SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 issue10Psychoanalytical considerations about the numinous religious experienceFoundations of free association: a valorization of psychoanalysis' technique author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.10 São João del Rei Jan./June 2017

 

ARTIGOS

 

O totem e o desamparo: duas chaves de leitura para a religião no pensamento freudiano

 

The totem and helplessness: Two reading keys for Religion in Freudian thought

 

Le totem et abandon: Deux clés de lecture pour Religion dans la pensée freudienne

 

El tótem y lo desamparo. Dos claves de lectura para la religión en el pensamiento de Freud

 

 

Fabiano Veliq

Graduado em Filosofia pela UFMG, Especialista em Teologia Sistemática pela Faculdade Batista de Belo Horizonte, Mestre em Filosofia da Religião pela FAJE, Doutor em Psicologia pela PUC Minas. Terminou o estágio pós-doutoral na PUC Minas em Psicanálise

 

 


RESUMO

A questão religiosa é um tema que perpassa toda a obra freudiana, desde seus escritos mais antigos até os últimos textos escritos por ele. Nesse sentido, é de suma importância o debate que o pai da Psicanálise se propõe a fazer com a religião. Neste artigo procuramos evidenciar duas possíveis chaves de leitura para a religião no pensamento de Freud.

Palavras-chave: Religião. Desamparo. Psicanálise. Pai.


ABSTRACT

The religious issue is a theme that runs through all Freud's work from his earliest writings to the last texts written by him. In this sense it is very important the debate that the father of psychoanalysis proposes to do with religion. In this article we show two possible reading keys for religion in Freud's thinking.

Keywords: Religion. Helplessness. Psychoanalysis. Father.


RÉSUMÉ

La question religieuse est un thème qui traverse toute l'ceuvre de Freud de ses premiers écrits aux derniers textes écrits par lui. Dans ce sens, il est très important débat que le père de la psychanalyse propose de faire avec la religion. Dans cet article, nous montrons deux clés de lecture possibles pour la religion dans la pensée de Freud.

Mots clés: Religion. Abandon. Psychanalyse. Père.


RESUMEN

La cuestión religiosa es un tema que corre a través de toda la obra de Freud desde sus primeros escritos a los últimos textos escritos por él. En este sentido, es muy importante debate que el padre del psicoanálisis propone que ver con la religión. En este artículo se muestran dos posibles claves de lectura para la religión en el pensamiento de Freud.

Palabras clave: Religión. Desamparo. Psicoanálisis, Padre.


 

 

Freud, em sua extensa obra, sempre reservou um lugar para a questão religiosa. Para comprovar esse fato, basta que olhemos um pouco para a sua obra para percebermos como essa questão sempre retorna em seus escritos.

Um dos escritos mais importantes para pensar a Religião em Freud é, sem dúvida, Totem e Tabu (1913), em que o autor procura entender o início do sentimento religioso, mais propriamente o totemismo dos povos australianos. O objetivo central do livro é estabelecer alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos - o que ele faz afirmando que ambos, tanto o neurótico como o primitivo, estariam presos a uma mesma estrutura edípica da qual não podem sair, ambos presos em um infantilismo que apenas o progresso é capaz de solucionar - e, ao mesmo tempo, analisar o totemismo como uma Religião primitiva.

Nesse trabalho, Freud procura fazer uma contribuição à antropologia e constrói uma reflexão acerca do Complexo de Édipo no início da civilização. A partir da noção de "horda primerva" herdada de Darwin e Atkins e da hipótese do banquete totêmico de Robert Smith, procura postular uma hipótese acerca da origem das instituições sociais, a moral e a Religião.

Segundo Morano (2003, p. 38),

Nesta obra, efetivamente, o chamado Complexo de Édipo ultrapassa definitivamente as categorias do meramente psicopatológico para converter-se numa categoria antropológica fundamental. Não se trata mais de reconhecer no Édipo apenas um complexo nuclear das neuroses, mas de assentar sob sua dinâmica e estrutura as próprias bases do acontecer humano e cultural. A situação edipiana converte-se assim numa estrutura básica universal.

Para seu objeto de estudo, Freud escolhe principalmente as tribos primitivas dos aborígenes australianos. Nessas tribos, o sistema totêmico ainda as regia de forma que lá não haveria instituições sociais nem religiosas e, por esse motivo, estariam numa espécie de "gérmen" da sociedade. O sistema do totemismo, segundo Freud, tinha como característica comum a exogamia (proibição de relações sexuais dentro do mesmo clã) e, como origem da exogamia, a proibição do incesto.

Desde 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud já defendia a ideia de que a primeira escolha amorosa da criança é sempre incestuosa, por ser talvez o "caminho mais curto" para a satisfação da criança. Segundo Freud (1905/2006, p. 213), "Sem dúvida, o caminho mais curto para o filho seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido, digamos, amortecida". O autor vê a proibição do incesto como ancorada nesse princípio, e por isso teria uma força muito grande nos povos primitivos.

