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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A religião como ilusão em Freud

 

Religion as illusion in freud

 

La religion comme illusion a freud

 

La religión como ilusión en freud

 

 

Samuel Franco dos Santos

Formado em psicologia pela PUC-MG em 2005 e mestre em psicologia pela PUC-MG em 2017

 

 


RESUMO

Em sua interpretação do fato religioso, Freud utiliza de dois modelos hermenêuticos tirados da clínica psicanalítica: Neurose e o Sonho. Como neurose, a religião é concebida como a neurose universal da humanidade e relacionada ao remorso pelo assassinato do pai primevo, ou seja, ela, a religião, é uma tentativa de resolver o problema do sentimento de culpa decorrente da ambivalência afetiva em relação ao pai. Como ilusão, a religião, tem a ver com a nostalgia do pai protetor. Este artigo propõe discutir e apresentar a religião em Freud tendo como base o modelo hermenêutico da ilusão. O autor conclui que, para a psicanálise, o importante é compreender os motivos latentes de nossas crenças e descrenças religiosas. Todo discurso, incluindo o religioso, é um discurso humano que, independentemente de ser neurótico ou sublime, está submetido a determinações inconscientes.

Palavras-chave: Religião. Ilusão. Psicanálise.


ABSTRACT

In his interpretation of religious fact, Freud uses two hermeneutical models drawn from the psychoanalytic clinic: Neurosis and the Dream. As a neurosis, religion is conceived as the universal neurosis of mankind and related to remorse for the murder of the primeval father, that is, religion is an attempt to solve the problem of the feeling of guilt arising from the affective ambivalence towards the father . As an illusion, religion has to do with the nostalgia of the protective father. This article proposes to discuss and present the religion in Freud within the hermeneutic model of the illusion. The author concludes that for psychoanalysis, the important thing is to understand the latent motives of our religious beliefs and disbeliefs. Every discourse, including religious discourse, is a human discourse that, regardless of being neurotic or sublime, is subject to unconscious determinations.

Keywords: Religion. Illusion. Psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Dans son interprétation du fait religieux, Freud utilise deux modèles herméneutiques tirés de la clinique psychanalytique: la névrose et le rêve. Comme une névrose, la religion est conçue comme la névrose universelle de l'humanité et liée au remords pour le meurtre du père primitif, c'est-à-dire que la religion est une tentative de résoudre le problème de culpabilité dû à l'ambivalence affective envers le père . Comme une illusion, la religion a à voir avec la nostalgie du père protecteur. Cet article propose de discuter et de présenter la religion chez Freud au sein du modèle herméneutique de l'illusion. L'auteur conclut que pour la psychanalyse, l'important est de comprendre les motivations latentes de nos croyances religieuses et de nos incrédulités. Chaque discours, y compris le discours religieux, est un discours humain qui, sans être névrosé ou sublime, est soumis à des déterminations inconscientes.

Mots-clés: Religion. Illusion. Psychanalyse.


RESUMEN

En su interpretación de los factos religiosos, Freud utiliza dos modelos hermenéuticos tomadas de la clínica psicoanalítica: neurosis y el sueño. A medida que la neurosis, la religión es concebida como la neurosis universal de la humanidad y el remordimiento relacionado por el asesinato del padre primitivo, o su religión, es un intento de resolver el problema de la culpa que surge de la ambivalencia emocional hacia su padre . Como ilusión, la religión tiene que ver con la nostalgia del padre protector. Este artículo tiene como objetivo discutir y presentar la religión en Freud dentro del modelo hermenéutico de la ilusión. El autor concluye que, para el psicoanálisis, es importante entender las razones subyacentes de nuestra creencia y la incredulidad religiosa. Cada discurso, incluyendo la religiosa, es un discurso humano, ya sea neurótico o sublime, está sujeta a las determinaciones inconscientes.

Palabras clave: La religión. Ilusión. Psicoanálisis.


 

 

Introdução

O diálogo entre psicanálise e religião nunca foi uma tarefa simples. Os preconceitos, o medo e, quem sabe, também mecanismos inconscientes, impossibilitaram encarar o tema com coragem para escutar aquilo que a outra parte dizia. Os devotos de alguma religião muitas vezes se sentem constrangidos e ameaçados diante da psicanálise. Embora afirmemos que houve um grande avanço nesse diálogo, ainda há receio e surdez. Universidades e templos em algumas ocasiões se furtam de conversar sobre a temática (Morano, 2008).

A religião e a experiência religiosa sempre ocuparam um espaço considerável no pensamento freudiano. Entre 1914 e 1939, Freud dedicou uma parte significativa de seu trabalho a questões ligadas à religião. E ainda hoje as posições freudianas sobre a religião têm sido palco de inúmeras discussões.

