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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.11 São João del Rei jul./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Os impasses frente à perda de objeto

 

The impasses against loss of object: a psychoanalytic reading

 

Los impones frente a la pérdida de objeto

 

Les impases de la perte d'objet

 

 

Iagor Brum LeitãoI; Dayane de Souza FávaroII; Dalton Demoner FigueiredoIII; Suziane Kirmse ComérioIV

IPsicanalista. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGP/UFES). E-mail: leitao.iagor@hotmail.com
IIPsicóloga pela Faculdade Multivix - Nova Venécia, Espírito Santo. E-mail: day.favaro@hotmail.com
IIIPsicanalista. Especialista em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA/RJ), Rio de Janeiro. E-mail: daltondemoner@gmail.com
IVPsicanalista. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA/RJ), Rio de Janeiro. E-mail: suzianecomerio@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo versa sobre a complexidade e importância do conceito de objeto para a psicanálise de base freudiana e lacaniana, nas diferentes formas de defesa do Eu de cada estrutura clínica frente às perdas de objetos, em especial os objetos de amor. Percorre-se pela lógica freudiana do funcionamento do aparelho psíquico, o princípio do prazer, tendo como ponto central a questão do desamparo. Em seguida, discute-se as diferentes noções de objeto dentro da obra freudiana. Ao final, utiliza-se uma vinheta de um caso literário recorrido por Slavoj Zizek, em uma função de caso clínico para apoiar a presente discussão.

Palavras-chave: Objeto. Perda de objeto. Desamparo. Melancolia. Estruturas Clínicas.


ABSTRACT

The article deals with the complexity and importance of the concept of object for Freudian and Lacanian psychoanalysis in the different forms of Ego defense of each clinical structure against the loss of objects, especially the objects of love. First, we go through the Freudian logic of the functioning of the psychic apparatus, the pleasure principle, having as its central point the question of helplessness. Next, we discuss the different notions of object within the Freudian work to arrive at a vignette of a literary case appealed to by Slavoj Zizek, in a function of clinical character, that supports the present discussion.

Keywords: Object. Loss of object. Helplessness. Melancholy. Clinical Structures.


RESUMEN

El artículo versa sobre la complejidad e importancia del concepto de objeto para el psicoanálisis de base freudiana y lacaniana, en las diferentes formas de defensa del Yo de cada estructura clínica frente a las pérdidas de objetos, en especial los objetos de amor. Se recorre la lógica freudiana del funcionamiento del aparato psíquico, el principio del placer, teniendo como punto central la cuestión del desamparo. A continuación, se discute las diferentes nociones de objeto dentro de la obra freudiana. Al final, se utiliza una viñeta de un caso literario recurrido por Slavoj Zizek, en una función de caso clínico para apoyar la presente discusión.

Palabras clave: Objeto. Pérdida de objeto. Desamparo. Melancolia. Estructuras Clínicas.


RÉSUMÉ

L'article traite de la complexité et de l'importance du concept d'objet pour la psychanalyse freudienne et lacanienne dans les différentes formes d'autodéfense de chaque structure clinique contre la perte d'objets, en particulier les objets d'amour. On passe par la logique freudienne du fonctionnement de l'appareil psychique, principe du plaisir, ayant comme point central la question de l'impuissance. Ensuite, les différentes notions d'objet dans l'ceuvre freudienne sont discutées. En fin de compte, une vignette d'une affaire littéraire portée en appel par Slavoj Zizek est utilisée, dans une fonction de cas clinique, pour soutenir la présente discussion.

Mots-clés: Objet. Perte d'objet. Impuissance Mélancolie. Structures cliniques.


 

 

Introdução

Ao longo da obra freudiana são apresentadas inúmeras noções para o conceito de objeto. Sua noção, como adverte Garcia-Roza (1995, p. 92), "não é, de forma alguma, uma noção simples na psicanálise, até porque guarda ressonâncias filosóficas que lhe conferem uma carga semântica de extrema complexidade". De acordo com André Green (2000, p. 9), o objeto para Freud seria polissêmico: "Existe sempre mais que um objeto e, como um todo, eles cobrem vários campos e realizam funções que não podem ser abarcadas por um só conceito". Já para César Merea e Willy Baranger (1994) a concepção de objeto na teoria freudiana é elemento decisivo na concepção de sujeito. Pensar em objeto para a Psicanálise é pensar, portanto, na concepção de sujeito e a sua articulação com o mundo, com o outro, alteridade.

Nesse sentido, a perda de objeto trataria de destinos e consequências naturais presentes nessa relação, haja vista que lidamos com perdas desde nossa chegada a este mundo, como o peito materno (primeiro objeto de amor) ou, por exemplo, uma fase da vida. Temos, portanto, o verso dos compositores brasileiros Luiz Gonzaga e Zé Dantas que traduz uma dessas perdas: Toda menina que enjoa da boneca, é sinal de que o amor já chegou no coração. Dessa forma, pensar na perda de objeto significa pensar na forma em que cada sujeito lida com o (re)investimento libidinal, com o desamparo, com o jogo de presença e ausência e com a falta, aspecto central de toda a teoria psicanalítica, postulada como estrutural para o sujeito.

