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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.5 no.9 São João del Rei July/Dec. 2016

 

ARTIGOS

 

A clínica do autismo em instituição

 

 

Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro

Psicanalista. Membro correspondente da EBP-RJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ

 

 


RESUMO

A questão abordada é a de como fazer para que uma instituição possa dobrar-se à singularidade do caso a caso e acompanhar a invenção de cada criança autista para estabelecer laços com o outro. Para responder tal questão, investiga-se as relações entre autismo e instituição na história da psicanalise e em sua teoria. E seguida, relata-se a experiência como participante da equipe que fundou o primeiro serviço público na área da saúde mental para tratamento de crianças autistas e psicóticas no Brasil, o Núcleo de Assistência a Criança Autista e Psicótica (NAICAP), assim como também a experiência como supervisora do trabalho do Ateliê Espaço Terapêutico, no Rio de Janeiro.


ABSTRACT

The issue addressed is how to make it possible for an institution to treat the uniqueness of the subject and to follow the invention of each autistic child to establish links with the other. To answer this question, we investigate the relations between autism and institution in the history of psychoanalysis and in its theory. After this, we report the experience as a participant in the team that founded the first public service in the area of mental health for the treatment of autistic and psychotic children in Brazil, the Autism and Psychotic Child Care Center (NAICAP), as well as the experience as supervisor of the work of the Therapeutic Space Atelier in Rio de Janeiro.


RESUMEN

La cuestión abordada es la de cómo hacer para que una institución pueda tratar la singularidad del sujeto a caso y acompañar la invención de cada niño autista para establecer lazos con el otro. Para responder a esta cuestión, se investigan las relaciones entre autismo e institución en la historia del psicoanálisis y en su teoría. Después de esto, se relata la experiencia como participante del equipo que fundó el primer servicio público en el área de la salud mental para el tratamiento de niños autistas y psicóticos en Brasil, el Núcleo de Asistencia al Niño Autista y Psicótico (NAICAP), así como también la experiencia como supervisora del trabajo del Atelier Espacio Terapéutico, en Río de Janeiro.


 

 

O título desta mesa une dois termos que, em princípio, seriam antagônicos: autismo e instituição.

Qualquer instituição funda-se na linguagem, instituição primordial, e nos discursos que dela derivam. O autismo define-se pela posição radical de alguns sujeitos que se recusam a entrar no laço social e, mesmo que afetados pela linguagem, estão fora do discurso.

Qual seria, então, a direção de um trabalho clínico em instituição com as crianças ditas autistas a partir dos princípios e da ética da Psicanálise? Como fazer para que uma instituição possa dobrar-se à singularidade do caso a caso e acompanhar a invenção de cada criança para estabelecer laços com o outro?

Na história da clínica psicanalítica, o binômio autismo/instituição sempre esteve presente. Encontramos desde os anos 1950 diversas propostas, de orientações totalmente diferentes, para o tratamento de autistas em instituição. Podemos citar algumas, como a controvertida instituição criada por Bruno Bettelheim, a Orthogenic School, e a proposta inovadora de Maud Mannoni, nos anos 1960, em Bonneuil, que deixou sua marca como uma invenção pioneira.

No campo da Psicanálise lacaniana, não podemos deixar de mencionar a importância dos trabalhos de Rosine Lefort, a partir do tratamento de casos atendidos em instituição, e das instituições do Campo Freudiano do RI3, como Courtil, Antenne 110 e outras, com uma proposta inédita de acolhimento e tratamento de crianças e jovens autistas, psicóticos e neuróticos graves.

No Brasil, de acordo com a Política de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes do Ministério da Saúde, foram criados os Centros de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi) para atendimento de crianças em situação de sofrimento psíquico, entre elas as crianças autistas, que propõe um projeto terapêutico singular para cada caso, seguindo uma lógica de rede e território.

Para tentar avançar um pouco nas respostas possíveis às perguntas que fiz acima, procurarei transmitir aqui o que pude aprender com as crianças e jovens autistas na minha experiência clínica em instituição. Inicialmente, como participante da equipe que fundou o primeiro serviço público na área da saúde mental para tratamento de crianças autistas e psicóticas no Brasil, o Núcleo de Assistência a Criança Autista e Psicótica (NAICAP). Em segundo lugar, como supervisora do trabalho do Ateliê Espaço Terapêutico, no Rio de Janeiro. Trata-se de uma equipe interdisciplinar, que oferece dispositivos clínicos diferenciados dos modelos standards de atendimento em consultório para crianças e jovens autistas, psicóticos e com patologias diversas que dificultam sua inserção na vida social.