Em sua interpretação do fato religioso, Freud utilizará de dois modelos hermenêuticos tirados da clínica psicanalítica: a Neurose e o Sonho. Como neurose, a religião é concebida como a neurose universal da humanidade e relacionada ao remorso pelo assassinato do pai primevo, ou seja, ela, a religião, é uma tentativa de resolver o problema do sentimento de culpa decorrente da ambivalência afetiva em relação ao pai. Como sonho, a religião, é definida como ilusão e tem a ver com a nostalgia do pai protetor. Contudo, seja religião uma neurose, uma ilusão, o seu cerne tem a ver com o pai. Com isso, podemos afirmar que o complexo paterno é o polo unificador da interpretação freudiana do fato religioso (Araújo, 2014).

Expor um breve pensamento de Freud, mostrando seus efeitos e impasses acerca da psicanálise e religião como ilusão é o que tentaremos desenvolver neste artigo. Nossa intenção não é dar um veredito final sobre esse assunto tão delicado e profundo, mas apontar uma possível direção, abrir novas possibilidades de leitura e construções teóricas na área da psicanálise e religião.

 

Religião e ilusão em Freud

A primeira teorização de Freud acerca da crença religiosa aparece em 1910 em seu ensaio Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância.

A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona para eles. Reconhecemos, pois, no complexo parental a raiz da necessidade religiosa; o Deus justo e todo-poderoso e a natureza bondosa se nos afiguram como sublimações grandiosas do pai e da mãe, ou melhor, como restabelecimentos e restaurações das representações que se tinha de um e de outra na primeira infância. Biologicamente, a religiosidade remete ao duradouro desamparo e necessidade de ajuda da criança, que, mais tarde, quando reconhece sua impotência e sua fraqueza efetivas diante das grandes potências da vida, volta a sentir-se como na infância e procura negar seu estado de abandono reeditando regressivamente as potências protetoras da infância. Essa proteção que a religião oferece aos crentes, evitando que eles caiam doentes de neurose, se explica facilmente pelo fato de que ela os desembaraça do complexo parental, ao qual está ligada a consciência de culpabilidade, seja do individuo, seja da humanidade inteira, liquidando para eles esse complexo, ao passo que o descrente tem que cumprir esta tarefa sozinho. (Freud, 1910/1996, p. 110)

Esta ideia de Freud vai reaparecer em Totem e Tabu (1913/1996), no qual diz que "O Deus nada mais é que o pai glorificado" (Freud, 1913/1996, p. 176). Freud, em sua interpretação do fenômeno religioso, não deixa de mencionar que a construção psíquica da ideia de Deus, em muitos aspectos, se assemelha com a ideia originária do pai primevo.

Em seu texto de 1914 chamado Algumas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud novamente diz que "O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância" (Freud, 1914/1996 p. 257). Acreditamos que ao longo de sua obra Freud irá constantemente colocar a figura de Deus como o protótipo do pai da primeira infância. Em seu O Futuro de uma Ilusão (1927/1996), que veremos mais adiante, Freud articulará a figura do pai idealizado com a temática da ilusão. Ilusão que, para Freud, não é a mesma coisa que engano ou erro, mas, sim, uma produção psíquica oriunda do mundo dos desejos. E será a força do desejo que mantém engendrada a produção de ilusões.

Podemos dizer que Totem e Tabu (1913/1996) é o texto freudiano que melhor representa a problemática da religião de acordo com o modelo da neurose. O Futuro de uma Ilusão (1927/1996), outro texto freudiano, é o que melhor ilustra o problema da religião com o modelo da ilusão, texto no qual iremos nos ater neste artigo, assim como outra obra de Freud que consideramos essencial para se discutir a religião sob o prisma da ilusão: A Questão de uma Weltanschauung (1933/1996).

Podemos dizer que ilusão e crença apresentam estruturas fundamentais para o psiquismo humano. A crença, a ilusão, e a realização de desejos estão implicados, na maioria das vezes, em nossas escolhas e opções de vida.

Partindo da hermenêutica do sonho, podemos afirmar que Freud, desde o início, acreditava que os mitos e lendas poderiam elucidar as variadas formações culturais. Podemos dizer que em A interpretação dos sonhos (1900/1996), por exemplo, são constantes as citações dos mais diversos mitos e lendas. Contudo, podemos constatar que em seu texto As Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1933/1996), mais precisamente em a Revisão da Teoria dos Sonhos, o sonho também aparece como um importante elemento para elucidar nossa mitologia, pois para Freud "No conteúdo manifesto dos sonhos, com muita frequência, encontramos quadros e situações que lembram temas familiares em contos de fadas, lendas e mitos" (Freud, 1933[1932]/1996, p. 34). Morano (2003) relata que Freud sempre que fala sobre os sonhos, lendas e mitologias afloram em suas reflexões. Em um outro texto, que é importante citarmos, chamado Esboço de Psicanálise (1940^938^1996), Freud nos diz que podemos encontrar no sonho uma fonte para o entendimento da pré-história humana, pois

os sonhos trazem à luz material que não pode ter-se originado nem da vida adulta de quem sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-lo parte da herança arcaica que uma criança traz consigo ao mundo, antes de qualquer experiência própria, influenciada pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a contrapartida desse material filogenético nas lendas humanas mais antigas e em costumes que sobreviveram. Dessa maneira, os sonhos constituem uma fonte da pré-história humana que não deve ser menosprezada. (Freud, 1940[1938]/1996, p. 178)

Portanto, podemos dizer que, para Freud, os sonhos representam uma fonte rica para elucidarmos as atuações psíquicas inconscientes (Morano, 2003).