Como sabido, a psicanálise se constitui constantemente a partir do estudo dos impasses impostos pela clínica, como bem o demonstrou Freud. Teoria e a prática estão atreladas, pois uma demanda à outra. Pensar a respeito da teoria psicanalítica é refletir a respeito das experiências de uma prática clínica, e vice-versa. Considerando o frequente e grande número de pessoas que chegam à clínica demandando tratamento psicanalítico em virtude de questões que envolvem perdas, reais ou imaginárias, acreditamos ser de extrema relevância teórico-clínica pesquisarmos e estudarmos sobre o sofrimento humano decorrente da "perda de objeto". Nessa perspectiva, objetivamos discutir algumas posições e funções que os objetos ocupam na vida psíquica, além das consequências e as vicissitudes de suas perdas para o sujeito, tendo como base a obra freudiana e o ensino de Lacan.

 

Método

A estratégia metodológica utilizada foi a de revisão bibliográfica narrativa. Segundo Rother (2007), as revisões narrativas são publicações amplas adequadas para descrever e discutir o desenvolvimento ou, como é dito no meio acadêmico, o "estado da arte" de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual. Segundo a autora, essa categoria de artigos tem uma grande importância para a educação continuada, pois permitem ao leitor adquirir e atualizar o conhecimento sobre uma temática específica em curto espaço de tempo.

Para fundamentação teórica o estudo resgata, em um primeiro momento, subsídios da obra freudiana acerca do funcionamento e da lógica do aparelho psíquico, percorrendo os textos: Projeto para uma psicologia científica, de 1895; Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, de 1911; Uma introdução ao narcisismo, de 1914; Além do princípio do prazer, de 1920, e Inibições, sintoma e angústia, de 1927. Em seguida, para abordar as diferentes noções do uso do objeto em Freud, acompanha-se o percurso que o autor faz pela temática, utilizando-se dos textos Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, de 1910; Luto e melancolia, escrito em 1914 e publicado em 1917; As pulsões e suas vicissitudes, de 1915; A perda da realidade na neurose e na psicose, de 1924 e Fetichismo, de 1927. Para tanto, recorre-se, também, a alguns comentadores que fazem um retorno a Freud, como o psicanalista Nelson Ernesto Coelho Junior, que faz uma revisão sistemática das noções de objeto em Freud em seu artigo A noção de objeto na psicanálise freudiana, publicado em 2001.

No segundo momento, recorre-se a algumas considerações do filósofo e psicanalista esloveno, Slavoj Zizek, em O amor impiedoso, de 2012, sobre uma vinheta de um caso literário do romance de Nevil Shute, Requiem for a wren, de 1955. Nesse caso, a personagem sobrevive à morte de seu marido sem quaisquer traumas visíveis, seguindo sua vida e sendo capaz, até mesmo, de conversar racionalmente sobre sua morte. Quando, algum tempo depois, o cachorro (animal de estimação e companheiro favorito de seu marido) morre, ela sucumbe por completo, e todo seu mundo desintegra (Zizek, 2012, p. 78). O caso abre espaço para contextualizar e discutir as especificidades da temática.

No terceiro e último momento, é realizado uma síntese de todas as informações colhidas e discutidas, objetivando apontar novos estudos, questões e lacunas a serem preenchidas e desenvolvidas.

 

A Lógica do Funcionamento do Aparelho Psíquico Freudiano

Sigmund Freud, em seu texto Projeto para uma psicologia científica, de 1895, objetiva claramente construir uma fisiologia da mente, descrevendo-a em termos neurofisiológicos. Logo no início do Projeto, Freud explica o seu objetivo: "A finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural, isto é, representar em processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, dando assim a esses processos um caráter concreto e inequívoco" (Freud, 1895/2006, p. 355).

Em suma, neste trabalho, tem-se a metáfora biológica para a lógica do funcionamento do aparato psíquico: o princípio do prazer. Neste momento, Freud entende que o aparelho psíquico funciona na lógica dual do prazer-desprazer, tendo o prazeroso introjetado e o desprazeroso projetado para fora de si. O aparelho descrito por Freud se apoia na noção de quantidade (Q), e, ao recorrer ao princípio da inércia (p. 356), o autor entende Q como o que diferencia a atividade e repouso. Em suma, esse princípio da inércia justificaria a existência de um movimento reflexo, onde qualquer aumento de Q ocasionado por um estímulo externo deve ser eliminado pela via da ação motora, pois seria sentido na qualidade psíquica de desprazer. Já o prazer, seria resultado da sensação endógena da eliminação de Q (Lucero & Vorcaro, 2009).

No texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, de 1911, Freud adverte da inconstância de satisfação pela via do processo alucinatório. Como não se tem o objeto real, a excitação não diminui, culminando em desprazer (Santos & Fortes, 2011, p. 750). Assim, "o aparelho psíquico precisa suportar um adiamento da satisfação até que possa formar uma concepção a respeito das circunstâncias reais do mundo externo e efetuar nelas uma alteração, introduzindo o princípio de realidade". Essa atividade, adverte Freud (1911/2006, pp. 241-242), "é o fantasiar, que começa já nas primeiras brincadeiras infantis, e posteriormente, conservada como devaneio1, abandona a dependência de objetos reais" (grifos nossos).