O trabalho com ateliês de arte, de corpo, de teatro, as parcerias com os setores educativos de museus, as saídas pelas ruas com acompanhantes terapêuticos estão sendo recursos preciosos no trabalho com esses sujeitos. A abertura para as contingências de novos encontros na circulação pela cidade, as experiências que não se reduzem ao campo dos "tratamentos", sem perder de vista a orientação do caso a caso e os princípios da ética psicanalítica, têm sido a nossa aposta.

 

A experiência do NAICAP

Na década de 1990, foi criado o primeiro serviço público para atendimento de crianças autistas e psicóticas no Brasil, o Núcleo de Atendimento Intensivo a Criança Autista e Psicótica, no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.

Por ser um serviço pioneiro, não tínhamos nenhum modelo pronto a ser seguido. Estávamos, portanto, no terreno da invenção, da criação.

Foi a partir da escuta das crianças e de seus pais que começamos a elaborar respostas para as muitas perguntas que nos fazíamos. Quem eram essas crianças?

Na singularidade de cada caso, o que nos fazia enigma era a radical posição, que pareciam sustentar, de rechaço a qualquer demanda ou iniciativa vinda do outro. Cada uma parecia manter o outro a distancia de uma forma particular.

Essa posição sustentada com afinco apontava para uma outra dimensão que não a do déficit cognitivo, interativo ou parada no desenvolvimento. dávamo-nos conta de que era a resposta de um sujeito que procurava dar tratamento a um gozo não localizado e devastador.

Que resposta era essa? "Escutar quem não fala" foi a primeira formulação do que seria nossa direção de trabalho.

Tínhamos como ponto de partida a ética da Psicanálise: supor um sujeito a advir nos estranhos comportamentos dessas crianças. Freud e Lacan eram as referências teóricas dos psicanalistas da equipe.

No cotidiano do trabalho, as crianças pareciam colocar em xeque o saber dos psicanalistas, que vinham da prática dos consultórios, e dos outros profissionais, como terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos com formação na área de reabilitação. Como escutar quem não fala, criar atividades para crianças que repetem sempre os mesmos gestos, ou, errantes, não se fixam em nada?

Tivemos de nos despojar de qualquer saber prévio e seguir o caminho que cada criança apontava.

"Um espaço de possibilidades" foi como nomeamos o que seria nosso dispositivo de trabalho. Um primeiro tempo de escuta de cada criança, o que incluía a escuta de seus pais ou responsáveis, e a construção de um "projeto terapêutico" para cada caso, a partir de uma discussão em equipe.

NO início do trabalho toda a equipe compartilhava do cotidiano com as crianças: café da manhã, almoço, lanche, oficinas criadas a partir do que as crianças nos mostravam como interesses privilegiados (oficinas de "música", "fantoches", "contando histórias", etc.). Com o aumento do número de crianças e da equipe, foi-se demarcando lugares diferenciados. Os psicanalistas ficaram no lugar de "técnicos de referência", recebiam os pais e se responsabilizavam pelas discussões dos casos. Esse lugar acabou se configurando como o lugar daqueles que detinham o saber sobre os casos. Os "não analistas" sentiam-se desautorizados e desvalorizados e os próprios analistas sentiam-se presos na mesma armadilha. Toda a equipe não se sentia mais à altura do modelo "ideal" que tinham construído.

Os efeitos desse impasse sobre as crianças foram visíveis. Alguns apresentavam piora em seus quadros, ou procuravam aproximar-se dos estagiários ou recreadores, ou seja, daqueles que não ocupavam o lugar do saber. Mais uma vez, nos mostravam a direção a seguir.

A leitura dos textos das instituições da Rede Cereda, Courtil e Antenne, que relatavam sua experiência, nomeada por Jacques Alain Miller de "prática entre vários", nos levou a reencontrar o desejo que nos animava no início do trabalho.

Não queríamos importar um modelo, mas inventar nossa própria maneira de trabalhar entre vários.

A prática entre vários se constitui numa direção de tratamento da psicose e do autismo em instituição, uma tentativa de resposta ao impasse ligado à questão do saber na transferência na clínica das psicoses, pois, nesse caso, saber e gozo se encontram não disjuntos no lugar do Outro. Assim, a prática entre vários é uma tentativa de constituir uma equipe que possa responder às condições exigidas pelo sujeito psicótico: que saiba saber não saber.

