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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Fundamentação científica da psicanálise e os modelos de explicação em ciência

 

Scientific foundation of psychoanalysis and explanations models in science

 

Le fondement scientifique de la psychanalyse et les modèles d'explication en science

 

La base científica del psicoanálisis y los modelos de explicación en la ciencia

 

 

Rondineli Bezerra Mariano

Graduação em Psicologia pela universidade federal de Alagoas (2009-2013). Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2014-2016) . DoutorandoUFJF (2016)

 

 


RESUMO

Freud ao longo de toda a sua obra manteve constante a posição de que a psicanálise era uma ciência natural. Apesar desse explícito posicionamento de Freud, tanto o status científico da psicanálise foi rejeitado por certa tradição em filosofia da ciência como a interpretação naturalista da psicanálise é negligenciada por muitas escolas pós-freudianas. Este artigo visa discutir o problema da cientificidade da psicanálise partindo da crítica popperiana que a considera como um exemplo de pseudociência, contrastando com uma interpretação naturalista que aceita e defende a psicanálise como uma legítima ciência natural. Para Popper, os enunciados teóricos da psicanálise não são científicos porque não podem ser falsificados quando submetidos a testes empíricos. No entanto, a filosofia da ciência popperiana pressupõe o modelo de explicação nomológico-dedutivo que não é o único possível em ciência. Algumas ciências naturais como a biologia evolutiva utilizam explicação no formato de narrativas históricas que reconstroem as causas que tornaram possível certos eventos que são impossíveis de serem explicados por meio de leis. Defende-se que apesar de explicações hipotéticas-dedutivas não ser possível em psicanálise, é possível explicações do tipo histórico-narrativas, que partem do fenômeno psíquico a ser explicado e reconstroem historicamente o conjunto de causas que o tornaram possível. A partir do esclarecimento desses modelos de explicação em ciência, pode-se compreender a psicanálise como uma ciência natural.

Palavras-chaves: Psicanálise. Naturalismo. Pseudociência. Explicação científica.


ABSTRACT

Throughout all his work, Freud persists on idea psychoanalysis was natural science. Although this Freud's explicit statement, scientific status of psychoanalysis was rejected by such tradition in philosophy of science and naturalistic interpretation is disregarded by a lot of postfreudian schools of thought. This paper aims discussing scientific foundation problem of psychoanalysis starting popperiancritic which consider it like a pseudoscience and contrasting with naturalistic interpretation which defend psychoanalysis like authentic natural science. For Popper, theoretical statements of psychoanalysis aren't scientific because it can't be falsifiable when subjecting empiric test. However, it underlies in popperian philosophy of science deductive-nomological model of explanation which is not the only possible in science. In some natural sciences like evolutive biology is present historical-narrative explanation that reconstructs chain of causal determinants that brought about emergence of events which it is impossible being approached by generalization lawlike. We defend here dedutictive-nomologic explanation is impossible in psychoanalysis, however it's possible historical-narrative explanation in this discipline which starting of mental events to be explained to historic reconstruction of chain of causal determinants that brought about its emergence. As of elucidation of explanation models in science, we can understand psychoanalysis like a natural science.

Keywords: Psychoanalysis. Naturalism. Pseudoscience. Scientific explanation.


RÉSUMÉ

Tout au long de son ouvrage, Freud a maintenu la position constante selon laquelle la psychanalyse était une science naturelle. Malgré cette position explicite de Freud, le statut scientifique de la psychanalyse a été aussi bien rejeté par certaine tradition dans la philosophie de la science, que l'interprétation naturaliste de la psychanalyse est négligée par de nombreuses écoles postfreudiennes. Cet article aborde le problème de scientificité de la psychanalyse à partir de la critique poppérienne qui la considère comme un exemple de pseudoscience contrairement à une interprétation naturaliste qui accepte et défend la psychanalyse comme une science naturelle légitime. Pour Popper, les déclarations théoriques de la psychanalyse ne sont pas scientifiques parce qu'elles ne peuvent pas être falsifiées lorsqu'elles sont soumises à des tests empiriques. Cependant, la philosophie de la science poppérienne présume le modèle d'explication nomologique déductive qui n'est pas le seul possible en science. Certaines sciences naturelles, telle que la biologie de l'évolution, utilisent des explications avec un format de récits historiques qui reconstruisent les causes qui ont rendu possibles certains événements qui sont impossibles à expliquer par les lois. D'aucuns soutiennent que, malgré des explications hypothétiques déductives qui ne sont pas possibles dans la psychanalyse, il existe la possibilité d'explications du type historique et narrative qui viennent du phénomène psychique à expliquer et, elles reconstruisent historiquement l'ensemble des causes qui l'ont rendu possible. À partir de la clarification de ces modèles d'explication en science, la psychanalyse peut-être comprise comme étant une science naturelle.

Mots-clés: Psychanalyse. Naturalisme. Pseudoscience. Explication scientifique.