Mais adiante, Freud (1914/2006, p. 92) em Uma introdução ao narcisismo retoma essa lógica prazer-desprazer. Freud diz:

[...] O desprazer é sempre expressão de um grau mais elevado de tensão, e que, portanto, o que ocorre é que uma quantidade no campo dos acontecimentos materiais é transformada, aqui como em outros lugares, na qualidade psíquica do desprazer [...] Reconhecemos nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos.

Freud também formula a noção de desamparo no Projeto, ao afirmar que há no infans, desde o início da vida, essa energia em ebulição que constantemente o pressiona no sentido de escoamento e de descarga de tensão pela ação motora - como a expressão de emoções, movimentos cinéticos e gritos - quando o bebê precisará da ajuda de um outro que interprete e atenda sua demanda, que o ajude, portanto, a reestabelecer seu equilíbrio. Nesse sentido, o bebê existe constantemente em estado de desamparo. Para Santos e Fortes (2011), este estado originário resultaria na inscrição da alteridade no registro da dependência, como condição para o surgimento do sujeito psíquico. Assim, entende-se a alteridade como um dispositivo de investimento primordial para o processo de subjetivação, noção também já articulada por Freud no Projeto:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (Freud, 1895/2006, p. 379, grifos do próprio Freud)

Posteriormente, em Inibições, sintomas e angústia, de 1925, Freud retoma a questão do desamparo, afirmando que o está relacionado com a ansiedade na situação de perigo:

[...] Ela consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no seu relacionamento de desamparo em face desse perigo - desamparo físico se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual [... ] Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que realmente tenha experimentado, de situação traumática. (Freud, 1925-1926/2006, p. 163)

O perigo sentido pela criança, segundo Freud (2006/1925-26), é o de perder o objeto protetor e de ser abandonado por aquele que interpreta e atenda suas demandas, aquele que o livra do desamparo psíquico e motor. Como vimos, a criança precisa da ajuda de um outro para sua própria sobrevivência, e quando se perde o amor do outro, surge a angústia (enquanto afeto) do abandono, resultando no desamparo (enquanto estado).

Em Além do princípio do prazer, de 1920, Freud recorre à brincadeira de seu neto, Fort-Da, para exemplificar uma forma de elaboração da lógica prazer-desprazer, no lidar com a angústia do abandono, o desamparo. Segundo a nota do editor inglês, James Strachey (p. 24), Fort é traduzida pela versão inglesa gone, particípio passado do verbo to go (ir, partir). Ao puxar o carretel, o menino o saudava com a expressão alegre da (ali). Nesse brincar, o garoto expressava e elaborava a angústia pela falta da mãe. Freud interpreta a brincadeira como uma encenação - atuação, portanto, repetição - do desaparecimento e da volta de sua mãe. Tratar-se-ia de uma forma de produzir prazer em uma situação de desprazer, compensando a perda do objeto por meio do jogo e da fantasia. Neste mesmo texto, Freud conclui que as crianças repetem experiências desagradáveis subvertendo-a de um modo muito mais ativo do que poderiam experimentar de um modo passivo. Ele acaba abrindo espaço para estudos sobre a função do brincar das crianças, além de começar a solidificar a noção de pulsão de morte, marcando uma virada na teoria das pulsões e, portanto, na teoria do prazer.

O jogo do carretel criado por seu neto leva a Freud repensar o princípio do prazer bem como a lógica do funcionamento do aparelho psíquico. Ele percebe que o ato da partida do carretel (objeto que representaria a partida da mãe) no qual seria sentido na qualidade psíquica de desprazer, é privilegiado na cena da brincadeira. Ora, seguindo o modelo anterior em que o prazer seria a meta, por que a cena do retorno do carretel - o retorno da mãe -, que seria sentido como prazerosa, não foi privilegiada? A partir daí, Freud descobre a existência da pulsão de morte que, junto da pulsão de vida, passam a dirigir o funcionamento psíquico.

É importante lembrar que a pulsão de morte é ligada diretamente com a repetição. O conceito-fenômeno de repetição ocupará um outro lugar, como uma força ou movimento pulsional, como uma (com)pulsão à repetição. "Existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer" (Freud, 2006/1920, p. 33). Dessa forma, até o próprio conceito de sintoma começa a ser reelaborado, sinalizando como uma satisfação de uma pulsão que está recalcada, e, por estar recalcada, retornaria como desprazer.

 

Os inúmeros usos da noção de objeto em Freud

Com base no artigo de Coelho Jr. (2001), A noção de objeto na psicanálise freudiana, encontramos uma pesquisa sistemática sobre a utilização do termo objeto na obra de Freud em função da língua alemã (p. 39). Para o autor, é a partir desses conceitos que se podem entender muitos dos temas principais da teoria freudiana, pois são elementos decisivos para a definição da concepção de sujeito, além de estar diretamente ligado a, por exemplo, um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (segundo Lacan): a pulsão.