Freud (1913), desde o início do texto, procura vincular a necessidade da proibição do incesto a certo desejo de cometê-lo, evidenciando, aqui, um conceito que norteará a relação estabelecida por Freud para pensar a Religião: o conceito de ambivalência. Essa ambivalência estaria também presente nos tabus, uma vez que o tabu é sempre uma proibição de algo que é desejado. Por isso sua violação deve sempre ser punida, pois, se fosse de outra forma, os outros membros do clã se sentiriam tentados a agir de maneira semelhante. Segundo Freud (1913/2006, p. 49),

as mais antigas e importantes proibições ligadas aos tabus são as duas Leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto. Estes devem ser, então, os mais antigos e poderosos dos desejos humanos.

O tabu revela, portanto, toda essa ambivalência e, por isso, carrega consigo, ao mesmo tempo, tanto um aspecto sagrado quanto um aspecto perigoso, de forma que a obediência ao tabu garante certa segurança ao ser humano, mas simultaneamente há sempre o medo de que o tabu seja desrespeitado.

Freud passa então a analisar os tabus dos povos primitivos, tentando estabelecer certa conexão com alguns costumes da sociedade moderna. A partir daí, passa a comparar a psicologia dos povos primitivos e a psicologia dos neuróticos, apontando de que maneira as posições se convergem entre si. Algo que Freud aponta é que nos tabus há sempre a presença de uma ambivalência emocional, e procura mostrar que as proibições geradas pelos tabus são consequências dessa ambivalência. Segundo Freud (1913/2006, p. 79),

A probabilidade de que os impulsos psíquicos dos povos primitivos fossem caracterizados por uma quantidade de ambivalência que a que se pode encontrar no homem moderno civilizado. É de supor-se que como essa ambivalência diminui, o tabu (sintoma da ambivalência e um acordo entre os dois impulsos conflitantes) lentamente desapareceu.

A partir disso, Freud (1913/2006, p. 79) pode vincular a neurose obsessiva ao tabu, mostrando que os neuróticos "herdaram uma constituição arcaica como vestígio atavístico". No entanto, embora faça esse tipo de associação no texto, Freud tem plena consciência de que se trata de coisas diferentes. A principal diferença é que o tabu seria sempre uma instituição cultural, e as neuroses teriam sua gênese não cultural, mas advindas das pulsões sexuais.

Após fazer uma análise dos tabus, Freud (1913) se volta para o totemismo, analisando-o como um sistema que estaria na base da organização da cultura. O totemismo constituir-se-ia, portanto, de um sistema social marcado por relações de respeito e proteção entre os participantes do mesmo clã, e o totem a partir das Leis dos costumes.

O totem é definido por Freud (1913/2006, p. 114) da seguinte forma: "Totem é, por um lado, um nome de grupo, e por outro, um nome indicativo de ancestralidade. Sob o último aspecto, possui também uma significação mitológica.". Os tabus que protegem o totem devem ser respeitados, e qualquer violação deve ser punida de forma enérgica.

Partindo de alguns estudos antropológicos da época, principalmente os textos de Frazer, Atkins e Darwin, Freud tentará explicar o totemismo a partir da Psicanálise.

Para Freud (1913/2006, p. 145), na horda primitiva, o que era encontrado seria apenas um "pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem". No entanto, essa organização nunca teria sido objeto de investigação, por isso sua análise dar-se-ia a partir da celebração da refeição totêmica. Segundo Freud (1913/2006, p. 145),

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente [...]. Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primervo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo parte de sua força.

A refeição totêmica seria uma repetição desse ato criminoso que deu origem à organização social, às restrições morais e à Religião.

Mijolla-Mellor (2004, p. 53) afirma que "o objetivo identitário desta incorporação canibalística parece claro e poderia resumir-se nesta equação: animal totêmico = indivíduo = deus".

Dessa forma, a associação que Freud proporá entre o totem como substituto do pai já começa a se delinear pelo próprio ato canibalístico. O totem dá início, na visão de Mijolla-Mellor, (2004) ao início de uma abstração, e não apenas a uma simples abstração; o totem aparece como "a primeira abstração filosófica da humanidade" (p. 64).

Ao colocar a Religião como advinda desse ato criminoso, Freud está tentando mostrar como ela é devedora da relação pai e filho. Os filhos que se unem para matar o pai primervo mantinham para com ele um forte sentimento ambivalente. Por um lado, odiavam o pai por ele cercear o acesso ao poder e aos desejos sexuais e, por outro lado, amavam-no, pois se identificavam com ele. Ao eliminá-lo, eles são capazes de satisfazer o ódio, no entanto, o amor que havia sido recalcado retorna sob a forma de remorso. Surge aí um sentimento de culpa que coincidiria com o remorso sentido pelo grupo. Freud (1913/2006, p. 146) afirma que, dessa forma,

o pai morto tornou-se mais forte do que o que fora vivo. [... ] O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos. [... ] Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituo do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, correspondem inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do Complexo de Édipo. Quem quer infringisse esses tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava (o homicídio e o incesto).