O sonho é uma realização de desejos, já dizia Freud (1900/1996), porém uma realização que nem sempre se demonstra cristalina, mas que sofre inúmeras deformações pelo trabalho do sonho, assim como ocorre na construção da nossa mitologia. Em seu texto intitulado A Aquisição e o Controle do Fogo (1932[1931]/1996), existe uma evidente deformação dos "fatos ao conteúdo de um mito. Essas distorções são da mesma espécie, e não piores, que aquelas que reconhecemos diariamente, quando reconstruímos a partir dos sonhos dos pacientes as experiências de sua infância reprimidas" (Freud, 1932[1931]/1996, p. 195).

Morano (2003) nos diz que essa mesma elaboração do pensamento freudiano, no que diz respeito aos sonhos, Freud fará de um modo análogo com os textos culturais, religiosos, artísticos e filosóficos. Podemos questionar por meio do seu conteúdo manifesto, isto é, aquilo que nos aparece de imediato o seu conteúdo latente, ou seja, conteúdos recalcados, embora ambos, assim como no sonho, se encarregam de deformar a verdade do desejo do sujeito. Portanto, podemos dizer que a linguagem da cultura, assim como no sonho, manifesta a voz do desejo inconsciente. De uma forma parecida podemos dizer a respeito da leitura religiosa. Deus, ou melhor, a imagem de Deus nos remete a questionar e a interpretar de uma forma igual à do sonho.

Como dissemos, para Freud, a ideia de Deus tem sua origem no complexo paterno imbuída da dupla polaridade amor-ódio. Contudo, essa polaridade não é totalmente perceptível na imagem do Deus monoteísta engrandecida. A ambivalência pelo pai foi reprimida transformando-o numa vertente completamente positiva. Apenas de um modo latente é que podemos observar que esse conflito se encontra de uma forma deslocada e subterrânea.

A ambivalência é mostrada em seu artigo intitulado Uma neurose demoníaca do século XVII (1923[1922]/1996), no qual Freud analisará alguns quadros de Christoph Haizmann que diz ter feito um pacto com o diabo. Freud tenta explicar a figura demoníaca sob a luz da psicanálise com um substituto da figura paterna. A criança em sua terna idade ama e odeia o pai ao mesmo tempo. Tem para com ele sentimentos de amor e admiração devido sua proteção e igualmente ódio por representar um entrave para a posse exclusiva de seu objeto de amor. Freud nos ensina que as primeiras experiências infantis terão uma marca em nossa organização psíquica que sempre nos acompanhará. "Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes regra, e não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental" (Freud, 1923[1922]1996 p. 90). Sendo assim, do mesmo modo que Deus é uma representação idealizada da figura do pai para o adulto, o diabo seria a representação do ódio infantil por esse mesmo pai.

Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio. (Freud, 1923[1922], p. 110)

Assim, Deus nada mais é que o representante do pai que um dia amou e protegeu seu filho, enquanto o diabo é a figura paterna que a criança odiou por proibir que ficasse com seu objeto amado. De todas as formas, para Freud, "a religião se originou do desamparo da criança prolongado na idade adulta. No lugar do pai protetor da infância, o homem adulto põe o Deus, Pai, Todo-Poderoso, a quem se deveria louvar e dar graças em todo o tempo e lugar" (DAVID, 2003, p. 14).

Podemos pensar que a intervenção do desejo transformou a imagem de Deus ambivalente em algo mais confortável e menos ameaçador. Sendo desejo, a crença, uma forma de escamotear a realidade ameaçadora, Freud chamou essas crenças de ilusões.

 

Ilusão na obra freudiana

Ceccarelli, em seu artigo "A mentira como organizador social" (2013), cita Enriquez (1968/2013) em seu texto "Immuable et changeante illusion: l'illusion nécessaire", que nos diz que o termo ilusão, criado por Freud em sua obra O Futuro de uma Ilusão (1927/1996), tem despertado pouco interesse nos psicanalistas. Tão pouco interesse que o vocábulo ilusão não é citado no célebre Dicionário de Psicanálise de Laplanche Pontalis, como se ele não fosse importante estar ali ao lado de outros conceitos clássicos. "A ilusão é uma noção-chave (senão um conceito) na arquitetura do pensamento freudiano sobre o social" (Enriquez apud Ceccarelli, 2012, p. 100).

Em Reflexões para os tempos de Guerra e Morte (1915/1996), a ilusão está ligada ao conceito de desilusão, que seria uma falsa percepção do homem diante de sua realidade moral e ética. Percepção criada pela paleta do nosso desejo. Pensamos, diz Freud, erroneamente em achar que o homem domou seu mundo instintivo pela razão. A guerra é uma avalanche brutal sobre as nossas ilusões. Portanto, Freud diz que "acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos gozar satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela" (Freud, 1915/1996, p. 290).

