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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.5 no.9 São João del Rei jul./dic. 2016

 

ARTIGOS

 

O um: que ele não acesse o zero - análise de uma neurose em a Hora da Estrela de Clarice Lispector

 

The one: he does not reach the zero - analysis of a neurosis in a hora da estrela from clarice lispector

 

Le one : qu'il n'a pas aller a la zero - analyse d'un neurosis dans a hora da estrela de clarice lispector

 

El uno : que él no alcance el cero - análisis de una neurosis en a hora da estrela de clarice lispector

 

 

Gláucio Silva Camargos

Psicanalista, Pesquisador pelo programa de Psicologia e Saúde da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP

 

 


RESUMO

Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão se fingindo de sonsos... e esse oco é o tudo que eu jamais posso ter. Mais que isso. Nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. - C. L
Neste trabalho temos como meta estudar aspectos do discurso e do universo psíquico de Rodrigo S. M., narrador-personagem em A Hora da Estrela - de Clarice Lispector. Evocamos a questão da ausência, da falta, do vazio, que encontra apoio nas palavras. Essa questão do vazio tem adquirido um papel central no entendimento de várias ciências como a física, a sociologia, a antropologia e a psicanálise. Nesta última a falta lança luz sobre a etiologia de vários estados psicológicos que se evidenciam no discurso e, que pelo discurso podem ser modificados. Nesse âmbito as representações pelas palavras criam uma vasta gama de quadros artísticos representativos maiores que se expressam na literatura, teatro e cinema.

Palavras-chave: Linguagem; Discurso; Vazio.


ABSTRACT

Here we analyze the psychic universe of Rodrigo S. M., narrator -character in A hora da estrela from Clarice Lispector. We evoke the question of absence, lack, emptiness , which is supported by the words. This issue of the void has acquired a central role in the understanding of various sciences such as physics, sociology, anthropology and psychoanalysis . In the latter lack sheds light on the etiology of various neurotic conditions that are evident in the speech and that the speech can be modified. In this context the representations by the words create a wide range of major representative artistic pictures that express themselves in literature , theater and cinema.

Key words: Language; Speech; Empty.


RÉSUMÉ

RÉSUMÉ
Dans cet article, nous cherchons à étudier les aspects de la parole et de l'univers psychique de Rodrigo S. M., narrateur - personnage dans A hora da estrela de Clarice Lispector. Nous évoquons la question de l'absence, le manque, le vide, qui est soutenu par les mots. Cette question du vide a acquis un rôle central dans la comprehension des diverses sciences telles que la physique, la sociologie, l'anthropologie et la psychanalyse. Dans ce dernier manque éclaire sur l'étiologie de divers états psychologiques qui sont évidents dans le discours et que le discours peut être modifié. Dans ce contexte, les représentations par les mots créent un large éventail de grandes images artistiques représentatives qui s'expriment dans la littérature, le théâtre et le cinéma .

Mots-clés: Langue ; Discours ; vide.


RESUMEN

En este trabajo nos proponemos a estudiar aspectos del discurso y del universo psíquico de Rodrigo S. M., narrador-personaje en A hora da estrela de Clarice Lispector. Evocamos la cuestión de la ausencia, de la falta, del vacío, que es apoyado por las palabras. Este problema del vacío ha adquirido un papel central en la comprensión de las diversas ciencias como la física, la sociología, la antropología y el psicoanálisis. En este último la falta arroja luz sobre la etiología de varios estados psicológicos que se manifiestan en el discurso y que por medio de el pueden ser modificados. En este contexto, las representaciones de las palabras crean una ampla gama de grandes imágenes artísticas representativas que se expresan en la literatura, el teatro y el cine.

Palabras - clave: lenguaje ; el habla ; Vacía.


 

 

Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que
os senhores sabem mais do que imaginam e estão se
fingindo de sonsos... e esse oco é o tudo que eu jamais
posso ter. Mais que isso. Nada. Mas o vazio tem o valor e a
semelhança do pleno. – C. L

 

INTRODUÇÃO

Falar parece simples. Para a grande massa qualquer pessoa fala. O trabalho psicanalítico se dá na arena das palavras. Ao público leigo certamente parece desarrazoado que uma pessoa se dirija a um analista "apenas" para falar. Infelizmente, para muitos profissionais da linguagem isso também é assim. Não lhes ocorre que seja possível eliminar distúrbios psíquicos e físicos por meio das palavras. Para muitos essa ideia pode ter ares de caçoada e amiúde é desprezada. Contudo, a evidência científica aponta para outro caminho. Neste trabalho temos como meta estudar aspectos do discurso

Falar não é simples. A fala - e posteriormente, sua representação escrita, - é fruto de longos séculos no processo de evolução da máquina dita "humana". Durante o estudo da aquisição da linguagem nos âmbitos filogenéticos e ontogenéticos observarmos que a fala surge como organizadora de várias funções como, por exemplo, a de classificar e generalizar o mundo, a comunicação social e a organização do pensamento. Permeando todas essas funções, a linguagem apresenta-se com uma função geral, maior, no qual se apoiam as outras: a de suprir uma ausência, a falta de um objeto, animal, pessoa, situação, no tempo e no espaço. Na falta da instituição suposta real, as palavras surgem como sinais que se esforçam para representar as coisas entre o mundo real e o virtual, psíquico.