RESUMEN

Freud mantenía constante la posición de que el psicoanálisis era una ciencia natural en su obra. A pesar de esta posición explícita de Freud, el estatus científico del psicoanálisis fue rechazado por cierta tradición en la filosofía de la ciencia y la interpretación naturalista del psicoanálisis es descuidada por muchas escuelas postfreudianas. Este artículo aborda si el psicoanálisis es una ciencia natural a partir de la crítica Popper que la considera como un ejemplo de pseudociencia en contraste con una interpretación naturalista que acepta y defiende el psicoanálisis como una ciencia natural legítima. Para Popper declaraciones teóricas del psicoanálisis no pueden ser científicas porque no pueden ser falsificadas cuando se presenta pruebas empíricas. Sin embargo, la filosofía de la ciencia de Popper asume el modelo de explicación nomológico-deductivo que no es el único posible en la ciencia. Algunas ciencias naturales como la biología evolutiva hacen explicaciones en el formato de reconstrucciones de narrativas históricas de las causas que hicieron posibles ciertos eventos que son imposibles de ser explicado por las leyes. Se argumenta que aunque las explicaciones hipotético-deductivo no son posibles en el psicoanálisis, son posibles explicaciones de narrativas históricas que se dirigen al fenómeno psíquico que se explicará históricamente y será reconstruido al conjunto de las causas que lo hicieron posible. A partir del esclarecimiento de estos modelos de explicación en la ciencia, el psicoanálisis se puede entender como una ciencia natural.

Palabras clave: Psicoanálisis. Naturalismo. Pseudociencia. Explicación científica.


 

 

Introdução

Freud reiteradamente afirmou que a psicanálise atendia aos requisitos para ser uma ciência natural e insistiu exaustivamente sobre esse ponto (Caropreso, 2010). Do começo ao fim da sua obra, é possível destacar passagens de seus textos em que ele afirma explicitamente sua intenção de colocar a psicanálise no rol das ciências da natureza. No entanto, para alguns autores, a psicanálise estaria longe de se parecer com as teorias das ciências naturais, pois não cumpriria os requisitos necessários para ser considerada como tal. Um desses autores foi Popper, que utilizou a psicanálise como exemplo daquilo que ela considerou como pseudociência. A psicanálise para ele não atendia ao critério de demarcação estabelecido para demarcar ciência de pseudociência, qual seja, a falseabilidade. Para Popper, os enunciados de uma teoria que se pretende científica devem ser potencialmente passíveis de se mostrar falsos por meio de testes empíricos. Se uma teoria que pretende explicar como acontecem determinados estados de coisas na realidade não puder ser posta à prova enunciando em sua própria formulação sob quais condições empíricas se mostraria falsa, então de saída ela não estaria dentro do espectro da cientificidade. Popper considerava que os enunciados teóricos da psicanálise não seriam passíveis de serem falsificados quando confrontados com a experiência (Marinho, 2012). Além disso, teria uma ambiguidade e falta de clareza nas suas formulações hipotéticas que comprometeria sua ambição científica.

O ponto central perseguido pelo texto é saber se o empreendimento teórico de Freud de erigir a psicanálise como uma legítima ciência perde a sua força e robustez diante da crítica dos teóricos que a veem como pseudociência, em especial Popper, ou se ele ainda se faz justificável em tal propósito. Diante disso e dos diversos conflitos interpretativos da obra freudiana e do estatuto epistemológico da psicanálise (Simanke, 2009), o trabalho se justifica na medida que se propõe a tornar mais compreensível a relação da psicanálise com a natureza do conhecimento científico e consequentemente apreender a própria especificidade da psicanálise como saber. Com a renovação do interesse pelo aspecto naturalista da obra freudiana, exemplificado pelas pesquisas levadas a cabo pela neuropsicanálise e por uma avaliação mais positiva da sua metapsicologia (Simanke, 2009), faz-se interessante investigar as peculiaridades de tal relação. Muitos difamam ou desvalorizam a psicanálise por seu caráter pseudocientífico e acham que ela não deveria gozar do prestígio que tem nos círculos psicológicos e em alguns ambientes acadêmicos. Fazer um esforço reflexivo como o proposto pode ajudar a esclarecer questões teóricas, quiçá problemas práticos.

A pergunta básica que guia a reflexão que se segue é a seguinte: a psicanálise poderia se desvencilhar da acusação de pseudociência ao buscar um outro modelo de ciência para sustentar seu ideal de cientificidade? Buscando responder sumariamente a tal questionamento ao analisar o estatuto de saber psicanalítico e a cientificidade possível para esse saber, a exposição que segue será estruturada de acordo com tais tópicos:

1. O trabalho epistemológico de Popper em demarcar a especificidade do conhecimento científico em relação ao que ele chama de pseudociência.

2. O ideal da psicanálise freudiana de se constituir como ciência nos moldes naturalistas.

3. Consideração popperiana de pseudociência, apresentando a razão da psicanálise se encaixar nessa categoria.

4. Possibilidade de outro modelo de ciência que aceite positivamente as intenções naturalistas da psicanálise e a considere como empreendimento teórico justificável cientificamente.

