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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.10 São João del Rei Jan./June 2017

 

ARTIGO

 

As adicções: de que se trata?

 

Drug addictions: what are we dealing with?

 

Las adicciones: ¿de qué se trata?

 

 

Alexandra de Gouvêa ViannaI; Ariadne Fantesia de JesusII; Yago Pereira de FreitasIII

IDoutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Mestre em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Graduada em Psicologia (PUC-Rio). Atua como professora titular na Universidade Santa Úrsula. Atua ainda como supervisora do Serviço de Psicologia Aplicada, integra o Núcleo Docente Efetivo e é membro do colegiado do curso de Psicologia da Universidade Santa Úrsula. Rua Artur Araripe, 44, ap. 102, Gávea. CEP: 22.451-020. Rio de Janeiro/RJ. Tel.: (21) 99959-3858. Consultório: (21) 2146-0288 E-mail: agvianna@gmail.com
IIDiscente de Psicologia na Universidade Santa Úrsula. Atua como monitora em Psicologia Geral e Experimental. E-mail: fantesia.ariadne@gmail.com
IIIDiscente de Psicologia na Universidade Santa Úrsula. Atua como monitor em Teorias Psicanalíticas. E-mail: yagodefreitas7@gmail.com

 

 


RESUMO

Abordaremos no artigo a temática do consumo abusivo de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas, tendo como base teórica textos psicanalíticos. Contamos com a contribuição da equipe e de alguns dos pacientes do Projeto Despertar - voltado ao atendimento de usuários abusivos de álcool e outras drogas -, do núcleo de assistência em saúde mental Casa Verde, localizado no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Após a visita ao Projeto Despertar, debruçamo-nos em uma investigação bibliográfica com o intuito de trazer uma contribuição teórica à clínica das adicções. Trabalharemos a importância da escuta do que está por trás do tipo de relação destrutiva com a droga, como a precariedade dos laços sociais nessa clínica: família, escola, faculdade, trabalho. Uma das funções da droga é encobrir o embaraço do sujeito de sustentar seu desejo. Ao fim, levantamos a hipótese de que as adicções podem manifestar um modo de resposta do sujeito às novas formas de subjetivação da atualidade. Discutiremos, ainda, os desafios que se atrelam a essa clínica.

Palavras-chave: Drogas. Psicanálise. Mal-estar na contemporaneidade. Adicção. Toxicomania. Compulsão. Laço social. Eu ideal. Ideal do eu e supereu.


ABSTRACT

The article will approach the issue of abusive use of psychoactive substances, whether legal or illegal, based on theoretical psychoanalytic texts. We count with the contribution of the team and some of the patients of the Awakening Project -aimed at the care of alcohol abusers of other drugs - of Casa Verde Mental Health Assistance Center, located in the Botafogo, Rio de Janeiro. After visiting to the Projeto Despertar, we look at a bibliographical research with the intention of drawing a theoretical contribution to the clinic of the additions. We will work on the importance of listening to what is behind the type of destructive relationship with drugs, such as the precarious social bonds of patients in the clinic: family, school, college, work. One of the functions of the drug is to cover up the subject's shame of sustaining his desire. In the end, we elaborate a hypothesis that as addictions can manifest a mode of response of the subject to the new forms of subjectivation of the present time. We will also discuss the challenges of this clinic

Keywords: Drugs. Psychoanalysis. Malaise in contemporaneity. Drug addiction. Compulsion.


RESUMEN

El presente artículo se acerca à la temática del consumo compulsivo de sustancias psicoactivas, ya sean lícitas o ilícitas, teniendo como base teórica textos psicoanalíticos. Contamos con la contribución del equipo y de algunos de los pacientes del Proyecto Despertar - volcado a la atención de usuarios abusivos de alcohol de otras drogas - del nucleo de asistencia en salud mental Casa Verde, ubicado en el barrio de Botafogo de la ciudad de Río de Janeiro. Después de la visita al Projeto Despertar, nos centramos en una investigación bibliográfica con el propósito de traer una contribución teórica a la clínica de las adicciones. Trabajaremos la importancia de la escucha de lo que está detrás del tipo de relación destructiva con la droga como, por ejemplo, la precariedad de los lazos sociales en esta clínica: familia, escuela, universidad, trabajo. Una de las funciones de la droga es encubrir la vergüenza del sujeto de sostener su deseo. Al final, planteamos la hipótesis de que las adicciones pueden manifestar un modo de respuesta del sujeto a las nuevas formas de subjetivación de la actualidad. Discutiremos, aún, los desafíos que se atrevan a esta clínica

Palabras claves: Estupefacientes. Narcóticos. Psicoanálisis. Malestar en la contemporaneidad. Toxicomanía. Compulsión.