O assassinato do pai se converte em fracasso, uma vez que ninguém poderia ocupar o lugar dele, sob pena de o crime acontecer de novo. O lugar do pai deveria, portanto, permanecer vazio. E é nesse vazio deixado pelo pai que a Religião encontra seu espaço como tentativa de colocar algo no lugar desse pai morto.

Freud, nesse momento, dá ao surgimento da Religião (tipificada pelo totemismo) uma explicação psicanalítica, reduzindo-a a apenas uma forma de lidar com esse pai morto que será substituído pelo totem e será objeto de adoração e temor. A ambivalência sentimental em relação ao pai da horda é transferida para o totem e ele passa a ser objeto de adoração. Em épocas posteriores, serão os heróis, deuses, demônios que ocupariam esse lugar do totem. Para exemplificar tal semelhança entre o pai e o totem, Freud retoma o caso do pequeno Hans, em que os sentimentos ambivalentes em relação ao pai são deslocados para um animal. Por meio do sentimento de culpa, o totem serviria como uma tentativa de reconciliação com o pai. Daí Freud (1913/2006, p. 148) ser capaz de afirmar que

O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este hes prometia tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai -proteção, cuidado e indulgência - enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida, isto é, não repetir o ato que causara a destruição do pai real.

Dessa forma, Freud é capaz de afirmar que as psiconeuroses e o totemismo seriam produtos do Complexo de Édipo, e de mostrar como esse complexo se encontra na gênese da Religião, da moral e da sociedade.

Pode-se notar que, na visão de Freud, a Religião totêmica surgiu de um sentimento filial de culpa em um esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que foi adiada, e todas as religiões estariam lidando com esse mesmo problema até hoje. A Religião, dessa forma, parte da relação pai e filho e dos sentimentos ambivalentes do filho para com o pai, que, no sistema religioso, é transferido para Deus de forma direta. Freud não explica como se dá essa passagem do pai para Deus, mas coloca de forma vaga que, por alguma fonte desconhecida, o conceito de Deus assumiu o controle da vida religiosa em algum momento no desenvolvimento da humanidade. Nessa época já era clara para Freud a noção de que Deus nada mais seria que um pai glorificado. Da mesma forma que o totem era chamado de ancestral tribal, Deus seria chamado de pai. A relação é a mesma para Freud, de forma que, para ele, a aproximação entre o animal totêmico e Deus se dá de forma direta. Segundo Freud (1913/2006, p. 151),

Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana.

Ao associar o animal totêmico a Deus, Freud é capaz de sair da análise do totemismo propriamente dito e generalizar sua posição para as religiões não totêmicas, até mesmo para as religiões de sua época. Deus, sendo o "pai glorificado" que teria sido morto, faz com que Freud seja capaz de dizer que a raiz de toda Religião é nada mais que a "saudade do pai" (Freud, 1913/2006, p. 151).

Para Freud, os irmãos, ao fazerem a refeição totêmica, tinham ali o desejo de incorporar partes do representante paterno, no entanto a pressão do clã fraterno impediria isso e o desejo não pôde ser realizado; dessa forma, ninguém mais tentaria atingir o poder supremo do pai. Com o passar do tempo, o ódio contra o pai vai diminuindo e a saudade por ele aumenta, o que tornou possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primervo e, ao mesmo tempo, gerou uma disposição em submeter-se a ele. Esse ideal, para Freud, gera a criação de deuses. Dessa forma, a criação dos deuses tem a mesma raiz do surgimento do totemismo, ou seja, a relação ambivalente do filho para com o pai.

A análise freudiana (1913/2006, p. 158) o faz concluir que "[n]esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da Religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o Complexo de Édipo". Dessa forma, fica claro para Freud que o mito totêmico tem em sua base o Complexo de Édipo, e a explicação da Religião se dá a partir da ambivalência dos sentimentos do filho para o pai. O mito totêmico exemplifica isso de forma cabal para Freud. No entanto, Freud (1913/2006) tem plena consciência de que sua explicação está longe de ser completa e abarcar toda a extensão da Religião na vida humana. Em uma nota de rodapé do texto, ele deixa isso bem claro ao afirmar que

As atribuições de origens que me propus tratar nestas páginas de maneira alguma subestimam a complexidade dos fenômenos em exame. Tudo o que pretendem é ter acrescentado um novo fator às fontes, conhecidas ou ainda desconhecidas, da Religião, da moralidade e da sociedade - fator baseado numa consideração das implicações da Psicanálise. (p. 159)

O texto de Totem e Tabu é de extrema valia para entendermos a forma como Freud vê a Religião. A sua tentativa de buscar a gênese da Religião o leva a encontrar o seu ponto de apoio no Complexo de Édipo e na ambivalência da relação pai e filho. Segundo Morano (2003, p. 40),

Totem e Tabu torna assim flagrante um conflito em que a dialética que marca a relação com o pai fica situada em uma espécie de "ou eu ou você", de tudo ou nada, em que não há outra saída senão a morte do pai como condição de possibilidade para a própria existência. A eterna ambivalência afetiva, porém, impede a liberdade do filho, uma vez que o sentimento de culpa (derivado do polo amoroso da relação) o vincula para sempre, através da nostalgia, ao pai morto. Esse pai, amado e odiado ao mesmo tempo, ressuscita agora e começa a recobrar um poderio inimaginável. Somente desse modo o filho acredita poder preencher o terrível vazio deixado pelo pai morto.