O instrumento que utilizamos para manter esse lugar vazio de saber é a reunião geral da equipe, em que todos dão seu testemunho sobre seus encontros com cada criança. Nenhum membro da equipe se situa como o único detentor do saber sobre o caso, possibilitando que a equipe se autorize a operar a partir do que ela não sabe. O saber, ficando, assim, do lado das crianças.

Em alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan se pergunta: "Que alegria encontramos naquilo que constitui nosso trabalho?".

Podemos dizer que encontramos essa alegria ao assumirmos que não há um Outro que detenha todo o saber, mas que podíamos juntos aprender alguma coisa sobre o que nos ensinam as crianças autistas.

 

Ateliê Espaço Terapêutico

O Ateliê Espaço Terapêutico surgiu do desejo de uma equipe que já trabalhava há alguns anos com crianças e jovens em grave sofrimento psíquico em instituições públicas e que se aventurou na construção de uma instituição particular de orientação psicanalítica na cidade do Rio de Janeiro.

É uma proposta de trabalho clínico diferenciado do modelo clássico de consultório. Oferece diversas modalidades de atendimento: Ateliês Terapêuticos, Acompanhamento Terapêutico e Acompanhamento por meio de Mediadores nos casos de inclusão escolar.

Prioriza-se a construção de um projeto terapêutico a partir dos interesses de cada criança ou jovem, em sua singularidade, visando à construção de novos laços sociais. A direção de trabalho dos membros da equipe é a de serem parceiros nos percursos de cada sujeito na busca de novas possibilidades de estar no mundo.

O trabalho pode se dar, portanto, na circulação pelos espaços da cidade, nas escolas, nos lares, em ateliês realizados em parques ou museus, em passeios, nos cinemas ou em simples atividades do cotidiano.

Algumas crianças ou jovens podem ser atendidos individualmente por psicanalistas fora do Ateliê, ou simplesmente participarem de algumas atividades.

Um fragmento clínico de um Ateliê de Férias na oficina de teatro e um outro, que se passa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ajudarão a transmitir a clínica em instituição que estamos realizando1.

F. iniciou seu trabalho no Ateliê Espaço Terapêutico há menos de um ano. Frequenta há muito tempo uma escola especial e se recusava, até então, a participar de qualquer outra atividade. Seu cotidiano é pautado por regras rígidas impostas por ele. Sai raramente de casa.

Uma das atividades interdisciplinares propostas nas férias foi o ateliê de teatro com os professores da faculdade de teatro, que acontece em uma das salas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Sempre que lhe é dirigida alguma pergunta, F. responde "não sei" ou "não faço a menor ideia". Fala pouco e não manifesta um interesse especial por algum tema, ou atividade. Na rua, anda sempre um pouco colado ao outro.

A partir da proposta dos atores que coordenam o Ateliê de teatro para que representasse um cantor, F. consegue participar a seu modo, sob a forma de uma dupla sertaneja. Em uma outra cena, participa de uma história narrada por uma menina, também integrante do grupo, acompanhando "irmãos" em suas aventuras em um castelo. Utiliza-se, assim, do outro como duplo, como um recurso para participar da atividade sem se sentir tão invadido ou exposto.

A presença do duplo no autismo foi destacada por Rosine e Robert Lefort (2003) e retomada por Jean Claude Maleval (2009) como um traço fundamental e definidor do autismo. O duplo é uma forma possível para o sujeito autista se abrir para o mundo sem se expor totalmente ao gozo do Outro. No inverso de uma identificação que passaria pelo simbólico, ou de um duplo imaginário, no autismo o duplo é um duplo real. O parceiro ou objeto que ocupa a função de duplo serve como prolongamento do corpo do autista, e media sua relação com um mundo vivido como potencialmente invasivo e desregrado. Para muitos autistas, o duplo permite que aos poucos se abra espaço para a presença da alteridade no mundo ritualizado construído por ele.

Em um outro momento do Ateliê de teatro, um outro jovem que participava do grupo improvisa a imitação de um repórter. Ele se direciona a cada um dos presentes e faz a mesma pergunta: "O que você quer ser quando crescer?" e cada um responde à sua maneira. Quando interrogado, F. se surpreende e surpreende a todos quando responde: "Piloto de avião"! Testemunhamos, neste momento, a emergência de uma enunciação singular do sujeito.

A posteriori, em uma reunião para discussão do Ateliê, um dos membros da equipe lembrou-se de que o pai de F. trabalhou numa empresa de aviação por muitos anos, tendo depois se aposentado.

