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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Causdequê?: um espaço indeterminado

 

Causdequê?: an intermediary space

 

Causdequê?: un espace intermédiaire

 

Causdequê?: un espacio intermedio

 

 

Alessandra Affortunati Martins ParenteI; Fabiana Duarte TakiutiII

IPsicanalista. Psicóloga (PUC-SP). Doutora em Psicologia Social e do Trabalho. Mestre em Psicologia clínica. Bacharel em Filosofia (USP). Pós-doutoranda em Filosofia. Membro do Latesfip-USP e do GT de Filosofia da Psicanálise da Anpof. Atua na clínica com adultos e adolescentes e na Casa do Adolescente (UBS-SUS). Autora de Sublimação e Unheimliche (São Paulo: Person/Casa do Psicólogo, 2017)
IIPsicanalista com formação pelo Instituto Sedes Sapientiae. Bacharela em Psicologia pela PUC-SP. Coordenadora de grupos de adolescentes na Casa do Adolescente (UBS-SUS) e supervisora clínica

 

 


RESUMO

O trabalho visa apresentar o projeto Causdequê?, que tem lugar na Casa do Adolescente. Trataremos de definir os espaços institucionais como espaços intermediários (Kaës, 2005) propícios à circulação de formas linguísticas que interessam à Psicanálise. Delimitar o lugar de escuta sensível a determinadas formas linguísticas exigiu o esforço de distinguir o discurso com o qual a Psicanálise se ocupa - o do inconsciente - de outros três modelos linguísticos: o da poesia, o da crítica e o da Filosofia. Com exceção da Psicanálise, tais gêneros linguísticos foram circunscritos por Giorgio Agamben em alguns capítulos de Estâncias (1977/2007). Desdobrando-os e, ao mesmo tempo, acompanhando a prática clínica do projeto Causdequê?, pudemos depurar o local no qual o analista se situa nas instituições: um lugar rente aos espaços quase vazios. Ali o analista aguça a escuta para vibrações quase mudas da linguagem. Nessa região, é muito comum que identidades sexuais e de gênero assumam um caráter híbrido, pouco condizente com modelos normativos. Nesse contexto, casos atendidos no projeto tornam-se particularmente interessante, demonstrando que, se vividos livremente, desejos ligados a características geralmente atribuídas ao gênero oposto ao sexo "natural" podem retirar armaduras identitárias opressivas. Com isso, modos de ser mulher, ser homem, ser trans, ser gay se moldam pelas singularidades assumidas pelo sujeito. Viver o desejo passa a significar, então, inventar e experimentar histórias e escolhas amorosas pelas quais os sujeitos se tornam responsáveis.

Palavras-chave: Espaço intermediário. Sexualidade híbrida. Giorgio Agamben. Psicanálise Institucional.


ABSTRACT

The paper aims to present the project Causdequê? which takes place in the Casa do Adolescente. We seek to define institutional spaces as intermediate spaces (Kaës, 2005) propitious to the circulation of linguistic forms that are of interest to psychoanalysis. To delimit the place of sensitive listening to certain linguistic forms required the effort to distinguish the discourse with which psychoanalysis deals - the unconscious - of three other linguistic models: that of poetry, that of criticism and that of philosophy. With the exception of psychoanalysis, such linguistic genres were circumscribed by Giorgio Agamben in some chapters of Estâncias (1977/2007). Unfolding them and, at the same time, following the clinical practice of the Causdequê? we were able to debug the place where the analyst is located in institutions: a place close to the quasi-empty spaces. There the analyst sharpens the listening for almost silent vibrations of language. In this region, it is very common for sexual and gender identities to assume a hybrid character, little in keeping with normative models. In this context, cases addressed in the project become particularly interesting. They demonstrate that, if lived freely, desires linked to characteristics generally attributed to the gender opposite to "natural" sex can remove oppressive identity armor. With this, ways of being a woman, being a man, being trans, being gay are shaped by the singularities assumed by each subject. To live the desire means, then, to invent and to experience stories and loving choices for which the subjects become responsible.