 

Demarcação do conhecimento científico em Popper

Uma parte do trabalho epistemológico de Popper pode ser interpretado como uma reação às ideias filosóficas do Círculo de Viena (Oliveira, 2012) de fazer da verificabilidade o critério que diferencia os enunciados dotados de sentido e científicos daqueles que pertencem ao reino da metafísica. Os empiristas lógicos tinham a preocupação de criar uma teoria do sentido em seu projeto de unificação e delimitação das especificidades do conhecimento científico. Para eles, apenas os enunciados que pudessem ser verificados empiricamente e que fornecem informações sobre o mundo seriam dotados de sentido e somente destes poderiam ser compostas as teorias científicas (Magee, 1973). Vê-se então que a questão do sentido está estreitamente ligada ao problema da demarcação do conhecimento científico em seu projeto filosófico. O critério da verificabilidade estava calcado também no princípio da indução (Machado, 2012), pois para os empiristas uma teoria científica parte de observações de eventos particulares para em seguida serem formuladas as leis gerais e os seus enunciados teóricos. Ou seja, dos particulares das observações se chega ao universal das teorias. A crítica de Popper ao empirismo lógico tem como um de seus principais alvos justamente o princípio da indução, que inclusive tinha sido denunciado em sua ilogicidade por Hume (Popper, 1975). O princípio da indução não resistiria a um exame lógico-crítico, por isso fazer dele fundamento das teorias científicas seria um erro, um atentado à lógica (Popper, 1975).

Popper logo no início do livro A Lógica da Pesquisa Científica (1975) explicita o sentido de sua crítica ao indutivismo. É inaceitável, do ponto de vista lógico, para o filósofo, partir de enunciados particulares verificados (observações) na tentativa de alcançar enunciados universais (teorias). Isso não passaria de uma inferência indutiva que não teria o mesmo valor em termos de raciocínio lógico que os procedimentos dedutivos. Para ele, erigir um modelo de ciência apoiado nesse princípio seria um erro crasso. Ao utilizar o seu famoso exemplo dos cisnes brancos ele explicita as lacunas lógicas do princípio da indução: "independentemente de quantos cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos" (Popper, 1975, p, 27). Como ele próprio coloca, é injustificável logicamente inferir teorias universais de casos particulares verdadeiros advindos de observações. Isso porque a observação de um único caso particular que contradiga os enunciados que sustentavam a teoria universal põe esta por terra.

Outro ponto importante da crítica popperiana ao indutivismo do positivismo lógico é sua ênfase ingênua na observação como ponto de partida para a construção do conhecimento científico. Como para o filósofo de Viena a observação é sempre procedida de hipóteses, o ponto de início está nas hipóteses criadas livremente pelo intelecto e não numa observação desprovida de teorias. Sendo assim, a observação e o experimento é uma etapa posterior e só faz sentido à luz de teorias. Para Popper as teorias nunca são confirmadas pelas experiências utilizando-se testes empíricos. Apenas podem mostrar-se falsas por meio deles (Popper, 1975). Além disso, as teorias deveriam indicar sob quais condições empíricas suas hipóteses mostrar-se-iam falsas, sendo os testes empíricos feitos na tentativa de submetê-las a um escrutínio. A marca das teorias que se pretendem científicas é justamente a possibilidade de serem abandonadas por se mostrarem em desacordo com os dados empíricos (Machado, 2012). O que distingue a ciência das outras formas de conhecimento é que ela é passível de ser falseada pela experiência e não confirmada por meio dela. O conhecimento científico deve ser sempre passível de ser falseado por testes.

No que se refere à questão da demarcação do conhecimento científico, a diferença entre Popper e o empirismo lógico é explícita, apesar de nos dois projetos filosóficos manter-se firme a busca por critérios claros que delimitem a sua especificidade. Em Popper, a demarcação não é entre a ciência que seria constituída por enunciados dotados de sentido e a metafísica dotada de proposições desprovida de significado, como defendido pelo empirismo lógico. Seria mais exato asseverar que a preocupação de Popper é demarcar a fronteira entre pseudociência e ciência (Machado, 2012). Como mostra Sieczkowski (2012), em Popper não há um projeto de expurgar a metafísica das teorias científicas, pois há um entrelaçamento entre a metafísica e a ciência de tal maneira que é impossível expurgar todos os elementos metafísicos do empreendimento científico. A ideia é que a metafísica é necessária para o progresso da ciência e para a análise crítica da natureza da investigação científica. Toda teoria científica contém elementos metafísicos, no entanto estes são diferentes da metafísica presente nas pseudociências. São aqueles elementos presentes nas teorias que as blindam de refutação e que são utilizados para protegê-la do crivo do teste empírico que devem ser abandonados (Popper, 1972), pois isso seria não jogar o jogo da ciência e é justamente essa a estratégia das teorias que se pretendem e se julgam científicas, mas que não passam de pseudociência. É válido ressaltar que para Popper uma teoria que não é científica ainda possa vir a sê-lo um dia. Para isso é necessário que por meio de uma crítica interna seja explicitado sob quais condições empíricas seus enunciados seriam falseados ou corroborados (Sieczkowski, 2012). Vamos ver então em seguida o aspecto naturalista-científico da psicanálise de Freud, que tem sido reconsiderado por novas interpretações da sua obra mais favoráveis às especificidades da sua metapsicologia.