Aqui, já podemos observar que Freud já tem os elementos sobre o conceito de ilusão que utilizará posteriormente: Uma busca de alento que desconsidera a realidade. Nessa obra o autor também diz que a religião conseguiu, por meio da ilusão, reduzir a morte numa simples preparação para uma vida futura, sustentando o nosso desejo da imortalidade.

Entretanto, é importante salientar que a ilusão na literatura freudiana não se apresenta como monopólio da religião, como veremos mais adiante. Podemos afirmar que a ocorrência da palavra ilusão aparece em muitos dos seus textos, mas, com uma conotação mais negativa, ou seja, como algo equivocado, não verdadeiro (Araújo, 2014).

Em Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância (1910/1926), Freud faz uma crítica a biógrafos que idealizam seus biografados, transformando-os em heróis e lastima-se que fazendo desse modo os autores sacrifiquem a verdade a uma ilusão.

Na sua obra Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise (1917/1996), Freud diz que nossa ilusão narcisista é destruída por Copérnico com o seu "golpe cosmológico" (araújo, 2014).

Em Sonhos e Telepatia (1922/1996), Freud utiliza o termo ilusões de memória em tentativa de transformar a realidade psíquica em realidade material.

Já em Por Que a Guerra? (1933 [1932/1996), qualifica ilusão como a expectativa dos bolchevistas de fazer desaparecer a agressividade entre os homens "mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade".

Por fim, em Psicologia de grupo e análise do ego, quando (1921/1996) diz que o que preside o nascimento de um grupo e o mantém unido é o discurso de amor e a garantia de proteção por uma pessoa (ou instituição), que ama seus membros de forma igualitária sem privilegiar ninguém. Esse líder introjetado como ideal do Eu traz a certeza, graças à promessa de amor, da consolidação do grupo, ao mesmo tempo em que projeta no exterior a agressividade que deve ser abolida do grupo (Ceccarelli, 2013).

Como podemos constatar, a ilusão aparecerá nas obras de Freud sempre como algo que provém do desejo humano, porém, essa ilusão nunca é verdadeira. Freud mudará um pouco essa posição acerca da ilusão em sua obra O FUTURO de uma Ilusão.

 

Breve conjectura do Futuro de uma Ilusão

Esta obra de Freud foi publicada em 1927 sob o título em alemão Die Zukunft einer Illusion. Em 1928, foi traduzida para o inglês como The future of an Illusion, por W. D. Robson-Scott e retomada, sem alterações, por James Strachey, em 1961. Marie Bonaparte, em 1932, traduziu a obra de Freud para o francês com o nome L'Avenir d'une illusion e, por fim, em 1994, por Anne Balseinte, Jean-Gilbert Delarbre e Daniel Hartmann, sem mudança em relação ao título da obra. Apresentaremos esse trabalho de Freud utilizando a obra traduzida na língua portuguesa conforme a primeira tradução da língua inglesa. A tradução inglesa foi baseada na publicação de 1928 e não houve modificação em relação ao título (Roudinesco & Plon, 1998).

O título dessa obra foi "pego" por empréstimo de uma peça teatral de Romain Rolland (1866-1944) intitulada Liluli, novelista, biógrafo e músico francês pelo qual Freud nutria uma grande admiração. Em fevereiro de 1923, quando surgiram os primeiros sintomas de câncer em Rolland, Freud escreveu uma carta ao decorador Édouard Monod-Herzen, que frequentava os meios psicanalíticos parisienses, e expressou com uma humildade bastante surpreendente o seu desejo de entrar em contato com Rolland: "Já que você é amigo de Romain Rolland, escreveu Freud, posso lhe pedir que transmita a ele a admiração respeitosa de um desconhecido?" (Roudinesco, 1998, p. 522). Esse cumprimento anunciava uma relação cujo calor e afeição foram incomuns. Rolland respondeu dizendo ser daqueles que, com seus escritos literários, introduziu Freud na França. Emocionado, Freud responde a Rolland expressando seus sentimentos bem como sua opinião a respeito de sua visão de mundo e do conceito de ilusão.

até o fim da minha vida, eu me lembrarei da alegria de poder entrar em contato com o Sr., pois o seu nome está ligado para mim à mais preciosa de todas as belas ilusões: a reunião, no mesmo amor, de todos os filhos dos homens. Pertenço certamente a uma raça que a Idade Média tornou responsável por todas as epidemias nacionais e que o mundo moderno acusa de ter conduzido o império austríaco à decadência e a Alemanha à derrota. Essas experiências nos decepcionam e nos tornam pouco inclinados a acreditar nas ilusões. Além disso, ao longo de minha vida (sou dez anos mais velho que o Sr.), uma parte importante do meu trabalho consistiu em destruir as minhas próprias ilusões e as da humanidade. (Freud citado por Roudinesco & Plon, p. 667)

Para o pastor Pfister, Freud anunciou a publicação de O Futuro de uma Ilusão em 16 de outubro de 1927 em de uma carta direcionada a ele. Como podemos verificar a seguir.