Keywords: Intermediary space. Hybrid sexuality. Giorgio Agamben. Institutional Psychoanalysis.


RESUMEN

El objetivo del artículo es presentar el proyecto "Causdequê?" que tiene lugar en la Casa del Adolescente. Trataremos de definir los espacios institucionales como espacios intermedios (Kaës, 2005), propicios a la circulación de formas lingüísticas que interesan al psicoanálisis. Delimitar el lugar de escucha sensible a determinadas formas lingüísticas exigió un esfuerzo para distinguir el discurso del cual se ocupa el psicoanálisis - lo del inconsciente - de otros tres modelos lingüísticos: el de la poesía, el de la crítica y el de la filosofía. Con excepción del psicoanálisis, estos géneros lingüísticos fueron circunscritos por Giorgio Agamben en algunos capítulos de Estancias (1977/2007). Analizándolos y, al mismo tiempo, adjuntando la práctica clínica del proyecto "Causdequê" pudimos depurar el lugar en el que el analista se sitúa en las instituciones: un lugar rente a los espacios casi vacíos. Allí el analista agudiza la escucha de vibraciones casi mudas del lenguaje. En esa región, es muy común que las identidades sexuales y de género asuman un carácter híbrido, poco acorde con modelos normativos. En este contexto, algunos casos analizados en el proyecto resultan particularmente interesantes.
Demuestran que, si se viven libremente, deseos relacionados con características generalmente atribuidas al género opuesto al sexo natural pueden quitar armaduras identitarias opresivas. Por tanto, modos de ser mujer, ser hombre, ser trans, ser gay, se moldean por las singularidades asumidas por cada sujeto. Vivir el deseo pasa a significar, entonces, inventar y experimentar historias y opciones amorosas por las cuales los sujetos se vuelven responsables.

Palabras clave: Espacio intermedio. Sexualidad híbrida. Giorgio Agamben. Psicoanálisis Institucional.


RÉSUMÉ

Le travail a pour bout de présenter le projet Causdequê? qui a lieu à la « Casa do Adolescente ». Nous allons essayer de définir les espaces institutionnels comme espaces intermédiaires (Kaës, 2005) propices à la circulation des formes linguistiques qui intéressent la psychanalyse. Délimiter le lieu d'écoute sensible à certaines formes linguistiques a demandé l'effort de distinguer le discours dont la psychanalyse s'occupe - celui de l'inconscient - de trois autres modèles linguistiques: celui de la poésie, celui de la critique et celui de la philosophie. A l'exception de la psychanalyse, ces genres linguistiques on été circonscrits par Giorgio Agambem dans certains chapitres d' Estâncias (1977 2007). En les dépliant et, en même temps, en suivant la pratique clinique du projet Causdequê? nous avons pu dépurer le lieu dans lequel l'analyste se situe dans les institutions: un lieu proche d'espaces presque-vides. Ici l'analyste aiguise l'écoute des vibrations presque muettes du langage. Dans cette région, c'est très courant que les identités sexuelles et de genre prennent un caractère hybride peu conforme aux modèles normatifs. Dans ce contexte, les cas traités dans le projet deviennent particulièrement intéressants. Ils démontrent que, si vécus librement, les désirs liés à caractéristiques généralement attribuées au genre opposé au sexe « naturel » peuvent retirer les armures identitaires oppressives. Par conséquent, les manières d'être femme, d'être homme, d'être trans, d'être gay se moulent dans les singularités assumées par chaque sujet. Vivre le désir signifie, alors, inventer et expérimenter des histoires et des choix amoureux pour lesquelles les sujets deviennent responsables.

Mots-clés: Espace intermédiaire. Sexualité hybride. Giorgio Agambem. Psychanalyse Institutionnel.


 

 

O Projeto Causdequê?, que será aqui apresentado, acontece na Casa do Adolescente do Centro de Saúde Pinheiros, como parte do Programa do Adolescente da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Atende adolescentes de 10 a 20 anos, gratuitamente, de forma não regionalizada. O Programa conta com equipe multiprofissional e com uma Comissão Executiva Multiprofissional e Interinstitucional e uma Comissão de Assessoria Científica composta por especialistas em adolescência ligados a várias Faculdades, entre as quais a Faculdade de Medicina da USP.