Mas será que a Religião seria apenas o fruto de uma ambivalência não resolvida entre pai e filho, e Deus seria apenas o pai glorificado que retorna a partir da culpa? Mesmo Totem e Tabu sendo um livro que estabelece a peça-chave para a interpretação do fato religioso em sua conexão essencial com o Complexo de Édipo e em sua analogia com a neurose, Freud não se contenta apenas com essa resposta e por isso procurará responder a questão religiosa a partir da noção de desamparo.

 

A Religião como remédio ao desamparo

A Religião é um dos temas abordados por Freud a partir de seu estudo das neuroses por ele observadas durante as sessões de análise. Não raras vezes Freud observou que várias ideias religiosas apareciam durante os relatos de seus pacientes, e isso o fez pensar a questão religiosa à luz da Psicanálise em seus pacientes. A partir desses casos, Freud começou a associar as descobertas psicanalíticas para pensar alguns outros fatores da cultura, dentre eles a questão religiosa. Ele escreveu vários textos tentando mostrar a natureza do fenômeno religioso, analisando o significado dos ritos e do comportamento religioso.

A partir de sua experiência clínica, Freud percebe que há no ser humano motivos que este não conhece, mas que o influenciam de diversas maneiras. São ideias inconscientes, as quais os homens seguem sem se darem conta disso na maior parte do tempo.

Isso abre um campo novo de investigação. Os processos inconscientes que movem o ser humano devem ser conhecidos de forma a possibilitar-lhe uma vida melhor. A Psicanálise então se instaura com a descoberta do inconsciente na vida mental. Isso permite estabelecer um conflito entre a parte consciente e a inconsciente, e a Psicanálise constituir-se-á na disciplina que estuda esse conflito.

Sua descoberta de que o homem seria regido por uma instância inconsciente muda a perspectiva do ideal de "homem racional" advindo do Iluminismo (embora Freud ainda esteja muito preso a vários ideais iluministas), colocando o homem não apenas como animal racional, mas, nas palavras de Morano (2003, p. 31), "um animal de realidades condenado a padecer de ilusões".

Segundo Birman (1997, p. 18),

Podemos dizer que as Leituras da Psicanálise fundadas na tese do descentramento do sujeito são os caminhos centrais da crítica da filosofia do sujeito, enquanto as Leituras fundadas na interiorização e no intimismo do sujeito vão na direção de reenviar a Psicanálise para o campo da filosofia do sujeito.

Essas ilusões estariam no coração do homem. A própria invenção de Freud nos revela que, na estrutura do ser humano, há uma falta, uma espécie de vazio que ninguém pode preencher, e que seria essa falta que nos moveria aos nossos afazeres, nossas buscas, inquietações, sempre procurando um objeto que a encerraria. Essa falta é introduzida no sujeito pela Lei da palavra que o atravessa e o constitui. Essa Lei, ao atravessá-lo, institui nele um desamparo que é fundamental. Segundo Lacan, ([1955/56] 2008, p. 104), toda a apreensão humana da realidade está submetida a essa condição de falta. "O sujeito está na busca do objeto do seu desejo, mas nada o conduz a ele". Essa falta que está lá dá origem a uma série de fantasias que alienam o sujeito. A realidade, portanto, na medida em que está subentendida pelo desejo, é, no início, alucinada, isto é, no desejo de encontrar esse objeto pleno que preencheria o seu interior, tal como o "pai perfeito", a "vida eterna", o homem se aliena várias vezes, é capaz de até mesmo negar a realidade para tentar fazer o mundo ter algum sentido para si. O chamado princípio de realidade se coloca exatamente sobre esse ponto. O sujeito não encontra o objeto que aplacará a sua falta, mas insistirá em tentar reencontrar o objeto cujo aparecimento é fundamentalmente alucinado. Essa dialética seria a base daquilo que Freud chamará de neurose.

Segundo Lacan ([1955/56] 2008, p. 104),

O sujeito não reencontra jamais, escreve Freud, senão um outro objeto, que corresponderá de maneira mais ou menos satisfatória às necessidades de que se trata. Jamais encontra senão um objeto distinto, pois que deve por definição reencontrar alguma coisa que é de empréstimo. Aí é o ponto essencial em torno do qual gira a introdução, na dialética freudiana, do princípio de realidade.

A Psicanálise tentará mostrar que o melhor que o homem pode fazer é abrir mão dessas fantasias infantis de completude e se lançar diante da realidade. A aposta da Psicanálise é que apenas a partir do conhecimento da verdade da carência, do desamparo, esse acesso à realidade será possível. A realidade, por mais dolorosa que seja, no entanto, será sempre preferível à melhor das fantasias.

