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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.6 no.11 São João del Rei jul./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e literatura - O texto como sintoma

 

 

Regina Beatriz Silva Simões

Psicóloga Clínica, Psicanalista, Mestre em Psicologia pela UFSJ. Endereço para correspondência: Rua Cel Elpídio Gonçalves Costa, 125 - Vila Marchetti - 36 307 246 - São João del-Rei, MG. e-mails: reginabeatriz@mgconecta.com.br reginabeatrizmg@gmail.com telefone: 9 8829 6559

 

 


RESUMO

O artigo pretende desenvolver, com base na teoria de Freud e no ensino de Lacan, as articulações possíveis entre a Psicanálise e a Literatura, contemplando a vida e a obra de Clarice Lispector. Apostamos na escrita, vinda do real, marcando a singularidade que se prioriza na teoria e na clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise. Literatura. Escrita. Real. Sintoma.


ABSTRACT

The article proposes, based on Freud's theory and Lacan's teachings, to develop the possible articulations between Psychoanalysis and Literature, through the life and work of Clarice Lispector. We believe the writing, coming from the Real marks the singularity which is emphasized in the psychoanalytical theory and clinic.

Keywords: Psychoanalysis. Literature. Word. Real. Symptom.


RESUMEN

El artículo busca desarrollar, con base en la teoría de Freud y en la enseñanza de Lacan, las articulaciones posibles entre el Psicoanálisis y la Literatura, contemplando la vida y la obra de Clarice Lispector. Apostamos en la escritura, venida de lo real, marcando la singularidad que se prioriza en la teoría y en la clínica psicoanalítica.

Palabras-clabe: psicoanálisis; literatura; escritura; real; síntomas


RÉSUMÉ

L'article cherche à développer, sur la base de la théorie de Freud et de l'enseignement de Lacan, les articulations possibles entre la psychanalyse et la littérature, en considérant la vie et l'œuvre de Clarice Lispector. Nous parions sur l'écriture, venant du réel, marquant la singularité prioritaire de la théorie et de la pratique psychanalytiques.

Key words: psychoanalysis; literature; writing; real; symptom.


 

 

Introdução

Este artigo se propõe a apresentar possíveis articulações entre Psicanálise e Literatura, tendo como ilustração a vida e a obra de Clarice Lispector e apostando na Literatura como uma amarração possível para tratar o sintoma do sujeito. Para isso, seguimos o percurso de Freud e os ensinamentos de Lacan no que diz respeito à constituição do sujeito para acompanhar a vida e a obra da escritora. Ressaltamos fragmentos dos textos de Clarice Lispector que nos fazem aventar a hipótese de que a escrita pode se apresentar como recurso possível para se tratar o sintoma.

Para a Psicanálise, a linguagem falada ou escrita se apresenta como um construto caro aos princípios de sua práxis. Por meio dela, o sujeito se constitui e o discurso se faz presente, viabilizando o trabalho com o inconsciente.

A Literatura pode ser compreendida como a arte de criar e recriar textos. Ela preexiste à Psicanálise e pode ser tomada como expressão do inconsciente para, mediante as palavras, apreender a experiência do corpo com a realidade. Há um rumor em cada discurso, uma palavra dita, uma palavra não dita, uma reticência, uma interrogação. Há uma aposta no desejo do sujeito. Esse rumor interessa à Psicanálise.

Se Freud apostou na linguagem como o diferencial para a escuta clínica, e Lacan priorizou a inserção na linguagem como marca da constituição do sujeito fazendo valer os significantes, interrogamos: é possível traçar relações de semelhanças entre a Psicanálise e a Literatura? Como a poesia, a prosa, os tropos de linguagem e a Literatura em geral podem promover o discurso do inconsciente? Como o texto literário se faz presente no discurso clínico? O que a obra e a vida de Clarice Lispector têm a nos dizer sobre isso? São essas as questões que permeiam este artigo.

 

1 O percurso freudiano

Nos primórdios da Psicanálise, Freud se debruçou no linguajar popular para enfatizar a importância da linguagem como expressão do inconsciente. Em 1900, em sua obra fundamental, A interpretação dos sonhos, apontou as formações dos sonhos e a linguagem embutida neles como sinalizadores de processos inconscientes. A seguir, em seu texto de 1901, A psicopatologia da vida cotidiana, nos apresentou inúmeros exemplos de esquecimentos, lembranças, lapsos de linguagem ou escrita, erros e descuidos no dia a dia, para enfatizar a legitimidade da linguagem como via de acesso ao inconsciente. Em 1915, na inédita obra O inconsciente enfatizou a relevância desse conceito e postulou que ele é dinâmico, composto por impulsos pulsionais, constituído por representações e que dele derivam formações substitutivas - fantasias, sonhos, sintomas -, apontando para a valorização e compreensão dessa temática. A história de sua doutrina seguiu esse trilhamento e marcou o diferencial da Psicanálise em relação às outras formas de abordagens terapêuticas.

Sigmund Freud inaugurou seu trabalho de investigação com as histéricas, objetivando no discurso delas o trabalho com o inconsciente. Com base na escuta de suas pacientes, Freud atestou a possibilidade de um tratamento, no qual a palavra ocupou um lugar privilegiado.

A palavra, escrita ou falada, bem mais precioso do trabalho psicanalítico e recurso possível de acesso ao inconsciente, é, na verdade, trabalhada por Freud desde seu trabalho com Joseph Breuer, detalhadamente exposto nos Estudos sobre a histeria (1893-1895). Essa obra primordial, que marca o início da Psicanálise, nos revela que no trabalho analítico não apenas o sintoma nos interessa, mas a forma como ele chega a nós: sua expressão pela associação livre.

