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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.10 São João del Rei enero/jun. 2017

 

ARTIGO

 

Fundamentos da associação livre: uma valorização da técnica da psicanálise

 

Foundations of free association: a valorization of psychoanalysis' technique

 

 

Vitor Orquiza CarvalhoI; Helio HondaII

IGraduado em psicologia e especialista em filosofia pela UEM. Mestrando em filosofia na Unicamp. Bolsista FAPESP
IIGraduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (1988), graduação em Formação de Psicólogos pela Universidade Estadual de Maringá (2003), mestrado em Filosofia e Metodologia das Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (1996) e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atualmente é professor adjunto do departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

 

 


RESUMO

Este artigo procura investigar e valorizar a técnica de associação livre da psicanálise freudiana. Para tanto, procuramos trazer a rede conceitual em que a associação livre se encontra, na tentativa de demonstrar que os seus fundamentos são precisos e constituintes da metapsicologia. Além disso, discutimos os dois pilares da técnica da psicanálise apontados por Freud no final da sessão A do capítulo VII da obra La interpretación de los sueños (1900) e indicamos a sua relação com o conceito de sobredeterminação. Por último, apresentamos duas características dessa técnica que consideramos como suas peculiaridades em relação aos demais tratamentos psicoterápicos.

Palavras-chave: Associação-livre. Técnica. Psicanálise.


ABSTRACT

This paper seeks to investigate and to appraise the technique of free association in Freudian psychoanalysis. To this end, we sought to bring the conceptual network in which free association is located, this in attempt to demonstrate that its foundations are accurate and a constitutive part of metapsychology. In addition, we discussed the two pillars of psychoanalysis' technique pointed out by Freud in the final session of Chapter VII of La interpretación de los Sueños (1900) and indicated their relationship with the concept of over-determination. At last, we presented two characteristics of this technique that we consider peculiarities in relation to other psychotherapy treatments.

Keyword: Free Association. Technique. Psychoanalysis.


 

 

Introdução

Logo na primeira sessão de um paciente, o analista explicita uma regra que deverá nortear todo o processo terapêutico. Trata-se da mesma regra fundamental (Grundregel)1 que seu propositor, Freud, anunciava quando atendia os seus próprios pacientes:

Diga, pois, tudo que lhe passa pela mente. Comporte-se como faria, por exemplo, um passageiro sentado no trem ao lado da janela que descreve para seu vizinho de passeio como cambia a paisagem em sua vista. Por último, nunca se esqueça que prometeu sinceridade absoluta, e nunca omita algo alegando que, por algum motivo, você ache desagradável comunicá-lo. (Freud, 1913, p. 136)

Tradicionalmente, é desse modo que se começa e que se prossegue um trabalho de análise, em que cabe ao paciente não mais do que relaxar ao reclinar-se confortavelmente em um estado mental quase desacordado, falando tudo o que lhe ocorre. Distinta de outras formas terapêuticas, o processo terapêutico proposto pela psicanálise não exige nenhuma restrição muscular por parte de seus pacientes. É, então, o pronunciar das palavras e o discorrer pelos temas que toma conta do ambiente e, muitas vezes, o sentido escapa da linearidade do discurso construído por quem é atendido. Esse é o momento em que age o psicanalista - como se fisgasse aquilo que lhe pareceu incoerente, sem sentido, mas que, na verdade, é de suma importância para a compreensão acerca daquilo que faz sofrer.

Falar de modo livre, sem censuras e obstáculos, portanto, é apresentado como a condição terapêutica para quem é analisado. É desse modo que os procedimentos terapêuticos propostos por Freud sobrevivem, os quais subentendem que habita no homem a sua própria cura. Até os dias de hoje, entretanto, isso continua intrigante e ainda leva à pergunta: por que faz sentido dar liberdade para a fala do paciente da psicanálise e esperar em troca um alívio de seus sintomas? São precisamente os fundamentos que embasam esses procedimentos que selecionamos como objeto de estudo para este breve artigo.