 

 

Introdução

Muito se escreve acerca do tema das adicções, dentro e fora do campo da saúde. E muitas ações do Estado são implementadas acerca das drogas, do vício e do tráfico. Porém, a realidade dos drogados pouco mudou. A mídia e a sociedade, de maneira geral, ainda reproduzem um discurso que permeia a nossa cultura há muito tempo: o de que drogados devem ser erradicados, e que a cura advém exclusivamente da retirada da droga de seu organismo e de seu meio social com tratamentos de desintoxicação. No entanto, notamos a ineficácia dessas abordagens quando, mesmo após longos períodos de abstinência, o sujeito retorna ao conhecido recurso das drogas como forma de anestesiar-se.

As políticas públicas voltadas ao tratamento de usuários de drogas ainda carregam o caráter de medidas higienistas, o que foi evidenciado quando eventos que trariam notoriedade ao Brasil estavam se aproximando:

O País vive um momento de "preparação" de eventos vindouros: a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos de 2016. "Preparação" não se reduz à implementação de infraestrutura metropolitana, mas, principalmente, da reedição de um higienismo que tem como objetivo tornar a cidade "limpa". Uma assepsia com foco em uma limpeza urbana que retire dos olhos, ouvidos e narizes da burguesia econômica o 'lixo social' que a incomoda. (Bicalho, 2013, p. 10)

Nesse tipo de medida, que se repetiu recentemente nas regiões chamadas de cracolândia da cidade de são Paulo, não há um olhar sobre o sujeito, e sim sobre o incômodo que ele provoca na sociedade. Em relação ao crack, Bicalho (p. 10) complementa:

Usuários de substâncias psicoativas, em especial de crack, configuram-se como os indesejáveis da vez. Drogas, tema que vem sendo entendido neste País como "epidemia", forjado a partir de ideais advindos de uma natureza descontextualizada política e historicamente. Tema que insiste em vincular "tratamento" à noção de castigos, advindos de um ideal normativo que criminaliza, independentemente da existência da aspereza de uma lei penal.

Percebe-se sem dificuldades que o foco das políticas de combate ao tráfico de drogas se volta contra os usuários. A guerra contra as drogas só aumenta a estigmatização e a violência social que recaem sobre os adictos, que desde sempre se encontram em posição social marginal. Portanto, voltamos à questão: é preciso continuar debatendo sobre as adicções, porém sob um novo olhar: o sujeito e sua angústia. E, nesse aspecto, a teoria psicanalítica pode trazer algumas contribuições, como apontaremos ao longo do artigo.

 

1 Onde está o sujeito nas adicções?

O uso do termo adicções é muito amplo. Em linhas gerais, designa o consumo compulsivo de substâncias psicoativas, as quais são classificadas a partir de seus efeitos potenciais. Todavia, esses efeitos variam de acordo com o organismo de cada pessoa. Quanto ao alcoolismo, alguns autores preferem destacá-lo como uma categoria à parte das adicções. Com isso, além da droga de escolha (que pode ser mais de uma), a frequência do uso, a quantidade ingerida e o que o sujeito busca com a droga são aspectos que impedem a definição de uma categoria única das adicções. A diversidade de substâncias existentes, e de formas de uso, demonstra que não é apenas o uso da droga - considerado isoladamente - que determina as adicções, mas a função que ela ocupa para cada sujeito.

Birman (2000), afirma a existência de dois grupos distintos de indivíduos que se relacionam com o consumo de drogas: o usuário de drogas e o toxicômano - ou adicto, nomenclatura que preferimos adotar neste trabalho. O que torna tais indivíduos distintos, segundo o autor, é a dimensão compulsiva do padrão de uso.

