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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.10 São João del Rei enero/jun. 2017

 

ARTIGO

 

A demissão do outro na esquizofrenia: um fator condicionante à desinserção do sujeito esquizofrênico no discurso

 

The resignation of the Other in schizophrenia: a determinant factor that forbid the schizophrenic subject to participate of social exchange

 

La resignation de l'autre dans la Schizophrenie: un facteur qui conditionne l'exclusion du sujet schizophrène du discours

 

La dimisión del Otro en la esquizofrenia: un factor condicionante de la desinserción del sujeto esquizofrénico en el discurso

 

 

Ana Luíza Mota Sant'Anna

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2016). Possui graduação em Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012)

 

 


RESUMO

O artigo apresenta o resultado de uma busca na teoria psicanalítica por elementos que pudessem servir como instrumentos de leitura de um caso clínico, de forma a ajudar na sua condução. O caso clínico relatado foi pautado em atendimentos realizados no Serviço de Psiquiatria do Ambulatório Bias Fortes em Belo Horizonte (MG), no período de agosto de 2011 a junho de 2012. Os achados teóricos apontam que a demissão do Outro na esquizofrenia é um fator condicionante à desinserção do sujeito esquizofrênico no discurso e durante todo o artigo buscou-se entender como se dá essa relação causal.

Palavas-chave: Esquizofrenia. Outro. Discurso. Ironia.


ABSTRACT

This article presents the result of a research on the psychoanalytic theory that looked for elements that could serve as tools to clarify a case, in order to help us in its conduction. The clinic case was based in psychological interviews at the Psychiatric's Department of Bias Fortes Hospital in Belo Horizonte (MG), from August 2011 to June 2012. The theoretical findings suggest that the dismissal of the Other in schizophrenia is a determinant factor that forbid the schizophrenic subject to participate of social exchange. This article intended to understand how this causal relationship works.

Keywords: Schizophrenia. Other. Social exchange. Irony.


RÉSUMÉ

L'article présente le résultat d'une recherche à partir de la théorie psychanalytique d'éléments qui pourraient servir d'outils de lecture d'un cas clinique, de maniere à aider as conduite. Le cas clinique décrit a été basé sur des séances réalisés dans le Service Psychiatrique de l'Ambulatoire Bias Fortes à Belo Horizonte (MG), dans la période d'aoüt 2011 à juin 2012. Les avancés théoriques suggèrent que la résignation de l'Autre dans la schizophrénie est un facteur qui conditionne la désinsertion du sujet schizophrene de l'échange social. Pendant tout l'article, l'intention a été de comprendre cette relation causal.

Mots clés: Schizophrenie. l'Autre. Discours. Ironie.


RESUMEN

El artículo presenta el resultado de una búsqueda en la teoría psicoanalítica por elementos que pudiesen servir como instrumentos de lectura de un caso clínico de modo que ayude en su conducción. El caso clínico relatado fue pautado en atendimientos realizados en el Departamento de Psiquiatría del Hospital Bias Fortes en Belo Horizonte (MG), en el período de agosto de 2011 hasta junio de 2012. Los embasamientos teóricos encontrados indican que la dimisión del Otro en la esquizofrenia es un factor condicionante de la desinserción sujeto esquizofrénico en el discurso y durante todo el artículo se buscó entender cómo se da esa relación causal.

Palabras clave: Esquizofrenia. Otro. Discurso. Ironía.


 

 

A perspectiva estruturalista, que baseou a releitura da obra freudiana empreendida por Lacan no início de seu ensino, afirma que o sujeito só apreende os dados mediado pela estrutura, cuja alteridade é dada pela noção de Outro.

Com o avanço de seu ensino, entretanto, Lacan, tendo colocado a categoria do Outro em questão, propõe a existência de uma parte do Outro que é indizível. Ou seja, há uma falta na estrutura, colocada a priori para todo sujeito - o que Jacques-Alain Miller mais tarde vai chamar de foraclusão generalizada - e ela exige uma resposta singular de cada um.

Com a fórmula não há relação sexual, que coincide com esse período de virada do pensamento lacaniano, Lacan aponta para a não relação entre o significante e o Outro, bem como a impossibilidade de o sujeito e o Outro fazerem um. Diante disso, o discurso seria uma tentativa de superação dessa não relação, na medida em que cumpre a função de articulação e arranjo entre a linguagem e o que resta fora dela, a saber, o gozo.