Nas próximas semanas sairá uma brochura de minha autoria, que tem muito a ver com o senhor. Eu já a teria escrito há tempo, mas adiei-a em consideração ao senhor, até que a pressão ficou forte demais. Ela trata - fácil de adivinhar - da minha posição totalmente contrária à religião - em todas as formas e diluições, e, mesmo que isso não seja novidade para o senhor, eu temia e ainda temo que uma declaração pública lhe seja constrangedora. O senhor me fará saber, então, que medida de compreensão e tolerância ainda consegue ter com este herege incurável. (Freud citado por Morano, 2008, pp. 129-130)

Pfister reagiu dizendo que preferia ler o trabalho de um descrente como Freud a ler o de mil crentes sem valor. Todavia, ainda que o trabalho de Freud constrangesse Pfister, Freud não abandonaria seu plano. Sempre quando uma ideia surgia e o pressionava, a forma como Freud se aliviava era escrevendo. E de acordo com Gay (2010), O Futuro de uma Ilusão era talvez a sua mais inevitável e previsível obra.

De acordo com Gay (2010), Freud, com seu ensaio a respeito da religião, cumpriu aquilo que se prometera há anos: destruir a religião com armas psicanalíticas. Porém, insistiu com Pfister que sua análise sobre a religião era uma atitude pessoal que não era compartilhada por outros analistas de valor. Era uma forma de poupar seu amigo com quem mantinha uma rixa cordial sobre teologia há duas décadas.

De acordo com Gay (2010), o estilo combatente, agressivo e provocador em sua obra causou um grande alvoroço por parte dos seus críticos, gerando réplicas e contestações. Podemos dizer que certamente O Futuro de uma Ilusão foi uma das suas maiores polêmicas. Porém, Freud já esperava por isso desde o começo: "Serei obrigado a ouvir as mais desagradáveis censuras por causa de minha superficialidade, estreiteza de espírito e falta de idealismo ou compreensão dos mais altos interesses da humanidade" (Freud, 1927/1996, p.)

É importante salientar que em O Futuro de uma Ilusão (1927/1996) Freud elucidou a forma como o homem entende a religião, como ele se relaciona com ela, bem como ela explica por meio dos seus ritos e doutrinas todo o funcionamento do cosmos e sua proteção que lhe é outorgada por meio de um pai engrandecido e divino diante os percalços da natureza. Freud, diferentemente do que fez em Totem e Tabu, não abordou a questão da gênese religiosa. Como dissemos, a questão da religião na obra de Freud de 1927 apresenta um caráter estritamente pessoal e faz sua análise pensando no sistema religioso que conhece melhor e que vivenciou (Morano, 2008)

Sabemos que do ponto de vista do estudo da religião que Freud realizou em suas obras, Totem e Tabu é a sua mais contundente obra. Podemos dizer que foi a partir dessa obra que o tema da religião ganhou força na obra freudiana (Fuks, 2011).

 

O Futuro de uma Ilusão: um breve resumo

O Futuro de uma Ilusão (1927/1996) é indiscutivelmente o melhor texto de Freud no que tange à relação da religião com a ilusão. A atenção dada pelo autor desloca-se para o problema das crenças religiosas de uma maneira geral. As funções sociais das crenças, o seu caráter ilusório, o problema de sua origem e uma estimativa quanto ao seu futuro são temas principais nessa obra.

De acordo com Freud (1927/1996), a principal função das crenças religiosas é ajudar a cultura a cumprir seu papel. Por falar em cultura, Freud não faz uma distinção entre cultura e civilização. Por cultura ele defende como aquilo que difere a vida humana da vida dos animais, sobrepondo essa última. Isso inclui todo saber acumulado e toda tecnologia adquirida com a função de controlar a natureza e extrair dela o necessário para a satisfação das necessidades humanas. Por outro lado, inclui também um conjunto de regulamentos que ajustam as relações dos homens entre si.

Freud (1927/1996) considera a natureza como uma realidade hostil e ameaçadora. Diante dessa força o homem sente-se fraco e desamparado a tal ponto que se vivêssemos isoladamente dificilmente conseguiríamos sobreviver. Exatamente para fazer face aos perigos com que a natureza os ameaça, os homens se uniram, multiplicaram as suas forças e fundaram a cultura. A primeira tarefa da civilização será defender o homem contra a natureza violenta.

Contudo, a sociedade humana não consegue cumprir essa missão com total êxito, embora com o progresso da ciência o controle da natureza é cada vez maior. Porém, é uma ilusão acreditar que o homem conseguirá domá-la por completo (Freud, 1927/1996).

Entretanto, a civilização cobra dos indivíduos um encargo muito alto em troca dos benefícios que lhes proporciona, pois os homens não são seres naturalmente voltados para o trabalho e existe em cada um de nós tendências antissociais. Portanto, a cultura se funda na renúncia pulsional. Essa pesada renúncia faz com que os homens sejam virtualmente inimigos da civilização e esta necessita ser defendida por todos nós. Essa defesa se faz por medidas de coerção, regulamentos, instituições e ordens destinadas a reconciliar o homem com a cultura, oferecendo-lhes uma compensação pelos sacrifícios que lhe impõe (Freud, 1927/1996).