Os usuários de droga podem se valer da droga para seu deleite e em momentos de angústia, mas a droga nunca se transforma na razão maior de suas existências. Os toxicômanos, porém, são compelidos à sua ingestão por forças físicas e psíquicas poderosas. As drogas passam a representar, para esse grupo, o valor soberano na regulação de sua existência.

É claro que as substâncias químicas presentes nos psicoativos provocam uma dependência no organismo. Contudo, não é somente a dependência orgânica que está em questão nas adicções. Freud (1930) ressaltava que o propósito do homem é a busca pela felicidade. Isso significaria evitar o sofrimento e o desprazer, e obter intensos sentimentos de prazer. No entanto, esse propósito regido pelo princípio de prazer é oprimido pela própria constituição do sujeito neurótico, que o condena à restrição de sua satisfação pulsional por meio das imposições da cultura.

Além disso, Freud aponta três fontes inequívocas de ameaça à felicidade plena:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. (pp. 84, 85)

Essa última fonte de sofrimento humano é considerada pelo autor como a mais penosa. Como medida de defesa mais imediata, o sujeito pode adotar o isolamento. Porém, se o sofrimento persiste, o sujeito pode recorrer aos tóxicos, cuja função na economia psíquica consiste em oferecer uma suspensão diante do mal-estar. Esse é um aspecto relevante em nossa investigação, pois coloca a droga no lugar de mediador artificial do encontro com o Outro. Como observa Vianna (2015), a drogadicção resguarda o sujeito de seu embaraço com o laço social, como o próprio discurso do adicto aponta. Assim, pouco a pouco, o drogadicto rompe com a sociedade, gerando um incômodo nela, como descrevemos na introdução. Como resultado, assistimos à marginalização do adicto. No entanto, não é a própria cultura que disponibiliza o recurso da droga ao sujeito?

O papel da cultura, segundo Freud (1930), é o de deter o controle sobre as massas com a criação de regras sociais e normas morais, e sua subsequente internalização pelo sujeito. O que determina a submissão às regras impostas pela cultura é o sentimento de culpa, o qual impulsiona o sujeito a satisfazer as exigências do supereu. Por conseguinte, a subordinação à cultura é um efeito da incidência da lei paterna.

O sentimento de culpa, que emerge como efeito das tensões entre o eu e o supereu, culmina na necessidade de punição, que consiste em uma tentativa de reparar os confrontos com a instância paterna. Nessa medida, o sacrifício da satisfação plena das pulsões, implicado na submissão aos mandatos da cultura, visa silenciar a culpa. Logo, o indivíduo está condenado à insatisfação das pulsões e a deixar-se governar pelas normas sociais, pois a culpa é sempre maior do que o sacrifício. A severidade do supereu designa, portanto, o sentimento de culpa perante a figura paterna, na medida em que os imperativos do supereu traduzem o modo como se configura a relação do sujeito com a lei.

Em resumo, a cultura é responsável pela criação de normas, que regulam a satisfação pulsional a partir de sua internalização pela incidência da lei paterna. E como efeito da interdição à obtenção do prazer pleno, advém o mal-estar. Em contrapartida, a cultura oferece meios de compensar a privação de prazer, por meio dos benefícios propiciados pelos avanços científicos e tecnológicos.

Existem, todavia, outros recursos que circulam no social a fim de dar conta da insatisfação do sujeito, embora não sejam legitimados. É o caso do consumo de drogas, que consiste em um dos métodos mais eficazes para evitar o sofrimento, uma vez que possui a capacidade de oferecer uma anestesiamento contra a dor.

Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. (p. 86)

A eficácia da droga se justifica por conferir uma barreira contra o conflito insolúvel entre a exigência pulsional e a lei civilizatória. Assim, os tóxicos garantem uma sensação imediata de prazer por libertarem o sujeito das normas da cultura, ainda que momentaneamente. É por essa razão que Freud (1930, p. 86) os define como "amortecedores de preocupações", pois propiciam um refúgio com a criação de uma nova realidade durante a experiência de êxtase. Em função do alívio instantâneo que proporcionam, as drogas passam a ocupar um lugar permanente na economia da libido.

Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra 'felicidade' só se relaciona a esses últimos. (p. 84)

Nada como uma substância psicoativa para provocar intensos sentimentos de prazer, ainda que fugazes.