 

Espaço vazio e o nascimento do Causdequê?

No ano de 2016, além de atendimentos individuais, o trabalho psicanalítico com os adolescentes consistia em grupo de conversas que depois se desdobravam em jogos teatrais, inspirados nas técnicas de Augusto Boal. Nesses dois dispositivos, questões de identidade de gênero eram recorrentes. Casos nos quais escolhas amorosas, que fugiam às normatividades, não eram subjetivamente aceitas e formavam soluções de compromisso sintomáticas, visivelmente paralisantes. Identidades de gênero apareciam, em suma, de maneira extremamente enrijecida, obliterando os vários fluxos do desejo. Foi diante desse quadro que no ano de 2017 resolvemos abrir, sem nenhuma experiência ou conhecimento prévio, um espaço no qual essas questões pudessem emergir e compor as atividades. Nasceu assim o Causdequê?, atendimento psicanalítico em grupo, voltado para adolescentes, cujos conflitos estão ligados às suas escolhas sexuais. A ideia, que deu origem ao próprio nome do espaço aberto, era acolher o caos e o caráter híbrido de afetos e objetos que causavam o desejo.

Cavar essa área na instituição exigiu de nós uma reflexão que pudesse justificar a importância de nossa escolha. Oferecer simplesmente esse espaço vazio - sem consistência nenhuma além da escuta disponível - não foi, contudo, uma aposta de todo ingênua. Em nossas experiências anteriores, já havíamos constatado como o vazio tinha sido o principal sustentáculo de nossa atuação como psicanalistas na instituição. Desse quase-nada, já havia brotado uma série de elementos simbólicos que davam consistência aos mais diferentes e singulares desejos dos adolescentes. Instrumentos da psicanálise são extremamente potentes nesse terreno vazio, capaz de realocar desejo e angústia para o centro das intervenções. Os resultados obtidos caminharam sempre por uma via de mão dupla: por um lado incidiram sobre o trabalho psicanalítico e por outro sobre os conflitos psíquicos dos pacientes envolvidos nas dinâmicas. Assumir o vazio, sem qualquer proposta preliminar, significou apostar que da vibração do caos e das escolhas híbridas e nascentes, desenhar-se-ia também os contornos de nossa escuta.

 

Kaës e os espaços intermediários

Em Espaços psíquicos e espaços compartilhados, a categoria de intermediário (die Mittelbildung) é identificada por René Kaës (2005) em diferentes passagens da obra freudiana. Espaço de rupturas e continuidades, um entre que talvez tenha ganhado sua melhor expressão na imagem winnicottiana de espaço potencial no qual estariam objetos transicionais - objetos nem inteiramente subjetivos, nem inteiramente objetivos. Kaës leva o objeto transicional às suas últimas consequências, introduzindo a ideia de que a própria análise estaria configurada como transicional. Operar nos espaços de clivagem, nas fronteiras entre as diferentes instâncias psíquicas tanto da primeira como da segunda tópica freudiana, nas zonas de corte em que se produziram os recalques primário e secundário, nas lacunas entre significantes - metáforas e metonímias. Sem as zonas intermediárias, diz Kaës, perde-se as regiões vitais de proteção e de sonho. Crises, traumas, rupturas quase sempre evocam a tessitura própria para esses espaços intermediários - lugar de onde brotam os jogos, os sonhos, a brincadeira, o riso, as lágrimas. Algumas frases de Freud são capazes de dar a exata dimensão dessas regiões imprecisas. Diz o pai da psicanálise em, Estudos sobre histeria, que

[...] em certos casos - extremamente raros - as lembranças, autenticamente patógenas, se encontram muito perto da superfície. Mas, muito mais frequentemente, o pensamento que ressurge representa, na cadeia associativa, um elo intermediário entre a representação primitiva e a ideia patógena a descobrir. (Freud apud Kaës, 2005, p. 17)

"Perto da superfície", local que denota um quase lá, zona de passagem, e o "elo intermediário" que denota, naquele contexto, justamente a própria linguagem como tecido que se estende no entre. Em outro exemplo, recolhido por Kaës (2005) de A interpretação dos sonhos de Freud, o sonho é designado "reino do intermediário" - espaço intermediário que estabelece o elo entre "impressões carregadas de valor psíquicos" e "fatos indiferentes do dia anterior" (p. 18). A formação intermediária é equiparada à formação de compromisso em sonhos e sintomas - o que liga conteúdos recalcados às imagens que os ressuscitam.