É dentro desse contexto teórico que Lacan, no artigo "O aturdito" (1973/2003), aponta para uma posição da esquizofrenia como exterior ao laço social a partir da noção de discurso.

Tais considerações, que serão desenvolvidas a seguir, são a base teórica para se pensar o caso relatado abaixo. Ele nos apresenta um sujeito cujo funcionamento é marcado por um vazio que o assola e o coloca em uma inércia mortificante, de forma a deixá-lo refratário a qualquer possibilidade de se lançar no laço discursivo.

Tais constatações a respeito do funcionamento dessa paciente levaram-nos a uma busca na teoria psicanalítica por elementos que pudessem servir-nos como instrumentos de leitura do caso, de forma a ajudar-nos na sua condução. O presente artigo tem, pois, o objetivo de apresentar os achados teóricos desta pesquisa.

 

O caso Valéria1

De acordo com os dados colhidos do prontuário, Valéria iniciou o seu acompanhamento psiquiátrico no ano de 2000, a partir de um encaminhamento da equipe de Psicologia do Hospital das Clínicas da UFMG. O motivo do encaminhamento era o fato de a paciente apresentar-se deprimida.

No meu primeiro contato com Valéria, ela se queixa de alucinações audioverbais e do fato de não conseguir frequentar lugares muito tumultuados. Relata que se sente observada por todos e, ainda, que percebe as pessoas falando dela.

Segundo ela, o surgimento desses sintomas teve início em decorrência de uma situação de estresse no trabalho. Valéria relata que, na época, trabalhava como caixa de supermercado e havia sido acusada de furto pelo chefe. A situação chegou a envolver a polícia.

Depois de ser demitida do emprego, nunca mais trabalhou em nenhum outro lugar por mais de alguns meses. Com relação aos vínculos afetivos, a paciente não relata a existência de amizades ou parcerias amorosas, sendo os seus parentes as únicas pessoas que fazem parte de seu convívio social. A restrição em frequentar lugares fechados e tumultuados, bem como a sua desconfiança para com as pessoas, aparecem como os principais motivos para esse fato.

Conforme os dados colhidos do prontuário, desde o início do tratamento psiquiátrico, que se iniciou em 1999, antes de sua chegada ao ambulatório, Valéria teve um aumento de peso significativo, sendo esse um fato que, até hoje, lhe traz muito sofrimento.

Percebe-se, entretanto, para além das justificativas dadas por Valéria, que o seu funcionamento é marcado por uma queda da volição. Por vezes, queixa-se de um vazio que a acomete, fazendo com que não tenha vontade de fazer nada. Outra forma de manifestação da insuficiência de sua intencionalidade se verifica nas interrupções frequentes todas as vezes que inicia as atividades físicas que se propõe a realizar, a fim de perder peso.

Recentemente, esse vazio tem se manifestado como uma "agitação", conforme ela o nomeia, sobre a qual não consegue falar, por faltar-lhe palavras. Valéria anuncia o desejo de colocar um fim na própria vida, que aparece em sua fala marcada pelo significante "sem sentido".

 

A castração simbólica e a inserção do sujeito no discurso

Lacan (1972-1973/1985) define o discurso como o que faz laço social. No entanto, para que o sujeito se sirva do discurso e entre no laço social, é preciso que ele seja inscrito na ordem simbólica e para isso uma renúncia ao gozo é exigida. A castração é a operação que permite essa inscrição, porém apenas se o sujeito consente com ela.

A castração incide sobre o sujeito fazendo com que ele se separe do objeto de satisfação pulsional e renuncie a um gozo pleno e ilimitada=o em prol de uma promessa de que essa satisfação será recuperada desde que o sujeito busque por esse objeto no Outro. "Esta é a verdade da castração: para gozar, há que se passar pelo Outro e ceder-lhe algo do gozo" (Gorostiza, 2009, p. 18). Assim, como efeito da castração, tem-se a interdição do gozo.

O sujeito neurótico é aquele que assente com essa promessa, tornando-se marcado por uma subtração ou perda de um quantum pulsional, cujo efeito é a presentificação da falta, que o torna desejante. Ele se empenha, assim, na busca pelas encarnações desse objeto, ditadas pelos ideais da cultura, demandando-as ao Outro.