A forma como se relacionam sujeito, cultura e droga é explicada por Freda (1987) já no título de sua conferência ministrada em Belo Horizonte: "O toxicômano faz a droga". Se a questão decorresse puramente da dependência orgânica, o tratamento para desintoxicação solucionaria toda a problemática do uso abusivo de drogas. Isso significa que o sujeito encontra na adicção um artifício que lhe confere uma forma de satisfação pulsional plena e irrestrita. Na neurose, por exemplo, a droga confere ao sujeito a possibilidade de suspender-se dos efeitos da castração. É por esse motivo que a droga desperta o fascínio naqueles que temem a lei, o que faz do drogadicto um herói, nas palavras de Melman (1992). Esse fascínio é suscitado pelo caráter transgressor da droga, que proporciona uma ilusão de ausência de temor à castração, uma vez que é em busca da lei que o drogadicto dirige os seus atos.

Logo, a cultura cria o adicto e ao mesmo tempo o mantém à margem, pois ele representa um perigo ao realizar a façanha de driblar a castração neurótica. Não obstante, as adicções se revelam fracassadas em sua tarefa de propiciar um refúgio contra o mal-estar da cultura, pois lançam o sujeito inevitavelmente ao vazio, sempre que os limites do corpo em relação à droga se impõe. O encontro com a droga forja uma pretensa completude que se esvaece ao fim da experiência de êxtase. Sua existência é regulada, portanto, entre o nada ser ou tudo ser com a droga. A esse respeito, Melman (p. 85) escreve que "quando retorna ao dia, quando reemerge, isto não se faz sem um certo drama, pois neste momento o mundo lhe parece particularmente cinza e, ele mesmo, bastante insuportável".

O toxicômano encontra-se, portanto, aprisionado a esse circuito de elevações e quedas. De acordo com Bittencourt (1993, p. 83), o sujeito não consegue se desvencilhar desse artifício, pois "a toxicomania, enquanto dispositivo, opera como um modo de resposta permanente que se substitui à exigência de uma elaboração psíquica e apazigua o sujeito diante de um intolerável". Todavia, nesse modus operandi o sujeito se priva da possibilidade de elaborar a sua angústia a partir de recursos simbólicos, por exemplo, por meio do laço com o social. Porém, esse último foi rompido.

Segundo Vianna (2015), a drogadicção designa um meio de atrair a atenção para o sofrimento do sujeito, quando da impossibilidade de encontrar outros meios de ser escutado. Para escapar da angústia, o toxicômano grita com a droga. O uso de drogas em si mesmo não deve ser considerado um sintoma para a psicanálise, pois não há um endereçamento ao Outro nem requer qualquer recurso simbólico. Na verdade, o que está em jogo na drogadicção está mais na ordem de um apelo ao Outro para que um corte seja operado em sua relação destrutiva. Para tanto, o sujeito grita com a droga. Impossibilitado de operar outro modo de resposta que viabilize a elaboração de sua angústia, a droga se apresenta como um recurso que exprime um apelo à função paterna em função de seu caráter transgressor. O sujeito sai em busca da lei transgredindo-a.

Vimos com a literatura sobre o tema que as adicções consistem em uma tentativa de o sujeito se anestesiar diante do mal-estar que advém da dificuldade de responder às demandas da cultura, que exigem a sustentação de um lugar no social, na estrutura familiar, vida profissional ou afetiva. Não é por acaso que muitos casos de dependência química começam durante a adolescência e início da idade adulta, quando é exigido que o sujeito faça escolhas significativas, como a escolha de uma carreira, e quando os relacionamentos afetivos e sexuais começam a dominar o universo do adolescente.

 

2 As adicções na contemporaneidade

Uma vez delineadas as questões do sujeito e a droga, daremos um novo passo: o de circunscrever as adicções no cenário atual. O mundo pós-moderno impõe um novo paradigma social, o qual é marcante na relação estabelecida com a droga, como observa Vianna (2015, p. 105).

Enquanto na cultura descrita por Freud havia uma repressão social sobre a satisfação, assistimos na contemporaneidade um imperativo de gozo. Na cultura de hoje, não há mais a valorização da formação dos laços entre os homens, o que assinala para a falência do ideal como regulador das relações. As adicções, neste contexto, tornam manifesta a exclusão do outro na busca pela satisfação.