 

Objeto e pulsão

Na teoria, Freud relaciona o objeto a algo que só tem sentido enquanto relacionado à pulsão e ao inconsciente, e não ao que diz respeito à consciência. É um meio para o foco da satisfação (parcial) das pulsões, podendo ser uma pessoa, uma coisa ou atividade, real ou imaginária, em que a pulsão - inicialmente conceituada como "entre o psíquico e somático" (Freud, 2006/1915, p. 127) - tem como objetivo, foco ou alvo. Essa sistemática segue, portanto, o modelo estrutural/pulsional.

A escolha de objeto de amor [Objektliebe], por exemplo, ocorreria quando o sujeito investe energia libidinal (energia das pulsões sexuais) em objetos que podem gratificar os impulsos pulsionais. Sendo assim, toda pulsão tem seu objeto, uma coisa ou algo por meio da qual atingirá sua finalidade. Desse modo, sobre o objeto da pulsão, Freud nos diz:

O objeto é o que há de mais variável num instinto [lê-se pulsão] e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto [lê-se pulsão] sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto [lê-se pulsão] desempenha papéis altamente importantes. (Freud, 1915/2006, p. 128, grifos nossos)

Neste sentido, entende-se que o objeto da pulsão, diferentemente do instinto, não é específico, não é fixo e nem pré-determinado; ele é variável e indeterminado, mas é o que permite as satisfações parciais das pulsões. Para Coelho Jr. (2001) a noção de objeto aparece basicamente de dois modos: "Ligada à noção de pulsão - neste caso os objetos são correlatos das pulsões, são os objetos das pulsões; e ligada à atração e ao amor/ódio, quando então são os objetos correlatos do amor e do ódio" (p. 38).

 

A escolha de objeto

Em Uma introdução ao narcisismo, Freud retoma o tema das escolhas objetais. Coelho Jr. (2001) observa que a expressão "escolha de objeto" se refere, em geral, à escolha de objetos de amor. Cabe lembrar que Laplanche e Pontalis (1982) afirmam que o termo "escolha" não deve ser considerado em seu sentido racional, de uma opção consciente, mas sim como o que "evoca o que pode haver de irreversível e determinante na eleição do sujeito num momento decisivo da sua história, do seu tipo de objeto de amor" (p. 154).

Nessa perspectiva, Freud (2006/1914) nos propõe um breve resumo dos caminhos que levam cada sujeito à escolha de objeto amoroso. Segundo Freud uma pessoa pode amar:

(1) Em conformidade com o tipo narcisista:

a) o que ela própria é (isto é, ela mesma),

b) o que ela própria foi,

c) o que ela própria gostaria de ser,

d) alguém que foi uma vez parte dela mesma.

(2) Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):

a) a mulher que alimenta,

b) o homem que protege,

c) a sucessão de pessoas substitutivas que venham a ocupar o seu lugar. (p. 97)

Coelho Jr. (2001) aponta que, por meio dessa sequência, mais uma vez fica claro o quanto as experiências amorosas infantis determinam experiências posteriores. Para ele, é evidente que, embora a psicanálise trabalhe em uma linha regressiva - em um movimento trás(z) pra frente -, em que as experiências do passado explicam o presente, ou seja, "as escolhas objetais passadas explicam as atuais ou posteriores" (p. 40), há de se convir que o caminho inverso também existe, afinal, "somente as experiências posteriores podem fazer com que as passadas ganhem sentido, ganhem significados" (p. 40).

Freud (2006/1925-26) constata que as primeiras experiências traumáticas constituem o protótipo dos estados afetivos, e que são incorporados na mente, e quando ocorre uma situação semelhante são revividos como símbolos mnêmicos. Neste sentido, tem-se como exemplo o texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, de 1910, no qual Freud trabalha uma "lembrança" de Leonardo:

Parece que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres; pois guardo como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios. (Da Vinci citado em Freud, 1910/2006, p. 91)

Segundo o psicanalista vienense, os egípcios veneravam uma Deusa-Mãe que era representada com uma cabeça de abutre. Para eles, o animal era considerado símbolo da maternidade pois acreditavam que somente haviam abutres do sexo feminino. Freud (2006/1910, p. 99) supõe que Leonardo, pesquisador e leitor ávido de história, provavelmente teria lido tal fato. Além disso, o psicanalista descobriu que Leonardo viveu seus primeiros anos de idade ao lado de sua mãe, e não de sua madrasta ou seu pai, pois, como era filho ilegítimo, fora recebido por seu pai somente aos cinco anos de idade.

Com essa perspectiva, da posterioridade - denominada por Freud de Nachtraglichkeit, para expressar sua compreensão de temporalidade no que diz respeito à causalidade psíquica, ou seja, experiências posteriores podem fazer com que as passadas ganhem sentido -, tem-se o significado da fantasia de Da Vinci atribuído pelo pai da psicanálise: a substituição de sua mãe pela imagem do abutre indicaria que a criança tinha conhecimento da ausência do pai e se sentia solitário com a sua mãe. Em outras palavras, a angústia e o estado de desamparo de Leonardo, quando bebê, ganharia significado e representação a posteriori, por meio de lembrança fantasmática que só pôde ser produzida pelo acesso a tal informação: uma cadeia de significantes. Tem-se aí a máxima de Lacan (1998/1960): "o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante" (p. 833). Lacan (1998/1960), ao recorrer a linguística de Saussure, subverte seu teorema e acrescenta aí um sujeito inconsciente, formulando que o é o significante antecede o significado. Ou seja, a palavra vazia - carregada de afeto, sem representação - antecede o sentido, que comparece somente a posteriori.