Acreditamos que esse ateliê, a partir de atividades que são "enquadradas", em um tempo e um espaço, onde os coordenadores estão abertos e dóceis às invenções singulares de cada participante, possibilita que efeitos de sujeito se produzam.

As intervenções e propostas dos atores são também invenções a partir de um "saber fazer" com o improviso e a surpresa, que permite aos participantes do grupo um certo esvaziamento do gozo do Outro. Deixando-se surpreender por esses sujeitos, sem um saber prévio sobre eles, os coordenadores desse ateliê interdisciplinar possibilitam efeitos de surpresa nos participantes do grupo, que respondem também com suas invenções singulares. Os coordenadores tornam-se, assim, parceiros desses sujeitos em seu trabalho de construção de laços inéditos com o outro.

Ivo é um jovem autista que, enclausurado em seu mutismo, muitas vezes responde ao outro com beliscões e mordidas. A voz e a fala do outro, dirigidas diretamente a ele, podem provocar crises devastadoras em Ivo, quando se joga no chão e morde quem dele se aproxima. Esse jovem trabalha para colocar alguma ordem em seu mundo, posicionando objetos da maneira que lhe convém, de forma preestabelecida por ele. Dificilmente permite que alguém se inclua nesse seu trabalho.

No último ateliê de férias, programamos uma visita ao Museu de Arte Moderna (MAM). Ivo nos surpreendeu com o trabalho que realizou em um espaço para criação artística, localizado numa sala do museu. O Núcleo de Educação do MAM é um espaço onde vários materiais são oferecidos a crianças e jovens em visita ao museu. O trabalho realizado ali é acompanhado de perto por monitoras capacitadas para incentivar a criatividade de quem participa dessa atividade.

Ivo se dedica a uma construção singular, colocando numa mistura de argila minibastões de carvão e massa de modelar. Os bastões darão uma forma e servirão de base para a massinha. O que chama a atenção, além dessa interessante construção, é que esse trabalho toma o rapaz de tal maneira que ele suporta um longo tempo sentado junto a outros jovens, permitindo que lhe ofereçam material para ser acrescido ao trabalho que realiza. Uma das monitoras separava pequenos pedaços de massinha que Ivo ia incorporando ao seu trabalho.

Esse momento inédito nos orientou na direção de trabalho com Ivo. Após uma discussão do caso em supervisão, foi proposto um ateliê de artes, que contará também com a participação de um profissional do campo das artes, além de uma pessoa da equipe.

Neste caso, além do suporte criado pelo "enquadramento" da atividade, um saber-fazer da monitora em educação e arte fez a diferença. Por não estar prevenida quanto às "crises" de Ivo, ousou aproximar-se e intervir em seu trabalho, de forma sensível, sem invadi-lo, furando assim nosso saber sobre o caso. Essa experiência nos convidou a apostar mais ainda no trabalho interdisciplinar com esse jovem.

O trabalho interdisciplinar com a arte e a educação, a circulação por vários espaços da cidade, os novos encontros e contingências surgidas nesses circuitos, acaba por construir uma espécie de rede viva na qual novas possibilidades se apresentam para esses sujeitos enclausurados em si mesmos - uma abertura para a alteridade e a construção de um mundo onde possam encontrar um lugar.

No dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, encontramos como definição de rede o entrelaçamento de fios ou cordas com aberturas regulares, fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido.

Acreditamos que a constituição dessa rede viva, por meio de um trabalho interdisciplinar, só pode se fazer por meio destas aberturas regulares, ou seja, das faltas, vazios de saber por parte das equipes de diversos campos de saber. É em torno desse vazio de saber que esses sujeitos podem tecer caminhos singulares para a construção de uma alteridade e de novos enlaces com o outro.

 

Referências

Lacan, J. (2003). Alocução sobre as psicoses da criança. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lefort, R. (2003). La distinction de l'autisme. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

Maleval, J-C. (2009). L'autiste et sa voix. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

Ribeiro, J. M. (2004). O percurso de um trabalho em instituição orientado pela Psicanálise. In J. M. de L. Ribeiro & k. M de C. Monteiro (Orgs.). Autismo e psicose na criança: Trajetórias clínicas. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras.         [ Links ]

 

 

1 Estes casos foram acompanhados por Laura Landi, Rafael Ferreira Lima Dias e Luisa Ferreira, psicólogos da equipe do Ateliê. Os fragmentos são relatos escritos por eles e discutidos em reunião de equipe e supervisão.

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