 

A psicanálise como abordagem científica naturalista do psíquico

Apesar do fato de que Freud sempre teve em mente que seu empreendimento teórico não seria outra coisa senão uma ciência natural (Fulgêncio, 2008), numerosas interpretações da psicanálise tendem a rechaçar ou negligenciar seu aspecto naturalista (Simanke, 2009). Na verdade faz-se uma apreciação cindida de sua obra. Houve uma valorização da técnica psicanalítica e do seu método interpretativo às expensas da doutrina metapsicológica (Caropreso, 2010). Tal rejeição da metapsicologia por parte das interpretações humanistas como resquício cientificista e ultrapassado se dá porque é justamente em suas elaborações metapsicológicas que o aspecto naturalista da psicanálise freudiana torna-se explícito. A metapsicologia freudiana representa seu esforço teórico para explicar os processos psíquicos inconscientes e sua relação com os processos cerebrais e com os processos psíquicos conscientes. Ela é por excelência uma teoria de caráter especulativo sobre o modo de funcionamento dos processos físicos que constituem o psíquico inconsciente (Caropreso, 2003), o que justifica caracterizá-la como uma neuropsicologia especulativa (Caropreso, 2010).

Podem ser encontradas diversas passagens textuais das obras freudianas que atestam com muita clareza tanto a adoção por sua parte de um naturalismo psicológico como sua compreensão da psicanálise como uma ciência natural. No Projeto de uma psicologia escrito em 1895 e publicado postumamente em 1950, Freud (1966a, p. 295) assevera: "A intenção é fornecer uma psicologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis". Um argumento padrão contra a interpretação naturalista do corpus freudiano é considerar que realmente no início de sua produção teórica ele se alinhava inteiramente com uma perspectiva materialista e naturalista. No entanto, a partir de certo momento de sua obra, ele troca a linguagem fisicalista por um vocabulário psicológico para tratar dos fenômenos psíquicos porque esta seria mais adequada à especificidade desses fenômenos. Isso indicaria que Freud explicitamente renunciou a compreender os fenômenos psíquicos dentro do registro do natural.

No entanto, o argumento de que Freud teria abandonado tais pressupostos no decorrer das suas investigações clínicas não parece razoável, tendo em vista que em toda a sua obra, mesmo na sua fase final nos idos dos anos 1930, podem ser encontradas passagens que deixam entrever a permanência do naturalismo já anunciado na sua chamada fase neurológica e que ele deve à tradição intelectual e acadêmica na qual se formou (Simanke, 1994). Por exemplo, num texto deixado incompleto e que só foi publicado em 1940, Freud reitera mais uma vez o estatuto epistemológico da psicanálise: "A psicologia também é uma ciência natural. O que mais ela poderia ser?" (Freud, 1966b, p. 282). Nas Novas conferências, outro trecho com o mesmo teor: "A estrutura teórica da psicanálise que nós criamos é, na verdade, uma superestrutura, que um dia terá que ser assentada em sua fundamentação orgânica. Mas nós ainda a ignoramos" (Freud, 1998a, p. 389). E numa confissão famosa em Esboço de Psicanálise, de 1938, é reiterada a permanência de pressupostos acolhidos lá no início de sua obra.

Aqueles que seguiram nossas considerações só por interesse terapêutico talvez nos dêem as costas com menosprezo após essa nossa confissão. Mas a terapia nos ocupa aqui unicamente na medida em que ela trabalha com meios psicológicos; no momento não temos outros. Talvez o futuro nos ensine a influir de forma direta, por meio de substâncias químicas específicas, sobre os volumes de energia e suas distribuições dentro do aparelho psíquico. (Freud, 1998b, p. 182)

Em toda a sua obra, Freud faz especulações neuropsicológicas na tentativa de explicar os fenômenos psíquicos que aparecem na clínica e desenvolve permanentemente seus modelos metapsicológicos sobre o funcionamento dos processos psíquicos inconscientes que por sua vez são processos cerebrais (Caropreso, 2010). Como afirma Solomon (1976), Freud não abandona no decorrer de sua produção teórica seu modelo neuropsicológico que começou a ser esboçado e teorizado já em 1895 em seu Projeto de Psicologia. Levando em consideração a sua compreensão dos processos psíquicos inconscientes como sendo de natureza somática, o que deixa em evidência seu materialismo, torna-se compreensível sua defesa do caráter provisório da linguagem e das teorias psicológicas na elucidação dos fenômenos psíquicos. O fato de uma linguagem psicológica ter sido adotada indica tão somente que não havia ainda conhecimento suficiente sobre os processos neurais que permitissem abordá-lo com uma linguagem que não fosse a psicológica, não porque fosse a mais adequada, mas porque não havia conhecimento suficiente dos processos cerebrais. Em Além do princípio do prazer (1998c), Freud assevera que