Ainda em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, Freud afirma que "certas impressões tornam-se fixadas e as formas de reação para com o mundo exterior ficam estabelecidas, e nunca mais perderão a sua importância por meio de outras experiências posteriores" (Freud, 2006/1910, p. 99). Desse modo, Coelho Jr. (2001) observa a evolução do pensamento freudiano: os objetos são determinantes originários na constituição da subjetividade.

Neste mesmo texto, Freud também procura compreender a homossexualidade em suas concepções psicanalíticas, sugerindo que o menino tende a recalcar o amor pela mãe e, desta forma ocupar-se deste lugar, identificando-se com ela e tomando como si mesmo (o próprio Ego) como modelo para seus novos objetos de amor (Coelho Jr., 2001). Tratar-se-ia das escolhas narcísicas de objeto [narzissistische Objektwahl].

A partir deste texto, Freud apresenta a possibilidade do próprio Ego ser tomado como objeto da pulsão, através do mecanismo de identificação. No entanto, é com o texto Luto e melancolia, escrito em 1915 e publicado em 1917, que Freud solidifica a noção de identificação. Segundo a nota do editor inglês, James Strachey, "o que permitiu a Freud reabrir o assunto [identificação] foi a introdução dos conceitos de narcisismo e ideal do Ego" (Freud, 2006/1915-17, p. 246, itálicos nossos). O que se apresenta neste texto é que a perda de objeto pode ser real ou até mesmo fantasiada, e o sujeito - em ambas as formas - passa a viver uma "identificação com o objeto perdido" (p. 246). Dito de outra forma, surge a possibilidade do sujeito viver uma identificação de seu próprio Ego ao objeto perdido. Daí a famosa frase de Freud: "A sombra do objeto recaiu sobre o Ego" (p. 254).

 

A Perda de Objeto

[...] E eu sem você sou só desamor. Um barco sem mar, um campo sem flor. Tristeza que vai, tristeza que vem. Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.

(Toquinho e Vinicius de Moraes)

Freud (1915-17/2006, p. 249) compara brilhantemente a melancolia ao luto, apontando pontos afetuosos semelhantes:

A correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada pelo quadro geral dessas duas condições [... ] O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto. (Grifos nossos)

A perda referida no luto é uma perda conhecida, mesmo quando enquanto abstração, ao passo que na melancolia, a perda é desconhecida. Freud observa que alguns traços são encontrados tanto no luto quanto na melancolia (desânimo profundo, autorrecriminações, cessação de interesse pelo mundo externo, entre outras), com uma única exceção: a perturbação da autoestima está ausente no luto. No luto, o teste de realidade revelou que o objeto amado realmente não existe mais, "passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto" (p. 250). Entretanto, Freud observa:

As pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. (Freud, 1915-17/2006, pp. 250-51, grifos nossos)

Nessa perspectiva, Freud considera que "devido a essa transigência pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa a ponto de não ser explicável em termos de economia" (p. 251). Ele adverte que esse penoso desprazer seja aceito como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o teste da realidade prevalece, o trabalho do luto se conclui e o Ego fica outra vez desinibido e novos objetos poderão ser investidos.

Tendo em vista essas considerações, no que diz respeito à melancolia, Freud (1915-17/2006) concorda que em um conjunto de casos é evidente que a melancolia também possa constituir reação à perda de um objeto amado. No entanto, ele destaca que é possível, e até comum, que o objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido como objeto de amor, "como no caso, por exemplo, de uma noiva que tenha levado um fora" (Freud, 1915-17/2006, p. 251). Tratar-se-ia também, contudo, de uma perda da posição de ser amado.

Embora exista um grande debate na psicanálise sobre o lugar estrutural da melancolia, ela é comumente associada ao eixo da psicose. Lacan (2002/1956) é quem descreve melhor a psicose ao pensá-la pela via do discurso, do significante, apontando uma particularidade no discurso do psicótico. Ele mostra que discurso psicótico se constitui pela a não passagem para o segundo momento edípico, marcado pela substituição do significante materno pelo significante paterno, a operação metafórica do Nome-do-Pai. Lacan formula que na estrutura psicótica há a foraclusão do Nome-do-Pai, o que desencadeia um desligamento de toda a função paterna. Em outras palavras, o falo não se colocaria como ordenador simbólico.