Procuramos trazer uma breve retrospectiva do início da psicanálise, focando-nos nos momentos que contribuíram para que Freud chegasse ao conceito de associação livre. Em seguida, indicamos alguns dos conceitos que consideramos importantes para o entendimento dos fundamentos desta técnica, discutindo os dois pilares da técnica da psicanálise que Freud traz no final da sessão A do capítulo VII da obra La interpretación de los sueños (1900) e indicamos a sua relação com o conceito de sobredeterminação. No final, a partir desta exposição, apontamos duas características que avaliamos como peculiaridades da técnica da psicanálise.

 

O percurso de Freud até a associação livre

Sobre a associação livre, no Vocabulário da Psicanálise (2004, p. 38), Laplanche e Pontalis dizem que "não é possível definir uma data exata de sua descoberta, que se deu de modo progressivo entre 1892 e 1898, e por diversos caminhos". Não houve um texto inaugural dedicado à introdução do conceito e, portanto, este foi sendo estabelecido de modo esparso e paulatino. São vários os escritos de Freud nesse período citado pelos autores e os assuntos são diversos, porém é no livro Estudios sobre la histeria (1893-95), com textos datados entre 1893 e 1895, que encontramos os relatos de alguns casos essenciais para a compreensão de como a psicanálise foi ganhando a sua peculiaridade, que é o seu modo de tratar as psicopatologias. Nesse livro, com seu professor e amigo Josef Breuer, Freud aventura-se em introduzir à sociedade médica de Viena algumas de suas descobertas provindas de suas experiências clínicas. No entanto, como essa obra foi resultado de quase uma década de estudos, talvez seja interessante relembrar o caminho percorrido por Freud até o momento de escrevê-lo.

Quando se tornou médico, em 1881, Freud almejava ajustar a sua vida financeira para se casar. Aconselhado pelo seu mentor acadêmico, Ernst Brücke, resolveu abandonar os seus estudos na universidade e, em 1882, começou a trabalhar como um Aspirant, assistente clínico, no Hospital Geral de Viena (Freud, 1925). Com mais dinheiro e entre alguns sucessos e insucessos nesse novo cargo, ele conseguiu, em 1885, uma bolsa para estudar no famoso Hospital da Salpêtrière em Paris. Nesse ambiente conheceu pessoalmente alguém que ele já admirava, o neurologista francês Jean-Martin Charcot, que inovava nas pesquisas sobre histeria. A hipnose era a técnica que Charcot e seus discípulos utilizavam nas histéricas e, de acordo com eles, a etiologia dessa doença se encontraria, em última instância, em localizações anatômicas. De início, Freud compartilhou dessa ideia, mas logo começou a desconfiar que tais explicações anatomistas eram limitadas e que as causas da histeria estariam em outro lugar - na vida psíquica. Após terminar os seus cursos, foi embora de Paris otimista e, embora Charcot não compartilhasse de suas ideias acerca das neuroses, ele havia conseguido dados para desenvolver suas próprias ideias: "Eu queria desenvolver a tese de que, na histeria, as paralisias e anestesias das várias partes do corpo assumem correspondências com as representações comuns (não anatômicas) que os seres humanos possuem destas últimas" (Freud, 1925, p. 13).

De volta a Viena, Freud levou com ele a ideia de escrever um artigo que seria considerado como divisor de águas entre a sua vida como neurologista e como um investigador do psiquismo. No artigo "Alguns consideraciones com miras a un estudio comparativo de las parálisis motrices orgánicas e histéricas", de 1893, ele abarcou a histeria maneira minuciosa, demonstrando amplo conhecimento tanto sobre as paralisias quanto sobre a histeria. Argumentou que haveria diferenças entre essas duas, não somente em seus aspectos fisiológicos, como também na sintomatologia. E, ao prescindir das explicações anatômicas para a histeria, Freud levou os seus estudos para o domínio da Psicologia.