A realidade, tal como se nos apresenta, é muito dura e, em geral, temos duas atitudes distintas em relação a ela: fugindo-lhe e negando sua existência ou do outro lado encarando-a, nos esforçando para vivenciar a dor de maneira saudável, uma vez que esta é inevitável e cumpre papel importante no desenvolvimento humano. O poder psíquico das palavras nos acompanha nessas duas posturas psicológicas: na falação dos discursos humanos temos as representações que criam um mundo lúdico, que nega ou corrige o mundo real criando na fantasia o que falta na realidade. (PERRONE-MOYSÉS, L. 2006). Do outro lado temos a literatura que realça a falta, para que por meio de uma identificação, possamos encará-la, observá-la, classificá-la e agir ativamente sobre ela. A obra de Clarice Lispector parece estar nesta última postura.

 

DESENVOLVIMENTO

Ao analisar a obra de Clarice Lispector poderemos nos questionar se a escritora conhecia ou apenas desconfiava do poder "mágico" das palavras. É notório em seus escritos o encontro de conceitos científicos usados pela psicanálise e as bases pulsionais que estruturam a personalidade de seus personagens permeados pelo ato fatídico da palavra no mundo.

Aqui propomos analisar as articulações entre a narrativa em A hora da estrela com alguns conceitos básicos da psicanálise. A estrutura do discurso produzido na arte, na literatura, no cinema e em todas as diferentes linguagens é um apoio para um saber maior: é nesse nível do poder psíquico da palavra, da evolução do mundo biológico e da mente, da criação do mundo artificial chamado de real, do vazio que antecede esse mundo e também que o precede é que encontramos Rodrigo S. M, narrador-personagem em A hora da estrela. Apresenta-se-nos com uma angústia densa, mistura de questionamentos existencialistas. Tratase de um homem complexo, que reúne uma ambiguidade de sentimentos em relação aos fatos da vida de uma moça nordestina - objeto principal de sua angústia. Procura se livrar de sua angústia escoando-a no seu discurso, dá às palavras o seu lugar nos fatos humanos e na construção de um mundo concreto pseudo-real, e usando-as pretende mudar, ou pelo menos afetar sua emoção em relação a essa moça.

Observemos a cadeia de associações de Rodrigo como narrador-personagem.

 

RODRIGO S. M.: O UM

Rodrigo se apresenta como escritor medíocre - e afirma que até o momento sua literatura possuía algum êxito, contudo ele mesmo não se considera um profissional da escrita. Não sabemos se usa essa atividade para se sustentar ou não, mas se julgava "até mesmo um pouco contente" até o momento em que Macabéa - uma pessoa ainda não nomeada e tanto mais incômoda por ser "sua" -surgiu na sua vida (LISPECTOR, 1998, p.17). Contra seus hábitos ele propõe contar uma história banal, mas de difícil elaboração. Apresenta cadeias de pensamentos angustiantes e ambivalentes em relação a essa moça. Há dois anos e meio vem tentando entender os motivos de seus pensamentos torturantes, e sem entender bem as respostas, seu Eu vê-se obrigado a "contar sobre essa moça entre milhares delas", sente que é seu dever, "nem que seja o de pouca arte, revelar-lhe a vida." (Cf. LISPECTOR, op. Cit., 13). Pretende descarregar seus sentimentos pela escrita e anseia seu alívio por chegar ao fim.

Ao descarregar sua angústia na escrita Rodrigo apresenta inquietações próprias à criação do universo simbólico pela linguagem, hesita constantemente ao longo de seu discurso, fazendo digressões que tentam refletir sobre a invenção e o uso das palavras como instrumento de apreensão e criação do mundo e das coisas. Demonstra boa dose de preocupação pela escolha das palavras, não que deseje adornar sua linguagem, mas apresenta como motivo para essa preocupação o desejo de captar bem o objeto de sua angústia - "Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência". Assim, tem a pretensão de escrever de modo cada vez mais simples para adequar sua narração ao nível da moça de quem fala. Entende que não deve enfeitar as palavras "pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. " (LISPECTOR, op. cit., p.15). Aqui a análise pede-nos que suspeitemos dessas digressões, contudo ainda temos pouco material para qualquer hipótese. Suspendamos a suspeita por hora a fim de avançar mais sobre o material fornecido.

Segundo Rodrigo a falação das "fracas aventuras de uma moça em uma cidade feita toda contra ela" é motivada por um desafio pessoal, para fugir do sentimento de vazio, do vazio mórbido do nada - "escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias"-, e "por motivo grave de 'força maior'". (LISPECTOR, 1998, p. 36)

Rodrigo abre sua fala teorizando sobre o início da vida, "pois como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? se põe contar uma história "exterior e explícita", "Vida primária, que respira, respira, respira" (LISPECTOR, op. cit., p.11). Na transcendência de sua fala, na apreensão de seu objeto, ele se vê obrigado a abandonar o universo da abstração para escrever sobre fatos reais, "qualquer que seja o que quer dizer realidade" (LISPECTOR, op. cit., p.17). A tarefa fascina-o e deixa-o instável emocionalmente, forçando-o e a abandonar sua ilusória e confortável posição anterior.