[...] é provável que os defeitos de nossa descrição desapareçam se, em lugar dos termos psicológicos, pudéssemos já usar os fisiológicos ou químicos. Mas, na verdade, também estes pertencem a uma linguagem figurada, ainda que nos seja familiar há mais tempo e seja, talvez, mais simples. (Freud, 1998c, p. 58)

Até mesmo para compreender perfeitamente porque Freud adota o inconsciente como o verdadeiro objeto de estudo de uma psicologia científica, tem que se ter em mente sua visada naturalista e sua compreensão da psicanálise como ciência natural. A postulação do inconsciente, em parte, é justificada pelo fato de que uma psicologia que não leva em consideração o inconsciente e lida apenas com a consciência não consegue explicar uma gama de fenômenos psíquicos, tais como os sonhos, os atos falhos e sintomas psicopatológicos (Caropreso, 2010). Por outro lado, ele se justifica também por um pressuposto freudiano de caráter metafísico. Tendo em vista que Freud pensava a psicanálise como pertencente ao reino das ciências naturais, devendo compartilhar os mesmos pressupostos e atitude diante da realidade que elas (Freud, 2008), a adoção do inconsciente como objeto de uma verdadeira psicologia científica cumpre uma função estratégica em seu projeto teórico (Simanke & Caropreso, 2011) de estabelecer a psicanálise como tal.

Uma psicologia que adote apenas o consciente como o seu legítimo objeto de estudo não poderia ser uma ciência natural, tendo em vista que a consciência e suas propriedades poderiam ser de uma natureza não material, ao menos os textos do autor dão margem para tal interpretação, exigindo uma abordagem e pressupostos diferentes daqueles comuns às ciências naturais (Caropreso, 2010). Assim, a psicanálise só pode ser uma ciência natural porque Freud assume que os processos inconscientes em última instância são processos cerebrais e neurofisiológicos, portanto dotados da mesma natureza material que os fenômenos abordados por outras ciências, constituindo assim um objeto adequado a uma psicologia científica (Caropreso, 2010). A estratégia freudiana de explicar os fenômenos psíquicos a partir de conceitos energéticos e a utilização de uma linguagem teórica de franca inspiração biológica não é simplesmente um apego a sua formação médica, é coerente com sua filiação a uma perspectiva naturalista-materialista.

Por muito tempo, várias interpretações da psicanálise tentaram reler os conceitos naturalistas e energéticos freudianos a partir de referenciais filosóficos externos à psicanálise e tomaram atitudes comuns em relação a eles. Ou desconsideram de todo o explícito aspecto naturalista da psicanálise freudiana sem maiores pormenores ou o tomaram como um resquício anacrônico de sua formação intelectual e acadêmica como neurologista, sendo totalmente dispensável como legado teórico e intelectual (Simanke, 2013). É o caso da psicanálise francesa, da psicanálise existencial de Biswanger e do culturalismo norte-americano de franca inclinação antinaturalista (Simanke, 2009). Pelo fato de as teorizações de Freud sobre o surgimento do laço social, do fenômeno da arte, do surgimento da cultura estarem próximas das construções teóricas das humanidades, logo se ressaltou os aspectos hermenêuticos da obra freudiana e o pintaram como um teórico das humanidades. Mas isso desconsiderando a matriz naturalista dessas investigações. Por isso que a aproximação entre biologia e cultura feita por Freud foi interpretado como resquício de seu apego excessivo à epistemologia naturalista positivista, na qual estava imerso e que poderia ser totalmente esquecida sem prejuízo para a psicanálise. Tal aproximação não foi valorizada nem apreciada como um elemento indicador de que para Freud não havia ruptura ontológica entre a natureza e o humano, não fazendo sentido, portanto, a distinção e cisão entre ciências naturais e ciências humanas. Também ganhou escola a interpretação de que esse credo naturalista de Freud não passaria de um autoengano cientificista, como defendido por Habermans (2014).

Simanke (2013) enfatiza que essa aparente bizarrice de Freud, ao aproximar arte e instinto, religião e um fenômeno clínico como a neurose, biologia e cultura, se faz coerente com seu naturalismo e sua concepção de ciência, não deixando de ser também fecundo e produtivo do ponto de vista teórico. O que para muitos intérpretes de Freud aparece como dois momentos diferentes e díspares da sua obra, sua metapsicologia, que tem ares de uma neuropsicologia especulativa, esboçado inicialmente no projeto de 1895 e sua teoria social forjada na década de 1920, na perspectiva do autor, são conciliáveis e se exigem mutuamente (Simanke, 2009). Essa valorização da metapsicologia freudiana de explícita intenção naturalista e de seus ideais científicos também foi retomada no projeto da neuropsicanálise, que tenta alinhar as teorizações freudianas e suas especulações metapsicológicas com as pesquisas atuais em neurociências.