Procurarei mostrar que pode haver modificação funcional sem lesão orgânica concomitante, ao menos, sem lesão nitidamente perceptível até a mais minuciosa análise. Em outros termos, darei um exemplo apropriado de alteração funcional primitiva; e, para isso, não peço mais que permissão para passar à área da psicologia, inevitável quando se trata de histeria. (Freud, 1893, p. 207)

Tornou-se necessário naquele momento a construção de certa concepção de mente que embasasse as suas hipóteses clínicas. No período em que Freud se mudava da universidade para o hospital, Breuer já dava os primeiros passos para o entendimento de que a etiologia da histeria estaria no psiquismo e não em localizações orgânicas. Por meio do tratamento da paciente que ficou conhecida como Srta. Anna O., inaugurou um método que ficou conhecido como método catártico, o qual visava a uma "purgação" (catharsis), uma descarga adequada dos afetos patogênicos (Laplanche & Pontalis, p. 60, 2004). Ainda mediado pelo uso da hipnose, o método já possibilitava a compreensão de que havia "esquecimentos" de traumas na vida do paciente e que, caso fosse possível reencontrá-los, a histeria poderia ser tratada. Durante a década de 1880, Freud tinha o conhecimento de que havia alternativas metodológicas para sua prática clínica e não hesitou em aderir a elas. Por somar experiências com suas pacientes, surgiu a possibilidade da publicação com Breuer dos Estudios sobre la histeria (1893-95). Livro que evidencia certos avanços tanto para a concatenação de sua concepção acerca do psiquismo quanto para a chegada do método de associação livre.

Um passo importante ocorreu quando, no caso da jovem conhecida como Miss Lucy, Freud percebeu que a hipnose seria dispensável,2 uma vez que havia observado que por meio de uma pressão na testa de seus pacientes seria possível reencontrar a "recordação patogênica". Não abandonou o método catártico, mas percebeu que os conteúdos que havia causado o trauma poderiam aparecer por meio de uma simples sugestão ao mesmo tempo em que colocava as suas mãos na cabeça da paciente. No entanto, Freud não deixou de ressaltar que havia também uma dificuldade em se aproximar de determinadas memórias, o que ele chamou de resistência (Widerstand) ao explicar que havia forças opositoras por parte do paciente que precisavam ser ultrapassadas para que a cura fosse realizada. O advento dessa concepção veio acompanhada do surgimento de outro conceito importante para o rumo de suas descobertas, o de defesa (Abwebr). Este, no capítulo IV do livro Estudios sobre la histería (1893-95), intitulado "Sobre la psicoterapia da histería", é explicado por Freud da seguinte forma: "Ante ao eu do paciente havia aparecido uma representação que se mostrou ser inconciliável [unvertraglich], a qual convocou uma força de repulsão [Abstossuug] por parte do eu cujo fim era a defesa frente a essa representação inconciliável" (Breuer & Freud, p. 276, 189395).

Daí que as observações clínicas de Freud tiveram participação decisiva para que ele conseguisse estabelecer os novos conceitos para amarrar a sua visão acerca do psiquismo. Claro que também precisou emprestar conceitos de outras teorias anteriores à dele, mas o que foi emprestado teve de ser remodelado para se ajustar à psicanálise.

Um bom exemplo disso já aparece na citação do parágrafo anterior, o conceito de "representação" (Vorstellung), o qual é importante porque permitiu a Freud explicar os processos psíquicos sem recorrer à ordem material. Por meio da representação ele conseguiu inferir que esta estaria encadeada e seria determinante no entendimento das psicopatologias. Uma "representação patogênica", insuportável para o eu do paciente, teria sido forçada para fora de sua consciência, provocando a doença. No caso das histéricas, por exemplo, o afeto (Affekt) que antes estava ligado à representação teria se alocado em algum órgão somático, o qual não teria sido escolhido por acaso, já que o mesmo órgão teria alguma correlação com o conflito psíquico que a pessoa teria enfrentado. As representações, de modo geral, estariam interligadas em cadeias associativas e a representação, que se tornou patogênica, teria interrompido o seu elo com as demais. Na seguinte passagem do texto "Sobre la psicoterapia da histeria", Freud explica tanto como ocorre esse processo quanto indica o modo que deve trabalhar o psicoterapeuta no tratamento de seu paciente:

Vale dizer: uma força psíquica, uma aversão por parte do eu, havia originalmente empurrado a representação patogênica para fora da associação, e agora contrariava o seu retorno à memória. Portanto, o não saber dos histéricos era na verdade um... não querer saber, mais ou menos consciente, e a tarefa do terapeuta consistirá em superar essa resistência de associação mediante um trabalho psíquico. (Freud, 1893-95, p. 276, itálico do autor)

Se Laplanche e Pontalis (2004) apontam que há uma imprecisão quanto à "data exata" em que nasceu a ideia de associação livre, podemos pelo menos restringir o período de sua descoberta a esse momento, em que Freud percebeu a importância de reconstruir os elos entre as associações das representações. Do mesmo modo, a descoberta de que haveria uma relação causal nessas associações o possibilitou enxergar o psíquico de modo dinâmico e, assim, passível de intervenção terapêutica. Ainda assim, o livre, de associação livre, demorou um pouco mais para ser concebido, já que a técnica de pressionar a testa de seus pacientes perdurou até Freud descobrir que se os permitissem trazer os conteúdos à análise por conta própria, ele se aproximaria mais daquilo que estava encoberto. Segundo Laplanche e Pontalis: "Essa 'liberdade' acentua-se no caso de não ser fornecido qualquer ponto de partida. É nesse sentido que se fala de regra de associação livre como sinônimo de regra fundamental" (2004, p. 39).

Espera-se que o paciente fale de modo livre para que ele consiga exprimir os seus conteúdos psíquicos nas palavras e manifestar ao analista a cadeia associativa em que elas se encontram, de modo que, se toda palavra encontra-se associada à outra, então se torna possível perseguir o curso de suas ligações - como se estivéssemos puxando uma linha à procura do carretel em que está amarrada. Por meio dessa concepção, Freud conseguiu inferir algo muito importante, i.e, que os processos psíquicos respeitariam uma ordem determinada. Se haveria um curso no pensamento do paciente, haveria, consequentemente, uma finalidade, uma meta que as associações rumavam em direção. Baseando-se nisso, ele propôs o conceito de representação-meta (Zielvorstellung), que visaria dar significado para essas ideias, de que haveria leis no psiquismo determinando as relações entre as associações.

Esse conceito foi explorado tanto no Projeto de uma psicologia científica (1895), quanto no capítulo sétimo da extensa obra La interpretación de los sueños (1900). É neste último, no entanto, que ele chegou a uma versão mais duradoura sobre sua concepção de mente. No capítulo sétimo ele propõe, de modo preciso, a divisão em três sistemas, que ficaram conhecidos como: Consciente (Bewusstheit), Pré-consciente (Vorbewusste) e Inconsciente (Unbewusste). Juntos, estes formariam o que ficou conhecido como a primeira tópica, na qual Freud explicou que os grupos de representações transitariam entre os sistemas sempre de acordo com suas metas. Haveria, assim, no curso das representações, partes conscientes e partes inconscientes.

 

Os dois pilares da técnica da psicanálise e a sobredeterminação

Em uma passagem do final da sessão A do capítulo VII de La interpretación de los sueños (1900), Freud aponta a existência de dois pilares que sustentariam a técnica da psicanálise: "Destes dois enunciados a psicanálise faz uso muito amplo nas neuroses; ainda mais: eleva ambos à condição de pilares de sua técnica" (Freud, 1900, p. 525). O primeiro pilar consiste na ideia de que o abandono das representações-meta conscientes faz com que o paciente entregue o governo sobre o decurso das representações a algumas representações-meta ocultas. De acordo com isso, escutar o paciente no divã faz sentido porque, em algum momento, aquilo que está associado conscientemente sucumbe ao que está oculto, ao que o "desejo" (Wunsch) manifesta no inconsciente. Quando isso ocorre, as "representações-meta ocultas" se apresentam para o analista e cabe a ele "interpretá-las" (Deutung) para o paciente, visando à tradução do "conteúdo manifesto" (manifester Inhalt) em conteúdo latente (latenter Inhalt). O segundo pilar consiste em que associações superficiais são vistas como um substituto, por deslocamento, de outras suprimidas mais no fundo. Percebemos aí uma clara relação com o primeiro, na medida em que é enfatizada a questão de como aquilo que é apresentado superficialmente pelo paciente é, de fato, um "deslocamento" (Vershciebung) de algo que está no inconsciente. O analista, que possui essa informação, entende que o que a ele é falado, na maioria das vezes, é um disfarce daquilo que ele está à procura, um substituto do que realmente é patogênico.

Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, atenho-me à premissa de que ele não pode abandonar as representações-meta relativas ao tratamento, e me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico. (Freud, 1900-01, p. 525)

Uma análise pode demorar anos porque o que está em questão é a busca do analista por uma representação-meta oculta, o que pressupõe compreender como se instalam as defesas na fronteira entre o Inconsciente e o Pré-consciente. De fato, a técnica da psicanálise não funciona com prazo determinado porque ela não se satisfaz com o imediato e nem com o que se apresenta na superfície da patologia. Sabemos, apesar disso, que alguns críticos da psicanálise se preocuparam justamente com a questão do tempo do processo terapêutico. Por exemplo, em uma conversa com seu amigo Rush Rhees, Wittgenstein demonstrou o seu descontentamento com a proposta da técnica da psicanálise ao considerar que haveria uma imprecisão no procedimento de associação livre. Diz ele: "Mas esse processo da livre associação e tudo mais é duvidoso, porque Freud nunca mostra como sabemos quando devemos parar - onde está a solução correta?" (Wittgenstein, 1976, p. 15). Para o filósofo, não haveria na técnica de Freud uma distinção clara entre razões e causas que permitisse que o assentimento do paciente fosse decisivo para a confirmação da causalidade proposta pelo analista (Frangiotti, 2003, p. 85).

De fato, a aposta no "determinismo psíquico" (psychischen Determinierung) embasa a compreensão freudiana de que não haveria uma aleatoriedade nos processos mentais. Algo considerado como uma diferença entre ele e os pesquisadores que se aventuraram a decifrar os sonhos. Ainda no capítulo VII da La interpretación de los sueños (1900), Freud afirma que os demais autores: "Subestimam o determinismo [Determinierung] dentro do psíquico. Não há ali nada de arbitrário. É possível demonstrar-se como total generalidade que um segundo itinerário de pensamento toma sobre si o comando [Bestimmung] do elemento que o primeiro deixou no comandado" (Freud, 1900, p. 509). E foi a essa tarefa que ele se dedicou no livro Psicopatología de la vida cotidiana (1901), quando explorou algumas características do psiquismo que, para muitos, passariam despercebidas. Tratase dos equívocos, lapsos, esquecimentos e, principalmente, o que ficou conhecido pela psicanálise como ato-falho (Fehlleistung). Durante todo esse livro, Freud analisa inúmeros relatos que corroboram a ideia de que a consciência, muitas vezes, rende-se ao que emerge do inconsciente e que isso denunciaria o que estaria suprimido. Assim, procurando denunciar que nada do que se fala é dito por acaso, Freud chega à conclusão de que "os fenômenos podem-se reconduzir a um material psíquico incompletamente suprimido, um material que, forçado a banir-se {abdrängen} da consciência, não foi despojado de toda sua capacidade de exteriorizar-se" (Freud, 1901, p. 270).

É possível dizer, entretanto, que o determinismo concebido pela psicanálise não é tão estrito quanto evoca o sufixo do termo. Para essa disciplina, a vida infantil é de suma importância porque é nessa etapa que são registrados os primeiros contatos com o mundo externo. Quer dizer, para a psicanálise, o que ocorre nos primeiros anos de vida de um bebê não desaparece depois em sua vida adulta. O que acontece é que alguns traços mnésicos (Erinnerungsspur) permanecem investidos (Besetzung) e outros não. Porém, quando alguma das primeiras experiências vivenciadas é intensa demais para a criança lidar esta se torna um trauma (Trauma) e suscita consequências dolorosas na vida adulta. Freud compreendeu que não seria somente uma dessas vivências na infância que comporia um núcleo patogênico, mas sim um conjunto destas. É como se vários fatores sofridos se entrelaçassem e formassem um "ponto nodal" da patologia. Foi por isso que, em vez de falar apenas em determinação dos processos psíquicos, Freud passou a acrescentar o prefixo "sobre" e dizer que a patologia estaria sujeita a uma "sobredeterminação" (Überdeterminierung).