Dessa forma, a melancolia padece de uma falha fundamental que é a falta da falta: uma perda sem falta (Branco, 2014). A perda do melancólico convoca a uma falta que não é elaborada no simbólico, e por isso ela retorna no Real como uma perda do Eu, o que faria a melancolia ser lida no campo da psicose. Acontece que o melancólico não consegue constituir um Eu ideal articulado ao ideal do Eu (supereu), como assim fazem os neuróticos, porque simplesmente o ideal do Eu não existe. Dito de uma outra forma, "o que no luto era uma perda de objeto, na melancolia transforma-se em perda do Eu" (Garcia-Roza, 1995, p. 76), e o paciente melancólico, como assim frisa Freud (2006/1915-17), "não pode perceber conscientemente o que perdeu" (p. 251). Em suma, tem-se a máxima freudiana sobre a correlação entre luto e melancolia:

No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Ego. O paciente representa seu Ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização moralmente desprezível; ele se repreende envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. (Freud, 1915-17/2006, p. 251-52, grifos nossos)

A melancolia pode também ser caracterizada como um quadro de delírio de inferioridade, podendo haver alterações do juízos, através das autoacusações, os sentimentos de culpa e de fracasso, a autopunição em forma de descuido consigo próprio, e ideias e atos suicidas (Dalgalarrondo, 2000). Em uma leitura psicanalítica, entretanto, o peculiar da melancolia é um afeto que remete a uma nadificação. Existe um empobrecimento das significações, todas elas remetem ao nada. É comum, por exemplo, pacientes relatarem estarem se sentido vazios, alternativamente experimentando este sentimento no próprio corpo, como no caso da hipocondria, que os pacientes costumam relatar uma falta de órgãos ou até o apodrecimento deles. Como Freud (2006/1915-17) observa, é comum esse afeto culminar na insônia e na recusa em se alimentar, caracterizando-se "por uma superação do instinto [lê-se pulsão] que compele todo ser vivo a se apegar à vida" (p. 252, itálicos nossos). Ou seja, tratar-se-ia de um modo de gozo específico que, em outras palavras, no melancólico a pulsão de morte é maior que a pulsão de vida, não se tratando, portanto, de uma angústia da perda de um objeto qualquer, mas de um objeto de amor o qual o melancólico é maciçamente ligado e o qual ele não reconhece. É a ameaça da perda de um objeto amado que está na base da angústia (enquanto afeto) e causa o desamparo (enquanto estado) (Lacan, 1995/1957).

Em síntese, o paciente melancólico não sabe o que perdeu, e mesmo assim se identifica maciçamente ao objeto, vivendo sua perda no Eu, e não fora dele (como no caso do luto). Ao identificar-se com o objeto perdido, e introduzi-lo em seu Eu, ele rejeita inteiramente a perda, por um lado, e sustenta-a pela via do gozo, por um outro. Dito de um outro modo, aquilo que foi "perdido" enquanto prazer é recuperado e sustentado pelo gozo, um rearranjo pulsional. Dessa forma, o que se tem é uma perda não elaborada, na qual incide num vazio que só pode ser recoberto pela incorporação de um objeto de amor que garanta imaginariamente a completude.

 

Clivagem do Ego

No texto Perda da realidade na neurose e na psicose, de 1924, Freud afirma que a neurose e a psicose diferem uma da outra muito mais em sua primeira reação introdutória - diante da situação traumática - do que na tentativa de reparação que a segue. Na síntese abaixo, ele aponta a diferença inicial, e expressa o desfecho final:

Na neurose, um fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo que na psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la. (Freud, 1924/2006, p. 209, grifos nossos)

Jean-Michel Quinodoz (2007) afirma que a noção de clivagem do Ego já está presente em Luto e melancolia, em que "Freud ora utiliza o termo cisão, ora clivagem do Ego" (p. 169). No entanto, é mais tarde em Fetichismo, de 1927, que Freud completará suas hipóteses sobre a clivagem do Ego, considerando que, no caso da depressão, ela é consequência da negação da perda de objeto. Ele ilustra esse ponto de vista mencionando o caso de dois irmãos que haviam escotomizado2a morte do pai, mas que não se tornaram psicóticos, "apesar do eu haver repudiado uma parte importante da realidade" (Freud, 2006/1927, p. 162).

Ainda em Fetichismo, Freud define o fetiche como um objeto substituto do pênis na mulher (da mãe) em que outrora o menininho acreditou que tinha e que não deseja renunciar - daí o termo desmentido [Verleugnung]. Encontra-se sucinta definição de fetiche em Patrick Valas, citado por Mello (2007): "O fetiche não é o falo, mas o véu por trás do qual se deixa desenhar a possibilidade de sua presença escondida, véu que como a cortina, ante uma cena, mostra e esconde, vela e desvela" (p. 75). Nesse sentido, Freud chega à conclusão de que os dois jovens não haviam escotomizado a morte do pai mais que um fetichista escotomiza a castração feminina. Ele explica: "Fora apenas uma determinada corrente em sua vida mental que não reconhecera a morte daquele; havia outra corrente que se dava plena conta desse fato. A atitude que se ajustava ao desejo e a atitude que se ajustava à realidade existiam lado a lado" (Freud, 1927/2006, p. 163, grifos nossos).