O mesmo, contudo, não acontece com o sujeito psicótico. Ele, por seu turno, recusa a renúncia de sua satisfação, não aceitando a promessa e, por esse motivo, não se separa do objeto. A ele, portanto, nada faltará. Lacan (1967) afirma que o sujeito psicótico tem o objeto à sua disposição, e por esse motivo não precisa demandá-lo ao Outro. Em outras palavras, o objeto não está inscrito em um discurso. Logo, a relação que se estabelece com ele não é passível de fazer laço social.

Assim, se de acordo com Lacan o sujeito neurótico é feliz (Lacan, 1974/2003), o sujeito psicótico, por sua vez, é o homem livre, por estrutura (Lacan, 1967).

O excesso pulsional não interditado, por sua vez, será sempre vivenciado de maneira invasiva, causando a esse sujeito um enorme sofrimento. Mais especificamente, o sujeito esquizofrênico apontará a falta de fundamento e a inconsistência dessa promessa, além de estampar o fato de que essas encarnações do objeto perdido nada mais são do que semblantes desse objeto. É disso que se trata a ironia do esquizofrênico, conforme veremos mais detidamente a seguir.

 

A ironia do sujeito esquizofrênico

A etimologia do termo ironia, que provem do grego eironeia, quer dizer interrogação. (Teixeira, 2010). Desse modo, a ironia interroga o fundamento de um discurso, denunciando a impostura que se oculta sob toda a sua prescrição de sentido. Mais precisamente, "ela revela que o campo do Outro, onde os efeitos de significação se organizam, não tem nenhuma existência fora da crença que o sustenta" (Teixeira, 2010, p. 14-15).

A ironia do sujeito esquizofrênico, mais precisamente, vai no sentido de apontar o discurso como um aparelho de semblantes, cuja função é gravitar em torno do real para evitá-lo (Gorostiza, 2009). Ela avança na sua interrogação ao rebaixar os ideais da cultura ao estatuto de semblantes, à moda de La Rochefoucauld.2

A partir do exposto sobre o sujeito esquizofrênico, e o que acabamos de dizer sobre a ironia, não podemos deixar de concordar com o que Jacques-Alain Miller em seu texto "Clínica Irônica" (1988/1996) explicitou: a ironia é uma arma da qual o sujeito esquizofrênico lança mão e que incidirá na raiz de toda a relação social. Isso porque o discurso, que determina o laço social como saída simbólica para a ausência desse Outro, não funciona na esquizofrenia como funciona na neurose. Isso equivale dizer que "o sujeito esquizofrênico não se defende do real por meio do simbólico" (Miller, 1988/1996, p. 190).

Assim, se, segundo Lacan (1973/2003), o sujeito esquizofrênico é aquele que se especifica por não ser apreendido em nenhum discurso, isso implica que ele é exposto ao real da linguagem, deparando-se com a ausência de qualquer referente - aquilo que garantiria que há um sentido único na linguagem, e que por isso tudo pode ser compartilhado socialmente -, de maneira que tudo o que possa ser aludido como um referente é tomado como um engodo, exatamente pelo fato de assim o ser. Em outras palavras, o sujeito esquizofrênico aponta para aquilo que o sujeito neurótico procura tamponar, o fato de a verdade ser interna ao dizer, ou seja, de ela se encontrar na articulação entre os significantes e não no Outro.

Por esse motivo, para esse sujeito, o Outro não merece sua crença, pois ele está certo de que o Outro, como garantia da linguagem, não existe e que, por esse motivo, não há discurso que não seja de semblante. Donde se conclui que, na esquizofrenia, o Outro se encontra demitido, pois ele não cumpre a sua função de ordenamento simbólico. Isto, entretanto, não é feito sem prejuízos, conforme nos apresenta Antônio Teixeira ao afirmar que "[...] a ironia, enquanto desdobramento interrogativo da realidade pelo significante, termina por produzir uma dissolução progressiva da realidade que ela interroga" (Teixeira, 2010, p. 18). O que nos leva à questão da intencionalidade na psicose, como discutiremos a seguir.

 

A intencionalidade na esquizofrenia e a pragmática da desinserção

O que percebemos em Valéria é uma queda da intencionalidade, que não permite que ela se lance no laço discursivo em busca de seu desejo, uma vez que, como vimos, na psicose há a ausência da falta, que é a condição absoluta do surgimento do desejo. Dessa forma, Valéria não demanda ao Outro o objeto, contrariando o fundamento de todo discurso e princípio mesmo do laço social (Miller, 1996).

