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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.11 São João del Rei jul./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Da segregação ao sintoma

 

The symptom of separation

 

El síntoma de separación

 

Le symptôme de separation

 

 

Mateus Werkema Zocratto1

Mestre em Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João Del-Rei, graduado em Psicologia e em Comunicação Social pela Universidade Fumec, Belo Horizonte. E-mail: mzocratto@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho visa refletir a relação do sintoma com a segregação, sob a óptica da Psicanálise, utilizando como objetivo de estudo as manifestações populares no Brasil, ocorridas em 2013 e 2014. Pretende-se aqui compreender o discurso político por meio da noção de sujeito, e sua relação sintomática com a família.

Palavras-chave: Sintoma. Segregação. Família.


ABSTRACT

This view work reflects on the symptom related to segregation, from the perspective of psychoanalysis, using as a study goal the demonstrations in Brazil occurred in 2013 and 2014. It is intended here understand the political discourse through the notion of subject, and its symptomatic relationship with the family.

Keywords: Symptom. Segregation. Family.


RESUMEN

Esta obra vista reflexionar sobre el síntoma relacionado con la segregación, desde la perspectiva del psicoanálisis, tomando como objetivo el estudio de las manifestaciones en Brasil ocurrieron en 2013 y 2014. Se pretende aquí entienden el discurso político a través de la noción de sujeto, y su relación sintomática con la familia.

Palabras clave: Síntoma. Segregación. Familia.


RÉSUMÉ

Ce travail de vue reflate sur le symptôme lié à la ségrégation, du point de vue de la psychanalyse, en utilisant comme un objectif de l'étude des manifestations ont eu lieu au Brésil en 2013 et 2014. Il est destiné ici à comprendre le discours politique à travers la notion de sujet , et sa relation avec la famille symptomatique.

Mots-clés: Symptôme. La ségrégation. La famille.


 

 

Este trabalho surge de um interesse e de muitas interrogações sobre a temática política, consoante com a realidade brasileira. Mas pretende-se, aqui, trazer uma visão psicanalítica sobre a questão. A relação do sujeito com sua comunidade e no trato do que podemos considerar o interesse público nas ações políticas, constantemente traz questionamentos e perturbações. Usa-se aqui o termo sujeito, e não cidadão ou eleitor. É bom ressaltar que o sujeito que interessa à Psicanálise é o sujeito subordinado ao significante e causado/movido pelo desejo, sujeito esse delineado por Freud por meio do conceito de inconsciente, marcado pelo significante (o campo do Outro) e impelido pela falta.

A apreciação da temática tem como objeto de estudo as manifestações populares que ocorreram nas ruas de centenas de cidades brasileiras no período entre junho de 2013 e o primeiro ano do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Tendo inicialmente como foco de reivindicação a redução das tarifas do transporte coletivo, as manifestações ampliaram-se, ganhando um número incontavelmente maior de pessoas e também novas reivindicações.

O curioso é que o ambiente político atual do país, a partir de uma perspectiva histórica, guarda semelhança com o contexto de 50 anos atrás. No começo dos anos 1960, o conturbado contexto político também gerou manifestações nas ruas. Durante o governo de João Goulart, também havia, como hoje, uma intensa polarização política no Brasil entre os que sustentavam seu mandato de presidente e os que pleiteavam por sua saída. Naquela época, também, as forças políticas ligadas aos setores conservadores da sociedade iniciaram uma série de manifestações contra o presidente.

Tais manifestações eram intituladas como "Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade" e conduziram às ruas milhares de pessoas que se opunham ao pretenso "comunismo" de João Goulart. Qualquer semelhança com os tempos atuais não é mera coincidência. Na verdade, os conservadores dos anos 1960 opunham-se às chamadas "Reformas de Base", que tinham como carro chefe a reforma fiscal e, principalmente, a reforma agrária, que poderiam ter retirado parte do poder econômico das classes dominantes do país. Essas marchas foram o argumento usado/utilizado pelos militares para derrubar o presidente, assegurando ter suporte popular para isso. Esse é um tipo de uma manifestação que contribuiu para que a atividade política fosse limitada, abrindo caminho para uma ditadura militar, que duraria cerca de 20 anos.