O conceito de neurose é um conceito amplo na teoria freudiana. Foge do escopo deste artigo apresentar de forma exaustiva esse conceito. Laplanche e Pontalis (1970, p. 380) atestam essa dificuldade ao nos dizer que,

Se procurarmos estabelecer, no plano da compreensão do conceito, a especificidade da neurose tal como a clínica a define, a tarefa tende a confundir-se com a própria teoria psicanalítica, enquanto esta se constitui fundamentalmente como teoria do conflito neurótico e das suas modalidades.1

No entanto, ao se tratar da questão religiosa, a noção de neurose aparece de forma muito forte, e cabe nos atermos um pouco sobre esse conceito. Abordaremos o tema da neurose vinculado à Religião para tentar mostrar como esta poderá ser entendida por Freud como neurose.

A Religião aparece vinculada à neurose já nos primeiros escritos de Freud sobre a neurose histérica. Nessa primeira aproximação, a dissociação da consciência permitiu a Freud deparar-se com o que ele chamou de "perversão da vontade",2 uma espécie de querer inconsciente proveniente do recalcado que tentaria se impor sobre a vontade consciente do sujeito. Nessa luta das vontades, a Religião aparece como aliada da vontade consciente, servindo como uma espécie oponente ao mundo dos desejos e pulsões do indivíduo. Isso não raras vezes geraria um tipo de neurose. O recalcamento provocado com o auxílio da experiência religiosa necessita dessa experiência para continuar o jugo sobre o desejo recalcado. Dessa forma os delírios religiosos e as devoções exacerbadas são considerados por Freud como sintomas do recalcamento pulsional. Essa primeira formulação de Freud, associando neurose e Religião, é deixada um pouco de lado quando ele passa a analisar as chamadas "neuroses obsessivas", que serão para ele a chave para a compreensão da questão religiosa. Segundo Morano (2003, p. 36),

Diferente da neurose histérica, a neurose obsessiva apresentava-se, aos seus olhos, como um tipo de linguagem muito semelhante à linguagem dos fenômenos culturais. Com efeito, era como se nos encontrássemos ante uma espécie de "dialeto" da linguagem cultural.

Para Freud, os cerimoniais da neurose obsessiva mantinham uma grande semelhança com as práticas religiosas. A partir dessa analogia entre Religião e neurose obsessiva, a experiência religiosa não será vista mais como oposição às pulsões, como no Estudos sobre histeria (1895/2006), mas será vista como uma espécie de expressão da pulsão e dos sentimentos de culpa derivados dela.3

Segundo Morano (2003, p. 36),

No sintoma obsessivo, a conduta religiosa apresenta efetivamente o caráter de "formação de compromisso", isto é, de uma transação ou pacto estabelecido entre a pulsão, por um lado, e a proibição da satisfação dessa mesma pulsão por outro. Um pacto, portanto, entre desejo e proibição, formulado à revelia do sujeito, que permanece dessa maneira alienado do sentido de sua conduta.

Em seu texto Atos obsessivos e prática religiosa (1907), Freud chama a atenção para a analogia existente entre as cerimônias religiosas e os atos praticados pelas pessoas obsessivas. Mesmo sendo um texto em que Freud trata especificamente do judaísmo, muitas coisas ali vão ser utilizadas para falar da Religião em geral. Segundo ele, na dinâmica psíquica do neurótico obsessivo, um recalque insatisfatório ocasiona um elevado grau de angústia. Para se livrar de tal sentimento, o doente lança mão de defesas secundárias, dentre as quais estão os rituais obsessivos. O mesmo ocorre no homem religioso: a mesma "fuga" para uma defesa secundária se instala na tentativa de realizar o desejo recalcado. Como esse recalque não é capaz de suprimir a angústia, o homem religioso lança mão de cerimônias e práticas religiosas a fim de conseguir isso.

Segundo Rocha e Maciel, (2008) o religioso enfrenta um grande conflito, isto é, "obedecer às pulsões e desobedecer à Lei ou obedecer à Lei e abrir mão das pulsões. Sendo assim, os rituais assumem uma função protetora diante do conflito". Freud (1907/1976, p. 111) considera que "os atos cerimoniais obsessivos surgem, em parte, como proteção contra o mal esperado".

Ao identificar o religioso com o obsessivo, Freud reflete sobre a questão religiosa do ponto de vista da Psicanálise. Dessa forma, o que resta para ambos, o religioso e o obsessivo, é simplesmente procurar tratar-se desse mal e tentar viver uma vida que se pautaria pela via racional.