Essa regra, apontada como fundamental da Psicanálise, enfatiza ao analisante que "[...] comunique tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção" (Freud, 1912/1980, p. 150). A partir desse enunciado, a relação médico-paciente se transformou radicalmente, pois não mais ao médico foi delegado o saber da cura dirigida ao paciente, mas ao paciente foi restituído o saber desconhecido sobre seu sintoma.

O tratamento das pacientes consideradas histéricas preparou o caminho para a prática da Psicanálise. Trazemos, como exemplo, Anna O., personagem importante da saga psicanalítica, paciente de Breuer, primeira a demonstrar que o sintoma reagia à fala. Juntos, Breuer e Freud relataram a história dessa moça vienense de 21 anos na relevante obra Estudos sobre a histeria (1893-1895/1980).

O que a doença de Anna O. apresentou de inaugural? Destacamos alguns pormenores da vida dessa moça que provocaram inquietação e interrogações nos tratamentos clínicos que vigoravam até então. Segundo Roudinesco e Plon (1998), Breuer cuidou de Anna O. de dezembro de 1880 a junho de 1882. Seus sintomas eram os sintomas clássicos da época: apresentava acessos de tosse, contraturas musculares, distúrbios da linguagem e da motricidade, além de alucinações. Embora austríaca, falava em inglês com seu analista e criou a expressão "talking cure" (falar para curar) na tentativa de se fazer compreender. Dissecou esse arranjo criado por ela traduzindo suas sessões como uma verdadeira "limpeza de chaminé" (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 568-572). Esse dado importante do percurso clínico de Anna O. nos possibilita pensar na força e na insuficiência da linguagem para exprimir o que há de mais singular em cada paciente. A língua inglesa, para ela, traduziria melhor seus afetos? Anna tinha uma veia literária muito forte, o que lhe permitia fazer um bom uso das palavras.

Vale lembrar que anteriormente ela havia se submetido à hipnose, tratamento proposto por Breuer. Anna O. experimentou uma paixão por ele num momento de agravamento de seus sintomas. Isso possibilitou a descoberta de um conceito fundamental no tratamento psicanalítico - a "transferência" -, situação em que o paciente devota ao analista sentimentos afetivos capazes de desencadear uma interlocução entre ambos.

Com seu discurso fluente, sua fala solta, Anna O. contribuiu para o avanço da Psicanálise e passou a fazer parte do progresso da ciência, como aponta Soler (2005, p. 9): "[...] quando a Anna sonâmbula falava, do fundo de suas ausências hipnóticas, a outra Anna, a do estado de vigília, curava-se de seus sintomas". Mediante a associação livre, pela palavra, dizia daquilo que desconhecia e que era justamente o que interessava à Psicanálise. O acesso ao inconsciente estava sinalizado.

Jacques Lacan, a posteriori, por meio da releitura do texto freudiano, revigorou enunciados do mestre vienense e trouxe à luz relevantes questões direcionadas, sobretudo ao discurso e à fala, item primordial ao estudo ao qual nos propomos. Para Lacan, é a palavra que funda a história do sujeito, e o seu desejo vai depender do Outro como portador de sua fala. Seguiremos nesse percurso trazendo a constituição do sujeito no ensino lacaniano para melhor compreensão da relevância da literatura e dos escritores na abordagem psicanalítica.

 

2 A constituição do sujeito em Lacan

Segundo Lacan (1957-1958/1995, p. 195), "Não há sujeito se não houver um significante que o funde". Para a Psicanálise, o sujeito é desejante, é o inconsciente que permite situar o desejo, e isso ocorre por meio da palavra. O processo de análise possibilita ao sujeito se descolar dos significantes que o Outro lhe imputou e deixar emergir os que lhe são próprios.

Em seu seminário sobre James Joyce (1975-1976/2003), Lacan demonstrou que a arte pode funcionar para o escritor como um sustentáculo, possibilitando uma saída do seu adoecimento. Nesse texto, Lacan buscou analisar a posição de Joyce em relação à sua escrita e pôde, a partir disso, avançar no ensino sobre a psicose, aprofundando conceitos relevantes para a Psicanálise. O que nos interessa, na Psicanálise, é justamente esse campo que escapa à linguagem; ou melhor, que a linguagem tenta abarcar, o impossível de ser dito. É o que buscamos escutar no discurso de cada analisante, assim como ler na obra de Clarice Lispector.

Para Lacan (1964/1985), a inserção na linguagem é o que marca a subjetividade do sujeito. Essa é sua premissa fundamental. Lacan (1964/1985, p. 193) faz sua aposta ao afirmar que "[...] o inconsciente é estruturado como uma linguagem" e, como tal, a presença do desejo se faz pela articulação de um significante a outro significante. Marcamos aí a relevância da fala na captura dos significantes. No desenvolvimento do sujeito, constatamos que ele nasce em total desamparo, de tal forma que, se não for tomado por um Outro que dele cuide, que olhe por ele, que responda por ele, está fadado a não sobreviver. Ao significar as expressões do infans: seu grito, seu choro, como fome, sede, frio e insegurança, o Outro dá um sentido à demanda do sujeito. Dessa maneira, dizemos que o sujeito só se constitui no campo do Outro pela ação dos significantes que este lhe imputa.

Em 1964, Lacan (1998), após a "excomunhão", apresentou o Seminário 11, no qual destacou os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, a saber: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Marcou, na abertura desse ensino, a intenção de "dar continuação" à releitura do texto freudiano como uma "nova etapa", cuja preocupação se ancorou em manter viva a escrita de Freud, assim como formalizar a base de seu ensino: os fundamentos da Psicanálise (Lacan, 1964/1998, pp. 9-10).

O inconsciente se articula como linguagem e a noção de sujeito, a partir daí, se ancora em dois operadores fundamentais, a saber: alienação e separação (Lacan, 1960-1964/1985). O sujeito se aliena, capturando significantes do Outro e na separação deixa emergir seus significantes particulares (idem, p. 855). Formalizou-se, dessa maneira, o processo psicanalítico sob o olhar de Lacan e, numa trajetória vasta, avançaram-se os conceitos freudianos.