De acordo com o sociólogo Ricci (2014, p. 1),

[...] o uso ilegal da força e perseguição por parte das polícias e ameaças permanentes de enquadramento de qualquer conflito de rua como crimes similares à ação terrorista são assimiladas e até festejadas por articulistas da grande imprensa tupiniquim. Ataques à manutenção (nem é possível, nesta altura da ofensiva dos valores fascistas citar a palavra avanço) dos direitos civis como desmonte da estabilidade da família.

Família essa conhecida como "tradicional família brasileira". Ainda segundo Ricci (2014), a cultura fascista, afinal, é totalitária. Ao contrário da cultura autoritária que desmobiliza, a cultura fascista convida à mobilização pelo ódio. Sustenta uma visão de mundo que se apoia na negação da diferença e no uso da força como imposição de uma lógica masculina e viril. E esse totalitarismo tem um efeito absolutamente nefasto, que é o da despolitização generalizada da sociedade.

O mais inusitado desde o início da exposição dos pensamentos expostos nas redes sociais, e também em marcha nas ruas nas manifestações, seja por pessoas próximas, seja ao acesso de notícias, crônicas e colunas jornalísticas, foi a clareza e a sem-cerimônia, a naturalidade com que as pessoas anunciavam, a respeito dos pobres, dos nordestinos e dos ditos "bandidos". Ou seja, o outro a ser combatido, os inimigos.

A condição cristalina e não censurada do preconceito contra determinadas classes foi desde logo a primeira constatação. E a consequência imediata do preconceito é a segregação. Em Lacan (1992, p. 107), vemos que "na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação". Já a pós-lacaniana Soler (1996, p. 46) afirma que "a segregação é uma via de tratar o insuportável, o impossível de suportar", e que nossa sociedade se revela como fundamentalmente segregativa.

Outra observação que se segue dessa segregação é, que ela é misturada com uma carga, não apenas de ressentimento, mas de certo sentimento de perda - perda que revela o que há de insuportável na falta. Daí, chegamos ao sintoma. O sintoma tem algo a falar (o saber, S2) e algo a dar a dizer, porque há um impossível de ser dito: a dimensão da verdade. Lacan (1992) se refere ao sintoma como busca de sentido, de decifração e, mais ainda, como tentativa de tamponamento da falta fundamental, do sem-sentido, que a língua e o significado não conseguem recobrir.

 

Sintoma e conservadorismo

O sintoma não é uma noção apenas da Psicanálise, ele circula em variadas áreas da saúde como um indício de que alguma coisa não caminha bem. O sintoma, para a Psicanálise, é produto do recalque. Freud (1975) demarca o recalque como o que há de mais êxtimo ao eu. Em Lacan (2003), há uma retomada do conceito de sintoma. O psicanalista francês estabelece o sintoma em uma posição de anodamento entre real, simbólico e imaginário.

Lacan (2003) confere ao sintoma um caráter conservador, pois, estabelece o sintoma como representante daquilo que dá o lugar de conservação e pertencimento do sujeito: o par parental. Esse caráter conservador se mostra por meio da "resistência à mudança e da repetição do mesmo".

Tendo em vista as manifestações recentes no Brasil, parece-me razoável utilizar a indicação lacaniana do "fracasso das utopias comunitárias". Lacan (2003) aponta o fracasso das utopias comunitárias, ou seja, dos "sem-lugares" que presumiam poder prescindir a família na constituição psíquica, pois, como afirma o próprio Lacan, há uma função de resíduo exercida pela família, que pese toda forma de estruturação em sua forma de organização, que assegura a ela uma transmissão irredutível, daquilo que não se consegue representar.