A partir da analogia estabelecida por Freud, ele é capaz de afirmar que, de uma perspectiva analítica, a neurose obsessiva pode ser entendida como uma espécie de Religião individual, e a Religião, uma neurose obsessiva universal (Freud, 1927/1976, p. 52). O neurótico obsessivo recalcaria os conteúdos sexuais, ao passo que o homem religioso recalcaria os conteúdos egoístas e antissociais em nome do exercício de sua religiosidade.4

Pode-se notar dessa explanação sobre a teoria das neuroses associada à Religião que ambas se relacionam com a forma de lidar com o mundo e com o desamparo. Segundo Laplanche e Pontalis (1970, p. 156),

Esse desamparo pode ser entendido como um estado do lactente que, dependendo inteiramente de outrem para a satisfação das suas necessidades (sede, fome), se revela impotente para realizar a ação específica adequada para pôr fim à tensão interna. Para o adulto, o estado de desamparo é o protótipo da situação traumática geradora de angústia.

Esse estado de desamparo correlativo à dependência do bebê em relação à mãe implica a onipotência da mãe e influencia de forma fulcral a estrutura do psiquismo da criança. Em relação à angústia, o estado de desamparo se coloca como uma espécie de protótipo da situação traumática. O estado de desamparo se liga à própria relação do homem com o mundo. Pelo fato de o ser humano ter uma vida intrauterina muito abreviada em comparação aos outros animais, ele está pouco acabado quando chega ao mundo. Dessa forma, a influência do mundo exterior se mostra muito forte para esse indivíduo, o que ocasiona a diferenciação entre o ego e o Id de forma precoce, fazendo com que o objeto que o protegeria do mundo tenha o seu valor extremamente aumentado. Esse fator biológico estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, necessidade essa que nunca mais abandonará o homem e constituir-se-á como uma condição para o ser humano ser sempre um ser de falta. O desamparo é, portanto, estrutural no ser humano.

A Religião, assim como a neurose, aparece como uma espécie de defesa do ser humano contra tal desamparo, sendo que a Religião se mostraria como uma defesa diante da neurose, uma vez que a adesão a uma neurose coletiva tem a grande vantagem de eximir o indivíduo da construção de uma neurose individual.

A defesa propiciada pela Religião diante da neurose dar-se-ia pelo fato de que a Religião ajuda na tarefa de renúncia pulsional que a vida exige. A ilusão religiosa canaliza as pulsões sexuais não inibidas em sua finalidade, de forma que a Religião funcione como defesa da neurose, inserindo o indivíduo em um discurso social que visa resolver o conflito ambivalente em relação ao pai.

A partir desse conflito, Freud tentará explicar o desenvolvimento da civilização, tentando mostrar como chegou ela ao estágio em que se encontra.

No início de O futuro de uma ilusão, Freud tenta traçar um panorama geral da civilização em que vive. Ele entende que, para isso, é necessário ter um conhecimento do passado e da direção para a qual a sociedade está caminhando.

Freud propõe dois eixos que funcionariam como os motores da civilização. O primeiro seria o avanço tecnológico e científico, uma vez que é por meio dele que o homem domina a natureza e extrai os bens de consumo que possibilitam a felicidade material. O segundo eixo seria o fundo histórico que toda civilização possui, por exemplo, a sua organização política. A partir desses dois eixos, seria possível entender melhor a civilização de uma época. Pela primeira seria possível fazer uma projeção do futuro da civilização e, utilizando o segundo eixo, entender por que a sociedade se desenvolveu de tal forma.

Ao tentar relacionar os dois eixos motores da civilização com a psique humana, Freud entende que o homem, pelo seu desejo de dar vazão às suas pulsões, é inimigo da civilização, a qual, na maioria das vezes, impede que elas se realizem. A ordem, associada às proibições e aos demais fatores seriam necessários para que a sociedade progredisse. E, ao mesmo tempo, tudo isso tem de ser estruturado sobre uma base repressora. Essa repressão é necessária para que o homem possa viver em sociedade, uma vez que nem sempre o indivíduo pode levar a cabo suas vontades. A tese clássica de Freud é que a sociedade se compõe a partir da renúncia pulsional do indivíduo. Se não houvesse a repressão do indivíduo, a sociedade jamais existiria.

No entanto, as proibições da sociedade aos poucos vão dominando o ser humano, controlando os seus desejos primitivos de forma tal que o homem começa a internalizar tais proibições, que por sua vez se transformam em convicções e normas que serão assumidas pelas pessoas vivendo em sociedade. A dinâmica repressiva da sociedade se torna regra da vida civilizada.

Segundo afirma Norman O. Brown (1972, pp. 18-19),

O reino do inconsciente instaura-se no indivíduo a partir do momento em que ele recusa admitir em sua vida consciente um propósito ou desejo que tenha, e ao fazê-lo, nele se estabelece uma força psíquica oposta à sua própria ideia. Esta rejeição pelo indivíduo de um propósito ou ideia, que não obstante permanecem seus, é a repressão. (p. 18-19).

Percebe-se que o recalque constitui um conceito-chave para se entender a dialética entre inconsciente e consciente na teoria freudiana. Em termos mais gerais, o recalque poderia ser entendido como uma recusa do ser humano em admitir as realidades de sua natureza humana. Esse recalque causa um profundo mal-estar, um descontentamento no homem, impondo limites à subjetividade humana.