Para Donald Winnicott (1975), os espaços intermediários são espaços potenciais - lugar da cultura por ser expressão daquilo que se mantém entre subjetividade e objetividade. Um intervalo - o vazio ou a negatividade a que alude Kaës - cujos limites são transponíveis apenas pela consistência fugaz e imprecisa das ilusões e fantasias. Antonio Lancetti (2008, p. 20) lembra que Winnicott compreendia "o setting como espaço potencial que, ao mesmo tempo, é e não é". Para Lancetti, nesse lugar paradoxal encontram-se "expressões ainda não formadas, raridades fundamentais para produção de subjetividade".

Pediremos agora um pouco de paciência aos leitores para um pequeno desvio que pode parecer um circunlóquio muito distante dos problemas concretos da clínica psicanalítica voltada ao público LGBT nas instituições públicas de saúde; tais campos certamente oferecem problemas suficientemente árduos e intensos para que pareça justificável trazer à baila outros elementos, ainda mais de teor filosófico. Será importante, contudo, desenhar o intermediário na psicanálise para que, em seguida, possamos apresentar o modo como se desdobrou o grupo Causdequê? na Casa do Adolescente.

*

Comecemos, então, com uma curiosa passagem de Estâncias1 (Stanze), obra de Giorgio Agamben (1977/2007) que também resgata a noção winnicottiana de espaço potencial. Com ela, o filósofo pretende diferenciar a crítica de outras duas formas de expressões da tradição ocidental: a poesia e a filosofia. Para o pensador italiano, a tradição ocidental gira em torno de um espaço vazio, aludido insistentemente pela crítica. Diante do embate entre a poesia (ποίηση) e a filosofia (φιλοσοφία), claramente declarado desde Platão, e mantido sob outras formas na tradição ocidental - disputa entre "a apropriação sem consciência e a consciência sem gozo" (Agamben, 1977/2007, p. 13) -, a crítica surge, diz Agamben, como "gozo daquilo que não pode ser possuído e a posse daquilo que não pode ser gozado" (ibdem, p. 13). A crítica seria fruto do momento em que a cisão entre palavra poética e palavra que enuncia a verdade alcança seu ápice.

Se a palavra ocidental está "dividida entre uma palavra inconsciente e como que caída do céu, que goza do objeto do conhecimento, representando-o na forma bela - a poesia -, e uma palavra que tem para si toda a seriedade e toda a consciência, mas que não goza do seu objeto porque não o consegue representar" - a filosofia - (ibdem, p. 12), a crítica caminha, então, no fio do descolamento inerente à palavra ocidental. Como forasteira, a palavra bela entra na filosofia, assim como o pensamento, que sem portar documento legítimo, invade as fronteiras da poesia.

Assentada na lacuna entre ambas, a crítica detém-se no próprio estatuto da representação ou do conhecimento. Por isso, diz Agamben (1977/2007), "o que fica fechado na 'estância' [stanza]2 da crítica é nada, mas esse nada contém a inapreensibilidade como o seu bem mais precioso" (ibdem, p. 13). Não sendo poesia, filosofia ou crítica, a psicanálise poderia ser um quarto campo a aproximar-se desses outros, já que também está às voltas com esse espaço intermediário. Sem a pretensão da filosofia de capturar a verdade, e também destituída do descompromisso próprio da poesia de simplesmente acercar-se do belo, a psicanálise é aquela que, aproximando-se do espaço vazio, escuta os ruídos que dali reverberam de maneira quase inaudível. A vocação da psicanálise é a escuta acurada de vibrações tectônicas da linguagem -aquelas que estremecem ainda disformes de regiões arcaicas. Menos afeita ao gesto de retirarse e preservar por completo esse espaço vazio, como o faz a crítica, a psicanálise aguça seus ouvidos e permanece rente aos contornos que o delimitam.

