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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.10 São João del Rei Jan./June 2017

 

ARTIGOS

 

Considerações psicanalíticas sobre a vivência religiosa do numinoso

 

Psychoanalytical considerations about the numinous religious experience

 

Considerations psychanalytiques sur l'expérience religieuse du numineux

 

Psicoanalítica consideraciones acerca de la experiencia religiosa de lo numinoso

 

 

Bruno Eduardo Procopiuk WalterI; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoII

IDoutorando em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psicologia e Mestre em Administração pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Formação de Psicólogo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Bacharel em Teologa pela Faculdade Teológca Batista do Paraná (FTBP)
IIÉ graduado pelo Curso de Formação de Psicólogos da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP - 1981), tem mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP - 1988), doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP - 1993) e um pós-doutorado (de 2 anos) em Psicanálise na Université de Paris VII. Atualmente é professor associado da Universidade Estadual de Maringá

 

 


RESUMO

A partir da psicanálise e da Teoria da Sedução Generalizada, de Jean Laplanche, procurou-se ampliar a compreensão do fenômeno religioso do numinoso, proposto por Rudolf Otto. Segundo ele, a vivência numinosa caracteriza-se pelo mysterium tremendum et fascinans - o divino que se mostra enigmático e, ao mesmo tempo, angustiante e sedutor. Supomos que nesta experiência há tanto uma exposição às mensagens enigmáticas quanto uma tentativa de elaborá-las.

Palavras-chave: Teoria da Sedução Generalizada. Psicanálise. Religião. Numinoso.


ABSTRACT

Based on the Psychoanalysis and on Laplanche's Theory of Generalized Seduction, this paper aims to broaden the comprehension of the numinous religious phenomenon, proposed by Rudolf Otto. According to Otto, the numinous experience is characterized by the mysterium tremendum et fascinans - the divine element which shows itself enigmatic and, at the same time, distressful and seductive. We assume that, in this experience, there is an exposure to the enigmatic messages as well as an attempt to elaborate them.

Keywords: Theory of Generalized Seduction. Psychoanalysis. Religion. Numinous.


RÉSUMÉ

Dans ce texte, on cherche à étendre la compréhension du phénomène religieux du numineux -tel qu'il est proposé par Rudolph Otto - à partir de la théorie de la séduction généralisée, de Jean Laplanche. D'après Otto, l'expérience nunineuse est caractérisée par le mysterium, par le tremendum et par le fascinans - il s'agit du divin, qui s'avére enigmatique en tout étant angoissant et séducteur. On suppose alors que, dans cette experience, on s'expose tantôt à une exposition aux messages enigmatiques (concept de Laplanche), tantôt à une tentantive de les élaborer.

Mots-clés: Théorie de la séduction généralisée. Psychanalyse. Religion. Numineux.


RESUMEN

Desde el psicoanálisis, dentro de la Teoría de la Seducción Generalizada, de Jean Laplanche, se busca ampliar la comprensión del fenómeno religioso del numinoso, propuesto por Rudolf Otto. Segundo éste, la vivencia numinosa se caracteriza por el mysterium tremendum et fascinans - lo divino que se muestra enigmático y, al mismo tiempo, angustiante y seductor. Suponemos que en esta experiencia hay tanto una exposición a los mensajes enigmáticos cuanto una tentativa de elabora.

Palabras clave: Seducción generalizada. Psychoanalysis. Religión. Numinoso.


 

 

A relação entre o homem e o "divino" é bastante intrigante, e vem desde o princípio despertando o interesse da Psicanálise. Como assinala Droguett (2000), Freud transita pela temática da religião em quatorze de suas obras, dedicando seis delas integralmente ao tema. Faz esse percurso baseando-se em antropólogos, sociólogos, teólogos, historiadores, entre outros, focalizando a contribuição do inconsciente para constituição do fenômeno religioso.