Qual é a força que lhe impele a esse abandono de uma posição confortável para outra que tende a se debruçar sobre a realidade? Entre outras coisas, ele mesmo afirma: "Por que escrevo sobre uma jovem que nem mesmo pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza do corpo e espírito eu toco na santidade, eu quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, porque tão pouco sou" (LISPECTOR, op. cit., p.21). Nessa nova postura adotada no confronto com o objeto de sua angústia as vacilações são o que há de mais evidente, ao passo que a diferença entre o falante e o objeto da fala o oprime, a distância entre eles é anulada: eu também sou esse outro no nível do existir. O seu conforto o afastaria do sofrimento se Macabéa não surgisse como uma "pedra em seu caminho". Da abstração do pensamento ao determinismo social, a projeção da moça atinge Rodrigo como uma imagem bruta, cheia de uma vontade de apreensão do mundo e cercado de certo ar poético. Mas, segundo ele, pouca coisa era transcendência na vida da moça que "não sabia enfeitar a realidade", o que sugere que ele sim conseguia fazer isso. Se a palavra realidade diz tão pouco tanto a ele quanto ao seu objeto - "Aliás, a palavra 'realidade' não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus" - a capacidade de tornar belo o entorno não é possível a Macabéa e é aqui que acaba a identificação. (LISPECTOR, 1998, 34)

Voltemos agora à nossa suspeita sobre as hesitações na fala de Rodrigo, em sua preocupação com as palavras para a criação do mundo e das coisas e para a captação do seu objeto. Percebemos que ao mesmo tempo em que se tortura com as imagens da moça, certo sentimento de culpa começa a emergir em sua fala: "Mas porque estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito em benefício da moça?" (LISPECTOR, op., cit., p. 23). Levantamos, portanto, a hipótese de que essas hesitações se apresentem não apenas como preocupação com a exatidão de seu relato, mas que escondem o caráter de resistência. Os processos conscientes travam luta com os processos inconscientes, de modo que há momentos em que se culpabiliza diante da pobreza e desamparo da moça e há momentos em que procura aliviar-se tentando fugir dessas imagens. Em outros momentos o personagem passa para um tom de aceitação do peso da culpa.

Tentamos seguir o rastro dessas resistências. Não sabemos se Macabéa é projeção de uma pessoal real na vida do narrador ou se é a expressão da culpa que luta para se inscrever na consciência dele. Observamos que a construção da identidade do rapaz procura uma perspectiva que dê sentido à sua existência por meio do confronto com as imagens da moça Macabéa. Enquanto descreve a pobreza e desamparo da moça percebemos nele traços que se opõe aos dela. Rodrigo demonstra ter alcançado certo êxito no mundo das coisas: possui conforto, um lar, vinho branco, uma máquina de escrever, - características que faziam parte da classe média alta na época em que se passa a história - enquanto a moça nem pobreza enfeitada tinha. O nível de instrução também parece ser oposto. Ele é um intelectual que escreve, ela não sabe bater direito à máquina e apresenta dificuldade em representar a sonoridade das palavras na escrita. O narrador imprimi assim em suas palavras, de seu lado, um caráter de plenitude, - gerado pela ideia de posse e dos bens de consumo que satisfazem a necessidade com êxito -, em contraste com um caráter de vazio e desamparo representado por Macabéa: um polo positivo que se sente acusado pelo polo negativo de sua fala.

A maioria das cenas comunicadas parecem sugerir que a angústia vem de ele, pouco a pouco, descobrir-se negociado. Rodrigo parece dar-se conta de que ser negociado não é, para um sujeito humano, uma situação rara, contrariamente à falação sobre a dignidade humana. Olhando para seu Eu e para o Outro - a moça -parece constatar que qualquer um e em todos os níveis é negociável, pois a diferença entre eles evidencia que o que permite qualquer significação da estrutura social é a troca: a troca de indivíduos, de suportes sociais, com o que eles retenham de direitos básicos. A ideia de negociar, e desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos assalta o narrador. Temos aí um intelectual em conflito pelas ambiguidades que o constituem: de um lado sofre por não ter acolhido a moça - representação de nulidade, do valor de zero, vazio, e, por outro lado é esse mesmo retrato do outro desamparado que dá a afirmação do êxito de si mesmo para o personagem. Em meio a esse paradoxo emerge a imagem da moça, objeto de sua culpa, que lhe acusa por suas fracas chances de realização nas ilusões de consumo e felicidade criadas pelo sistema.

De onde vem a insatisfação de Rodrigo apesar de sua aparente situação de êxito? "O trabalho analítico nos mostra que são forças da consciência que impedem o indivíduo a retirar, da feliz modificação real, o proveito longamente ansiado" (FREUD, 2006, p. 332). Essa contradição do existir ataca o personagem: Ele constata que não é nem ser nem não-ser, mas algo de não realizado. A angústia do rapaz diante do sentimento de vazio mostra-se resultado das práticas de massa: o pensamento moldado quase que exclusivamente pela ideia de ter, de possuir coisas e a busca de referenciais prontos na sociedade - marcas encontradas no homem de rebanho. Rodrigo tem seu lugar nas engrenagens do rebanho, Macabéa está à margem. A moça é uma tragédia e sabemos que a tragédia está presente na experiência psicanalítica.