Importa-nos, neste ponto do artigo, explanar, de maneira sumária, o conceito de Real, colocado em questão no ensino de Lacan, pois há, em seu ensino, uma valorização do Real em sua obra. E na escrita de Clarice Lispector, é importante a compreensão desse conceito.

A noção de Real, para Lacan, recebeu conotações distintas ao longo de seu ensino. Faremos um resumo de tal conceito respeitando a cronologia de sua obra. Em 1936, no texto "Para além do princípio de realidade", o Real já se destaca no pensamento lacaniano, ainda que atrelado ao conceito de Imaginário. Sobre o trabalho psicanalítico, Lacan (1936/1998, p. 89) atesta: "sua ação terapêutica [...] deve ser essencialmente definida como um duplo movimento pelo qual a imagem, a princípio difusa e fragmentada, é regressivamente assimilada ao real, para ser progressivamente desassimilada do real, isto é, restaurada em sua realidade própria". É a tripartição lacaniana - Real, Simbólico e Imaginário - que começa a se formalizar. Nesse momento do ensino, só se pensa o Real pelo Imaginário.

Em meados de 1950, essa conotação se alterou e só se vai ao Real pela via do Simbólico. Em seu texto Função e campo da fala e da linguagem (1953/1998, p. 259), Lacan nos orienta sobre a originalidade do método psicanalítico, pois "[...] a fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo, seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real".

Vemos, neste momento, um Real atrelado ao Simbólico. Em 1964, no Seminário 11, o autor interroga: "Esse real, onde o encontramos? É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial que se trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado, ao que somos sempre chamados, com um real que escapole" (Lacan, 1964/1985, pp. 55-56). No mesmo texto, elucida os conceitos de tichê e automaton, para localizar o Real. Em Psicanálise, na percepção de Lacan (1964/1998), o termo tichê refere-se ao encontro com o Real. Já o conceito de automaton se caracteriza pela insistência dos signos. Segundo Simões (2015), o automaton se caracteriza pelo automatismo inconsciente da cadeia de significantes, marcando, sob o domínio do princípio do prazer, o retorno; ou seja, a volta insistente dos signos. A tichê indica um além do automaton, um além do princípio do prazer (Simões, 2015, p. 117). Nesse sentido, compreendemos, pela elaboração lacaniana, que a tichê indica o encontro com o real, encontro sem sentido (nonsense), que força um novo sentido, que desloca a série do automaton e das leis dos significantes. É justamente esse encontro com o que é sem sentido da fala que nos permite pensar a clínica como um espaço de criação, onde o novo, o singular, pode emergir: sujeito atravessado pela linguagem.

Seguindo o trilhamento lacaniano, encontramos, no texto O simbólico, o imaginário e o real (1953/2005, p. 13), esses três registros como fundamentais da história do sujeito, e o autor potencializa o real como o inapreensível: "[...] uma coisa não poderia nos escapar, a saber, que há, na análise, toda uma parte do real em nossos sujeitos que nos escapa". Isso nos interessa na abordagem proposta - a Psicanálise e a Literatura -, pois apostamos nesta como a busca pelo inapreensível, e a obra de Clarice Lispector enfatiza aquilo que não se apreende.

Há algo que queremos destacar: "em 1974, ele os escreve como letras - R.S.I.)" (Rodrigues, 2013, p. 23). Estamos diante de um percurso de pensamento, o qual sugere que, ao escrevê-los como letras, Lacan se posiciona ao lado do inconsciente (estruturado como linguagem), assim como de uma escrita matemática que utiliza também as letras, para nomear o que é incógnita. Portanto, ele formulou uma escrita que faz barra ao significado, privilegiando as letras como maneira de aperfeiçoar a estrutura significante. Ao usar letras, Lacan apresenta um estatuto de nomeação para aquilo que é inominável, estatuto que indica ao mesmo tempo o sentido e o sem sentido numa só escrita. Retomemos, resumindo, os conceitos definidos por Lacan para melhor compreensão da articulação à qual nos propomos neste artigo.

O registro imaginário, para a Psicanálise, envolve as imagens, a fantasia e o registro da identificação especular: identificação formadora do eu. A imagem refletida no espelho alcança uma identidade alienante que acompanha o sujeito em todo o seu desenvolvimento. O sujeito se aliena àquilo que vê, àquilo que enxerga, àquilo que consegue capturar. A unidade do eu é, portanto, imaginária. Essa imagem é sustentada pelo olhar de um representante do Outro. Nem tudo da realidade subjetiva é capturado pela imagem. Existe algo não especularizável, o objeto fora do espelho, ao que chamamos de incompletude, falta a ser.

O registro simbólico representa o lugar do código fundamental da linguagem; ou seja, o lugar da lei, onde fala a cultura, a voz do Outro. O acesso ao simbólico tem como efeito a divisão do sujeito, porque no simbólico o sujeito só pode ser representado. Nomeado no discurso dos pais ou de quem exerce essa função, o sujeito entra no circuito de troca e, na relação com o Outro, algo se perde. A condição para que o sujeito emirja é a sua divisão: sujeito dividido perante o Outro, pois a ele se aliena.

O registro do real é da ordem do indizível, íntimo e estranho, o que não se oculta, aquilo que irrompe quando o véu que o recobre é descoberto: o êxtimo (estranho e familiar). O real comporta uma realidade inacessível a qualquer pensamento subjetivo, comporta um resto não significável, representando algo da ordem do gozo.

Isso nos interessa quando nos deparamos com o texto de Clarice Lispector, pois nele encontramos uma escrita singular, íntima e estranha (estrangeira), sobre a qual falaremos adiante.