O termo utilizado por Freud para falar de recalque é verdrängung, do verbo verdränger, que pode ser traduzido por "empurrar para o lado" ou "desalojar". Também pode significar "sufoco, incômodo". Esse termo refere-se ao material guardado no espaço intrapsíquico do sujeito. Dado o incômodo gerado por esse material, o sujeito é conduzido a retirar essa carga de sua consciência. No entanto, o material permanece no sujeito, porém num espaço que mantém o conteúdo que foi empurrado afastado da consciência. Esse conteúdo, por sua vez, não aceita ficar nesse lugar despercebidamente e busca caminhos que o trarão de volta, obrigando o sujeito a canalizar energia para mantê-lo fora de cena.

A palavra recalque significa "rebaixamento de terra ou paredes". O radical "calcar" é conceituado como "calcar a terra, o terreno, pressiona, pisar, apertar", podendo também ser utilizado como "oprimir, vexar, desprazer" (Hans, citado por Isotton, 2012, p. 358). Em Psicanálise, o termo remete ao movimento de retirar da consciência algo que gera desprazer, gerando com isso um gasto de energia psíquica. O recalque mantém-se existente e necessário, pois as fontes pulsionais, uma vez recalcadas, movimentam-se constantemente, buscando um caminho para acessar a consciência e o mundo externo, onde irão encontrar a satisfação.

O vocábulo "repressão" (unterdruckung) é discutido por Laplanche e Pontalis (1970, pp. 594-595). Eles afirmam que a repressão é uma operação do aparelho psíquico que faz desaparecer uma ideia ou um afeto, na maioria das vezes desagradáveis, da consciência. Essa operação é realizada no espaço consciente e irá direcionar o material que deve ser reprimido para o pré-consciente. A atuação ocorre no campo da "segunda censura", situada por Freud entre o consciente e o pré-consciente. Para Freud não há como o afeto ser alojado no inconsciente, pois se torna outro afeto ou é reprimido. Dessa forma, a repressão se dá na esfera do consciente e tem como objetivo deslocar as representações para o campo pré-consciente. Assim, a diferença entre recalque e repressão se torna mais clara. Ainda em O futuro de uma ilusão, a razão impera sobre o homem, e as produções humanas devem ser submetidas ao tribunal por ela governado, inclusive à Religião. Freud (1927/1976, p. 40) afirma que "acima da razão não há tribunal a que apelar. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma experiência interior que dá testemunho dessa verdade, o que se deve fazer com as muitas pessoas que não dispõem dessa rara experiência?"

Religião e ciência não se misturam; ou se adota o paradigma científico ou o paradigma religioso. As funções da Religião apontadas por Freud, tais como dar sentido à vida, controlar os impulsos e recompensar com a vida eterna os sofrimentos da vida presente, não a qualificam como algo que deva ser mantido para o homem. Segundo Freud (1927/1976, p. 68),

Nosso Deus, logos, atenderá todos esses desejos que a natureza a nós externa permita, mas fá-lo-á de modo muito gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens. Não promete compensação para nós, que sofremos penosamente com a vida. No caminho para esse objetivo distante, suas doutrinas religiosas terão de ser postas de lado, por mais que as primeiras tentativas falhem ou os primeiros substitutos se mostrem insustentáveis. Você sabe por que: a longo prazo, nada pode resistir à razão e à experiência, e a contradição que a Religião oferece a ambas é palpável demais. Mesmo as ideias religiosas purificadas não podem escapar a esse destino, enquanto tentarem preservar algo da consolação da Religião. Indubitavelmente, se confinarem à crença num ser espiritual superior, cujas qualidades sejam indefiníveis e cujos intuitos não possam ser discernidos, não só estarão à prova do desafio da ciência, como também perderão sua influência sobre o interesse humano..

Ele deixa bem claro que a Religião tem como destino ser superada à medida que o homem se torna um ser científico, e nem mesmo as consolações advindas do discurso religioso serão suficientes para impedir tal fim. Algo interessante a se notar é que Freud substitui o deus da crença religiosa pela crença no deus logos. E se esse deus não passasse de uma ilusão, tal fato não traria tantos prejuízos aos homens, o que não acontece com o deus da crença religiosa.

Freud posteriormente reconhece a sua análise como extremamente negativa em O futuro de uma ilusão e afirma que, na perspectiva psicanalítica, é possível dar à Religião certo aspecto de verdade, que não seria material, mas sim histórico. Essa posição já está posta em seu livro Totem e Tabu, de 1913, sobre o qual já nos referimos.

Nas palavras de Freud (1925/1976, p. 90),

Lemos que em 'O Futuro de uma Ilusão' exprimi uma avaliação essencialmente negativa da Religião. Depois, encontrei uma fórmula que lhe fazia melhor justiça: embora admitindo que sua força reside na verdade que ela contém, mostrei que a verdade não era uma verdade material, mas histórica.