Rodrigo quer o bem, contudo percebe que o bem não se estenderá sobre tudo sem que apareça um excesso, de cuja consequência fatal nos adverte sua fala. Na constatação de que a pobreza é feia e promíscua, dá à falta de recursos materiais um valor moral: um status de imoralidade. Ele afirma: "todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito" (LISPECTOR, op. cit., p. 12). Seu conflito é de querer o bem de si mesmo - mas o bem sem limite, a regra soberana que transborda, ultrapassa o limite - conjugado com o bem do Outro, seu oposto. É por meio do contorno da personalidade de Rodrigo que a moça vai se evidenciando no discurso e isso reforça o seu medo: "realmente não sei o que me espera" (LISPECTOR, op. cit., p.22). A ambiguidade de seu discurso se expressa no fato de ele ser ao mesmo tempo o foco de sua própria fala e testemunha onisciente, que desconfia dessa onisciência, marcando seu contraste com digressões em vários momentos, dizendo "continuemos"; "voltando a mim", "volto à moça".

Nesse quadro, para o rapaz, dispor de seus bens causa certa desordem: dispor de seus bens é ter o direito de privar os outros desses bens. A denúncia de um paradoxo gritante entre o que é ser, existir e ter ou possuir. A angústia, como conteúdo manifesto daquilo que está reprimido no falante, se configura com caráter psíquico e social: Macabéa existe não apenas como obsessão torturante de Rodrigo, mas também nas relações sociais objetivas em que ele se insere.

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo. (LISPECTOR, C. 1998 p.33)

Sua projeção o persegue, incomodando suas certezas e sua "razão". "Mas e eu? E eu que estou contando essa história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. Será que meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? " (LISPECTOR, op. cit., p.57). Nessa busca, o falante toma o seu objeto como uma extensão da sua própria identidade, ao mesmo tempo em que delimita suas diferenças. Ao captar seu objeto nas palavras o falante coloca os traços compositivos dele em justaposição aos seus - "Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria" (LISPECTOR, op. cit., p.14). Essa identificação com Macabéa se faz pela negação: (ela não é como eu) que gera a dificuldade de aproximação com o Outro. "(Quando penso que eu podia ter nascido ela - e porque não? - estremeço. E parece-me covarde fuga o fato de eu não a ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)" (LISPECTOR, op. cit., p. 39). Contudo, a análise que o narrador constrói para esse Outro, que vive condições sociais e históricas diferentes das dele carrega a dúvida: se constituem como consciência de classe social ou como sentimento de culpa? A imagem de Macabéa vai aos poucos ganhando terreno na fala do narrador e em certo ponto disputa o espaço ele próprio. Numa espécie de abertura inconsciente, Rodrigo abandona momentaneamente o centro de sua fala e permite que seu objeto ocupe o primeiro plano. A cadeia de pensamentos apresenta em alguns momentos uma profunda fusão dos dois tempos, efetiva para o surgimento da neurose: "Vejo a nordestina se olhando ao espelho, - e um rufar de tambor - no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos" (LISPECTOR, op. cit., p. 22) Sobre essa a aproximação entre o Eu e o Outro pela linguagem Lacan comenta:

Pelo efeito da fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito da linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico do Outro. (LACAN, 2008, p.184)

Esse movimento hesitante do falante entre a aproximação e a distância do objeto do discurso também é aplicado a nós que o ouvimos, provavelmente como expressão de uma transferência, pois ora ele cria um "nós" (um eu junto com outros iguais a ele) - "Ela estava enfim livre de si, livre de nós" - ora diferencia seu lugar de falante, da sua suposta passividade, e também da limitação, do lugar de quem o ouve - "Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós" -, o que marca a diferença sob o sentimento da igualdade. Somos chamados a ser cúmplices do narrador, também pela suposta posição de classe: "Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia." (LISPECTOR, 1998, p. 31).

Na expressão do que parece ser uma transferência Rodrigo nos dá, ironicamente, um tratamento respeitoso chamando-nos de "senhores", para em seguida nos insultar, chamando-nos de "sonsos". Mas qual seria a nossa sonsice? Sem dúvida, a de viver "fingindo". O falante nos agride, e consequentemente a si próprio, em um movimento de defesa muito característico do processo de recalcamento. Laplanche, seguindo o caminho apontado por Freud, analisa a relação entre desejo e fantasia e pontua que o fantasma "dá matéria aos processos de defesa mais primitivos, tais como a volta ou retorno a própria pessoa, a intervenção da pulsão, a (de)negação, a projeção"(LAPLANCHE, 1988, p 233). O rapaz, que se intitula um dos personagens principais de sua fala, denega seu papel de intelectual e, como analisaremos mais adiante, projeta seus próprios anseios e comportamentos sobre Macabéa: "Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra." (LISPECTOR, 1998, p. 21).

Sendo a fantasia um ponto privilegiado onde o retorno do recalcado pode ser apreendido, os fantasmas "[...] Aproximam-se até junto da consciência e ali permanecem sem serem perturbados enquanto não tem um investimento intenso, mas são repelidos logo que ultrapassam um certo nível de investimento" (LAPLANCHE, 1988, p. 231). Uma vez despertados aparecem imagens organizadas, dramatizadas na maior parte das vezes de forma visual. O indivíduo, ao investir na vida onírica, se faz presente nessas cenas como participante, onde é representada "uma sequência de que o próprio indivíduo faz parte, no qual não são permitidas as possíveis permutas de papel e atribuição". (LAPLANCHE, 1988, p. 232).