 

2 Clarice

Clarice Lispector, cujo nome de origem era Chaya (que em hebraico significa "vida") Pinkhasovna Lispector, nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 e faleceu no Rio de Janeiro em 1977. Em sua biografia, assinada por Benjamin Moser (2011, p. 18), o autor enfatiza: "As raízes de Clarice, nascida a milhares de quilômetros do Brasil, em meio a uma horripilante guerra civil, com a mãe condenada à morte por um ato de indizível violência, eram inconcebivelmente pobres e brutais". Sua família deixou a Ucrânia em 1921, como refugiada de guerra, e, numa jornada em busca da sobrevivência, chegou ao Brasil em 1922. Filha caçula de um casal de três filhas, Clarice, com um ano e meio, chegou ao País, inicialmente em Maceió, onde a família residiu, fixando-se posteriormente em Recife, onde viveu alguns anos de sua vida. Publicou seu primeiro conto, O triunfo, aos 18 anos.

Benjamin Moser, em Todos os contos (2016, p. 10), nos revela: "Clarice Lispector se tornou famosa no final de 1943, com a publicação do conto Perto do coração selvagem. Tinha acabado de completar 23 anos, uma estudante obscura de uma família de imigrantes pobres". A seguir, instalou-se no Rio de Janeiro, onde se casou com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos: Pedro e Paulo. Viveu 16 anos no exterior, sentiu o exílio como intolerável e, lá fora, sua tendência à depressão se acentuou. Podemos encontrar indícios dessa condição na vasta correspondência que manteve com os familiares.

Clarice acompanhou o marido em sua trajetória diplomática e viveu na Europa sem ter se desligado do Brasil. Mesmo à distância, manteve relações estreitas com a família, os amigos e a literatura, como esclarece Moser (2016, p. 19). Clarice só voltou ao Brasil em 1959, com o marido, já reconhecida como uma escritora promissora. Enquanto casada, escreveu três romances e os contos de Laços de família, que a consagraram.

Teve uma vida cercada por uma atmosfera de mistério e nostalgia, mas uma vida produtiva. Apresentou-nos uma obra inesgotável, inquietante e provocadora. Sua história pessoal é marcada por riqueza intelectual, profusa em angústias, afetos, questionamentos e silêncios. Uma mulher diferenciada. Uma escritora enigmática e talentosa. Uma estranha. Uma estrangeira. Trouxe-nos um modo de pensar e de escrever bastante especial, com uma ampla variedade de estilos.

Benjamin Moser (2016, p. 9) afirma:

A lendariamente bela Clarice Lispector, alta e loura, usando os extravagantes óculos escuros e as bijuterias de uma grande dama carioca de meados do século passado, adequava-se à definição moderna de glamour. Trabalhou como jornalista de moda e sabia muito bem encarnar o papel. Mas é no sentido mais antigo da palavra que Clarice Lispector é glamourosa: como uma feiticeira, literalmente encantadora, um nervoso fantasma que assombra todos os ramos das artes brasileiras.

E acrescenta: "Havia em Clarice algo que não era o que parecia ser, uma estranheza..." (Moser, 2016, p. 12). Portadora de ferimentos incuráveis, encontrou na escrita a possibilidade de se agarrar à vida e lidar com seus sintomas. Isso é retratado em seus contos quando relata problemas do cotidiano com marido, filhos, dinheiro, envelhecimento etc. "Seus personagens lutam contra concepções ideológicas sobre o lugar próprio da mulher na sociedade" (Moser, 2016, p. 11), tema marcado em sua contemporaneidade.

Rastreando suas biografias, sua triste e marcada história familiar e infantil, suas perdas e seus lutos, bem como seus mais genuínos afetos - a irmã Tânia, o amigo Lúcio, a presença de uma mãe paralítica -, deparamo-nos com traços de melancolia e uma depressão persistente, que talvez possam nos aproximar daquilo que reflete a singularidade dessa inexplicável escritora.

Lúcia Castello Branco (1988, p. 73) aponta que "[...] podemos colocar uma escritora brasileira, muito louca e nadíssima psicótica - Clarice Lispector -, que queria também escrever o grito, o sussurro, o sopro", apostando na sua escrita como a de um lamento da realidade.

Benjamin Moser (2016, p. 17) nos interroga com sutileza: "Como é que Clarice Lispector - logo ela - conseguiu triunfar? Ela vinha de uma tradição de fracassos [...] Seus primeiros anos de vida foram tão catastróficos que é um milagre que haja conseguido sobreviver". Isso nos fortalece na hipótese de que a escrita salva o sujeito quando faz conexão com o sintoma e abre espaço para interpretações e análise.

Embora não seja autobiográfica, a escrita de Clarice traz uma mistura de sua vida na dos seus personagens, observação que se esclarece segundo os momentos compatíveis com sua existência: o tédio, as pequenas felicidades clandestinas da vida de dona de casa comum, o prazer da mulher jovem com sua beleza e seus cuidados, assim como a percepção do envelhecimento e as marcas que o espelho não esconde: o belo rosto encoberto pela maquiagem, o corpo engordando, as cicatrizes que a vida não poupou à bela escritora.

Ressaltamos, entre tantos, três textos em que podemos sinalizar a afirmação anteriormente, de que na obra da escritora havia a mistura de sua vida com seus personagens, juntamente com o sentimento de vazio e dor. Em Todos os contos (2016), encontramos alguns que retratam essa afirmação. Em "A paixão segundo G. H.", ela escreve: "Eu finalmente me levantei da mesa do café, essa mulher" (p. 23). No conto "O triunfo", a escritora expressa a dor da personagem Luiza ao ser abandonada: "E a casa ficara em silêncio. Ela parada no quarto, como se tivessem extraído de seu corpo toda a alma" (p. 29). Em "Obsessão", a personagem Cristina confessa: "Às vezes, melancolia sem causa escurecia-me o rosto, uma saudade morna e incompreensível de épocas nunca vividas me habitava" (p. 34).