Freud, segundo Mijolla-Mellor (2004), detém-se na análise da religião racional (como representação), porém a vivência religiosa não se resume a essa versão. Quando indagado por Romain Rolland sobre o aspecto afetivo da religião, por meio da referência ao sentimento oceânico, Freud (1930/1996, p. 74) afirma: "Não consigo descobrir em mim esse sentimento 'oceânico'. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos".

Assim, pode-se analisar a vivência religiosa a partir de diversos focos, priorizando elementos tais como: ritos, liturgia, dogmas, cânticos, práticas, história, mitos, entre outros. Nosso interesse, porém, está justamente em uma vivência cuja intensidade afetiva é digna de nota. Trata-se da experiência religiosa do numinoso descrita e "teorizada" pelo teólogo Rudolf Otto em O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e na sua relação com o racional, de1917.

Otto (1917/2007) conta-nos que a pessoa religiosa ao deparar-se com o numinoso percebe-o como sendo o Mysterium tremendum et fascinans. O divino apresenta-se como um mistério que aterroriza, angustia e, ao mesmo tempo, também cativa e seduz.

Pois bem, é, pois, a partir dessa mistura de angústia e sedução que propomos a Teoria da Sedução Generalizada, construída por Laplanche (1988, 1992), como abordagem dessa vivência. Acreditamos que nas experiências numinosas há uma atualização da vivência traumática que se faz presente por meio da tentativa do aparelho psíquico de significar algo que ficou para trás. Assim, procuramos ir além da teorização freudiana sobre a religião, que se pautava principalmente pelo desamparo humano e pelo Édipo. Não negamos a presença desses fatores contribuintes, porém procuramos ressaltar a presença do pulsional como fonte originária da vivência mística numinosa.

Para levar a cabo tal proposta, dividiremos este trabalho em três partes: na primeira, discorreremos sobre desamparo humano e a Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche; na segunda, faremos uma breve exposição da descrição ottoniana do numinoso e, por fim, teceremos nossas considerações sobre essa vivência religiosa.

 

O desamparo humano e a Teoria da Sedução Generalizada

A ideia de que o homem nasce em uma condição de imaturidade biológica é algo do pensamento freudiano que é bem conhecido. O recém-nascido, então, é visto como um ser incapaz de dar conta de suas necessidades fisiológicas e de segurança. Não pode andar, limpar-se ou aquecer-se e muito menos proteger-se. Até mesmo sua capacidade comunicativa é extremamente limitada. É-lhe, portanto, imprescindível um amparo, o cuidado de um adulto mais capaz e experiente.

Essa condição fundamental a que Freud se refere com o vocábulo Hilflosigkeit (estado de desamparo), refere-se a um estado de "desajuda", para traduzir um neologismo de Laplanche, isto é, à necessidade da interposição de um terceiro entre o sujeito e o mundo que o circunda. Se no Projeto para uma Psicologia Científica, de 1895, Freud transmite a impressão de que o desamparo poderá ser superado pelo desenvolvimento biológico e psíquico, mais à frente, em textos como O futuro de uma ilusão, de 1927, parece já não ser mais assim. A condição de desamparo passa a ser tratada por Freud como uma condição existencial, de maneira que todo ser humano precisa criar soluções para enfrentá-lo.

Mas a passividade do ser humano não se resume a sua impotência perante a morte, a natureza ou o sofrimento. Há uma espécie de passividade indicada por Laplanche (1992) que interessa bastante: trata-se da incapacidade de a criança traduzir "mensagens enigmáticas" emitidas pelo adulto. Falamos aqui de uma vivência precoce e traumática na qual a sedução não se restringe aos atos físicos e coercitivos do adulto, mas generaliza-se ao considerar que toda criança é indagada por significantes verbais e não verbais advindos dos adultos e permeados de significações sexuais inconscientes, inconscientes para o próprio adulto.