Para Agamben (1977/2007), é sobre a "fratura original da presença" (ibdem, p. 219), intrínseca à experiência ocidental do ser, que se funda a ambiguidade do significar - essa fenda, aliás, é o que desenha o desejo de "significar". Significar, porém, é sempre uma tarefa ardilosa -"aquilo que vem à presença, vem à presença como lugar de uma exclusão, no sentido de que o seu manifestar-se é, ao mesmo tempo, um esconder-se, o seu estar presente, um faltar" (ibdem, p. 219). Mas é justamente essa duplicidade originária de presença e ausência, aparecer e esconder-se o que alimenta o desejo - Eros. O desejo percorre seus caminhos alimentado por uma ilusão, sempre a mesma: a de que a fratura se deve apenas à distinção entre verdade e simulacro ou entre aquilo que é a essência e aquilo que é sua cópia, a aparência. Essa interpretação, diz Agamben (1977/2007), assume "valor normativo no decurso do século XIX, na construção de um dogma que impede, ainda hoje, o acesso a uma autêntica compreensão do significar" (ibdem, p. 219).

Em suas palavras:

O diferimento original da presença, que é de fato aquilo que teria merecido ser questionado, acaba sendo aqui afastado e menosprezado na aparente evidência da convergência expressiva entre forma e conteúdo, externo e interno, manifestação e latência, mesmo que nada obrigue, em princípio, a considerar o "significar" como um "expressar" ou como um "ocultar". Na semiología moderna, o esquecimento da fratura original da presença mostra-se precisamente naquilo que deveria denunciá-la, a saber, na barreira - do grafo S/s. O fato de que o sentido de tal barreira seja constantemente deixado na penumbra, cobrindo assim o abismo aberto entre o significante e o significado, constitui o fundamento da "posição primordial do significante e do significado, como duas ordens distintas e separadas por uma barreira resistente à significação" que governa, desde o princípio, como senhor escondido, a reflexão ocidental sobre o signo. Sob o ponto de vista do significar, a metafísica não é mais que o esquecimento da diferença originária entre significante e significado. (Agamben, 1997/2007, p. 220)

Escapar da pergunta sobre o motivo de "a barreira que fundamenta a possibilidade do significar [...] [ser], ela mesma, resistente à significação", equivale a falsear a sua "mais autêntica intenção" (Agamben, 1977/2007, p. 221). Por isso, Agamben esgarça o espaço vazio da fenda, concedendo ao contorno que o delimita as feições de uma stanza - isto é, de um cômodo ou recinto. Ao tratar do estatuto do brinquedo, se lembra do "tesouro conservado no quarto [stanza] de Mme. Panckoucke" (Agamben, 1977/2007, p. 98). Essa referência à stanza que reúne brinquedos é o que leva Agamben ao conceito de "objeto transicional", cunhado por Winnicott e cujo estatuto não pertence propriamente nem à esfera subjetiva interna, nem àquela objetiva externa, mas a algo que o psicanalista inglês define como "área da ilusão" ou "espaço potencial" e no qual se situam os jogos e a experiência cultural. Trata-se de uma terceira área, na qual

[... ] as coisas não estão fora de nós, no espaço exterior mensurável, como objetos neutros (ob-jecta) de uso e de troca, mas, pelo contrário, são elas mesmas que nos abrem o lugar original, o único a partir do qual se torna possível a experiência do espaço externo mensurável, ou melhor, são elas mesmas presas e compreendidas desde o início no topos outopos, em que se situa a nossa experiência de ser-no-mundo. (Agamben, 1977/2007, p. 99)