Portanto, os pilares da técnica da psicanálise se sustentariam pela ideia de que as representações-meta teriam uma finalidade, uma raiz no Inconsciente que o analista poderia encontrar ao prestar atenção na fala do paciente. A sobredeterminação dos eventos psíquicos seria o conceito que permitiria Freud defender e inferir que a associação livre teria um fundamento, ou seja, um suposto alicerce para os dois pilares da técnica.

 

Considerações finais

Vimos que houve uma mudança de paradigma quando Freud se inclinou a buscar explicações psíquicas em vez de anatômicas. Apontamos que isso permitiu que ele arquitetasse a sua própria concepção de mente, a qual lhe rendeu uma disciplina autônoma e pretensiosamente científica que, por sua vez, abrangeu um constructo original como o do Inconsciente. Em seguida, procuramos ilustrar como essa concepção de mente poderia justificar a sua técnica de escutar os pacientes, que foi quando dissemos que, para Freud, a mente era dividida e que por essas divisões passavam as representações-meta, as quais estavam associadas e eram advindas de uma raiz patogênica inconsciente. Trouxemos, depois, a ideia de que essas representações-meta faziam parte do que Freud considerou como os dois pilares da psicanálise e apontamos como estes se sustentavam pela ideia de sobredeterminação.

Para finalizar, gostaríamos de apontar outra peculiaridade que em relação à técnica da psicanálise que somente pode ser apresentada após a introdução do conceito de associação livre. Trata-se da proposta de que essa técnica tem um modo singular de ser suspicaz. Isto é, por entender que a etiologia das patologias não se encontra na consciência, o seu método investigativo é o de duvidar. Para Freud, uma analogia entre o analista e o arqueólogo se faz possível porque ambos estão à procura do que está "soterrado". Ambos trabalham cautelosamente para não danificar o que pode vir a encontrar e também não sabem exatamente o que lhes esperam. Sabem apenas que diante deles está arquivada a história de seus objetos de estudo, em uma cronologia inversa e estratificada (Freud, 1896). Poderíamos dizer, no entanto, que, além disso, o analista ainda tem alguns obstáculos particulares para lidar. Referimo-nos ao segundo pilar da técnica apontado por Freud, que diz que as representações-meta conscientes podem não ser as que levam ao núcleo da patologia. Assim, semelhante ao fenômeno de refração estudado pela física, em que a luz sofre um desvio em sua velocidade e percurso quando passa entre dois meios diferentes, as representações-meta lançam um desafio ao analista quando, ao atingirem a consciência, escorregam em associações menos intensas e desviam-se de sua rota originária. Seguir os seus vestígios, então, se torna o seu encargo. Mediado por uma "atenção uniformemente flutuante" (gleichschwebende Aufmerksamkeit), o analista sabe que a técnica da Psicanálise não pode priorizar nada de imediato, pois entende que, diante dos mecanismos psíquicos de defesa, resistência etc., as verdades do paciente demoram a se revelar.

Esta seria a segunda peculiaridade de sua técnica, a ideia de que: "A Psicanálise é desconfiada, e com razão" (Freud, 1900, p. 511). Uma proposta de tratamento que não trabalha com sedativos e psicotrópicos, que não se satisfaz com o que se apresenta na superfície dos sintomas, mas que coloca o paciente em contato com o seu passado, com suas contradições e com suas limitações.

 

Referências

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1 Para destacarmos alguns conceitos importantes e para evitarmos equívocos quanto às traduções, trouxemos, entre parênteses, o equivalente no original em alemão.
2 O abandono da hipnose por Freud, portanto, deu-se na medida em que descobriu que nem todos os pacientes eram hipnotizáveis e que ele mesmo não dominava a técnica suficientemente. Nos termos dos autores: "Miss Lucy R. não caía no sonambulismo quando tentei hipnotizá-la. Renunciei então o sonambulismo e fiz toda a análise com ela em um estado que mal se distinguiria do normal" (Breuer & Freud, 1893-1895, p.125).

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