Birman (2000) descreve um quadro da psicopatologia da pós-modernidade no qual se destacam as adicções, ao lado das depressões e da síndrome do pânico. Nesse cenário, as adicções merecem um holofote, pois apresentam um crescimento epidemiológico superior às outras mazelas. Segundo o autor, há na atualidade um modelo de estetização da existência que serve de alicerce para a produção subjetiva desses padrões patológicos.

Pelos imperativos da estetização da existência e da inflação do eu, pode-se fazer a costura entre as interpretações de Debord e Lasch, já que a exigência de transformar os incertos percalços de uma vida em obra de arte evidencia o narcisismo que o indivíduo deve cultivar na sociedade do espetáculo. Nessa medida, o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual compõe os gestos voltados para a sedução do outro. Este é apenas um objeto predatório para o gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado em prosa e verso pela retórica da publicidade. Pode-se depreender, com facilidade, que a alteridade e a intersubjetividade são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento (p. 188).

A partir dessa perspectiva, observa-se a presença do uso abusivo de drogas em dois contextos. No primeiro, ele marca um compasso de medicalização da vida, alegórico ao consumo crescente de psicofármacos, que auxilia justamente na sustentação de sua performatividade nos padrões exigidos no teatro social. No segundo, ele funciona como um útil bem de consumo, cujo efeito é "mitigar as desesperanças das individualidades, para apaziguar as angústias e as tristezas daquelas no desamparo provocado pelo mal-estar na atualidade" (Birman, 2000, p. 239).

As correspondências entre mudanças sociais e mudanças na relação sujeito-droga servem para demonstrar como a questão da toxicomania tem uma ancoragem sociológica e, portanto, encontra uma determinação no laço social e como este está inscrito no horizonte histórico-cultural.

 

3 O tratamento das adicções e o laço social

A primeira dificuldade com a qual o tratamento das adicções se depara é o sujeito tomar consciência de que precisa de ajuda. Enquanto o sujeito não percebe as perdas provocadas por seu padrão de uso, dificilmente vai à procura de suporte ou atendimento profissional. Por essa razão, não é raro que o paciente chegue ao tratamento por intermédio de terceiros. Contudo, se, por um lado, a intervenção da família e de amigos é essencial para que o toxicômano dê início ao tratamento, por outro, a sua implicação no tratamento pode ser prejudicada caso permaneça submetida a esses terceiros. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando o tratamento é imposto como uma condição para o paciente. Por essa razão, faz-se necessário operar uma virada na qual o sujeito deve implicar-se por si próprio.

Isso remete à problemática dos baixos índices de adesão ao tratamento. Como contribuição da Psicanálise para a direção do tratamento nas adicções, podemos apontar como fator fundamental a importância da construção da relação transferencial com o sujeito para que ele possa se apresentar para além da droga e se reconectar com seus sentimentos e com a sociedade. Desse modo, ainda que ele chegue por determinação externa (legal, familiar ou médica), é importante que em algum momento o paciente se implique em causa própria. Todavia, a construção de qualquer tipo de vínculo consiste em um grande desafio, uma vez que o laço social nas adicções é notavelmente precário.

A fragilidade do laço social é sintomático nas adicções. A respeito de seu viés social, é interessante observar que os grupos de mútua ajuda, como o Alcoólicos Anônimos e os Narcóticos Anônimos, definem a adicção como uma doença progressiva, incurável e de determinação fatal, que mata desmoralizando. Esse conceito tem grande peso e harmoniza-se com o discurso popular de que a dependência química designa não apenas uma doença orgânica incurável, mas ainda de caráter moral. Diferentemente dos bebedores sociais, que tomam uma "cervejinha" após um longo dia de trabalho e alguns drinks em eventos comemorativos, os toxicômanos abusam do consumo da substância e costumam causar constrangimento a si próprios e aos outros. É por essa razão que esses últimos não circulam impunemente pelo social. Ao contrário, são comumente alvos de críticas morais e marginalizados pela sociedade.

Desse modo, é importante levar em consideração o valor de identidade das adicções, especialmente para refletir sobre a direção do tratamento. O reforço da dependência química como identidade cristaliza ainda mais o sujeito nessa posição. É crucial, portanto, apontar para outros modos de inserção no social, visto que a droga cumpre a função de encobrir precisamente o embaraço do sujeito em ocupar outros lugares no social, que não o de adicto.