O que Agamben descreve em termos filosóficos talvez esteja mais bem representado pela noção lacaniana de objeto a. Sejamos, porém, fiéis à linguagem do filósofo. Para ele, procurar a coisa nessa região vazia e intermediária equivale, então, a uma busca pelo homem. Daí que a pergunta "onde está a coisa?" se torna inarredável da pergunta "onde está o homem?". E as coisas que estão nesse lugar, "não estão propriamente em lugar nenhum" (Agamben, 1977/2007, p. 99). Obras de arte ou brinquedos capturam o homem justamente nesse embaralhamento entre subjetividade e objetividade - o amor de Pigmaleão pela escultura de sua autoria, aludido por Agamben em Estâncias, é o exemplo mais forte de tal imbricação. Pelo mito, não sabemos se o amor do artista é um amor narcísico pelos contornos de seu próprio Eu depositados na obra, se ele é fetichista ou simples expressão da loucura - sabemos, porém, que entre ele e a pedra esculpida os limites estão confusos. É na fratura entre homem e coisa - no entre Pigmaleão e a escultura, para continuar com o exemplo mencionado - que se vislumbra improvisadamente uma imagem imprecisa que pedirá ou exigirá até certa consistência formal - sem lugar, diz Agamben, o topos dos objetos culturais só pode ser encontrado no "fazer" permanente do homem.

Talvez seja por isso que a consistência material do lugar intermediário na psicanálise tenha sido dada pela imagem do fort-da (lá-aqui) - o conhecido jogo do neto de Freud (1920/2010) com a linha do carretel representa o momento exato em que se inicia esse fazer da criança. Nesse jogo infantil, Freud observa uma espécie de escrita que esboça as dores da separação. O menino lança o carretel e o puxa pela linha inúmeras vezes. A lacuna deixada pelo objeto amado, que amiúde se afasta da criança - a mãe -, dá chance a ela de arriscar seus primeiros registros. Objeto dos cuidados da mãe, o corpo do bebê passa de um estado passivo para um estado ativo. Por meio do jogo, ousa sair dessa passividade e imprimir gestos pessoais. Mais: sair da posição de objeto manipulado pela mãe para assumir temporariamente a posição de sujeito autônomo. Gestos rudimentares como esses foram observados no movimento de Helena ao lançar-se para o fazer relacionado ao seu próprio desejo.

 

Os brinquedos de Kães

Esses tópicos apresentados também concernem às técnicas psicanalíticas de René Kaës. Arriscando-se em uma psicanálise pouco ortodoxa, Kaës dispõe de uma variedade de artifícios e dispositivos e não recua diante de procedimentos lúdicos ou quase lúdicos - psicodramas, jogos, conversas grupais compõem uma psicanálise híbrida com pacientes que transitam por zonas intermediárias ou, mais precisamente, que habitam tais lugares imprecisos. Kaës lança mão do improviso e da bricolagem de dispositivos como é, por exemplo, sua apropriação e re-invenção do psicodrama no universo da psicanálise. Estamos efetivamente no território de jogos, brincadeiras, figurabilidade plástica de sonhos e desejos.

Vemos, então, que embora a psicanálise aproxime-se da crítica, tal como Agamben a descreve, reconhecendo a fratura entre sujeito e objeto como espaço intransponível, a psicanálise estabelece uma outra forma de relação com essa área sempre incontornável e na qual é impossível penetrar - ante o vazio, a psicanálise não recua ou se retira para falar de tal zona à distância, como faz o crítico. O psicanalista, ainda que já reconheça antecipadamente seu fracasso - a castração -, pretende invadir esses espaços - procura lambuzar-se nele por lidar com objetos inapreensíveis, mas que exigem sua escuta. Nas bordas de tal tentativa, encontra afetos, memórias, fantasias difusas que se reatualizam nos limites dados pelos espaços do presente.

Mas esse espaço vazio pode variar de acordo com o setting - enquanto no consultório a fratura marca a distância entre analista e paciente, e aquele ocupa o lugar do vazio para que o paciente consiga trabalhar, nas instituições públicas de saúde, esse espaço se constitui de outro modo. Na sua origem, lembra Kaës, o termo instituir significa agir, fundar, estabelecer algo novo, dar princípio a alguma coisa. Estamos, mais uma vez, no território do "fazer" próprio ao sem lugar que, como vimos em Agamben (1977/2007), é o topos dos objetos culturais.

