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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Teatro e o corpo-diapasão

 

Theatre and body-diapason

 

Teatro y cuerpo-diapasón

 

 

Leonardo Pinto de AlmeidaI; Raul Marcel Filgueiras AtallahII

IProfessor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Psicologia com estágio de doutoramento sanduíche no Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire, na Universidade de Reims Champagne-Ardenne. Realizou pós-doutorado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. email: leonardo.p.almeida@gmail.com
IIPsicólogo, Doutor em Psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF). email: raulatallah@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir da peça Ricardo M, de William Shakespeare, encenada por Gustavo Gasparani em formato de monólogo, com direção de Sergio Módena, o presente artigo tem como objetivo refletir sobre o teatro como espaço de experimentação. Com o auxílio das reflexões teóricas de Badiou, Rancière, Deleuze, Guattari e Blanchot sobre a experiência artística, analisamos a relação entre os corpos de atores e atrizes com a reverberação produzida pelo espaço cênico. Assim, pensamos como a incorporação do texto por parte dos atores e atrizes produz ressonância a partir da noção de corpo-diapasão.

Palavras-chave: Teatro. Experiência. Ressonância. Corpo-diapasão.


ABSTRACT

From the play Richard III by William Shakespeare, staged by Gustavo Gasparani in the form of monologue directed by Sergio Modena, this article aims to reflect on the theatre as a space for experimentation. With the aid of the theoretical reflections of Badiou, Rancière, Deleuze, Guattari and Blanchot about the artistic experience, we analyze the relationship between the bodies of actors and actresses with the reverberation produced by the scenic area. So, we thought as the incorporation of the text on the part of the actors and actresses produces resonance from the notion of body-diapason.

Keywords: Theatre. Experience. Resonance. Body-diapason.


RESUMEN

Desde la obra Richard III de William Shakespeare, puesta en escena por Gustavo Gasparani en forma de monólogo, dirigido por Sergio Módena, este artículo pretende reflexionar sobre el teatro como un espacio de experimentación. Con la ayuda de las reflexiones teóricas de Badiou, Rancière, Deleuze, Guattari y Blanchot sobre la experiencia artística, analizamos la relación entre los cuerpos de actores y actrices con la reverberación producida en el espacio teatral. Por lo tanto, pensamos que la incorporación del texto por parte de los actores y actrices produce resonancia a partir de la noción de cuerpo-diapasón.

Palabras clave: Teatro. Experiencia. Resonancia. Cuerpo-diapasón.


 

 

Ricardo III. Encenado por Gustavo Gasparani

O ator entra em cena. A voz toma o espaço da sala onde os(as) espectadores(as) permanecem sentados(as).
A apresentação não tem cenários, não tem figurinos...
Apenas um quadro-negro,
uma mesa
e as palavras...

Palavras que ganham a precisão de um corpo,
de um diapasão da história.

Este corpo cria um espaço de ressonância.
Nós, espectadores(as) somos convidados(as) a entrar na história.
Não pelo viés das palavras impressas em um livro de Shakespeare.
Mas pelas palavras que se apoderam de dois corpos: o do ator e o da linguagem...

Por contágio, somos afetados(as) pelo encontro com as palavras e com os cenários que elas criam...
Somos transportados(as) para a Inglaterra...
Terra de intrigas e violências de todo tipo...

Permanecemos sentados(as)...
Mas nossos corpos vibram com o poder das imagens geradas pela linguagem.

***

Assim, poderíamos começar nossa reflexão sobre o teatro. Tomamos aqui como exemplo a peça Ricardo III, de William Shakespeare, encenada por Gustavo Gasparani em formato de monólogo, com direção de Sergio Módena.

No cenário, o ator de calça jeans, blusa e tênis contracena com uma luminária, uma mesa, um quadro, pilotis e um cabideiro. A simplicidade cenográfica logo desaparece aos olhos do(a) espectador(a), quando as palavras começam a construir as tramas, os cenários e os sentimentos.

O ator incorpora 24 personagens da trama de intrigas políticas. As disputas de poder da Inglaterra de Ricardo III se parecem estranhamente familiares a nossa atualidade política. Sem esforço, espectadores(as) passam a atuar como integrantes de uma experiência criativa. O estímulo imaginativo, propiciado pelo encontro com o vazio cênico, é preenchido pelo corpo do ator e suas palavras.

