexto da psicanálise, e aqui encontramos a chave organizadora do livro.

A história da psicanálise começou a ser contada ainda em seus primeiros anos, em 1910, com a publicação de "História do movimento psicanalítico", por Sándor Ferenczi (ele próprio psicanalista e próximo a Freud); tanto nessa obra como na obra homônima publicada por Freud em 1914, o propósito era delinear a história da psicanálise em torno da figura de Freud e organizada pelos princípios que regem sua prática - uma história, portanto, pessoalista, normativa e protocolar. A essa tradição (que acompanha a história) assomar-se-ia outra, a da história biografista, em que a psicanálise é reconhecida e contada a partir da teatralização das relações entre as figuras que atuam no cenário psicanalítico e a forma como suas ideias repercutem. Recuperando o recenseamento da historiografia psicanalítica proposto por Roudinesco, Lima adotará como "ponto de corte" nessa tradição "clássica" a publicação de "A descoberta do inconsciente", de Henri Ellenberger, que fundaria a tradição "historiográfica erudita" (a Ellenberger se somaria o trabalho da própria Roudinesco, segundo ela). Nessa grade compreensiva Lima entende a historiografia erudita como opção mais salutar - e seus esforços têm por propósito oferecer um panorama de inteligibilidade e sistematização dos expedientes historiográficos na psicanálise que se insere nessa tradição. A escolha por Foucault, por sinal, harmoniza com esse contexto, já que o trabalho de Foucault constitui um corte histórico na discussão a respeito da teoria da história, e seu trabalho reverbera nitidamente na obra de Ellenberger e de Roudinesco (a despeito das diferenças, não se trata de uma filiação, mas sim de influência de Foucault sobre os dois).

Parece-me necessário, a essa altura, propor uma chave alternativa de leitura para a sistematização das tradições historiográficas proposta por Roudinesco e retomada por Lima. Considero essa proposição oportuna por entender que a distribuição dos esforços historiográficos em uma vertente biografista e uma erudita, e onde a historiografia erudita é apresentada como alternativa preferível, apresenta o risco de abrir uma porta para a ideologia e para o estreitamento do debate. Note-se, a esse respeito, a derivação de uma categoria de "historiadores revisionistas", em que se enquadram as obras que atacam ou põem sob suspeita o valor da psicanálise: as três tradições de história psicanalítica adotadas por Roudinesco (biografista, revisionista e erudita) representam, esquematicamente, o primitivo, o desviado e o justo, e com isso o recenseamento verte-se em arbítrio, valoração. Dessa forma, corre-se o risco de que material histórico mais "ao gosto" seja tomado por erudito, mais "tosco" seja tomado como biografista e mais "a contragosto" seja tomado como revisionista. Sugeriria, como forma de contornar esse risco, que se guardasse, a despeito de Roudinesco, a expressão "historiografia erudita" ao entendimento crítico de uma historiografia que se fia exclusivamente no "dizer dos sábios e dos eruditos", descredenciando testemunho de cidadãos, fontes informais, circulação midiática e outros "arquivos menores". Abandona-se com isso, claramente, a expressão "historiografia erudita" como sinônimo de "boa historiografia" e as categorias mesclam-se (no que elas teriam de judicativo, pelo menos, já que se perde uma expressão indicativa de "boa historiografia"). Adotando-se essa posição perde-se a clareza do recenseamento proposto por Roudinesco, mas mantém-se vivo um debate e esquivamo-nos às soluções por predileção ou a priori.

Essa proposta de minha parte parece, inclusive, vir em benefício do próprio argumento delineado por Lima, em que se defende uma história "acontecimental". Isso porque a história defendida pelo autor seria aquela que reserva ao encontro clínico um lugar de destaque na constituição do estofo da historiografia, e deixaria de articular-se primordialmente em torno das sistematizações de obra e das influências autorais canônicas. Pois bem, em se tratando o material de base a partir desse enquadre, a primeira coisa que se perderia em termos de periodização seria o privilégio conferido às sistematizações "eruditas", que perderiam seu papel de critério de inteligibilidade em benefício de uma analítica centrada nos jogos de poder em sua dimensão "acontecimental". Parece-me claro que nesse contexto a tipologia de Roudinesco perderia sua agudeza, posto que material histórico e de arquivo exumado por "biografistas" ou "revisionistas" passa a ser tão rico em oportunidade analítica quanto material de fontes "eruditas" - os casos tratados por Foucault (dos homens infames, de Riviére e de Barbin) são mais que elucidativos nesse sentido, já que neles encontramos um historiador (Foucault) apoiando-se igualmente em relatos jurídicos, jornalísticos, oficiais e extraoficiais (método bastante comum na obra de Foucault, por sinal).

O convite apresentado por Rafael Alves Lima nessa obra aparece, agora, enunciável em seus contornos maiores: é tempo de dispor-se a um esforço historiográfico que tome a psicanálise por objeto, mas não só em sua dimensão teórica ou institucional, mas sim - e sobretudo - em sua dimensão de dispositivo. Trata-se, nas palavras do autor, de "situar a proposta mesma de uma história acontecimentalizada na fronteira em que a vida aparece enquanto narrativa enclausurada nas tramas do poder" (Lima, 2015, p. 115). Que fique claro: não se trata de uma história dos casos clínicos ou do relato dos acontecimentos clínicos, mas sim de uma história que tome como ponto de estofo o acontecimento clínico como ponto nevrálgico da tessitura da psicanálise em sua progressão histórica. Uma história dos casos clínicos seria pouco mais que um anedotário dos relatos de si; uma história acontecimentalizada acompanharia as tramas do poder em psicanálise, além e aquém das instituições, guiada pela análise da microfísica do poder em que se funda a psicanálise (práxis, teoria e movimento, já que a psicanálise como dispositivo articula essas dimensões todas do que se diz "psicanálise").

O que seria, ao final de nosso percurso, o "cavalo de Troia metodológico" a que o autor se referiu? Nas palavras dele:

A convencionalidade das caricaturas da "sala de estar" psicanalítica se mantém por índice de um dos maiores engodos quanto à problematização da questão do poder na história da clínica psicanalítica, que tantas vezes irrefletidamente se dá sob a forma de acusações de vizinhança [...]. Reconhecer o problema do poder implica, portanto, superar a simples convenção de caricaturas para tomar a história da psicanálise em seu caráter devidamente fragmentário (Lima, 2015, pgs. 118-119).

Do lado de cá e do lado de lá do muro, entre kleinianos e winnicottianos e lacanianos e através de todos seus derivativos e subgrupos, vizinhos se acusam, poderes se assumem, negam, conferem, retiram; além e aquém desse debate. Rafael Alves Lima nos oferece, como bem o define o neologismo de Christian Dunker na apresentação do livro, a possibilidade de um "antídoto" (Dunker, in Lima, p. 9) - antídoto para nos curar das pretensões de totalidade, dos entendimentos e das seguranças, para deixarmos a "sala de estar" psicanalítica e passarmos ao trabalho, lá onde o poder tece a história.

 

 

Recebido/Received: 03.03.2016/03.03.2016
Aceito/Accepted: 14.07.2016/07.14.2016

Creative Commons License