Essa mistura de personagens com ela mesma mostra uma quebra de gramática e nos permite pensar na ruptura de sua vida pessoal, nas oscilações emocionais combinadas com a realidade vigente.

Na instigante história de Clarice Lispector, encontramos um episódio, em 1966, que marca de maneira trágica sua vida pessoal. A escritora tinha dois vícios que cobraram seu preço na sua trajetória de vida: o cigarro e os remédios para dormir. Segundo Moser (2011, p. 482) "[...] depois de tomar suas pílulas, ficou fumando na cama. Quando acordou o quarto estava em chamas". Clarice, com o corpo queimado, foi socorrida pelo filho Paulo e por dois vizinhos: Saul e Heloisa Azevedo. A mão com que escrevia ficou seriamente comprometida, e os médicos chegaram a levantar a hipótese de amputação. Esse fato deixaria sequelas para sempre em sua vida. No período de convalescença, encontramos registros de depoimentos da escritora que sinalizam uma angústia mesclada ao masoquismo, compaixão, como podemos conferir nestas suas palavras:

Mas eu quero visitas, elas me distraem da dor terrível [...] todos foram recebidos por mim, gemendo de dor, como numa festa: eu tinha-me tornado falante e minha voz era clara: minha alma florescia como um áspero cactos [...] enquanto sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a prova de estar vivendo ao máximo. [...] Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus. (Moser, 2011, p. 483)

Clarice permaneceu por aproximadamente três meses em um hospital para se tratar dos ferimentos até conseguir retornar às suas atividades de rotina, inclusive datilografar, sua maneira costumeira de trabalhar.

Esse episódio, aliado ao comportamento estranho da escritora, evasivo, inquieta nos relacionamentos afetivos, esquiva no convívio social, gerou rótulos desconfortáveis a Clarice: escritora falida, obsoleta, supérflua, inconvivível etc. Em meados de 1970, a reputação da escritora como desajustada, de gênio excêntrico, avessa à vida social atingiu seu apogeu. Não comparecia aos eventos literários para os quais era convidada, tinha respostas inadequadas e intempestivas quando procurada para entrevistas, evitava as reuniões íntimas dos amigos ou apresentava comportamento hostil na maioria de suas aparições. Em 1976, seu filho Paulo se casou, com 23 anos, fato que abalou ainda mais o emocional de Clarice.

Não há relatos detalhados de Clarice em relação ao tratamento psicanalítico. Moser (2011, p. 504) afirma que "Clarice se sentia envergonhada, ou constrangida, por fazer análise, e não queria que o fato chegasse ao conhecimento público". Em determinado momento de sua vida, a autora relata: "Eliane Zagury foi uma que perguntou se eu faço ou fiz análise [...] porque meus livros tinham a profundeza que só se atinge na análise" (ibidem). Clarice responde: "Eu neguei" (ibidem). Podemos marcar esse relato como uma dificuldade da autora diante do tratamento e apontar, mais uma vez, que a escrita, de alguma maneira, a aliviava dos sintomas.

Em 1977, ela deu uma única entrevista, que foi feita diante de câmeras, a qual teve grande impacto na mídia, como relata Moser (2011, p. 625), pois ela permaneceu longos períodos em silêncio, com uma voz estranha, inconfundível.

A escritora, ao longo da vida, dizia que queria morrer escrevendo (Moser, 2011, p. 648). No dia 9 de dezembro de 1977, Clarice morreu ao lado de sua amiga Olga Borelli e foi sepultada segundo os rituais ortodoxos.

O que dizer de uma vida marcada por talentos, adversidades, lutas, conquistas, incertezas, amores, desafetos, perdas, interrogações? O que a Literatura foi capaz de nos revelar sobre essa autora/personagem?

A história do sujeito é estruturada e organizada a partir da sua relação com o Outro. As contingências da vida possibilitam o caminho necessário para o sujeito ser o que deverá ser: passado articulado às promessas de futuro. Como podemos situar a escrita de Clarice Lispector sob o olhar da Psicanálise?

 

3 Clarice: o texto como sintoma?

Antes de nos reportarmos ao texto de Clarice Lispector, de maneira sumária, façamos uma pequena digressão a respeito da relação do sujeito com o eu na teoria psicanalítica.

A Psicanálise acredita que, ao nascer, a criança é marcada pela sensação de desconforto que o ato do nascimento produz. A constituição do sujeito perpassa pelos restos que essa experiência traz, como também se estabelece pelas etapas que se sucedem a ela. Ressaltamos o estádio do espelho, período que se inicia aproximadamente aos seis e se estende até os 18 meses de idade, caracterizado pela representação corporal da criança identificada à imagem do Outro, que lhe dá a ilusão de completude. Segundo Lacan (1998, p. 100), "o estádio do espelho é um drama [...] que fabrica para o sujeito [...] as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade".

É a experiência da criança diante do espelho (imagem especular) que possibilita que ela estabeleça a relação do seu eu com a realidade. Isso se dá justamente no encontro com o Outro, que não obtura essa falta, produzindo o que nomeamos de falta-a-ser.

Simões (2013, p. 54) afirma:

Nas complexas relações que o sujeito estabelece ao longo da vida, marcadas pela presença do Outro, com os significantes que ele elegeu, a história de cada um vai se escrevendo, tendo como base uma constituição definida pela palavra, pela divisão, pela perda, pela castração vivida no Complexo de Édipo e pelos restos que essa experiência deixou como sobra.

É essa falta, marca indelével do sujeito, que o conduz na construção de sua história. Ao sujeito faltoso, resta buscar incessantemente algo que o complete. Ressaltamos que a entrada do sujeito no mundo funda as relações interpessoais no campo social. O que fica de registro, o que se apreende e aquilo que faz laço marcam a forma como o sujeito lida com o seu universo. Isso nos interessa à medida que o texto de Clarice Lispector, inquietante e instigante, nos faz remeter aos dados de sua história pessoal e aos possíveis sintomas que ela nos revelou em sua escrita e em sua maneira peculiar de viver.