No luto patológico, se é que assim podemos dizer, a noção de clivagem dá conta de que uma parte do Ego nega a realidade, enquanto a outra a aceita. Em seus últimos trabalhos, Freud atribuirá cada vez mais importância aos fenômenos de negação da realidade e de clivagem do Ego. Inclusive Strachey, em sua nota em o Fetichismo (p. 15253), adverte que Freud ainda ressalta que essa "divisão do Ego" não é particular ao fetichismo, mas que, na realidade, pode ser encontrada em muitas outras situações em que o Ego se defronta com a necessidade de construir uma defesa, e que ela não ocorre apenas no desmentido [Verleugnung], mas também no recalque [Verdrãngung]. Sendo assim, tratar-se-ia de algo que se passa tanto na perversão quanto na neurose, estruturas clínicas caracterizadas, respectivamente, pelo desmentido e pelo recalque.

 

As Estruturas Clínicas e suas "Clivagens do Ego" perante as Necessidades em Construir uma Defesa

O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, em O amor impiedoso, de 2012, analisa por meio de sua óptica psicanalista a ideologia capitalista, afirmando - assim como fez Marx - que o dinheiro é um fetiche. No que concerne a este artigo, nos atentemos à definição de fetiche dada por Zizek (2012, p. 77):

Efetivamente uma espécie de inverso do sintoma. Quer dizer, o sintoma é a exceção que perturba a superfície da falsa aparência, o ponto no qual a Outra Cena recalcada irrompe, ao passo que o fetiche é a encarnação da Mentira que nos permite sustentar a verdade insuportável.

Para exemplificar esta argumentação, ele utiliza como exemplo o caso da morte de uma pessoa amada. Para ele, no caso do sintoma o sujeito "utilizaria" do recalque [Verdrãngung] para construir uma defesa que lhe ajude a suportar o trauma. O sujeito então "recalcaria" essa morte, porém, o mesmo recalque retornaria no sintoma. Já no caso do fetiche3, ao contrário, o autor entende que o sujeito pode "aceitar" - em parte -essa morte, e, ainda assim, agarrar-se ao fetiche ou "a algum elemento que encarne o desmentido dessa morte" (p. 78) tal qual, por exemplo, o caso dos irmãos que escotomizaram a morte do pai. Em suma, para o que importa neste artigo, temos neste simples exemplo uma situação em que o Ego se defronta com a necessidade de construir uma defesa, enquanto desmentido [Verleugnung], no fetiche; e enquanto recalque [Verdrãngung], no sintoma.

Continuemos, portanto, com outro exemplo da morte de uma pessoa amada. Zizek recorre ao um romance de Nevil Shute (1955), em que a personagem sobrevive à morte de seu marido sem quaisquer traumas visíveis, seguindo sua vida e sendo capaz, até mesmo, de conversar racionalmente sobre sua morte. Quando, algum tempo depois, o cachorro (animal de estimação e companheiro favorito de seu marido) morre, ela sucumbe por completo, e todo seu mundo desintegra (Zizek, 2012, p. 78). Temos, portanto, alguns pontos importantes para especular neste pequeno caso: 1) a perda do objeto de amor, ou seja, o marido; 2) o cachorro como objeto substituto deste marido; 3) a perda do objeto substituto, o cachorro e 4) seu mundo se desintegra, melancolia.

Para o autor, no entanto, o cão funcionaria como uma espécie de objeto de fetiche que desmentiria a morte do marido de forma análoga ao fetiche da perversão em que o mecanismo característico desmentiria a castração. Em outras palavras, a mulher se recusaria a aceitar a perda do marido: sabe que ele morreu, mas o revive por meio de seu substituto, seu cão-panheiro. Temos, portanto, outro exemplo de uma atitude que se ajusta ao desejo4 e uma que se ajusta à realidade, coexistindo lado a lado. Porém, quando o cão morre, é obrigada a lidar realmente com a perda e "a castração": a morte do marido. Mas para ela seria tão forte, tão insuportável que, assim como nos versos de Toquinho e Vinicius de Morais, ela sem ele(s) não é ninguém, portanto "seu mundo se desintegra" o que, em vez de se ter o luto da perda de objeto, ter-se-ia a melancolia, caracterizada, como bem vimos, pela perda do Eu: uma outra situação em que o Ego se defronta com a necessidade de construir uma defesa, enquanto alteração do juízo, na psicose. Claro, se entendermos o trecho final "seu mundo se desintegra" como um surto melancólico e, portanto, tendo como estrutura clínica a psicose.

Voltando às considerações de Zizek, para ele alguma coisa que a pessoa morta deixou para trás, como uma peça de roupa, poderia funcionar como uma espécie de fetiche, pois nele "o morto magicamente continua a viver" (p. 78). De modo geral, o fetiche - mecanismo característico da perversão - desempenha uma função de proteção contra a angústia, ele está no lugar em que falta alguma coisa. Portanto, o objeto de fetiche tem certa função de complementação em relação a alguma coisa que se apresenta como um furo, até mesmo como um abismo na realidade (Figueiredo, 2012). Para Lacan (1995/1957) "o envolvimento não é da ordem do véu, mas da proteção" (p. 165), em que na neurose, entretanto, é o fantasma que opera como tela protetora.