Podemos ver então que o naturalismo de Freud não é algo necessariamente menor ou secundário no corpus de sua obra e deve ser considerado para apreendermos o verdadeiro alcance de seu projeto teórico e uma compreensão mais pormenorizada de sua obra. Apresentaremos a seguir a crítica de Popper às intenções científicas da psicanálise para em seguida discutirmos se há espaço e lugar para uma consideração mais positiva de uma psicanálise nos moldes científico-naturalistas, tal como no projeto original de Freud.

 

A psicanálise como pseudociência

Podemos compreender a epistemologia de Popper como normativa justamente por sua ênfase na demarcação entre as teorias que jogam o jogo da ciência e aquelas que se querem científicas, mas que não obedecem às regras do jogo. Há uma preocupação explícita em demarcar, legislar sobre o que é ciência e o que não é. Como falamos, baseado em Machado (2012) e Sieczkowski (2012), não há em Popper uma tentativa de expurgar totalmente a metafísica da ciência como no projeto do Empirismo Lógico, pois sempre restaria elementos metafísicos nas teorias científicas. A questão é saber quais elementos metafísicos impedem o progresso do conhecimento empírico sobre a realidade e de que maneira as teorias que se pretendem científicas devem ser elaboradas, evitando-os. Um elemento metafísico típico das pseudociências e que talvez seja o mais característico é que de suas teorizações é impossível deduzir um enunciado empírico que descreva certo estado de coisas na realidade que é passível de ser corroborado ou refutado por meio de testes. Teorias pseudocientíficas também não fazem predições arriscadas que poderiam servir como testes cruciais de refutação (Marinho, 2012). Podemos citar (Marinho 2012) outras características típicas das pseudociências que a psicanálise, para Popper, continha. Popper as enunciou em seu livro Conjecturas e Refutações, obra em que ele tece suas críticas à psicanálise.

As pseudociências teriam uma excessiva capacidade de explicação (Popper, 1972) e para isso faria uso de hipótese ad hoc, hipóteses auxiliares, incapazes de serem testadas independentemente e que blindam a teoria de refutação. Para explicar fenômenos tão abrangentes como o desenvolvimento do reconhecimento de objetos no psiquismo da criança, a percepção do mundo externo, o reconhecimento do eu, a criação do laço social entre os homens e o surgimento da cultura, a psicanálise precisa fazer uso de diversas hipóteses auxiliares incapazes de serem testadas isoladamente. Outra característica típica é a ideia da "confirmação" da teoria pela experiência anterior que faz com que os fenômenos que parecem não ser adequadamente explicados pela teoria sejam acomodados a ela porque se parecem com observações anteriores que são supostamente bem explicados (Popper, 1972). Popper se refere explicitamente a uma conversa com Adler na qual ele lhe apresenta um problema de uma criança que não lhe parecia ser explicado em termos adlerianos, mas que o psicanalista não hesita em utilizar o seu conceito de sentimento de inferioridade para dar conta do caso sem nem mesmo ter visto a criança. Popper sugere que os adeptos de Freud faziam o mesmo (Marinho, 2012). Isso demonstraria também o modo como as pseudociências evitam aquelas observações que poderiam refutá-las, procurando encaixá-las a todo custo em seu modelo explicativo.

Outro ponto específico da crítica de Popper a psicanálise é a circularidade das observações clínicas que são usadas pelos psicanalistas como confirmação da sua teoria. "As observações clínicas, como qualquer tipo de observação, são interpretações empreendidas à luz das teorias, por esta razão podem parecer sustentar as teorias à luz das quais foram interpretadas" (Popper, 1972, p. 67, nota 3). As próprias observações clínicas já são feitas à luz da teoria, por isso dão impressão de que a confirmam, no entanto há um processo circular que torna problemática entender essas observações como evidência empírica que corrobora a teoria. Popper enfatiza ainda que não são feitas observações sistemáticas por parte dos psicanalistas na tentativa de falsificar a teoria nem é estabelecido sob quais condições empíricas específicas as teorias psicanalíticas seriam refutadas, ou seja, não há critérios de refutação. No sistema popperiano de ciência, não há espaço, portanto, para considerar a psicanálise uma ciência natural legítima, tal como Freud a quis.

 

A possibilidade do empreendimento científico psicanalítico

Vale evidenciar que não pretendemos apontar as falhas internas do argumento de Popper e sua limitação enquanto crítica epistemológica da psicanálise ou até mesmo procurar um lugar para a psicanálise no sistema popperiano que não seja o da pseudociência, como fez Machado (2012) ao reivindicar para a psicanálise o posto de programa de pesquisa metafísico. Outros autores que empreenderam um trabalho crítico-filosófico da psicanálise de inspiração popperiana, mas chegando a conclusões diferentes das de Popper, foram Grunbaum (1984) e Klimovsky (1989).