Acreditamos que a Psicanálise pode ser vislumbrada como a possibilidade de, pela fala, o sujeito reeditar sua história, desde que haja uma demanda, uma língua, um analista, um analisante. Buscamos salientar que a fala pode ser compreendida também como aquilo que o sujeito é capaz de editar pela escrita. Dessa maneira, a escrita nos interessa, pois ela é uma modalidade de refazer o laço social: em lugar do laço perdido com o Outro da infância, ou seja, com a família, a escola, os amigos. O ato de escrever, tal como o ato sexual, para Lacan, testemunha o hiato que existe entre cada Um e o Outro. O ato da escrita possibilita arrancar a angústia, afeto que não camufla, pois diante do objeto causa de desejo, o sujeito se angustia. Podemos nos perguntar por quê? Podemos nos aventurar a dizer que aquilo que anteriormente servia para recalcar a angústia é destituído e o que deveria permanecer velado vem à luz?

Para Lacan (1959-1960/2008, p. 24), a verdade tem uma estrutura de ficção, pois é abordada por um semidizer, por meio de um saber colocado em posição de verdade. Dessa maneira, a realidade implica a dimensão fantasmática. A escrita comporta os restos - chamados de objeto a -, que não são assimiláveis pela linguagem, ou seja, pelo simbólico; restos que permitem a construção de um sentido novo para aquilo que escapa ao sentido, o indizível.

Nádia Lima (2014, p. 100) esclarece que "[...] escrever para os outros significa 'perder'. Pois o sujeito sai do segredo para a dimensão da circulação social". A escrita, por esse viés, escancara o desassossego particular do escritor. Ela é singular. Diante do mal-estar, a escrita permite abrir as estancas do sujeito, do autor. A subjetividade escoa na tentativa de estabilização, de sustentação dos afetos. Para Lima (2014, p. 123), "[...] toda escrita é [...] dirigida a um outro, a quem o sujeito busca agradar, fazer-se compreender ou adequar". Podemos mensurar essa colocação na escrita de Clarice Lispector?

Afirmamos que o inconsciente se manifesta justamente pela falência da linguagem: vazios, reticências, atos falhos, que são, na verdade, elementos estranhos à narrativa. Podemos dizer que são furos da linguagem daquilo que é impossível de dizer? A escrita escorre nas tessituras imaginárias de um texto, vindas do inconsciente, manifestando-se nos espaços, naquilo que não se alcança todo.

Articulando a escrita com o processo analítico, dizemos que a análise se dá a partir da apresentação de um relato de uma história. Relato que não é cronológico, mas se baseia na lógica do inconsciente, assim como a escrita. É o testemunho de uma experiência singular, com ritmo e alternâncias próprios. História tecida com seus cruzamentos, seus furos, seu estilo único. Nessa construção paulatina, o inconsciente é privilegiado, inconsciente que é atemporal, por isso sempre atual.

Baseados na obra de Clarice Lispector, podemos dizer que a escrita nos interessa quando, a partir de um encontro com o real, o sujeito constrói uma saída para tal confronto. A operação de constituição do sujeito deixa marcas, restos desse encontro inaugural, que acompanham o sujeito, no caso, o autor, e se refletem nas suas construções ao longo da vida. Nas desilusões, fracassos, angústias ou mesmo na euforia, a escrita salvaguarda o autor da angústia. No percurso da narrativa, existem pontos de ruptura, de quebra, que apontam para a insuficiência da linguagem, que não pode tudo dizer a respeito do sujeito.

Ao tropeçar nos limites da linguagem, o autor se ergue pela narrativa escrita, e surge, assim, o que chamamos de estilo: uma maneira única, particular, orientada pelo objeto a, causa de desejo. Conforme Houaiss e Villar (2001, p. 1254), "estilo é um ponteiro ou haste de metal, osso etc. usado pelos antigos para escrever sobre tábuas cobertas de cera, dispondo de uma extremidade pontiaguda, a que imprime os caracteres, e outra achatada, para apagar os erros". Esse aspecto destacado pelo linguista nos indica uma característica de marca, corte ou furo, o que nos servirá para a compreensão do estilo na linguagem psicanalítica. Na perspectiva de Lacan (1956/1998, p. 469), "[...] não há forma de estilo, por mais elaborado que seja, em que o inconsciente não abunde". Apostamos no estilo dos escritores para nos aproximarmos das questões inconscientes que eles tratam em sua obra.

Neste ponto, interessa-nos a maneira como Clarice Lispector expressa seus infortúnios na escrita. Seu biógrafo afirma: "Havia em Clarice algo que não era o que parecia ser, uma estranheza percebida por aqueles que encontravam em seus textos pela primeira vez" (Moser, 2011, p. 11). Seu texto traz uma sonoridade e um silêncio que também são traços particulares. Cristina Moreira Marcos (2015, p. 92) sublinha:

Clarice aspira ao silêncio ao mesmo tempo em que vê na escrita a única possibilidade de vida. Temos uma escrita que anseia pelo seu fim, pelo silêncio. Ora, fiel à sua aspiração, a escrita de Clarice persegue o silêncio que habita as palavras, busca não abafá-lo, sabendo, contudo, da impossibilidade de seu voto.

Silêncio, respiração, sussurros. Uma escrita que alude a uma busca do objeto perdido, sem abordá-lo totalmente com palavras diretas, fortes; algo que estaria além e aquém da linguagem. Isso também nos remete à questão do nome próprio, construto valioso da Psicanálise, que na escrita de Clarice aparece nebulosa. Seu nome de origem foi se apagando, e outro nome ocupa o que foi destinado pela filiação.