A verdade histórica da Religião coloca-se para Freud como um novo problema a ser investigado, e por isso o vienense procurará elucidá-la. O discurso adotado agora não é mais o cientificista, mas sim o psicanalítico.

Segundo Rocha e Maciel (2008), nesse estudo psicanalítico da Religião, Freud não ultrapassará os limites do psiquismo humano. Desse modo, a experiência religiosa constituir-se-á basicamente como uma experiência psicológica, não levando em conta a dimensão transcendente do homem, mas apenas as estruturas do corpo e do psiquismo.

Analisada do ponto de vista psicanalítico, a Religião também não passará de uma ilusão, mas agora embasada na relação entre pai e filho, em que este sente a necessidade da proteção paterna, mas ao mesmo tempo o odeia por separá-lo de sua mãe. Esse sentimento infantil, para Freud, perdura por toda idade adulta e é nele que se funda a ideia de Deus. Esse último nada mais é que a imagem idealizada do pai, na qual a criança, e agora o adulto, busca proteção para superar o seu desamparo. Essa criação de um pai onipotente e protetor é fruto da imaginação da criança. A fixação a essa imagem, na idade adulta, constitui, para Freud, uma ilusão. Isso não faz dessa fixação um erro ou um engano, mas sim uma produção psíquica fundada no desejo. É a força desse desejo que motiva a produção da ilusão e alimenta a crença em Deus. Segundo Freud (1910/1976, p. 112),

A Psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona.

Como se pode ver, o discurso freudiano sobre a Religião caracteriza-se pela adesão a duas vias de análise. Por um lado, tem-se o viés científico e, por outro, o viés psicanalítico. Ambos chegam à conclusão de que a Religião é uma ilusão humana que deve ser superada, pois ela nada mais é que a tentativa dos indivíduos de lidar com o desamparo. Deus nada mais é que a figura do pai idealizado. Nesse sentido, o caminho para sair da ilusão religiosa é a ciência, que fará com que o homem caminhe em direção ao seu apogeu como ser humano e consiga se livrar das ilusões da infância, saindo portanto do desamparo que o assola.

 

Referências

Birman, J. (1997). Estilo e modernidade em Psicanálise. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Brown. N. O. (1972) Vida contra a Morte: o sentido psicanalítico da história. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Freud. S. (1976). O futuro de uma ilusão (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1927).         [ Links ]

Freud. S. (1976). Totem e Tabu (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1913).         [ Links ]

Freud. S. (1976). Três ensaios sobre a sexualidade (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1905).         [ Links ]

Freud. S. (2006). Estudos sobre histeria (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1895).         [ Links ]

Freud. S. (1976). Atos obsessivos e práticas religiosas (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 9). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1907).         [ Links ]

Freud. S. (1976). Um estudo autobiográfico (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1925).         [ Links ]

Freud. S. (1976). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.11). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1910).         [ Links ]

Hanns, A. L. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Isotton, R. (2014). Recalque e repressão: uma breve discussão conceitual. Recuperado em 22 julho, 2014, de http://www.cbp.org.br/cprs/recalquerepressao.pdf        [ Links ]

Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 3: As psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (Obra original publicada em 1955/1956).         [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1970). Vocabulário de Psicanálise (2a ed.). Santos: Martins Fontes.         [ Links ]

Mijolla-Mellor, Sophie de. (2004). A necessidade de crer. Metapsicologia do fato religioso. São Paulo: Unimarco.         [ Links ]

Morano, C. D. (2003). Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Rocha, K. D. S. A., & Maciel, Z. F. B. (2008). Dois discursos de Freud sobre a Religião. Revista Mal-estar e subjetividade, 3(8), 729-754.         [ Links ]

Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

1 Para uma compreensão da história do conceito de neurose, bem como as formulações dadas por Freud no decorrer de sua obra, recomendamos ao leitor o estudo de LAPLANCHE & PONTALIS, Vocabulário de Psicanálise (1970, p. 377-404) e também a obra de ROUDINESCO & PLON, Dicionário de Psicanálise (1998, p. 534-540).
2 Cf. Freud (2006). Estudos sobre Histeria (Vol. II, pp. 164-173). Rio de Janeiro: ESB.
3 Essa relação entre culpa e Religião pode ser vista no texto de Totem e Tabu, de 1913, como já mencionamos neste trabalho.
4 Essa relação estabelecida por Freud entre Religião e neurose obsessiva tem como pressuposto a primeira teoria das pulsões, em que elas eram divididas entre pulsões sexuais e pulsões do eu, o que permite que Freud estabeleça a diferenciação entre o recalcamento do obsessivo e do homem religioso. O primeiro recalcaria os conteúdos sexuais, o que geraria a neurose, enquanto o segundo recalcaria as pulsões do eu, o que geraria sua religiosidade. Essa relação sofrerá uma mudança grande a partir de 1914 com a formulação da teoria do narcisismo, em que as pulsões do eu também se tornam libidinizadas.

Creative Commons License