O texto clássico de Shakespeare ressurge, nessa peça, com outra dinâmica, como dispositivo capaz de retirar a passividade do(a) espectador(a) e lançá-lo(a) ao encontro de seu presente. A força imaginativa, relativa à experiência teatral, produz um espaço de ressonância que possibilita a dança entre corpos. O encontro se estabelece em sintonia, característica da arte, sendo que no teatro assume contornos específicos.

O teatro é repetição, mas uma repetição que difere à luz do acontecimento (Badiou, 2002). Os corpos dos atores e das atrizes são como diapasões das relações entre o texto, a linguagem e os(as) espectadores(as). A repetição do ensaio serve para que o ator/a atriz adquira a articulação da palavra textual. No entanto, o corpo do ator/da atriz ultrapassa a mera articulação das palavras para se tornar um diapasão feito de linguagem que produz a reverberação afetiva e cognitiva no espaço experiencial aberto pelo palco.

O presente texto explora uma reflexão sobre o corpo do ator/da atriz, como diapasão da experiência, a partir de uma compreensão do espaço experiencial, do trabalho artístico de encenação e da leitura e suas reverberações.

***

Em Pequeno manual de inestética, Badiou (2002) afirma que a ideia-teatro é sempre incompleta, precisando da relação com o público para ser possível sua complementaridade.

O teatro se vale da repetição incessante de uma leitura. Pelos ensaios contínuos, os corpos dos atores e das atrizes dão vida ao texto literário. O espaço literário é espaço de ressonância, já que é relacional e reverbera sobre os corpos dando cor a eles e às palavras (Almeida, 2009). O espaço cênico à luz da repetição se apropria da ressonância para ir além ao fazer dos corpos dos atores e das atrizes o diapasão de uma leitura. No encontro teatral, vemos a potência da reverberação de sentido vir à tona.

Ao encenarem, os atores e as atrizes se esforçam a compor um mundo. Esse mundo está longe de ser uma totalidade, por isso reverbera no acontecimento. A ideia-teatro é sempre incompleta, porque necessita do acontecimento que coloca em conjunção corpos e linguagem (Badiou, 2002).

O interessante do acontecimento é que ele deve bloquear a linguagem coloquial. Então, como os atores e as atrizes se apropriam das palavras para compor mundos e potencializar reverberações?

Os atores e as atrizes devem neutralizar a linguagem articulada ao ponto das palavras não se encontrarem mais separadas do corpo que fala. Gustavo Gasparani não relata uma história. Ele não é um narrador. Pela reverberação do espaço cênico, o ator/a atriz é a própria história ou o diapasão que faz com que os espectadores e as espectadoras sintam e entendam o fio condutor, criando um plano de composição (Deleuze & Guattari, 1992).

A arte toma a experimentação como campo de pesquisa de novos modos de olhar sobre o mundo e seus impasses. A experimentação está na literatura, na dança, na música, no cinema e nas artes plásticas; artes que se conjugam muitas vezes se interpolando, lançando umas contra as outras como corpos na química, transformando-se mutuamente, sempre com novos modos de se contar uma história. Na literatura, como na música e no teatro, a história ressoa como notas musicais, afetando a todos(as) que compartilham da experiência com suas ideias e imagens. O pensamento, produto dos encontros com a linguagem, não são privilégios do teatro, mas nele estão presentes com sua força extensora, de alargamento de campos de percepção.

A arte, como prática, sustenta-se por uma aproximação. A ressonância de suas forças produtivas se dá por contiguidade. A experiência artística é o encontro com o diferenciado. Ela nos desloca do padrão, da repetição e do estereótipo (Barthes, 1984).

No teatro, como na vida, encontros com a diferença produzem uma experiência singular diante da obra. A singularidade do encontro se traduz pela irreversibilidade da experiência. Ela é transitória por excelência, produto do instante singular. O encontro do(a) espectador(a) com o espetáculo produz por si mesmo uma ruptura. Ela é fruto do acontecimento, como salienta Badiou (2002), e por isso ninguém sai dela ileso, nem atores (atrizes), diretores(as), produtores(as) e muito menos espectadores(as).