Em O Mal-Estar Na Civilização Freud retoma a formação dos sentimentos de culpa - o que é chamado popularmente de "consciência pesada" - e indica como uma "ansiedade social" se transforma na fase adulta à medida que o lugar do pai ou dos genitores é assumido pela comunidade mais ampla. Quando a autoridade é internalizada pelo superego a sensação de "certo" e "errado" dependerá da autonomia e da decisão individual da pessoa e nas situações onde essa linha é ultrapassada "o superego atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo (FREUD, 2006 p. 204). Nessa situação o complexo de Édipo é estendido à sociedade: o temor e a superação da autoridade - natural ou imaginária - atua fortemente no sentimento de culpa experimentado pela consciência social.

Esse fator constituinte do complexo de Édipo se expressa na fala de Rodrigo como componente da luta pela autonomia de sua consciência. Há no rapaz um questionamento crescente da existência de uma autoridade suprema que ampararia os humanos e trata o tema com ceticismo: "como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços e vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?" (LISPECTOR, op. cit., p. 14). E mais adiante diz com desdém: "Cada coisa é uma palavra, e quando não se a tem inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar" (Grifo nosso; LISPECTOR, op. cit., p.16). Observa-se que ao usar a expressão "Vosso Deus" Rodrigo se excetua de partilhar a ideia de Deus. Ainda mais a frente: "A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus. Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus" (LISPECTOR, op. cit., p. 20). "Para que tanto Deus, porque não um pouco para os homens" (LISPECTOR, op. cit., p. 26). "Parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava" (LISPECTOR, op. cit., p. 31). "Meu folego me leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa sei, não preciso ter piedade de Deus" (LISPECTOR, op. cit., p.41). Nesse nível, ao se procurar uma lógica na existência é preciso destacar que ela é sempre construída a partir daquilo que não é, ou seja, do lugar vazio. Para Lacan, a lógica objetiva da existência é a lógica do número. O número existe, e toda a lógica vai atrás disso.

Não vemos muito bem o que é designado por um existe qualquer, no uso correto que se deve fazer dele, senão a partir do momento em que a lógica se permite descolar-se um pouco do real, na verdade a única maneira que ela tem, em relação a ele, de poder situar-se, isto é, a partir do real - que é a matemática - em que é possível uma verdade. [...] O número faz parte do real. Mas é o real privilegiado a propósito do qual o manejo da verdade faz progredir a lógica. [... ] A análise lógica do que chamamos de função proposicional articula-se a partir do isolamento do argumento na proposição, ou mais exatamente, da falta, do vazio, do buraco, da cavidade oca que é feita daquilo que deve funcionar como argumento. Nomeadamente, diremos que todo argumento de um campo que chamaremos como vocês quiserem, x, todo argumento desse campo, colocado no lugar deixado vazio numa proposição, satisfará essa proposição, isto é, lhe dará o valor de verdade. (LACAN, 2012, p.21).

Vemos que o que está no princípio do sintoma do narrador, com alto grau de angústia, é a inexistência da verdade suposta por ele, como ele quer que preencha a realidade. A angústia é para a psicanálise um termo de referência crucial, por que, com efeito, a angústia é o que não engana. Nessa postura formaliza-se a passagem da natureza à cultura, ou, mais exatamente, a falha entre a natureza e a cultura.

 

O ZERO: MACABÉA

A força da resistência do rapaz em falar sobre seu objeto nos indica que estamos próximos do material recalcado. Lacan ressalta que no discurso dos pacientes há uma corrente de palavras paralelas, e estas se alargam num certo momento para envolver esse famoso núcleo patógeno que, também ele, é uma história, afastam-se dele para incluí-lo e se encontram um pouco mais longe.

O fenômeno da resistência está situado exatamente aí. Há dois sentidos, um sentido longitudinal e um sentido radial. A resistência se exerce no sentido radial, quando queremos nos aproximar dos fios que estão no centro do feixe. Ela é consequência da tentativa de passar dos registros exteriores para o centro. Uma força de repulsão positiva se exerce a partir do núcleo recalcado, e quando nos esforçamos para atingir os fios do discurso que estão mais próximos dele, experimentamos resistência. Freud chega mesmo a escrever, não nos estudos, mas num texto ulterior, publicado sob o título de Metapsicologia, que a força de resistência é inversamente proporcional à distância em que nos encontramos do recalcado. (LACAN, 2008, p. 33)

Avancemos sobre o material recalcado. Observamos que as imagens da moça trazem elementos do passado vivos na história presente: criada pela tia, que a queria para varrer o chão, estava excluída do convívio social em nome da moral, mas a serviço do trabalho. De sua infância, "sem bola nem boneca", às vezes se lembrava de uma canção das brincadeiras de roda das quais ela nunca participava, cantada por meninas com laços de fita cor-de-rosa nos cabelos, e sentia saudade, "saudade do que poderia ter sido e não foi" (LISPECTOR, op. cit., p. 33). Lembrava-se também dos cascudos que a tia lhe dava na cabeça para evitar que a menina viesse a ser uma "dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem" (LISPECTOR, op. cit., p. 28). A tia, sua única parenta no mundo, lhe deixara como legado a dignidade de ser datilógrafa, pois "lhe dera um curso ralo de como bater à máquina", e o hábito de viver de cabeça baixa.

Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: No cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, estocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque é mesmo verdade que quando se dá a mão, essa gentinha, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mais sem direito algum, pois não é? (LISPECTOR, 1998, p. 35)

Aqui o narrador muda o tom do seu discurso e evidencia sua negação a respeito da felicidade experimentada sem esforço por Macabéa, da possibilidade de certo setor do homem de massas que marcha com Deus pela família e pela igualdade de amparo, do "zé-povinho" que apresenta sinais de sair do lugar determinado pelos "senhores" do rebanho, mesmo que imaginariamente. (LISPECTOR, 1998, p. 35)

A ambiguidade na fala do rapaz segue desde a apreensão lírica da pobreza da moça até a coisificação dele mesmo. "E que anjos esvoacem em vespas transparentes em torno da minha cabeça quente por que esta quer se transformar em objeto-coisa, é mais fácil " (LISPECTOR, op. cit., p. 29). Por outro lado Macabéa não é consciente da precariedade que ele lhe atribui. Mora em um quarto compartilhado com mais quatro amigas - todas balconistas das Lojas Americanas -em um velho sobrado colonial da Rua do Acre, perto do cais do porto, "entre prostitutas que serviam marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó". O sentimento do narrador em relação a esse ambiente também é de repulsa: "lá e que eu não piso pois tenho horror sem vergonha nenhuma do pardo pedaço de vida imunda", que reitera sua construção psíquica a respeito do pobre (LISPECTOR, op. cit., p. 31). Mas a moça não se limita ao espaço que lhe é destinado, o local de trabalho, a vaga de quarto, o cais do porto e o cine poeira. "Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de joias e roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco" (LISPECTOR, op. cit., p. 35). Segundo Rodrigo sofrer um pouco é um encontro e a moça sentia falta de encontrar-se consigo mesma. Nas relações de transformação da energia do ser em coisa, sem saber das causas a moça "vagamente tomava conhecimento da ausência que tinha de si mesma" (LISPECTOR, op. cit., p. 24). A saída do espaço que lhe foi atribuído pelo rebanho suscita o vazio, a falta. Esse movimento ressalta a luta na inserção de Macabéa na consciência de Rodrigo, uma vez que, para o sistema, a inserção do indivíduo se dá pelos processos de aquisição material. Inserção ilusória que acaba por destacar seu vazio. Nesse nível, mesmo quando a aspiração é a de consumir as coisas que outros podem consumir, o vazio fica explícito - levando a moça a comer um cosmético facial - parece que há uma dimensão legítima, reconhecida pelo narrador, na busca da moça por existir. A passividade da moça diante da vida o irrita demasiadamente:

Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco dessa moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente (LISPECTOR, 1998, p.26)

A luta travada pelos processos conscientes e inconscientes de Rodrigo em relação à moça, acaba por gerar uma complacência sentimental que ele imprime no "viver de menos" e destaca fortemente o valor de zero, seu próprio vazio. "É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha [... ] Eu não inventei essa moça, ela forçou dentro de mim sua existência" (LISPECTOR, op. cit., 30). Ao mesmo tempo a nulidade ressaltada pelas imagens da moça no narrador revela uma fome de viver e sentir o seu próprio vazio, tornando-o obcecado por conhecer esse outro que lhe escapa, e que na realidade é seu próprio Eu.

A abertura do vazio parece ser tema central ao lado da culpa na fala geral do personagem: "Quando rezava conseguia um oco de alma - e esse oco é tudo que eu posso jamais ter" e " a maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece " (LISPECTOR, op. cit., p. 38). Assim como a fome, o vazio, o valor de zero - outra expressão da falta - se mostra a Rodrigo, e ele reage tentando reprimir esse sentimento. Macabéa surge como a expressão de tudo o que Rodrigo não é, possui uma virtude incomum, a santidade alcançada pelo vazio que enchia sua alma. Sua chamada "santidade" parece estar ligada mais a um sentimento de transcendência contemplativa do que a uma instituição religiosa, uma vez que "Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela." (LISPECTOR, 1988, p. 26)

A força do vazio também presente na fraqueza da moça: Macabéa "era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos" (LISPECTOR, op. cit., p. 33), e também adorava anúncios comerciais. A única vantagem na vida da moça sobre os demais era saber engolir aspirinas sem água. Por se doer toda e o tempo todo, por dentro, sem saber explicar a espécie e local da dor, pedia comprimidos para sua colega de trabalho, que sempre lhe dava, embora custassem dinheiro. Mas, sem também saber explicar, ela se emocionava: ao ouvir uma música chorou pela primeira vez na vida e descobriu que tinha muita lágrima nos olhos. Só vivenciou o belo essa única vez na vida, ao ouvir uma canção chamada "Uma furtiva lacrima". Achava que no Brasil se falava brasileiro e a existência de outro idioma era impensável para ela, por isso achou que "lacrima" era um erro do locutor da rádio. (LISPECTOR, op. cit., p. 34). Esse ser do Outro imprime a contradição em Rodrigo: a culpa o leva a questionar o paradoxo da consciência moral, a busca da felicidade e o ser-para-o-outro.