Essa situação fundamental, de assimetria da criança em relação ao adulto, é apontada por Laplanche (1992) como aquela que propicia o recalcamento originário. É devido ao fato de a criança não conseguir metabolizar, ou seja, traduzir essas mensagens, que uma primeira cisão ocorre no aparelho psíquico. Por um lado, como resultado dos conteúdos traduzidos, forma-se por meio de fechamentos um ego no qual atua principalmente a pulsão sexual de vida (Eros), que visa unir, agregar e vincular. Por outro lado, recalcam-se aqueles conteúdos que não foram traduzidos. Estes estariam sujeitos à pulsão sexual de morte, pois tenderiam a funcionar conforme a energia livre, não vinculada.1

Mas em que situações ocorreria essa sedução? Segundo Laplanche (1992), temos já em Freud (1905/1996) algumas indicações: os cuidados maternos trazem consigo mais do que a preocupação com a conservação ou higienização da criança, há aí também um investimento libidinal por parte do adulto. Porém, a transmissão dessas mensagens dá-se também em outras situações diárias, pois o adulto é sujeito de inconsciente e, assim, suas ações são também permeadas por este.

Agora, levemos mais adiante essas ideias de Laplanche (1992) sobre o recalcamento originário e a origem da pulsão. É possível em algum momento ao ego e à consciência entrarem em contato com essas mensagens não traduzidas que estão implantadas no psiquismo? Se sim, como o sujeito (o eu) as percebe? Que tipo de afetos e/ou representações ele pode experienciar então? Se existe tal possibilidade, há também alguma reação do ego à intrusão desses elementos? Se sim, qual é?

Acreditamos que, ao menos em uma vivência em especial, o sujeito pode entrar em contato com esses elementos internos não traduzidos. Trata-se da vivência religiosa do numinoso, proposta e descrita por Otto (1917/2007).

 

O numinoso

O trabalho de Otto (1917/2007) sobre o fenômeno religioso é riquíssimo, porém, devido aos objetivos deste artigo, faremos apenas um recorte trazendo para o texto somente descrições da vivência do religioso com o numinoso e alguns poucos comentários sobre suas "teorizações".

Otto (1917/2007) se propõe a estudar a categoria do sagrado, que segundo ele seria composta por elementos racionais e irracionais. Nos primeiros encontramos "conceitos claros e nítidos, acessíveis ao pensamento, à análise pensante, podendo inclusive ser definidos" (Otto, 1917/2007, p. 33). É no plano da apreensão intelectual, da racionalidade e da linguagem, como nos dogmas e doutrinas, que encontramos os elementos racionais. Para referir-se a Deus, por intermédio desses elementos preferidos pelos filósofos, cabem predicados racionais como: onipotente, espírito puro, sumo bem, todo-poderoso, justo, unidade de essência, princípio de tudo, entre outros.

Já o que o autor chama irracional foge à mera oposição ao racional, não se trata de algo animal, estúpido ou bruto, mas se refere a algo de outra ordem e estatuto. A compreensão da divindade para ele só poderia dar-se pela vivência desses elementos irracionais, para os quais ele irá cunhar o termo numinoso. Esses elementos não podem ser conceituados nem definidos, são irredutíveis à linguagem e ao pensar racional e apreensíveis somente por meio de uma experiência com o numen. São os sentimentos2 e as sensações numinosas que apontam e permitem conhecer o objeto numinoso, o qual será esquematizado3 em conceitos racionais que atuam apenas como predicados.

Mas o que é o numinoso? É precisamente aquilo que, de forma particular, foge totalmente à apreensão conceitual. O numinoso refere-se ao sagrado sem fazer referência aos aspectos moral, ético e racional. É diante do numinoso que surge, para Otto (1917/2007, p. 41), o "sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura". Otto (1917/2007) o define como sendo o mysterium tremendum et fascinans. Passemos agora a uma descrição mais aprofundada desses elementos componentes:

O elemento mysterium pode ser indicado na declaração de Tersteegen: "Um deus compreendido não é Deus" (s/d, citado por Otto, 1917/2007, p. 56). Caracteriza-se por ser o "totalmente outro", o qualitativamente diferente, irredutível à apreensão pela linguagem:

O objeto realmente "misterioso" é inapreensível não só porque minha apercepção do mesmo tem certas limitações incontornáveis, mas porque me deparo com algo "totalmente diferente", cuja natureza e qualidade são incomensuráveis para minha natureza, razão pela qual estaco diante dele com pasmo estarrecido. (Otto, 1917/2007, p. 59)