Em relação ao nome próprio, Cristina Moreira Marcos (2015, p. 95) sustenta:

Não se trata simplesmente da designação de um sujeito, ele faz um traço e como tal ele completa o vazio para um significante desde sempre ausente no campo do Outro. Como eu me chamo não lhe diz nada de mim. Ora, se o sujeito desaparece por trás do nome, ao mesmo tempo, o nome convida-o a falar.

Vamos nos reportar a algumas expressões vigorosas e repetidas da obra de Clarice que revelam, a priori, uma posição inquietante diante da vida, apontando para a divisão e a insuficiência do sujeito. Tendo como base o livro Clarice na cabeceira, de José Castello (2011), destacamos:

- piedade é a minha forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo; (p. 27)

- [...] como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione?; (p. 36)

- estou melancólica [...] descanso na melancolia; (p. 199)

- Eu, que nunca sou adequada; (p. 103)

- Sou forte, mas também destrutiva; (p. 203)

- Não sei usar amor. Às vezes me arranho, como se fossem farpas; (p. 204)

- Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona; (p. 214)

- Sofrer um pouco é o que me impressiona; (p. 215)

- Às vezes escrever uma só linha basta para salvar o próprio coração; (p. 242)

- É quase intolerável viver. (p. 259)

Diagnosticar Clarice seria reduzi-la a um nome, e isso não é o objetivo deste artigo. Clarice não se resume a um termo, a um rótulo, nem mesmo a um determinado sintoma. Encontramos, sim, traços que nos aproximam dessa mulher que buscou ferozmente no mundo o que lhe parecia obscuro. A escritora dispunha de uma gigantesca capacidade reveladora sobre aquilo que era indizível. Apresentou-nos ao longo da vida uma obra afortunada, cheia de incógnitas e reticências.

Segundo Lúcia Castello Branco (1988, p. 73), "Os depoimentos (e mesmo a obra) de diversos escritores [...] oferecem-nos algumas pistas para pensarmos em quanto a loucura e a escrita literária têm em comum". Seguiremos essas pistas que Clarice Lispector nos deixou. Pelos traços sintomáticos que a história da escritora nos apresenta, comporta um breve esclarecimento sobre a melancolia e a depressão, pois elas se diferenciam e nos auxiliam na compreensão do seu texto.

Em seu artigo Luto e melancolia, Freud (1917[1915]/1980) esclarece esses conceitos. Segundo o autor, "[...] a melancolia contém algo mais do que o luto normal. Na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência (Freud, 1917[1915]/1980, p. 289). No mesmo texto, Freud (1917[1915]1980, p. 290) especifica que a ambivalência pode ser constitucional, formada por um elemento particular da relação amorosa: pertence, portanto, por natureza, ao reprimido, ou é oriunda de experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto, em que as vivências traumáticas em relação ao objeto podem ter ativado outro material reprimido. Assim, no luto, podemos aferir uma perda real do objeto. Na melancolia, nas palavras de Freud, "[...] travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o amor e o ódio se digladiam" (ibidem).

A psicanalista Maria Rita Kehl (2013, on-line), analisando o texto de Freud, Luto e melancolia, destaca que, na obra freudiana,

[...] o trabalho psíquico empreendido pelo enlutado, embora empobreça o ego e torne o sujeito inapetente para quaisquer outros investimentos libidinais, pode ser considerado como um trabalho da ordem da saúde psíquica. É um trabalho de paulatino desligamento da libido em relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica que o ego perdeu por morte ou abandono.

A partir deste ponto, é possível refletir sobre o que os textos de Clarice expressam: a luta pelo enfrentamento de todos os lutos reais.

Melancolia, para a Psicanálise, não é o mesmo que depressão. A melancolia está articulada com a dimensão do ir e vir pulsional. Podemos dizer que o Eu se encontra comprometido. A melancolia é, então, um processo psicótico que resulta no empobrecimento da consciência, enquanto o inconsciente é secretamente exaltado e exibido. O melancólico apresenta ideias delirantes. O discurso do melancólico é marcado pela culpa exibida e reinventada com relevância, bem como com a própria indignidade. Em seu discurso, não há vergonha nem modéstia: o melancólico se coloca no centro de interesse do mundo. Para ele, é difícil tolerar a falta a ser, fundamentalmente humana. Na depressão, o sujeito se apresenta paralisado, sem lugar, sem ânimo, na apatia. Não há necessariamente empobrecimento da consciência, e a angústia é traço persistente.

Esclarecemos: ambas, melancolia e depressão, podem ser compreendidas como o resultado pelo trabalho de luto que se segue à perda de objeto. A história e a escrita de Clarice nos aproximam de um sujeito predominantemente marcado por traços depressivos, embora possamos encontrar, em seu trabalho e na vida, sinais de melancolia.

Consideraremos, para Clarice Lispector, inspirados nos estudos da Psicanálise, traços sinalizadores de depressão baseados na infância rude, na guerra, na doença, na perda dos pais, na pátria que não foi concebida, na busca por um lugar onde se identificasse, os quais nos possibilitam aventar essa hipótese.

A violência guardada e contida a respeito dos sofrimentos maternos, a percepção de um mundo cruel, entre tantos episódios de sua vida, nos aproximam de uma escritora marcada por sofrimentos e desilusões. No corpo queimado, a presença da pulsão de morte e a luta voraz pela sobrevivência. O afeto amistoso, sem paixão, pelo marido, a cerimônia no cotidiano da vida matrimonial, a chegada dos filhos, a lida árdua com um filho esquizofrênico, a intolerância com os amigos, entre outros episódios, deixam restos que colaboram com aparecimento de fortes traços depressivos. Podemos traduzir a suposta depressão de Clarice como a "dor de existir", termo usado por Lacan?