Entre as compensações, Freud (1927/1996) menciona os ideais culturais, a arte e as crenças religiosas. Estas prestam três serviços: "Exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs" (Freud 1927/1996, p. 27). A essa terceira missão acrescente-se ainda a legitimidade dos preceitos culturais, o que se consegue por meio da atribuição de uma origem divina aos regulamentos de que depende a vida em sociedade.

As ideias de Freud (1927/1996) podem ser assim resumidas: a vida presente está orientada para um objetivo elevado, a elevação da alma. Neste mundo, tudo o que acontece é devido à vontade de uma inteligência superior que tudo encaminha para o melhor. Uma providência bondosa e amorosa vela sobre cada um de nós, nos protegendo das forças da natureza hostil. A morte não é o fim, mas o começo de uma nova existência. Os ensinamentos religiosos mostram a vontade de Deus e por isso devem ser observados. No fim, todo bem é compensado e o mal é punido. Por fim, todos os sofrimentos estão destinados a desaparecer.

Porém, qual a natureza dessas crenças? Segundo Freud (1927/1996), elas são ilusões, porque além de servir aos interesses da cultura, elas realizam uma série de desejos humanos. Além de ter um caráter neurótico no qual Freud (1927/1996) afirma em Atos Obsessivos e Praticas Religiosas, a religião tem uma natureza ilusória.

Para Freud (1927/1996), a ilusão não é a mesma coisa que um erro. Crer que os insetos se desenvolvem das fezes, como pensava Aristóteles (384-322 a. C.), não é uma ilusão, e sim um erro. Já a crença de Colombo (1451-1506) de que havia descoberto um novo caminho marítimo para as Índias é uma ilusão. Mas, por quê? Porque Colombo desejava encontrar uma nova rota para as Índias. O singular da ilusão é o fato de ela derivar dos desejos humanos. Uma crença ilusória é uma crença motivada pelo desejo: "Podemos chamar de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação" (Freud,1927/1996, p. 40).

A crença em Deus pai, bem como a sua onipotência, onisciência, onipresença e sua benevolência capaz de proteger o homem, pode ser encontrada em sua origem no sentimento de desamparo infantil e no desejo de proteção que ele oferece. Todo humano em sua meninice sente-se desamparado. Percebendo-se assim tão impotente, tão incapaz de desbravar os desafios com que se defronta, é compreensível que a criança deseje encontrar alguém que a proteja. A mãe costuma ocupar primeiramente esse lugar. Porém, para Freud (1927/1996), essa função que a mãe ocupa é logo substituída pelo pai, que é mais forte. O pai é idealizado pela criança, que com o tempo percebe que na verdade o pai não é tão forte quanto pensava e quando adulto percebe que está condenado a permanecer como uma criança desamparada para sempre. Incapaz de dispensar a proteção desfrutada, o homem abraça a crença na existência de Deus, que trará alívio ao seu sentimento de desamparo e debilidade diante da vida.

A religião para Freud (1927/1996) é comparada a uma neurose infantil e o autor acredita que a humanidade superará essa fase assim como muitas crianças que, ao crescerem, superam suas neuroses.

Porém, se no futuro, a religião deixar de existir, quem desempenhará suas funções? Para Freud (1927/1996), num futuro sem religião, a ciência assumiria as suas funções. Para o autor, algumas tarefas que a religião propõe cumprir estariam destinadas a ficar sem quem pudesse assumir, por exemplo, compensar os homens pelos sofrimentos da vida presente com a promessa de uma felicidade futura, que o mal é punido e o bem recompensado etc. Os seres humanos, para Freud, precisarão aprender a suportar com resignação situações da vida para as quais não há remédio. Temos que suportar esse mal-estar inerente à nossa cultura.

 

A questão de uma Weltanschauung: uma educação para a realidade

Em "Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise", que foi uma série de conferências dadas por Freud para atualizar o leitor a respeito do progresso da teoria psicanalítica, o autor retornará às teses principais de O Futuro de uma Ilusão mais, precisamente na conferência XXXV: A Questão de uma Weltanschauung (1933/1996).

Weltanschauung é uma palavra alemã cujo significado para o português mais apropriado é "cosmovisão" ou "visão de mundo". Freud (1933/1996) a definiu da seguinte maneira:

Uma visão de mundo é uma construção intelectual que resolve de uma forma unitária todos os problemas de nossa existência a partir de uma hipnose compreensiva, na qual, por conseguinte, nenhuma questão fica aberta e onde tudo o que nos interessa encontra o seu lugar determinado. É fácil compreender que a posse de tal visão de mundo é um dos desejos ideais dos homens. Crendo nela, é possível sentir-se segurança em vida, saber a que se deve aspirar e como atribuir um lugar aos seus afetos e aos seus interesses da maneira mais adequada. (Freud, 1933/1996, p. 67)

A partir da definição do que é uma weltanschauung dada por Freud (1933/1996), podemos fazer a seguinte pergunta: a psicanálise é capaz de se tornar uma weltanschuung? Freud (1933/1996) dirá sem titubear: não. A psicanálise é um ramo da Psicologia, é a psicologia do inconsciente e pertence, pois, ao campo da ciência. Sendo uma disciplina da ciência, a Psicanálise é incapaz de construir uma weltanschauung própria, cabendo-lhe aceitar a weltanschauung científica. Porém, a ciência está muito longe de receber esse nome, pois ainda é muito incompleta, não sendo capaz de abranger todas as coisas. Freud (1933/1996) diz que a ciência é uma atividade muito nova na história humana. Contudo, parece ter esperança de que num futuro ela possa produzir uma weltanschauung realmente digna desse nome. Pode-se no entanto falar de uma weltanschauung cientifica, porém trata-se de uma weltanschauung muito empobrecida.