Estar diante do numinoso, enquanto mysterium, é ser surpreendido por algo de miraculoso, algo que transcende nossas categorias do entendimento comportando-se de forma incompreensível e paradoxal, chegando até mesmo à "lógica da coincidência dos opostos" (Otto, 1917/2007, p. 62). Ao descrever o elemento mysterium, Otto (1917/2007) ressalta justamente sua alteridade. É enigmático, não somente porque o desconhecemos, mas tão somente porque ele é de tal qualidade que não pode ser conhecido.

Já o elemento tremendum, comumente associado ao mysterium, refere-se ao aterrorizador, ao "absolutamente avassalador". É diante do aspecto tremendum que surgem sentimentos como terror, assombro, pânico, algo da ordem do apavorante e paralisante. Para Otto (1917/2007), o mysterium tremendum, quando racionalizado e objetivado, ganha denominações como demônio, espírito, alma, ou até não ganha designação alguma. O "receio demoníaco" encontraria nesse aspecto do numinoso sua causa e explicação.

Trata-se de um estado afetivo em que o místico é tomado por algo totalmente outro e diante do qual se sente completamente impotente. Há uma completa passividade adiante da experiência do tremendum. A expressão "temor de Deus" que aparece diversas vezes no Antigo Testamento é um bom exemplo desse aspecto, pois se refere ao espanto, medo e assombração que Javéh enviava sobre as pessoas, por exemplo, no texto bíblico: "Enviarei o meu terror diante de ti, confundindo a todo povo onde entrares" (Êxodo 23:27a). Segundo Otto (1917/2007, p. 46), "trata-se de um terror impregnado de um assombro que nenhuma criatura, nem a mais ameaçadora e poderosa, pode incutir. Tem algo de 'fantasmagórico'". É um terror inesperado que se apossa do sujeito levando-o a um estado de completo desespero e pavor.

A primeira sensação do tremendum é a do "inquietante misterioso" (Unheimliche) e é a ela que, segundo Otto (1917/2007, p. 46-47), deve-se toda a evolução histórica religiosa. Para Otto (1917/2007) a vivência numinosa e a própria religiosidade não se explicam pela necessidade humana de um amparo, ou seja, não é a fraqueza humana perante as condições desfavoráveis que levaria a formular a ideia de um Deus protetor. Para ele é o contato com o numinoso, com esse aspecto divino-demoníaco do sagrado, que impulsiona o humano a elaborar ideias sobre a divindade. Vejamos:

Não é do temor natural nem de um suposto e generalizado "medo do mundo" [Weltangst] que a religião nasceu. Isso porque o assombro [das Grauen] não é medo comum, natural, mas é a primeira excitação e pressentimento do misterioso, ainda que inicialmente na forma bruta do "inquietantemente misterioso" [Unheimliches]. (Otto, 1917/2007, p. 47)

É necessário dizer que, para Otto (1917/2007), esse sentimento de terror místico proveniente da vivência com o numinoso é qualitativamente diferente dos estados psíquicos de medo, de angústia e do temor. Isso porque Otto (1917/2007) procura indicar por meio de analogias o caráter das experiências numinosas. Entretanto, ao dizer que o sentimento do terror místico é diferente dos estados psíquicos de medo, angústia e terror, ele não discrimina em que consiste a diferença. Ele apenas afirma o caráter sui generis da experiência religiosa. Mesmo assim, nada nos impede de procurar relacioná-la aos estados psíquicos estudados e conceituados por Freud de angústia (Angst) ou susto (Schreck).

Outro aspecto do numinoso mencionado por Otto (1917/2007) é a orgê, a ira divina. Esta se caracteriza por ser uma força, inicialmente amoral, que se manifesta de forma enigmática, sendo imprevisível e arbitrária. É "como eletricidade acumulada que se descarrega em quem dela se aproxima demais" (Otto, 1917/2007, p. 50). Essa ira, para Otto (1917/2007), é o próprio tremendum, que, totalmente irracional em si mesmo, é expresso pela correspondência com um sentimento humano. Esse aspecto da ira divina, quando racionalizado, ganha conteúdos da razão ética como justiça divina na retaliação e punição por falta moral.