Refratária a qualquer possibilidade de laço social, uma vez que sua resposta à semblantização do ideal prometido é a descrença, Valéria não se encontra sustentada por nenhum discurso. Essa inércia, que a impossibilita de se ancorar minimamente no campo do Outro, surge como uma insígnia de um excesso pulsional não domesticado pela ação discursiva, que a invade, causando-lhe um enorme sofrimento, a ponto de cogitar colocar um fim na própria vida.

Jacques-Alain Miller, em seu texto "A salvação pelos dejetos" (2011), parte da premissa de que se o laço social é de essência paranoica, ou seja, está afiançado por um Outro social que goza, a dificuldade de se inserir é da ordem da debilidade. Dessa forma, o sujeito esquizofrênico seria o seu representante (Miller, 2011). Ainda, segundo o autor, a pragmática da desinserção, por sua vez, consiste em paranoizar o sujeito.

O que a pragmática da desinserção busca realizar é uma identificação que "permita ao sujeito encontrar seu lugar em uma das múltiplas rotinas das quais é feita a organização social e que tem por propriedade estabelecer [... ] a relação do sujeito com as grandes significações humanas" (Miller, 2011, p 232).

Desse modo, como conduta na direção do tratamento, Valéria é incentivada a desempenhar um papel social possível todas as vezes que se propõe a engajar-se em alguma atividade. Isso porque se entende que o enlaçamento ao discurso produz semblante, o que garante o trânsito do sujeito no laço social.

 

Considerações finais

Percebe-se, diante do exposto, que o preço pago pelo sujeito esquizofrênico, que não se defende do real pelo simbólico (Miller, 1996), é a inércia que o mortifica, deixando-o refratário a qualquer possibilidade de se lançar no laço discursivo, bem como o seu correlato, a saber, a invasão do excesso pulsional que não foi interditado pela castração.

O caso e os achados teóricos apresentados neste artigo nos levam à relativização da ideia de que o processo de análise deve seguir na direção de desidentificar o sujeito de todo e qualquer ideal social, mesmo na neurose.

É sabido, e concordamos, que alguns semblantes sociais causam muito sofrimento ao sujeito e, por isso, precisam ser desconstruídos. Entretanto, é preciso certa cautela do psicanalista para que ele não faça com que o paciente abandone a solução inventada, sem estar seguro de que haja uma melhor para substituí-la.

No caso da esquizofrenia, como vimos, é exatamente o incentivo à semblantização, e o reforço dos semblantes já construídos, respeitando a singularidade do sujeito, que garantirá uma solução subjetiva mínima para que ele possa se defender do real traumático.

Por fim, tendo em vista as considerações feitas na introdução deste trabalho, o caso clínico de Valéria nos propiciou a teorização da relação entre a demissão do Outro na esquizofrenia e a desinserção do sujeito esquizofrênico no discurso. Esta, como vimos, é bastante estreita. Ele também nos ajuda a pensar o que pode fazer um profissional, e qual posição ele pode adotar, diante de casos como esse, em que se devem respeitar os achados singulares do sujeito, sem, contudo, deixar de lançar mão do incentivo por parte do psicanalista, uma vez que pode ser de grande valia para o sujeito.

Dessa forma, pode-se dizer que este artigo cumpre o seu objetivo de elucidação teórica e de tornar-se instrumento para orientação da condução do caso.

 

Referências

Gorostiza, L. (2009). A brecha do sintoma. Curinga, 28, 15-21.         [ Links ]

Lacan, J. (1967). Breve discurso a los psiquiatras. Disponível em http://xa.yimg.com/kq/groups/23622307/505596034/name/Lacan        [ Links ]

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido em 1972-1973)        [ Links ]

Lacan, J. (2003). O aturdito. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 448-497). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)        [ Links ]

Lacan, J. (2003). Televisão. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 508-543). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)        [ Links ]

Miller, J.-A. (1996). Clínica Irônica. In Matemas I. (pp. 190-200). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido em 1988)        [ Links ]

Miller, J.-A. (2011). A salvação pelos dejetos. In Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan (V. Ribeiro, Trad., pp. 227-233). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Teixeira, A. (2010). A vocação irônica da psicanálise. Tempo Psicanalítico, 42(1), 9-38. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382010000100001&lng=pt&tlng=pt        [ Links ]

 

 

1 Nome fictício.
2 Trata-se do Duque La Rochefoucauld que escreveu suas "Máximas e Reflexões" no século XVII, em que interrogava os valores de sua época, ao desmentir as virtudes e ideais sociais.

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