Segundo Ilka Franco (2006, p. 111), "[...] dor de existir não é algo que só os melancólicos experienciam [...]. Existir supõe a dor de ser lançado no mundo, supõe a linguagem que não dá conta de todos os juízos". Acreditamos que a escrita salva Clarice de muitas marcas, pois deixa que seus sintomas venham à tona. Permite que ela deixe vir o lado avesso de sua ex-sistência.

Assim como Dostoievski e Virgínia Woolf, Clarice encontrou na escrita não um apaziguamento, mas uma estrada criativa. Sua modalidade de escritura parece se situar no campo da Lituraterra (1971/2003), que marca uma escrita de borda, pois esbarra no indizível, no limite do gozo e do sem sentido, como Lacan (1981, p. 109) apontou em Lições sobre Lituraterra. "Não é a letra propriamente o litoral? A borda no furo do saber que a psicanálise designa, justamente ao abordá-lo, não é isso o que a letra desenha?"

Nesse texto, Jacques Lacan começa a construir uma teoria da letra, afastando-se gradativamente da ênfase dada, até então, ao significante. Há, no texto, uma passagem da letra literal, desenvolvida em seu ensino em Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957/1998), para a letra litoral. O que difere a letra do significante, no nosso entender, é que a letra está situada no real e ganha, assim, uma nova conotação no ensino lacaniano.

Encontramos, na obra de Clarice Lispector, um mesmo significante repetidas vezes: "a Coisa", inclusive, com a grafia em letra maiúscula. Se há repetição, algo do inconsciente insiste em se apresentar. O que a escritora quis marcar com tanta precisão? Que Coisa é essa que Clarice insistentemente perseguiu? Podemos identificar neste ponto que algo do Real está implícito em sua escrita?

Na vã tentativa de capturar a Coisa, Clarice lança a palavra que escoa, emociona, seduz, faz brotar. A perseguição da Coisa, entretanto, não a conduziu a uma escrita autobiográfica. Sua escrita é um exercício árduo e doloroso de introspecção. Uma aventura interior e a maneira possível de sobreviver às vicissitudes dos inúmeros momentos depressivos. Segundo José Castello (2011, p. 9), Clarice "[...] viveu para buscar o que se esconde atrás de detrás do pensamento. Não foi pouco o que se propôs".

Encontramos traços masoquistas, sádicos, obsessivos em seus romances, seus contos, suas entrevistas, bem como traços vários em cada análise que fazemos, que nos norteiam a algum diagnóstico. Porém, na vida da escritora, alguns traços se sobressaem, e determinadas falas, entre outras, citadas por Castelo (2011), merecem ser destacadas:

- A bondade me dá ânsias de vomitar; (p. 24)

- Piedade é minha forma de amor, de ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo; (p. 27)

- Que coisa estranha é essa de que precisamos, que coisa ávida é esse existir que faz com que a mão arranhe como garra? (p. 108-109)

Compreendemos que o texto, para Clarice, não pode ser analisado como um sintoma, mas como uma possível saída para o sintoma. Ela buscou expressar o indizível.

Clarice sai em busca do preenchimento deste ponto que é dejeto, estrutural, irremediavelmente faltoso. A palavra, sob a pena de Clarice, é uma chave, pronta a abrir portas. Seu texto, rico e inédito, convocou-a a uma escrita singular, permitiu que enfrentasse os obstáculos que a vida lhe apresentava e a aproximou daquilo que lhe foi particular. Clarice, com a escrita, conviveu com seus sintomas, pôde expressá-los, inclusive, na mistura que expressava em seus contos do que lhe era próprio, remetido ao personagem citado.

Resta a nós, pela leitura de seu texto, pela possibilidade de estudá-la, admirá-la e compreendê-la, apenas reverenciá-la. Clarice, pela escrita, reinventou a sua vida.

 

5 Considerações finais

Por que a obra de Clarice Lispector interessaria à Psicanálise? Inúmeras são as possíveis respostas que podem surgir diante dessa questão. A arte nos ensina, como psicanalistas, um olhar e escuta sutis dos modos de subjetivação que estão em jogo na clínica. Uma maneira diferenciada de se posicionar diante do sujeito.

A Literatura, como o artigo buscou apresentar, pode ser tomada como expressão do inconsciente e despertar a associação livre do leitor, bem como promover o discurso particular, vindo do real, do sujeito-autor. O escritor, como na análise, endereça suas palavras, escolhendo significantes de sua história particular. A literatura, a nós, analistas, ilumina com o seu dizer e oferece a chance de uma escuta diferenciada, acolhe o enigma da linguagem, pois oferta ao sujeito a possibilidade de se expressar.

A obra de Clarice se orienta diante de trajetórias que buscam a constituição do sujeito e descortinam sua inexistência, seus vazios, seus pontos inalcançáveis. Uma construção fictícia, mas na qual podemos ler sua história e sua contemporaneidade, seus medos, seus anseios e seus desejos. Ela não apaga a presença de sua pessoa em sua obra.

A escrita sobressaiu como uma vitória de Clarice Lispector sobre o universo da possível depressão. Embora sua escrita não seja autobiográfica, seus personagens revelam uma personalidade conturbada e a tentativa de trabalhar seus afetos e lutos. Sua angústia foi traduzida pelas palavras, pelos sussurros, pelas reticências, gerando uma obra de extremo valor literário.

Procuramos subtrair, da extensa obra de Clarice Lispector, aspectos que nos pareceram enfáticos, relevantes e que fazem conexão com o tema proposto: a possível articulação entre Psicanálise e Literatura.

Este artigo buscou promover uma discussão teórica sobre a escrita como possibilidade de saída do estado adoecido para um outro lugar: o produtivo, pois, como disse Freud (1928[1927] 1980, p. 205), completamente implicado em seu texto, "Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas".

Psicanálise e Literatura, de mãos dadas com a escuta diferenciada e a linguagem, abrem espaço para trocas possíveis, esbarrando no impossível de tudo dizer.

 

Referências

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