A análise que Freud faz sobre o sentimento de culpa em Macbeth, de Shakespeare ecoa no nosso narrador. Nele Freud comenta os apontamentos do autor Ludwig Jekels. O autor defende como técnica de Shakespeare o fato de decompor um caráter em dois personagens, e cada um dos dois não seria inteiramente compreensível até que os juntamos novamente num só. Lady Macbeth apresenta-se como símbolo de uma consciência arrependida e mortificada pela culpa (FREUD, 2006, p. 333). Aqui, Macabéa torna-se a personificação da nulidade e da culpa sentida, e o narrador encontra um caráter de plenitude nessa nulidade, "porque o vazio tem o valor e a semelhança do pleno" (LISPECTOR, op. cit., p. 14). Em alguns momentos sente-se impelido a aproximar-se desse vazio-pleno: "Por enquanto, quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não. Isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis. " (LISPECTOR, 1998, p. 19)

Até aqui seguimos um caminho que nos levou a um "paradoxo do êxito". A psicanálise nos ensina que nos casos em que as pessoas sofrem de um adoecimento neurótico após o êxito isso acontece pela via indireta do inconsciente reprimido.

Nos casos excepcionais em que as pessoas adoecem por causa do êxito, a frustração interna atua por si mesma; na realidade, só surge depois que uma frustração externa foi substituída por realização de um desejo. À primeira vista há algo nisso, mas por ocasião de um exame mais detido refletiremos que não é absolutamente incomum para o ego tolerar um desejo tão inofensivo na medida em que ele só existe na fantasia e cuja realização parece distante; pelo contrário, porém, o ego se defenderá ardentemente contra esse desejo tão logo se aproxime da realização e ameace tornar-se uma realidade. A distinção entre isso e as situações comuns na formação da neurose consiste meramente em que, via de regra, são as intensificações internas da catexia libidinal que transforma a fantasia, até então merecedora de pouco consideração e tolerada, num oponente temido, ao passo que nesses casos o sinal para a irrupção do conflito é dado por uma mudança externa real. (FREUD, 2006, p.332)

Apesar de Rodrigo dar à sua projeção um caráter de inteireza - como se o êxito que Macabéa não alcançou permitisse a ela aquilo que ele mesmo já não teria direito - ele a carrega com estigmas sociais. Em o Mal Estar na Civilização Freud se detém com estranheza diante do mandamento: Amarás o teu próximo como a ti mesmo - esse mandamento lhe parece desumano: os sujeitos se rebelam na medida em que buscam o que chamam de felicidade. O fato de que o narrador procurou a felicidade permanece, o que significa que de algum modo resistiu ao mandamento para ter acesso ao seu êxito. Embora pareça um paradoxo a mais, tal situação contém um núcleo de agressividade que, na medida em que a energia do superego é liberada o sujeito faz com que essa agressividade se volte contra ele mesmo.

No caminho dessa gravitação o conflito do narrador expressa somente uma busca de ajustamento moral diante de si mesmo e dos desajustes do sistema à sua volta, mas envolve também o desejo de autoafirmação de si mesmo e da noção de justiça autônoma, mas que de maneira nenhuma supõe a manutenção da distância entre eles.

As coisas caminham, então, muito rápido: em um dos raros momentos em que, em seu discurso, Rodrigo imprime subjetividade a Macabéa, faz isso dando-lhe o modelo de identidade que se liga à fantasia de ser artista de cinema. Nesse limite entre ser e não-ser a moça é colocada frente a uma cartomante e a ideia de um destino fascina-a. Ali todas as nuvens do imaginário se multiplicam: A cartomante lhe oferece um futuro maravilhoso. Nesse ponto o valor é o da linguagem, fora da linguagem ela nem mesmo podia ser concebida, e o ser não poderia ser destacado de tudo que lhe oferece como destino. Maravilhada com a ideia de um destino, sai da casa da cartomante "mudada por palavras - desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. " (LISPECTOR, 1998, p.79)

Maravilhada com tanta esperança, ao atravessar a rua é atropelada por uma Mercedes amarelo e bate a cabeça na quina da calçada. Contudo não está morta. Rodrigo nos diz " eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida" (LISPECTOR, op. cit., 83). A Mercedes que faz de Macabéa a estrela pseudo-hollywoodina desse discurso, é a nosso ver, o coroamento das ambiguidades do narrador, de seus esforços de se aliviar da tensão nas relações entre ele e seu objeto que tanto o incomodam e lhe pesam. Há ironia no carro de luxo que atropela a estrela.