Sendo que a psicanálise pertencente à weltanschauumg científica, Freud (1933/1996) irá se voltar para outras três formas de weltanschauung: a arte, a filosofia, e a religião. Estas são totalmente contrárias à weltanschauung científica. Porém, dentro dessas três potências que podem competir com a ciência, Freud (1933/1996, p. 169) considera que "[...] a religião deve ser considerada seriamente como adversária". De acordo com ele, a arte é inofensiva, e a filosofia animada pelo projeto de abarcar todas as coisas é ilusória. Contudo, uma ilusão acalentada por uma pequena parcela de intelectuais. A grande massa da humanidade não toma parte dela. A religião, porém, "é um poder imenso que tem a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos" (Freud, 1933/1996, p. 170).

Na sequência de seu texto, Freud (1933/1996) fará uma interpretação do fenômeno religioso que acrescentará muito pouco ao que ele já havia discutido em A Ilusão de um Futuro. Segundo Freud (1933/1996), a crença religiosa é originada pelo desamparo infantil. Durante a infância, a criança, em seu desamparo, encontra no pai a proteção e segurança de que necessita. Com seu amadurecimento, percebe que o pai não é dotado de todos os poderes que outrora pensava. Sendo adulto, encontra-se tão desamparado quanto na sua meninice. Como, porém, não pode passar sem a proteção de que gozava quando pequeno, o indivíduo "retorna à imagem mnêmica do pai, a quem, na infância, tanto supervalorizava. Exalta a imagem transformando-a em divindade e torna-a contemporânea e real" (Freud, 1933/1996, p. 172).

A crença em Deus é sustentada pela força afetiva da imagem mnésica do pai e pela sua necessidade de proteção. Essa crença é tida como ilusão, uma vez que consiste na realização de impulsos plenos de desejo. Na verdade, crer em Deus nada mais é que crer que ao desejo humano de proteção corresponde um ser real capaz de atendê-lo. A religião, segundo Freud, ainda oferece três benefícios: "Ela lhes dá informações sobre a proveniencia e a aparição do mundo, ela lhes assegura proteção e felicidade final nas vicissitudes da vida e ela dirige as suas opiniões e ações por meio de preceitos que sustenta com toda sua autoridade" (Freud, 1933/1996, p. 174).

No que tange às funções, a religião promete satisfazer a necessidade de conhecimento do homem por meio de uma cosmovisão. Garantir paz ao homem diante dos altos e baixos da vida, confiando-lhe conforto na desventura e um final feliz. E, por fim, estabelecer preceitos e restrições de que depende o homem para o convívio social. Observa-se que essas três funções da religião são as mesmas funções desempenhadas pelos pais ou pelo pai na infância de qualquer pessoa. Informar, proteger e educar é o que compete aos pais e que os crentes também esperam que Deus realize.

A religião também pode ser equiparada a uma neurose de crescimento, ou seja, as dificuldades que muitos enfrentam na transição da infância rumo à maturidade. Todavia, essa transição é necessária, pois "o mundo não é um aposento de crianças" (Freud, 1933/1996, p. 176).

Segundo Freud (1933/1996), a partir do desenvolvimento do espírito científico, os homens começaram a questionar as verdades religiosas e a tratá-la como assunto humano, submetendo-a a um exame crítico. Todavia, a religião tem reagido de forma feroz. Ela estabeleceu a proibição do pensamento justamente para assegurar a sua sobrevivência. No entanto, para Freud (1933/1996), a religião não tem o direito de se ausentar ao comparecimento no tribunal da razão.

Freud (1933/1996) está convicto do desmoronamento da weltanschuung religioso, resultado inevitável da investigação científica. Sob os escombros do discurso religioso levantará um edifício muito mais modesto. E quando isso acontecer, a humanidade terá dado um enorme passo em direção à maturidade.

 

Considerações finais

Desde o começo de sua investigação psicanalítica, Freud não se conteve por apresentar a Psicanálise como uma esfera do saber científico. Entre inimigos da razão Freud elege a religião como uma de suas mais poderosas inimigas. Para o pai da Psicanálise, a ciência triunfará sobre a religião tirando a civilização de sua infância, pois para Freud a religião, além de uma neurose, seria uma ilusão, sendo que esta é uma crença motivada pela realização de um desejo infantil. É importante salientar que a definição de ilusão em Freud é notoriamente marcada por esse componente de realização, sempre que esse tema é debatido. Segundo Garcia, "As formações ilusórias, portanto, sempre expressam um desejo, o que justifica sugerir que a problemática da ilusão já se faz presente no texto freudiano desde o final do século XIX, especialmente na Interpretação dos Sonhos" (Garcia, 2007, p. 169).