A família tem de garantir a satisfação das necessidades (educação, saúde, alimentação) dos seus membros. Talvez, o que observamos ao longo da história e da política, é um recorrente retorno à família, aos valores ditos tradicionais. Como bem falou Marcus André Vieira (2005, p. 3),

[...] este texto de Lacan é atual porque nós estamos no tempo do fracasso das utopias comunitárias, numa espécie de pós-fracasso. Ele, Lacan, estava num tempo imediatamente após o fracasso - nós estamos um pouco depois. O pós-fracasso, esse sim é o fim da autoridade. Já a contestação da autoridade não é um fracasso. O que estava no ar era a ideia do fim da autoridade como uma boa coisa, e ele está dizendo que isso é um fracasso.

Vieira (2005) se referia a "Duas Notas Sobre Criança", texto lacaniano datado de 1969, um ano após o conturbado Maio de 1968. A partir do referido texto, entende-se que as utopias comunitárias podem ser vistas, também, como um discurso de esquerda. E ser de esquerda pressupõe uma busca pelos direitos dos trabalhadores e da população mais pobre, a promoção do bem-estar coletivo e da participação popular dos movimentos sociais e minorias e a luta pelos direitos humanos. E isso se contrapõe ao pensamento de direita, que revela uma perspectiva mais conservadora, ligada a valores tradicionais, que busca manter o poder da elite e promover o bem-estar privativo.

Já Laia (2009, p. 3) indaga se

"não podemos pensar também o fracasso das '-utopias comunitárias-'como um efeito inverso: elas não foram bem-sucedidas apenas porque acabaram quando mal começaram, ou porque são desmentidas no campo político ou então elas fracassaram, pois se disseminaram e, mesmo de um modo mais diluído com relação às suas propostas originais, se impõem como um verdadeiro enxame de significantes-mestres, de palavras-de-ordem, na própria desordem de nossos tempos".

Devido às várias formas de famílias que compõem nosso contemporâneo, pode-se afirmar que a família tradicional está em crise. E mais do que isso: de acordo com o que vimos em Lacan (2003), há algo na família que é fundamental. Ainda de acordo com Vieira (2005, p. 1),

Hoje, mais que nunca, nos perguntamos o que seria este irredutível tão vital da família, para que possamos mantê-lo nas novas formas familiares que pululam hoje. Ele, Lacan, chama de família conjugal. Lacan não está dizendo com isso que a família conjugal vai durar para sempre, mas que esse algo é fundamental.

A função da família não pode ser vista somente como tradição sustentada no que se transmite por meio do simbólico, mas, antes de tudo como meio de gozo. A segregação, portanto, nada mais é do que a negação de uma, e somente uma, diferença muito bem demarcada, isto é, a recusa de um modo de gozar.

Freud (1996) também não passara batido do que acontece atualmente em nossos debates políticos, nos quais há certo desconhecimento da história e do passado tupiniquim. Freud (1996, p. 15) relata ainda algo que não fica datado nesses tempos atuais: "quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro".

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1975). Conferência 31: Dissecação da Personalidade Psíquica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora. (Obra original publicada em 1933).         [ Links ]

Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1927).         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Obra original publicada em 1969).         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1969).         [ Links ]

Laia, Sérgio (2009). Análise e interpretação de uma efusão coletiva: os discursos, a ação lacaniana a partir de maio de 68 e de suas consequências. Curinga, (28), 97-111, jun. 2009.         [ Links ]

Rici, Rudá (2014). Valores fascistas e o oba-oba no Brasil. Recuperado em 20 novembro, 2015, de www.rudaricci.com.br/blog-ruda/valores-fascistas-e-oba-oba-brasil/        [ Links ]

Soler, Colette (1998). Sobre a segregação. In L. Bentes, R. F. Gomes (Orgs.). O Brilho da infelicidade. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Vieira, Marcus André (2005). Nota sobre a criança, de Jacques Lacan - Uma leitura. Recuperado em 30 novembro, 2015, de www.litura.com.br/cursorepositorio/umaleitura denotasobreacriancadej1.pdf.         [ Links ]

 

 

1 Graduado em Psicologia e Comunicação pela Universidade Fumec e Mestre em Psicologia pela UFSJ. Já atuou como psicólogo social do CRAS. Atualmente, atua como psicólogo da Coordenação de Saúde Mental do município de Rio Acima-MG e consultório particular.

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