O teatro é o espaço diferenciado. Como conjugação coletiva, é um acontecimento singular, já que a experiência do teatro se desdobra em sua temporalidade. Para Deleuze (1998), um acontecimento é a dobra de um encontro com o fora, com uma singularidade que abala estruturas fixas, que na história são tomadas como naturais. O acontecimento, como devir, coloca a questão do aparecimento radical do novo, por encontros sucessivos com forças que deslocam o estado de coisas de seu lugar.

A arte é desvio, é deslocamento da repetição.

A experiência artística não pode ser definida de antemão nem servir para um ensinamento característico, já que ela escapa à captura (Almeida, 2009; Blanchot, 1969). Ao estar atrelada ao desvio de um estado de coisas, a arte se coloca como um dos lugares da potência do pensamento que nos ajuda, segundo Badiou (1992), a colocar em questão o universo da opinião e da repetição desdobradas no contemporâneo.

Uma das características da arte é ser marcada pelo seu tempo. No teatro, esse tempo está mais presente, ao se diferenciar do cinema, por não haver cópia perfeita possível. A reprodutibilidade é dificultada, levando atores (atrizes) e espectadores(as) a estarem mais próximos(as) de uma experiência intensa e, por conseguinte, do acontecimento.

Por esse motivo, Ricardo III, de William Shakespeare, consegue extrair sua potência mesmo em novos tempos e com outras configurações. Uma peça nunca será a mesma e poderá sempre, devido à força de seu texto, retornar como experimentação criativa. O teatro é um espaço de reverberação da intensidade modulada pelo texto.

Seguindo esse raciocínio, há dentro de toda montagem teatral, espaço para experimentação. A experimentação vai mais além do que o teatro experimental como conceito. Devido à impossibilidade de repetição plena, tanto público como atores (atrizes) são lançados(as) em vários momentos em direção ao processo de criação.

A criação é transgressão e trapaça. Ela está ligada à deriva do encontro, a algo que não é exclusiva de um modelo ou outro de teatro, já que há sempre algo de dionisíaco na arte, impelindo fraturas (Nietzsche, 1992). Em todo encontro há fratura. Não sabemos nunca ao que ela conduz. Por esse motivo, a arte escapa ao tempo da moral, mesmo a crítica acadêmica fazendo o seu esforço habitual de tornar a arte pífia à luz da captura e do esquadrinhamento da experiência (Badiou, 2002; Blanchot, 1969). Por isso, um(a) observador(a) sensato(a) ou crítico(a) teatral só conseguirão utilizar sua razão quando ela não é mais necessária.

O dionisíaco, Deleuze (1976) ao citar Nietzsche, descreve como a força de afirmação da vida que impele ao novo, ao desconhecido, à afirmação de uma potência. O ato de criação é a afirmação da arte como um modo de vida. Foi com a tragédia grega que Nietzsche (1992) formulou a ideia de que a razão e o pensamento mortificam o corpo, sendo o niilismo traduzido pelas figuras da representação e da natureza, assim como das essências do ser. O pensamento é como o teatro: forças não apaziguadoras o movem em direção ao desconhecido. O resultado disso é imprevisível e somente a ética é capaz de determinar os seus contornos.

A arte é a ferramenta de modulação da vida, dela extraímos os elementos de expansão e retração que são por si a medida da vida. O apolíneo está ao lado da individuação. É a arte que procura transformar o mundo em representações estéticas perfeitas. Na tentativa de chegar à essência e à perfeição das formas, o apolíneo mascara por meio da ilusão, a realidade cruel da vida (Nietzsche, 1992).

No entanto, é com Dionísio que Nietzsche (1992) pensa a força de transformação possível para uma ética do verdadeiro. É dionisíaco a experimentação, a potência desarticuladora do eu, que faz fundir artista com a própria obra de arte. É dionisíaco o desmantelamento da razão e das ilusões da verdade. Foi em Sócrates que Nietzsche identificou a prevalência do apolíneo na filosofia, prevalência que perdura até os dias atuais em detrimento da tragédia. Na tragédia, a afirmação da dor e do sofrimento, da imperfeição e da desmedida, são partes integrantes da vida.

Ao lançar-se para a experiência do novo, os processos criativos que são inerentes à vida, circulam em suas formas estabelecidas por contágio. A peça teatral é capaz de produzir um espaço de ressonância. É contagiante quando espectador(a), linguagem e atores (atrizes) vibram pelo encontro de corpos. Nesse encontro-diapasão, o ritmo dos corpos em seus processos criativos são mutuamente estimulados. A linguagem é também um dos corpos que criam e são criados pelo encontro. Seus núcleos duros são desmantelados pela força da experiência teatral. A linguagem é o dispositivo de mudança que também muda, como corpo-diapasão.