Em relação à postura do analista diante desse quadro e apontando a direção para clínica nas drogadicções, Birman (2000, p. 205) afirma:

Ao psicanalista não cabe participar de uma cruzada pela vida sob a alegação de estar promovendo a higiene social, ou tampouco lhe compete ser o defensor das ideologias familiares e da posição dos pais em conflitos geracionais. Enfim, o analista deve escutar esses analisandos procurando decifrar as vias de seu prazer com a droga e suas impossibilidades psíquicas face a outra economia do prazer.

Não basta retirar a droga do sujeito como uma proposta de cura. É preciso, ao contrário, retirar o foco da dependência orgânica e privilegiar o seu discurso. Assim, o psicanalista inaugura um espaço de escuta do sujeito - e não da droga - ao dar a palavra ao adicto.

Ao recusar as técnicas sublimatórias da civilização e se lançar nas adicções, o sujeito assinala para uma tentativa de anestesiar seu mal-estar usando psicotrópicos como uma espécie de artífice farmacológico, porém em detrimento de sua própria vida. Assim, o artifício da droga detém a função de prótese reparadora do embaraço do sujeito em sua relação com o desejo.

Logo, uma das direções para o trabalho com os adictos é suscitar um questionamento acerca do papel ocupado pela droga: em que momento a necessidade da droga se impõe? Do que o sujeito pretende se resguardar? Quais são as implicações da dependência química em sua vida? A partir disso, é possível fazer emergir os conflitos que impedem o sujeito de se desvencilhar do artifício da droga. Com isso, o rompimento com a droga requer um trabalho de luto e elaboração. No entanto, as marcas subjetivas que o sujeito carrega na relação com a droga que podem guiar a análise de um adicto são, ao mesmo tempo, as que conferem mais resistência ao tratamento.

Realizar esse trabalho é um grande desafio, uma vez que as adicções conferem uma identidade e um recurso eficaz para lidar com o sofrimento.

Contudo, oferecer um espaço de escuta para que o sujeito fale sobre sua relação com a droga possibilita que ele expresse quando essa relação se mostra infiel. Afinal, a droga também fracassa: seus efeitos são momentâneos e o corpo sempre vai impor seu limite. Desse modo, é a partir de um espaço onde o sujeito seja capaz de produzir um saber sobre a sua relação com a droga que torna possível a entrada do sujeito em tratamento.

Para entender como ocorre esse rompimento com o laço social, recorreremos a Freud (1921) em seu estudo sobre a psicologia das massas. Instigado pela forte influência exercida pelas massas, Freud (1921) desenvolve um estudo sobre a identificação a partir dos laços erigidos entre os membros de um grupo. Os laços mútuos são nutridos pelo reconhecimento de ideais compartilhados pelo grupo, os quais se encontram personificados na figura do líder. A submissão ao grupo é a condição para que o sujeito seja acolhido pelos demais membros e amado pelo líder. Ao ocupar o lugar da lei paterna, o líder opera a função de intermediador das relações. Contudo, se por um lado o amor pelo líder garante os sentimentos de pertencimento e onipotência atribuídos ao grupo, por outro despoja seus membros de liberdade. Assim, o amor a si mesmo é mantido em suspenso no grupo, a fim de preservar os laços entre os membros, porquanto a ligação amorosa oferece uma barreira contra a hostilidade. Como escreve Freud (1921, p. 114), "só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo".

Logo, uma das principais características dos grupos consiste na substituição do ideal do eu pelo ideal do grupo, corporificado na figura do líder. Sendo assim, Freud (1921) adverte que a devoção a um ideal compartilhado pelo grupo permite ao sujeito manifestar o que há de mais cruel, destrutivo e, como não poderia deixar de ser, velado em cada um.

Fundamentalmente, para Freud (1921) o homem conserva a organização primitiva da horda, que urge pela condução por um chefe. A sugestionabilidade é observada de modo ainda mais intenso na hipnose, enquanto o sujeito se deixa "mergulhar numa atividade na qual o mundo está fadado a parecer-lhe desinteressante" (Freud, 1921, p. 137). A obediência a uma figura de autoridade remonta à herança arcaica de submissão aos genitores, resultando na atitude passiva diante daquele que se coloca no lugar da lei.