O antagonismo das projeções de Rodrigo alcança o ápice nas imagens da moça caída no canto da rua "descansando as emoções". Primeiro o rapaz nos diz que não falará em morte e sim apenas em um atropelamento, mas em seguida, à medida que olha a luta muda da moça, as forças conscientes e inconscientes fortalecem seu combate e ele muda seu discurso: "Vou fazer o possível para que ela não morra" (LISPECTOR, op. cit., 81). Vemos uma intensão crescente que busca pelo fim e pelo alívio dessas imagens. A ambivalência de sentimentos leva o narrador a desejar a morte da moça como solução para seu conflito. - "mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para cama dormir". (LISPECTOR, 1998, p. 81)

Surgem, não se sabe de onde, outras pessoas que se agrupam em volta da moça "sem fazer nada, assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência" - era enfim a hora de estrela de Macabéa. Rodrigo não censura essas pessoas por não fazerem nada, mas ainda sente-se inseguro e questiona se deve amar aquele que lhe trucida - sua consciência culpada. (LISPECTOR, op. cit., p. 82). Os aspectos pulsionais se reúnem: "e minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e que devo lutar" (LISPECTOR, op. cit., p. 82). O desejo de que a moça morra vai ganhando substância: primeiro surge como a imagem de um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina. O narrador reconhece o homem entre as imagens da infância e há a auto decifração: "Só agora brotou-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música." (LISPECTOR, 1998, p. 82)

O discurso do personagem sofre um descarrilamento entre suas imagens mentais, em uma espécie de delírio Rodrigo passa a rezar: "Macabéa, AveMaria, Cheia de graça, terra serena da promissão, tem que chegar o tempo, ora pro nóbis [... ] Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti." (LISPECTOR, op., cit., p. 82). Ele parece dialogar com vozes que surgem em sua mente como expressão de seu conflito interior. Estas sugerem que ele inverta o quadro de culpa: Agora é a moça que devia lhe pedir perdão. "Porquê? Resposta: é assim porque é assim. Sempre foi? Sempre será." Ao passo que outras vozes questionam " E se não foi?" e o narrador responde para si mesmo: "Mas eu estou dizendo que é." E se pergunta: "Quem sabe se ela não estaria precisando de uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber?" (LISPECTOR, op. cit., p. 8283). Por outro lado, pede-nos que interrompamos o que estamos fazendo e rezemos por ela para soprar-lhe vida.

Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. A morte que é nessa história o meu personagem predileto. Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que ela não vai morrer porque tem tanta vontade de viver. E havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é porque a morte se parece com a intensa ânsia sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdoo a clarividência.[... ] O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória![...].

E então - então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida. (LISPECTOR,1998, p.84)

Rodrigo acaba por matar a projeção que tanto lhe incomoda e se acusa "Até tu, Brutus?". Acrescenta após a célebre interrogação: "sim, foi este o modo como eu quis anunciar que - que Macabéa morreu. Venceu o príncipe das trevas. Enfim a coroação." Assim, ele se reafirma pela morte de Macabéa: "Que não se lamentem os mortos", "Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha. Quero que me lavem as mãos e os pés e depois - depois que os untem com óleos santos de tanto perfume." (LISPECTOR op. cit., p. 85-86). Esse é o modo como procura solucionar o conflito e livrar-se da culpa. "Ah que vontade de alegria. Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada. Mas por que não rio." Novamente esforça-se para inverter a culpa atribuindo-a a Macabéa: "Macabéa me matou", e se esforça para disfarçar a constrangedora situação da fuga covarde diminuindo o valor dos vestígios de culpa ou vergonha que porventura tenha lhe ficado perante nós: "não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me essa morte." (LISPECTOR, 1998, p. 86).

Silêncio. E o narrador produz sua "saída discreta pela porta dos fundos".

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda há muito a se dizer sobre A hora da estrela, mas o formato do presente trabalho pede-nos que suspendamos a análise por aqui. Até o momento a análise coloca em xeque a fuga do indivíduo diante da realidade do vazio do nada, do universo da falta. Durante o discurso de Rodrigo observamos o quanto tudo pode ser reduzido à coação social e nos perguntamos se há uma "organização das necessidades" ou "uma organização dos desejos". Aquele que fala colore com seu discurso todas as necessidades, em contrapartida sente que existir é não-ser, é depender do Outro. Rodrigo é obrigado a passar pelo conflito de olhar para o Nada, para o universo da falta e percebe que não há existência se não houver um fundo de, zero, de inexistência. Retrospectivamente veremos que essa imagem de Macabéa, latente, faz parte da moral humana, quer queiram ou não. É aí que o rapaz cria sua mitologia e sua moralidade, e é também justamente por essa moralidade que se sente culpado. As coisas poderiam ser diferentes se o corpo social que Rodrigo representa tivesse recuado, mas é na medida em que a sociedade se recusa a isso que Macabéa deve fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção desse corpo social - eixo em torno do qual gira a fala de Rodrigo. É nesse duelo, em que o inconsciente clama pelo real, entre a suspeita da ilegitimidade moral e o sentimento de culpa que encontramos o núcleo patológico. É por não suportar bem o conflito que desenvolve um quadro neurótico. Vê-se obrigado a passar pelo símbolo.

É nessa mesma perspectiva do símbolo que podemos tomar o que chamamos de palavras. O domínio da palavra sobre o mundo em que o sujeito está inserido já está por sua própria natureza simbólica encharcado de fantasia. Nesse sentido, a fala quer captar uma realidade, mas ultrapassa essa realidade - a fala revestiu o real. Dentro dela está o real que comanda, mais do que qualquer coisa, nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós. Somos irmãos do narrador na medida que, iguais a ele, também somos filhos do discurso.

 

REFERÊNCIAS

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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

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