Grunbaum defende, diferentemente de Popper, que a psicanálise pode sim ser exposta a testes e ter seus enunciados falsificados ou corroborados, portanto ela não é irrefutável, o que enfraquece a asserção de que é pseudociência. Já para Klimovsky, a psicanálise é passível de ser posta à prova a partir dos testes específicos das ciências humanas, tendo o mesmo potencial das outras teorias quando expostas a esses procedimentos (Marinho, 2012).

O que nos interessa primordialmente aqui é explicitar o modelo de explicação que faz parte da concepção de ciência de Popper para em seguida analisarmos se é possível um outro modelo de ciência e de explicação que não seja o modelo nomológico-dedutivo elaborado por Carl Hempel e de certa forma aceito por Popper. Tomaremos nesse momento como base um texto de Simanke (2013) "Causalité et emancipation dans la cure psychanalytique", no qual ele sustenta a possibilidade teórico-científica da psicanálise baseado numa epistemologia que tomou forma na filosofia da biologia nos idos dos anos 1960.

Procuramos explicitar ao longo do texto que Popper defende um modelo de ciência baseado no método dedutivo, no que se refere à construção das teorias e aperfeiçoamento delas a partir de testes empíricos. Ou seja, a partir dos enunciados teóricos de determinadas teorias, deduz-se consequências empíricas a serem testadas por meio do experimento, tendo em vista a falsificação ou corroboração da teoria. Poderíamos afirmar também que a concepção de explicação de Popper é dedutiva, podendo até asseverar que ele compartilha o modelo dedutivo-nomológico de explicação e causalidade, tal como foi formalizado por Hempel em sue livro Aspects of Scientific Explanation (1965).

Para Hempel (1965), uma explicação tem que satisfazer duas exigências centrais. Primeiro ela tem que dizer sob quais condições particulares um fenômeno específico acontece, ou seja, quais outros fenômenos devem estar presentes para que o fenômeno a ser explicado ocorra. Seriam as condições particulares e necessárias para que ocorra o fato. Além disso, a explicação precisa enunciar ainda o porquê de aquele fato ocorrer, qual a relação entre as condições particulares e o fato que ocorreu por meio de uma lei geral. Então uma explicação enuncia determinadas condições particulares (c1, c2, c3, c...) necessárias para que o fato x (o explanandum) aconteça e uma lei geral da natureza que governa a relação entre tais condições e o fato a ser explicado. As condições particulares junto com as leis são o explanans, e o fenômeno explicado é o explanandum. As premissas de uma explicação que são as condições iniciais e a lei geral (explanans) são condições suficientes e necessárias para que o fenômeno explicado (explanandum) ocorra. Na posse das premissas (explanans), tem-se então o (explanandum).

Segue-se daí que caso se conheça as condições c1, c2 e c3 para que determinado fenômeno x ocorra e a lei natural que regula tal fenômeno é possível realizar a previsão de tal fenômeno. Daí segue-se a tese da simetria entre explicação e predição. Se a explicação de um fenômeno é satisfatória, então necessariamente temos a possibilidade de fazer previsões a seu respeito. A explicação segue do explanandum (fenômeno a ser explicado) para o explanans, já a previsão faz o caminho inverso. A partir do explanans vai-se ao explanandum. A previsão não é nada mais que a série de determinação na direção oposta à explicação. Há nesse modelo, portanto, um componente determinista, pois se há explanans, necessariamente há o explanandum, tomando a explicação a forma de um argumento dedutivo logicamente válido (Simanke, 2013). Por isso que esse modelo de explicação científica chama-se nomológico-dedutivo. Nomológico porque há uma lei que forma a premissa principal, e dedutivo porque o explanandum é deduzido e aparece como uma consequência lógica do explanans.

É fato que nas ciências físicas que lidam com acontecimentos do mundo inorgânico tal ideal de explicação é mais fácil de ser perseguido. No entanto, algumas ciências naturais como a Biologia Evolucionista, a Paleontologia e a Geologia, que tem seu status científico seguramente garantido, não trabalham exclusivamente com tal modelo de explicação e abordam seus objetos de outra maneira. A própria Biologia, por defender o caráter irredutível dos fenômenos orgânicos às leis naturais das físicas que regem a matéria inorgânica, enfrentou severas dificuldades de se afirmar como uma ciência autônoma e tão legítima quanto a física (Mayr, 2006). Além do que, no que tange especificamente ao problema da explicação nas ciências, há fenômenos do domínio da Biologia Evolutiva que é impossível explicar por meio de leis (Mayr, 2006) e por um modelo de explicação nomológico-dedutivo. Explicar fenômenos como o desaparecimento dos dinossauros, o surgimento do homem e a diversidade orgânica exige uma outra abordagem. Trata-se de uma metodologia baseada em narrativas históricas que tentam reconstruir os fatos da evolução por meio de narrativas que são avaliadas tanto por sua plausibilidade quanto pelo seu poder explicativo.