Kaës (1988/1991) diferencia organização e instituição, considerando esta como universo simbólico constituído "por mitos, ritos, rituais simbólicos de iniciação e de passagem relacionados com sua história, fundação, fundadores reais ou imaginários". É "esse conjunto simbólico [que] sustenta e fundamenta a ação dos membros da instituição, dando sentido às suas práticas e vida". Instituições seriam ainda "sistemas imaginários" capazes de conceder corpo ao desejo na mesma medida do engajamento dos sujeitos que nelas investem. Nas instituições, o que prevalece é uma comunicação pré-verbal (Bleger apud Lancetti, 2008), que recoloca os sujeitos naquele estado em que não existe discriminação entre o Eu e o não-Eu - ou, nos termos de Agamben, entre homem e coisa. Trata-se de um espaço da cultura, já que ali são tecidos os laços e moldados os objetos simbólicos. Com o exemplo de um grupo de pessoas aguardando o ônibus numa fila em silêncio, talvez (Bleger apud Lancetti, 2008) seja Bleger quem melhor ilustre o que está em jogo nas instituições. Ainda que não haja relação de interação, a sociabilidade das filas anuncia-se nas regras e normas que regem o comportamento dos indivíduos naquele momento. Uma relação muda da qual todos participam e a partir da qual podem - ou não - desenvolver outros tipos de interação.

Nesse contexto, o psicanalista é aquele que justamente incidirá sobre esses espaços que, em geral, se mantêm mudos. Nas filas, somos capazes de reclamar do tempo de espera, dos serviços prestados, narrar experiências de vida, revelar um segredo, permanecer em silêncio observando os demais, compartilhar dificuldades ou brincar com algo que se passa no momento - essas experiências, contudo, são consideradas "nada". São conversas jogadas ao léu de forma inconsequente com um desconhecido de quem muitas vezes nem mesmo sabemos o nome, são piadas com uma graça do momento, depois perdida na memória, são sorrisos discretos, ou olhares de reprovação que se diluem tão logo a fila é desfeita. Construir uma instituição onde desejos e angústias são colocados exige que se tome a sério todos esses aspectos que acontecem nesse espaço vazio - a instituição torna-se a lacuna de onde brotarão esses aspectos que precisarão ganhar volume, consistência e contorno simbólico.

Na perspectiva de Kaës, o psicanalista reconhece a matéria fértil existente nos espaços vácuos e comuns, criando dispositivos de trabalho e de jogo que restabeleçam, "numa área transicional comum, a coexistência das conjunções e das disjunções, da continuidade e das rupturas, dos ajustamentos reguladores e das irrupções criadoras, de um espaço suficientemente subjetivizado e relativamente operatorio" (Kaës, 1988/1991, p. 58).

 

Espaço intermediário: lugar de experimentação do caráter híbrido inerente às questões de gênero

Com essa perspectiva em mente, Causdequê? recebeu diferentes demandas de adolescentes bissexuais, gays, lésbicas e trans. O primeiro momento de escuta, no início do semestre, acolheu sofrimentos oriundos do fardo de assumir escolhas que questionavam padrões sociais. Dores que vinham do preconceito e da exclusão. Da falta de compreensão dos familiares. Da rigidez de valores morais e da culpa.

Dias mais tensos, outros de brincadeira. Dias de dores, outros de alegria. Pouco a pouco foi curioso notar que a mera existência de um espaço no qual essas múltiplas escolhas tinham lugar de cidadania, e podiam ganhar palavras que circulavam livremente, tornou questões relativas à sexualidade algo importante, mas não mais importante do que outras questões como trabalho, amizades, sonhos, planos de vida.