É diante do tremendum, que o crente percebe-se em um estado de humilhação e nada ser, uma espécie de esfacelamento resultado do sentimento de presença do poder e da majestade divina. Trata-se da sensação de "afundar, ser anulado, ser pó, cinza, nada" (Otto, 1917/2007, p. 52). Essa condição de criaturalidade e "impotência perante a supremacia" (Otto, 1917/2007, p. 52) fala-nos da aniquilação do si-mesmo face à valorização do transcendente.

Duas passagens de Otto (1917/2007) são interessantes ao referirem-se à vivência do tremendum e ao sentimento de criatura:

Deveras eu e toda criatura nada somos, Tu exclusivamente existes e és todas as coisas. (Spamer, s/d, citado por Otto, 1917/2007, p. 54)

A pessoa afunda e se funde em seu próprio nada e sua pequenez. Quanto mais clara e desnuda ela reconheça a magnitude de Deus, mais nítida se lhe torna sua pequenez. (Greith, s/d, citado por Otto, 1917/2007, p. 53, grifos do autor)

É somente num segundo momento que o aspecto distanciador e terrível do numinoso passa a compartilhar espaço com outro aspecto que se revela como atraente e sedutor. Há uma interessante harmonia de contrastes no mysterium: "O que me apavora me atrai" (Otto, 1917/2007, p. 68). Esse duplo caráter do numinoso estaria presente em todas as religiões, inclusive nos cultos demoníacos. Otto (1917/2007, p. 57) afirma: "O que o demoníaco-divino tem de assombroso e terrível para a nossa psique, ele tem de sedutor e encantador".

A esse elemento cativante, arrebatador, encantador que muitas vezes conduz ao delírio e inebriamento, caracterizando-se como um elemento dionisíaco, Otto (1917/2007) denomina de aspecto fascinans, fascinante. Esse é um elemento não racional que é esquematizado por noções racionais como: amor, misericórdia, piedade, consolo, compaixão, caridade etc.

Ao propor uma cronologia do surgimento do sentimento religioso, Otto (1917/2007) sugere que o elemento repulsivo e demoníaco da vivência religiosa antecede a vivência com o fascinans. Em seus primórdios, a religião teria surgido unicamente em um de seus polos, o elemento repulsivo, que se manifesta pelo terror demoníaco. O autor argumenta que, no início, os cultos tencionavam o apaziguamento da ira divina. O termo "adoração religiosa", por exemplo, significa "reconciliar", "aplacar a ira". Os atos religiosos teriam por finalidade a expiação. É a partir desse sentimento de temor e receio que o culto surgiu como uma forma de súplica por proteção, reconciliações, aplacamentos e afastamentos da ira. Essas práticas religiosas apresentam-se como formas de aproximação do numen. Exemplo destas são as ações de graças, os sacrifícios, as ofertas etc., que aparecem em primeiro plano na história da religião.

O fascinans apresenta-se, assim, como um estado de paralisia e, principalmente, excitação ante o extraordinário, ante o numinoso. Segundo Djelãl Eddin, citado por Otto (1917/2007).

A natureza da fé é puro pasmo,

porém, não para desviar de Deus os olhos; não,

é ficar embriagado junto ao amigo, totalmente imerso nele (p. 77).

O demoníaco transformou-se em divino, o assombroso e aterrorizante passou a ser arrepio sagrado. Ao mesmo tempo em que no âmbito irracional deu-se esse desenvolvimento, ocorreu também uma racionalização e moralização no numinoso. Segundo Otto (1917/2007), "Quase que por toda parte o numinoso atrai para si as ideias dos ideais sociais bem como individuais daquilo que é normativo, de direito e bom. Esses ideais passam a ser a "vontade" do nume, o qual se transforma em seu guarda ordenador e fundador, seu fundamento e fonte original" (p. 149, grifos nossos).4

Assim, Otto (1917/2007) aponta uma tendência à moralização do numinoso, tendência deste a ligar-se aos ideais sociais e individuais éticos de forma cada vez mais intensa e determinada.