Simanke (2013), considerando a inadequação do modelo nomológico-dedutivo para a psicanálise, ressalta que as explicações nessa disciplina são, sobretudo, reconstruções históricas dos fatos da vida psíquica, tal como em Biologia Evolutiva se recompõe os fatos da evolução. Freud estava ciente de que as explicações em psicanálise não poderiam ser de caráter dedutivo-nomológico, nem tinha uma concepção de causalidade psíquica, tal como a pressuposta por tal modelo. Em psicanálise é possível reconstruir as inúmeras causas e condições necessárias que tornaram possível a ocorrência única de um dado fenômeno, partindo retrospectivamente do fenômeno a ser explicado, por exemplo, determinadas obsessões em sujeito neurótico, para as causas que o tornaram possível (Simanke, 2013). No entanto, não é possível uma formulação geral que estabeleça as condições necessárias e suficientes para que determinados sujeitos desenvolvam um conjunto de obsessões típicas. Daí a diferença do modelo de Hempel. Neste, em posse do explanans é possível seguir para o explanandum. Caso X (explanans) então Q (explanandum) e se Q então X. Mas em psicanálise não é possível determinar que se X, então Q, apenas o contrário. Se houve Q, então X. Considera-se que Q poderia ser produzido por outra sorte de eventos que não X, e que X poderia ter outros efeitos que não Q. Como não é possível asseverar as condições necessárias e suficientes para a ocorrência de um fenômeno, o ideal de predição sobre a ocorrência futura de tais sortes de eventos torna-se inatingível, havendo entre explicação e previsão uma relação de assimetria.

Esse modelo, poderíamos dizer, trabalha com uma concepção de causalidade fraca que leva em conta a perspectiva do agente e a possibilidade de escolha, pressupondo que não há causas que determinam estritamente o comportamento humano. No entanto, não deixa de ser uma concepção específica de causalidade. O determinismo psíquico do qual Freud fala diz respeito à possibilidade de reconstruir historicamente o conjunto de causas que tornaram possível determinado sintoma (tal como se procede numa análise), mas não determinar que esse sintoma é sempre causado por esse mesmo conjunto de causas. Considerando que explicar por meio de narrativas históricas é procedimento tão legítimo como proceder por via de um argumento nomológico-dedutivo nas ciências naturais, há sim possibilidade para considerar a cientificidade da psicanálise.

 

Considerações finais

Neste artigo procuramos debater o status científico da psicanálise apresentando um contraponto à consideração popperiana da psicanálise como pseudociência baseado na explicitação do modelo específico de explicação com o qual a ciência freudiana trabalha. Mostrou-se como a interpretação naturalista da obra é respaldada pelos textos do autor, mostrando-se como certas premissas assumidas por Freud no início de sua obra o acompanharam ao longo de toda sua produção. Essas premissas dizem respeito à consideração da psicanálise como ciência natural e dos fenômenos psíquicos como pertencendo ao domínio dos fenômenos naturais. No entanto, apesar das reiteradas afirmações freudianas quanto à cientificidade de sua disciplina, houve muita resistência a aceitação da sua legitimidade como tal. A crítica de Karl Popper à psicanálise, que ele considerou como um exemplo cabal de pseudociência, teve muita ressonância e é um exemplo clássico da recusa do seu valor científico.

A filosofia da ciência popperiana, preocupada em demarcar precisamente o domínio do conhecimento científico, excluiu toda teoria que não podia se falsificada por meio de testes empíricos como pertencendo ao domínio da pseudociência. O que se procurou argumentar aqui foi que tal consideração popperiana está ancorada numa concepção de ciência e que endossa um modelo de explicação específica. Tal modelo pressupõe que as explicações devem ter um caráter dedutivo-nomológico, sendo que na posse de uma explicação satisfatória de um fenômeno, logo se tem a possibilidade de fazer previsões a seu respeito. Ora, tal modelo de explicação não é o único adotado nas ciências da natureza e não dá conta de todos os fenômenos naturais. Exigir que toda ciência utilize exclusivamente tal modelo não é razoável, nem faz jus a especificidade de certas ciências naturais. Muitas ciências naturais utilizam explicações que procedem por meio de narrativas históricas que reconstroem o conjunto de causas que possibilitaram a emergência de certos fenômenos, como é o caso da biologia evolutiva, a paleontologia, a geologia (Bock, 2007). A linha argumentativa do texto foi desenvolvida para reivindicar justamente que no caso da psicanálise tal modelo de explicação é mais adequado à sua especificidade e é coerente com uma interpretação naturalista da disciplina. É possível, a partir do edifício teórico psicanalítico, empreender explicações histórico-narrativas dos fenômenos psíquicos mais diversos, reconstruindo o conjunto de fatores causais que tornaram possível certos eventos mentais.

Sendo assim, vemos que quando esclarecido alguns detalhes sobre os modelos de explicação com os quais a ciência trabalha que é possível então reconsiderar o status epistêmico da psicanálise. Como Freud asseverou, a psicanálise é sim uma ciência e tem todo o direito de ser valorada como tal. O fato de não proceder tal com as ciências físicas não é um defeito, apenas explicita o caráter específico dos objetos com os quais lida e a especificidade de sua explicação dos fenômenos psíquicos.

 

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