Freud (2006/1915-17) afirma que "as fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade é decisiva" (p. 370). De acordo com Zizek, no entanto, o papel estrutural em ambos os casos é o mesmo: "Se esse elemento excepcional [tela protetora] for perturbado, todo o sistema colapsa" (p. 78, grifo nosso). Deste modo, é possível compreender a advertência freudiana presente em A perda da realidade na neurose e na psicose: "A neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la" (Freud, 2006/1924, p. 231), e a perversão - acrescentamos - a desmente. Ao lado da psicose, definida como a reconstrução de uma realidade alucinatória, e da neurose, resultante de um conflito interno seguido de recalque, a perversão aparece como um desmentido da castração (Roudinesco & Plon, 1998). O que temos em comum nessas três estruturas é alguma forma de divisão do Eu, em que cada uma reagirá a seu modo, seguindo seu modelo estrutural/pulsional.

Na realidade, a clivagem do Ego pode ser encontrada em muitas outras situações em que o Eu se defronta com a necessidade de construir uma defesa. Esse "mecanismo de defesa" ocorre não apenas no desmentido, como já foi dito. A divisão do sujeito repercute na realidade, mais especificamente naquilo em que o sujeito colocará no lugar da castração do Outro: o neurótico, a fantasia; o perverso, o fetiche; o psicótico, a alucinação e o delírio (Figueiredo, 2012). Sobre este aspecto, propomos que o que se tem é a constante incapacidade do sujeito lidar com o desamparo e a falta, construindo as mais diversas telas protetoras, e tendo de se haver com elas, numa tentativa de proteger-se, ou seja, recalcar, desmentir ou foracluir - seja qual for a forma - não somente a castração do Outro, mas também a falta dele, enquanto objeto protetor, posteriormente objeto de amor e objeto idealizado. Reflexo do estado inicial de constante desamparo. Resultado, portanto, da inscrição da alteridade no registro da dependência.

 

Considerações Finais

Conforme as ideias apresentadas, consideramos o objeto um conceito importantíssimo para a Psicanálise, pois ele perpassa e interage com inúmeros outros, desde a lógica do funcionamento do aparelho psíquico, na dinâmica prazer-desprazer e no estado inicial de desamparo, por estar ligado diretamente ao conceito fundamental pulsão, como sendo um meio para o foco das satisfações parciais das pulsões, portanto, ligado também ao desejo, este entendido como uma operação em deslocamento. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o desejo se opera pela metonímia.

Nessa perspectiva, o objeto está em constante modificação, em constante deslocamento, pois ele nunca satisfará por inteiro uma pulsão. O desejo no animal é objeto natural: se falta, ele o encontra. Por exemplo, se o animal tem sede, tem-se a água. Já para o desejo no homem, ele é não natural, e sim da ordem do vazio e nunca se encontra em sua plenitude, apenas parcialmente. A sede pode ser de água, de refrigerante, de coca-cola, de cerveja, de conhecimento, de vingança. O capitalismo, em um parêntese, vem propor essa falsa plenitude, nos enchendo de objetos e promovendo a ideia de que quanto mais se tem, mais completo se é. Contudo, o trabalho analítico propõe caminhar em outra direção, descascando o sujeito e seus objetos, para sobrar somente seu caroço, sua estrutura - seja qual for - na esperança de que algo de novo surja dali. No entanto, durante esse processo, como já advertia Freud (1915-17/2006, p. 250), "as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal", e essa discussão referente à perda de objeto aponta o quão difícil é abandonar uma posição e/ou um investimento libidinal, como no caso da mulher e seu cão-panheiro substituto. Ao fim, durante o trabalho analítico o sujeito e o analista terão que lidar com as inúmeras resistências ao processo, sentimentos ambivalentes e situações desconhecidas, as inúmeras "clivagens do Ego" e as telas protetoras que sua estrutura permitirá colocar diante da castração e da falta do e no Outro, diante seu Real, pois o Real é o que escapa à realidade.

 

Referências

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1 Freud em Escritores criativos e devaneios, de 1908, compara o brincar das crianças como uma produção de um escritor criativo: "Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?" (Freud, 1908/2006, p. 149).
2 Rosa Jr e Poli (2012) assinalam que, apesar de Freud utilizar o termo "escotomização" (tomado emprestado de René Laforgue), ele não o considera adequado para descrever a situação a que se refere. Ele prefere o termo Verleugnung que, segundo o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hanns (1996), pode ser traduzido como "desmentido".
3 Aqui, uma ressalva: entendemos que neste caso Zizek faz uma analogia ao mecanismo do fetiche da perversão para ilustrar o seu ponto de vista, não considerando o termo fetiche como elemento decorrente da fixação da memória do sujeito no(s) último(s) objeto(s) que antecede(m) a percepção da "cena traumática": a falta do pênis na mulher.
4 Acompanhando o ensino de Lacan, o desejo é entendido como uma operação em deslocamento. Se para Lacan (1964/2006) o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o desejo se faz presente através de seus significantes, é o trabalho metonímico do significante, que, no ato da fala, estaria em um constante deslocamento das palavras que representam parcialmente o todo, o desejo - sempre há algo de um resto, nas entrelinhas, a mais ou a menos. Quer dizer, o desejo, no campo da palavra, jamais pode ser dito por completo. Tem-se, então, a figura metonímica cão-panheiro.

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