 

Considerações sobre o numinoso

Pois bem, propusemos, no início, que na vivência do numinoso o religioso entra em contato com conteúdos inconscientes não integrados ao eu. A nossa suposição é a de que não é ir muito longe afirmar que os restos não traduzidos do recalcamento originário se fazem presentes na percepção do místico em seu contato com o numen.

Temos nos elementos racionais o resultado da atuação do ego, conteúdos ligados e sujeitos à pulsão sexual de vida. Neles existe, contudo, certa derivação de "algo" mais primitivo e originário: o numinoso. Otto (1917/2007) constata que o numinoso é o núcleo da vivência religiosa, e que este é resistente a toda tentativa de apreensão pela linguagem, estando primeiramente situado no plano afetivo.

Assim, o numinoso apresenta-se como enigmático, como misterioso, indagando o religioso e exigindo-lhe alguma significação. Não é muito difícil de supor aí alguma manifestação das mensagens enigmáticas, de que fala Laplanche, que ficaram encravadas no psiquismo, às bordas do eu e que se fazem notar novamente, em uma espécie de reatualização da vivência traumática da sedução da infância.

Otto (1917/2007), ao discorrer sobre o mysterium tremendum enfatiza a percepção do aspecto demoníaco do divino, do aspecto aterrorizador e angustiante. O religioso vê-se tomado por algo estrangeiro - incapaz de reagir, fica paralisado. A onipotência deste totalmente outro o leva a sentir-se como "pó e cinza", esfacelado. Seu eu torna-se fragmentado diante dessa alteridade que se lhe apresenta. Vemos na descrição de Otto (1917/2007) o transbordar do pulsional no eu, o puro enigma demandando metabolização.

O eu fragilizado, extremamente passivo ante o numen, não apresenta reação nesse primeiro momento, apenas percepção de processos e movimentos psíquicos. O que ocorre é a vivência da angústia como transbordamento, da angústia como susto.

Notemos que um dos aspectos do numinoso é o mistério (unheimliches). O numinoso é, acima de tudo, inquietante. Otto (1917/2007) afirma que facilmente se confunde a vivência do tremendum e a do mysterium. Podemos dizer que o mysterium (assim como as mensagens enigmáticas) é traumatizante (tremendum) e aterrorizador por si mesmo, pois não é metabolizável. É traumatizante, pois instaura uma situação de desamparo na qual a linguagem, instrumento de domínio da energia psíquica, é insuficiente para contornar a invasão desmedida de energia libidinal no psiquismo.

Mas esse mesmo "poder" que toma o crente tornando-o estupefato, aterrorizado, também lhe desperta um estranho interesse. Ao mesmo tempo em que o impregna de angústia, também se revela enigmático, demandando explicação. Uma situação semelhante a essa descrita por Otto (1917/2007) foi indicada por Freud em seus estudos sobre o interesse infantil a respeito de questões sexuais.5 Lembremo-nos de que o recalcamento originário surge exatamente de experiências traumáticas em que excessos sexuais não puderam ser metabolizados.

O eu, na tentativa de metabolizar parte desse estrangeiro interno, desse "totalmente outro", percebe-o como se fosse seu semelhante, como se fosse uma unidade que o observa. Mas, ao fazer isso, já está domesticando isso que o instiga e ataca. Dar-lhe uma circunferência, dar-lhe limites, bordas, é controlá-lo, nem que seja somente para situá-lo em algum lugar. Essa primeira domesticação dos conteúdos inconscientes pode ser percebida no fenômeno do fascinans, no qual o sujeito se encontra paralisado ante um "outro", que passa a designar (nomear significando) como divino. Não se trata mais da vivência pura do mysterium tremendum na qual há somente a sensação de esfacelamento, de fragmentação sem que haja um objeto para que se possa designar como fonte da vivência.