E essa crença continua no adulto, pois, de acordo com Ceccarelli, para Freud permaneceremos para sempre crianças.

A perspectiva freudiana não deixa dúvida: por permanecermos eternamente crianças, teremos sempre a necessidade de uma ilusão para acolher nosso desamparo constitutivo. Para nos sentirmos amparados e, mais ainda, para termos nossas ações caucionadas por um ser superior - o pai, Deus, o chefe, a comunidade, os líderes, as instituições - não medimos esforços: tudo é bom, desde que nossas angústias sejam acolhidas e nosso mais antigo desejo infantil [de proteção] realizado. (Ceccarelli, 2013, p. 3-4)

É importante dizer também que, para o pai da Psicanálise, a ilusão pode se aproximar dos delírios psiquiátricos, mas não é a mesma coisa. "No caso destes, enfatizamos como essencial o fato de eles se acharem em contradição com a realidade" (Freud, 1927/1996, p. 40). A Ilusão, segundo Freud, não tem que ser necessariamente irrealizável ou estar em contradição com a realidade.

Por exemplo, uma moça de classe média pode ter a ilusão de que um príncipe aparecerá e se casará com ela. Isso é possível, e certos casos assim já ocorreram. Que o Messias chegue e funde uma idade de ouro é muito menos provável. Classificar-se essa crença como ilusão ou como algo análogo a um delírio dependerá da própria atitude pessoal. (Freud, 1927/1996, p. 41)

Contudo, Freud caracteriza algumas doutrinas religiosas próximas do delírio. Embora a ilusão seja insuscetível a prova, algumas doutrinas religiosas "são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que podemos compará-las - se consideramos de forma apropriada as diferenças psicológicas - a delírios" (Freud, 1927/1996, p. 42).

No que tange ainda às ilusões, Freud vai mais longe ainda ao questionar se outros aspectos de nossa vida a que damos um alto valor também não são ilusões.

Após termos identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente defrontados por outra questão: não poderão ser de natureza semelhante [também ilusões] outros predicados culturais de que fazemos alta opinião e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas? Não devem as suposições que determinam nossas regulamentações políticas serem chamadas também de ilusões? (Freud, 1927/1996, p. 47)

O pai da Psicanálise estava aberto a ele mesmo estar sendo guiado por ilusões em seu projeto cientificista. "Devo, no entanto, moderar meu ímpeto e admitir da possibilidade de estar, eu mesmo, perseguindo uma ilusão" (Gay apud Freud, 1992, p. 42). Contudo, Freud se defende afirmando que suas ilusões, se assim o forem (de um projeto cientificista), não há punição para com quem delas não compartilham e não são incorrigíveis. Se experiência, diz o pai da Psicanálise, "vier a demonstrar, não para mim, mas para outros depois de mim, que pensem da mesma maneira, que nos enganamos, então renunciaremos a nossas esperanças" (Freud citado por Gay, p. 43)

O nosso deus Αόγος talvez não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram. Se tivermos de reconhecer isso, aceitá-lo-emos com resignação. Não será por causa disso que perderemos nosso interesse no mundo e na vida, pois dispomos de um apoio seguro, que falta a você. Acreditamos ser possível ao trabalho científico conseguir um certo conhecimento da realidade do mundo, conhecimento através do qual podemos aumentar nosso poder e de acordo com o qual podemos organizar nossa vida. Se essa crença for uma ilusão, então nos encontraremos na mesma posição que você. Mas a ciência, através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos manifestos, e muitos outros secretos, entre aqueles que não podem perdoá-la por ter enfraquecido a fé religiosa e por ameaçar derrubá-la. (Freud, 1927/1996, p. 63)

Ilusão e neurose são a base do pensamento freudiano acerca da religião no qual, Freud tenta combater ao longo de sua vida propondo um projeto secularista que possa levar a humanidade a um progresso e amadurecimento científico.

O homem sempre distorceu a realidade quando ela não lhe agrada. Em alguma medida e em certas ocasiões, isso é necessário para que ele se sustente dentro de uma organização social. A ilusão, portanto, pode ser vista como uma questão de sobrevivência, e não apenas como um obstáculo para a realidade (Morano, 2008).

Ilusão e crença apresentam estruturas fundamentais para o psiquismo humano. Parafraseando Pontalis, Morano (2008) afirma que somente os mortos não creem. Talvez a crença mais forte seja que não se crê em nada. A crença, a ilusão, a realização de desejos está implicada na maioria das vezes em nossas escolhas e nossas opções de vida.

Para a Psicanálise, o importante é não discursar sobre a existência ou não de Deus, mas compreender os motivos latentes de nossa crença e nossa descrença religiosa. Sabemos que todo discurso, inclusive o religioso, é um discurso humano. Independentemente se neurótico ou sublime, está submetido às leis que a Psicanálise demonstrou a partir do inconsciente (Morano, 2008).

 

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