No ato criativo, não há autor(a) identificável, composições lançam corpos ao vazio, verdades são questionadas, experimentamos incertezas, enfrentamos o desconhecido (Barthes, 1984). O estranho desestabiliza as formas instituídas, a cultura é questionada em suas certezas perenes, e como efeito a experiência da arte é também a da fratura da língua (Deleuze, 1997).

Contra a assepsia da língua a arte da palavra é a contaminação que impossibilita o fechamento, a repetição. Sempre haverá composições, ligadas a novos modos de pensar. Ricardo III, inscrito na história, se apresenta como potência questionadora do presente. Sua atualidade nos mostra o viés da história se encontrando constantemente com a atualidade que a equivoca, que produz novos entendimentos e outros olhares sobre o mesmo. O texto teatral é um corpo que fala e se impõe no instante: um tempo presente que se nutre e, ao mesmo tempo, equivoca o passado, se inscrevendo na história, fruto da repetição que tornou a palavra articulada, corpo.

Como cita Badiou (2002), o teatro produz pensamento como ideia-teatro. Uma ideia-teatro só é possível dentro dos aparatos técnicos permitidos pelo espaço cênico. Dessa experiência Badiou delimita seu campo como sendo o da simplificação. O teatro possui a arte de simplificar a vida, de dar visibilidade a ela, tornando-a inteligível, redutível ao pensamento. A ideia apresentada, em cena, é marcada pela incompletude. A apresentação teatral é marcada pelo descompasso e pela fragmentação, tornando a experiência sempre única: um acontecimento. Por isso, o teatro não é uma filosofia, mas uma apresentação de ideias. Ninguém sai mais culto ou sábio de uma peça de teatro, mas se depara com novas possibilidades de pensar.

Diante disso, Ranciére (2010) questiona o papel do teatro como fonte de educação e cultura. A grande questão do teatro moderno, o que o diferenciava das demais obras de arte, era a possibilidade de interação do público com atores e atrizes. No teatro, temos a obra de arte sendo posta em andamento pela presença, sendo construída diante dos olhos do(a) espectador(a).

O problema do(a) espectador(a) passivo(a), comparado(a) àquele(a) que aceita de bom grado o que se é ofertado como espetáculo, foi questionado a ponto de o teatro tentar reverter a relação espectador(a)-passividade. No teatro moderno, a fascinação e a identificação dão lugar à ação. Espectador(a)-ativo, participante da construção da peça com seu corpo como presença ativa.

Poderíamos pensar que Gasparani em sua releitura da obra shakespeariana convoca o(a) espectador(a) à atividade, mediada pelo corpo-diapasão e pela potência da experiência intensiva proporcionada pelo vazio cênico. O estranhamento e o desconforto do(a) espectador(a) diante da obra, características do teatro contemporâneo, relevam a marca de uma tentativa de inverter a lógica da dominação da obra como imposição de imagens e ideias. A liberdade seria então, dentro desse pensamento, uma inversão ou dissolução de papéis, atividade que o teatro sustenta com a energia vital de seus/suas participantes.

Mas por outro lado, Ranciére (2010) demonstra que a passividade nunca foi uma característica do(a) espectador(a). Sua liberdade sempre foi exercida de alguma forma com esse encontro, mesmo para aqueles(as) que utilizam somente do olhar como instrumento para reflexão e divertimento.

A emancipação do(a) espectador(a), para alguns(mas), seria encarnar o público como uma das partes do teatro, criando um espírito comunitário único, capaz de desfazer as separações e as hierarquias de uma peça, que seria por consequência questionadora de hierarquizações sociais e políticas. Sendo uma comunidade, o teatro é a coletividade unificadora, que na modernidade se transforma em uma aposta pedagógica-filosófica contra a alienação do teatro catártico (teatro da ilusão, alienação, identificação), como no caso de Brecht, ou como no caso de Artaud, o teatro surrealista da subversão de lugares e papéis.

Gasparani, ao entrar em cena, explica a trama shakespeariana em um quadro-negro. Sonho de um didatismo levado à prova. No entanto, depois de exposto, o ator-diapasão empresta seu corpo ao texto, se dissolvendo nas inúmeras personagens da peça.