Note-se que na vivência numinosa do tremendum o religioso sente um aniquilamento diante de algo indeterminado. O foco é muito maior na sensação de esfacelamento do eu do que em algum objeto6 que possa ser tido como fonte da angústia. É apenas após alguns movimentos psíquicos que surge o fascinans, pois nele a angústia, de origem interior/pulsional, é remetida a um objeto exterior dotando-o da qualidade de ser perigoso.

Mas que representação torna-se herdeira desse perigo interno? Qual é a representação que pode ser utilizada na tentativa de uma primeira domesticação dessa angústia catastrófica? Já vimos que os pais na infância tiveram a função de cuidar e amparar a criança livrando-a de seu desamparo. Freud (1923/1996) afirma que o superego, instância que segundo ele tem origem nas primeiras identificações com as figuras parentais, assume essa função de auxiliar o ego em seu desamparo. O amor do superego cumpre a função de dar ao ego certa estabilidade, e a perda do amor corresponde aos sentimentos de se sentir odiado e perseguido. Certamente, "não ser mais amado" pelo superego não significa somente estar novamente exposto aos perigos da natureza, significa acima de tudo estar novamente exposto ao seu lado pulsional, ao seu lado desligado. Cardoso (2002, p. 25, 36) a esse respeito comenta:

A perda de amor implica, efetivamente, uma dupla ameaça: a de privação do objeto, mas também a de exposição aos seus aspectos de ataque, persecutórios (...). A perda do amor implica o risco de um desnudamento da face pulsional inassimilável do outro, a experiência de perda, não se limitando, conforme havíamos sublinhado, a uma simples privação. Neste caso, a dimensão de falta - perda da proteção do outro externo/interno - e a de excesso - "ganho" de uma alteridade interna intraduzível -são indissociáveis.

Assim, a relação de amor entre ego e superego, descrita por Freud, diz respeito a certa elaboração desse lado obscuro do superego, dessa face pulsional. Vejamos que a mesma instância atua como propiciadora de amparo e desamparo. O superego revela amor e ódio ao ego. Os pais e seu substituto, o divino, são fontes de amor e temor, proteção e perigo. E o mais importante: apegar-se à face amorosa (fascinans) do divino é manter-se protegido ou pelo menos a certa distância da face angustiante (tremendum).

E o que é essa face angustiante a que Otto (1917/2007) denomina de tremendum? Supomos nela o revelar do pulsional inassimilável e irredutível ao funcionamento do ego, ou seja, o resto recalcado, as mensagens enigmáticas que não foram passíveis de tradução. Laplanche (1987, p. 142), nesse sentido, afirma: "[...] angústia, outra face do meu desejo, tal como se fala da frente e do verso de uma mesma folha, de cara e coroa de uma mesma moeda. A angústia seria o aspecto inconciliável do desejo, de todo desejo e, no melhor dos casos, o restante, reduzido ao mínimo, mas o restante irreconciliável, deste".

Belo (2004, p. 35), comentando o pensamento de Laplanche, afirma: "o amor é uma resposta às investidas da pulsão sexual de morte, é uma tentativa de traduzir, de sintetizar, de metabolizar o que é esfacelado". Tomamos, nesse sentido, como hipótese que o fascinans, como uma vivência amorosa, surge como resposta a esse "arrombamento" pulsional do tremendum, ou mesmo o antecipa, na medida em que a desestabilização do fascinans, das ligações libidinais nele existentes proporciona a angústia e o transbordar pulsional.

Há, certamente, na vivência do numinoso uma tentativa de aplacamento da ira divina. Em outras palavras, há uma tentativa de domínio do ataque pulsional. Percebe-se, assim, que na vivência numinosa do fascinans permanece, ainda que em segundo plano, a angústia do tremendum. Se assim for, a vivência numinosa permite ao religioso certa estabilidade psíquica que depende da manutenção do investimento libidinal na representação do divino.