Na origem de toda relação objetal, está o mecanismo de identificação, o qual consiste na expressão mais arcaica de laço emocional. Desse modo, carrega consigo a história primitiva do complexo edípico, suscitando a ambivalência nas relações. Assim, a identificação emerge a partir do reconhecimento de um ideal compartilhado. Até mesmo um sintoma pode suscitar a identificação. É o caso da jovem de um internato que mantinha em segredo uma relação amorosa, e ao receber uma carta de seu amado reage com uma crise histérica. Quando recebem a notícia, suas colegas reproduzem os mesmos sintomas histéricos, cuja explicação está no desejo de encontrarem-se na mesma situação.

Um determinado ego percebeu uma analogia significante com outro sobre certo ponto, em nosso exemplo sobre a receptividade a uma emoção semelhante. Uma identificação é logo após construída sobre esse ponto e, sob a influência da situação patogênica, deslocada para o sintoma que o primeiro ego produziu. A identificação por meio do sintoma tornou-se assim o sinal de um ponto de coincidência entre os dois egos, sinal que tem de ser mantido reprimido (Freud, 1921, p. 117)

Assim, a ligação entre os indivíduos advém do reconhecimento de uma qualidade compartilhada. Por conseguinte, sendo o ideal o regulador das relações, a identificação atua como suporte do laço social.

Logo, a fragilidade dos laços sociais nas adicções aponta para uma precariedade da instância ideal como reguladora das relações. Segundo Bittencourt (1993), tal precariedade decorre do luto impossível da perda das identificações ideais, que se referem às identificações mais arcaicas do sujeito e que dão origem ao ideal do eu. Dessa forma, podemos dizer que o toxicômano se encontra à deriva, ou seja, sem um ponto de ancoragem no campo simbólico. Por essa razão habita um hiato.

É notória na clínica a dificuldade dos toxicômanos em sustentar seus vínculos sociais. Estes parecem estar sob constante ameaça de se diluírem. Ou então, ocorre o contrário. Há casos em que ele investe de forma maciça no vínculo com uma pessoa, o que torna esse laço ameaçador. O medo da perda dessa pessoa o atormenta a ponto de colocar a relação em risco.

A fragilidade do laço social e o não engajamento ao desejo assinalam para o luto impossível das identificações ideais. Um estado semelhante a esse é o da inibição, que, segundo Freud (1926[1925]), não tem necessariamente uma implicação patológica. Fundamentalmente, nela o eu limita suas atividades a fim de apaziguar os conflitos com o isso e o supereu, evitando novas medidas de recalque. Todavia, nesse arranjo o perigo pulsional é mantido vivo, pois não há uma substituição, como ocorre no sintoma. Desse modo, a inibição oferece uma defesa contra a angústia, uma vez que propicia a fuga da insuportável questão sobre o que sustenta seu desejo. Em contrapartida, a inibição condena o sujeito ao desaparecimento, pois o subtrai da rede significante e leva ao fading do desejo. É nesse ponto que as adicções nos revelam, assim como a inibição, uma resposta ao luto impossível das identificações ideais, porém com a suspensão proporcionada pelo estado de êxtase. No entanto, essa suspensão admite apenas um alívio momentâneo do perigo pulsional.

 

Conclusão

Imerso na civilização que é um mal-estar, o adicto é aquele que foge a qualquer tentativa de elaboração psíquica, e de consumidor passa a ser consumido pela droga. Dessa forma, podemos dizer que a queixa inicial do toxicômano não é sintomática, mas de escravidão a um objeto. A droga se apresenta em seu discurso como um artifício que mascara o sintoma, impedindo que este seja transformado em enigma. É por essa razão que Santiago (1994, p. 34) atesta que a drogadicção está mais próxima de uma "tentativa de suprir a insuficiência do sintoma". Ao recusar as técnicas sublimatórias da civilização e se lançar nas toxicomanias, o sujeito assinala para uma tentativa de tratamento médico de seu mal-estar, porém em detrimento de sua própria existência. Logo, o artifício da droga detém a função de prótese reparadora do embaraço em reconhecer o seu lugar como sujeito desejante.

 

Referências

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