Desejos sexuais, por sua vez, ganharam espaço efetivo fora dos atendimentos, pois tinham seus direitos legitimados. Outras dores também emergiram, várias delas mais intensas do que as relacionadas à opção sexual. Como Mycon - antes uma menina -, que chegou com a namorada Emanuele para dizer que sua mãe não aceitava o namoro dos dois, mas foi se dando conta de que a rejeição nascera muito antes dos problemas ligados à sua opção sexual. Na verdade, sua mudança de identidade de gênero havia se tornado inclusive um álibi tanto para a mãe como para ele justificarem certa falta de amor dela (ou a suposição de um não desejo materno), ainda a ser tratada. Por outro lado, depositar todos os problemas nos preconceitos da mãe de Mycon apareceu como uma forma de unir, manter a união do casal adolescente sem que eles precisassem colocar em questão aspectos do namora ou dos conflitos pessoais de cada um.

Ou o caso de Márcio, cujas dores melancólicas de amor por seu "bendito", como chamava o ex-namorado, encobriam medos de se arriscar na cidade de São Paulo, tão longe de seu lar no Maranhão e de sua mãe. O conflito entre trilhar seu próprio caminho com amores novos e experiências de trabalho ou ficar fiel ao modelo da mãe, mantendo-se sob sua sombra e sendo quem ela esperava que ele fosse, emergiu cada vez mais claramente como ponto que merecia mais atenção. Também o caso de Gabriel, que, afirmando sua bissexualidade como escolha - e não como ausência dela, como interpretavam os colegas -, percebeu pouco a pouco que não era o garoto que precisava sempre estar disponível para divertir todos e todas. Pegar menino e menina era escolha, mas nem todos os meninos e todas as meninas eram objeto de seu desejo.

Luana, a menina determinada que encarava os problemas sociais de frente, corajosamente assumindo sua bissexualidade e, ao mesmo tempo, certa preferência por meninas, foi aos poucos mostrando certa rigidez em seu projeto de ser atriz. Ansiosa ante as fortes ambições, ficava esmagada pelos sonhos, sem conseguir desfrutar o próprio percurso e sem perceber as conquistas que já estava fazendo no presente.

Exemplos que demonstram o caráter híbrido dos afetos e escolhas que iam paulatinamente ganhando forma. Ser gay, lésbica, bissexual, trans não era a única questão da existência própria à adolescência deles e dos conflitos psíquicos que os tomavam, mas um dentre vários tópicos a serem discutidos em grupo de maneira cuidadosa. Com esse espaço aberto e com a garantia de que as alegrias e dores do amor tinham seu lugar, buscas diversas pelo que queriam em outros campos da vida podiam ocorrer sem que fantasmas terríveis os perseguissem impeditivamente. Nesse espaço que se ofereceu como quase-nada, o que ganhou forma foram os mais singulares desejos. Um espaço moldado pelas vozes mais díspares e não por identidades de gênero fixas. Nesses contornos imprecisos, acolhe-se experimentações, dores e desejos ligados às diferentes formas de amar e de experimentar a vida.

 

Referências

Agamben, G. (2007). Estâncias - A palavra e o fantasma na cultura ocidental (1a ed.). Belo Horizonte: UFMG. (obra original publicada em 1977).         [ Links ]

Benevides, R., & Passos, E. (2005). Humanização na saúde: um novo modismo? Revista Interfaces, (17), 389-406.         [ Links ]

Elia, L. (2013). A psicanálise na atenção psicossocial: o dispositivo psicanalítico ampliado na rede de atenção psicossocial. Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, (26), 69-85.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer (1a ed.). São Paulo: Cia das Letras. (Obra original publicada em 1920).         [ Links ]

Kaës, R. (2005). Os espaços psíquicos comuns e partilhados (1a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lancetti, A. (2008). Clínica peripatética (3a ed.). São Paulo: Hucitec. (Obra original publicada em 2006).         [ Links ]

Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade (1a ed.). Rio de Janeiro: Imago. (obra original publicada em 1953).         [ Links ]

 

 

1 Importante sublinhar o equívoco na escolha do termo em português para traduzir a palavra stanza. Tal equívoco traz graves consequências para algumas partes do livro.
2 É estranha a escolha do termo estância utilizado por Selvino J. Assmann para traduzir stanza. Talvez o termo mais próprio fosse cômodo, que alude às divisões de uma casa.

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