Pensamos, assim como Benmasour (1998, p. 56), que o sentimento religioso é "uma resposta à situação de desamparo - que seja - mas uma resposta ao traumatismo provocado pela sexualidade inconsciente do outro adulto". Compreendemos que a vivência numinosa refere-se ao contato com o enigma, com o sexual implantado pelo adulto na criança, que se faz notar novamente durante a vida do sujeito e ao qual procura desesperadamente traduzir. Podemos pensar que, por isso, as religiões encontrem tão grande adesão, pois oferecem traduções já prontas, isentando o religioso de fazê-las por si mesmo. Dessa forma, o amparo religioso, como aspectos racionais, cumpre um duplo papel: preserva o crente de lidar com o desamparo físico e existencial e afasta o pulsional para um segundo plano, amenizando-lhe a angústia psíquica.

 

Referências

Belo, F. R. R. (2004). Psicanálise, Religião e Teoria da Sedução Generalizada (Notas de Aula, Volume I, 1a ed.). Belo Horizonte: Sêlo Editorial.         [ Links ]

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Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão (Jayme S., Trad.). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1927).         [ Links ]

Freud, S (1996). O mal-estar na civilização (Jayme Salomão, Trad.). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1930).         [ Links ]

Laplanche, J. (1985). Vida e morte em psicanálise (Cleonice P. B. M., Consuelo F. S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

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Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a Psicanálise (Cláudia B., Eduardo B., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1987).         [ Links ]

Laplanche, J. (1988). Teoria da sedução generalizada e outros ensaios (Doris V., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Mijolla-Mellor, S. de (2004). A necessidade de crer (Pádua F., Leandro S., Trad.). São Paulo: Unimarco.         [ Links ]

Otto, R. (2007). O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional (Walter O. S., Trad.). São Leopoldo: Sinodal/EST/ Petrópolis: Vozes. (Obra original publicada em 1917).         [ Links ]

 

 

1 Laplanche (1985) interpreta que, para Freud, há somente uma energia: a libido. Esta teria duas formas de funcionar: segundo o processo primário, por meio da energia livre; e pelo processo secundário por meio da energia ligada. Ao primeiro modo, o da sexualidade infantil e das pulsões parciais, cuja tendência é o desligamento, Laplanche (1995) associa à pulsão de morte, pois se trata da sexualidade demoníaca. E ao segundo modo, o da pulsão investida, referente à descoberta do narcisismo, ele associa à pulsão de vida. Assim, ambas são da ordem do sexual, mas que se diferenciam pelo tipo de funcionamento psíquico.
2 Cabe ressaltar que, em uma nota de rodapé Otto (1917/2007, p. 83), de forma breve e objetiva, procura definir o que seriam sentimentos: "noções obscuras com caráter emocional".
3 A definição de esquematização proposta por Otto (1917/2007) não é muito clara. Na verdade ele se propõe a utilizar o conceito kantiano de esquematização, porém, como destaca Birk (1993, p. 9), ele não o faz criteriosamente. É possível pensar essa esquematização, que se dá de maneira direta, como uma elaboração, uma significação, uma organização do conteúdo afetivo. Para Birk (1993), Otto, apesar de declarar seus fundamentos no kantismo, parece aproximar sua construção mais da fenomenologia hursserliana.
4 Observa-se que a "vontade do numen", os ideais sociais e aquilo que é normativo só passam a ser atribuídos ao numen no fim da descrição de Otto (1917/2007) sobre o numinoso. Acreditamos que isso se deve ao fato de que aquilo que é social e exterior passa por um processo de introjeção (assimilação do numen), sendo posterior àquela vivência com o numen mais primitiva de mistério, terror e fascínio.
5 Freud nos narra por vezes que na cena primária a criança é tomada de angústia e ao mesmo tempo sente-se atraída por esse mesmo sexual que lhe é excessivo.
6 Acreditamos que nos relatos bíblicos da vivência do "terror de Jáhveh" é apenas em um segundo momento que o "terror" é atribuído à divindade. Num primeiro momento, trata-se apenas da sensação de aniquilamento, de ser tomado por algo incompreensível e onipotente.

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