Ele nos convida à atividade de produção de sentido, pois Lady Anne não é Gasparani, muito menos Ricardo III. No entanto, é com eles que nos relacionamos. O espaço do vazio cênico faz espectadores(as) de forma ativa preencher com a força imaginativa suas lacunas, não mais enxergando o ator diante de si, mas apenas o corpo que é a história.

Rancière (2010) propõe que essa divisão entre espectador(a) e obra é mais complexa. Não precisa ser resolvida, já que ela se resolveu por si mesma diante da singularidade das percepções e ações que se conjugam em todas as formas de expressão. O(a) espectador(a) se expressa à medida que observa, sua participação é singular, na medida em que seu encontro com a obra é modulado pelo intelecto, que por si só possui capacidade de síntese e seleção, separando e conjugando com experiências passadas o ato de criação.

A criação é um ato de liberdade que congrega todos(as) os(as) participantes do processo criativo. O espetáculo é o meio pelo qual há esse encontro, em que se conjugam em sintonia dissonante, não havendo possibilidade de ensino, de repetição, de imitação ou de entendimento pleno da obra. A distorção faz desaparecer a igualdade, mas não produz hierarquias. A emancipação do(a) espectador(a) sugere que toda a percepção é ativa, construtora de modelos de pensamento baseados na história. Cada espectador(a) traduz por si mesmo, em liberdade, o discurso que não se prende a uma natureza ou essência.

A experiência do teatro se diferencia, dessa forma, das outras artes por apresentar-se dentro de seu próprio instantâneo; não há experiência sem improviso. Da imperfeição, da gagueira narrativa, nasce a possibilidade de criação de atos, com possibilidades de desestabilização (Deleuze, 1997). O teatro é teatro-improviso, mesmo o reiteradamente ensaiado, tendo por característica a proximidade e o acaso. A reverberação intensiva torna cada espetáculo uma experiência singular. Sempre um novo encontro, com intensidades próprias, não redutíveis a outras formas de arte correlatas, como o cinema, por exemplo.

No cinema, a temporalidade é outra, a narrativa e a experiência intensiva são marcadas pela passagem mais cruel do tempo, pela retirada de cena, pelo corte, pela edição. No teatro-improviso, não há espaço editável, só há presença marcante de corpos em encadeamento intensivo. No teatro, o movimento é constante e a ideia se apresenta no instante. Do instante não reversível surge a arte teatral, sua poética do improviso e do acontecimento.

A poética do teatro é justamente a impossibilidade de representação sem o corpo, é a presença plena de um encontro produtor de sentido. Sentido esse que se esvai no instante da apresentação para retornar em sua diferença por reverberação ao continuar produzindo pensamento depois da peça.

Relação intensiva, marcada pela falência das significações plenas, a arte aqui apresentada se configura como distensão de verdades absolutas, liquefação das formalizações representáveis, abertura de sentido. Liberada da função representativa, a arte se dá no encontro, nas relações do entre, nos interstícios não hierárquicos que povoam espetáculos teatrais, na relação entre espectador(a) e ator(atriz), seus objetos em cena e sua história. Deslocada de seu valor designativo, a arte é uma composição privilegiada capaz de ampliar fronteiras.

Dos encontros que reverberam não resta o ser e sua verdade, o corpo do ator/da atriz, como diapasão da história, é marcado por uma intensidade vibrante. A arte é atravessada pela potência intensiva da vida, que a expande para longe das formas duras e perenes. A narrativa histórica e a crítica teatral é a conjugação entre a tentativa de uma formulação e um fechamento, visando ao enquadramento da arte por meio de dados explicativos e racionais (Blanchot, 1969). Onde há vida, há incertezas, afetos, sensações imprecisas e inexplicáveis de pura intensidade.

A arte em si presentifica o acontecimento e resiste contra a vontade de verdade inerente à explicação

Badiou (1989) tenta mostrar a dependência da sutura entre arte e pensamento. Ele salienta os entrelaçamentos que o pensamento pode se ocupar diante da atualidade de seus discursos produzidos. O autor mostra que a filosofia não se confunde com a arte, mas dela se nutre para extrair o acaso, o acontecimento (Badiou, 1992). O pensamento surge do improvável, dos impasses, provém dos afetos que circulam livremente, das fraturas do cotidiano. Ao conceber a filosofia, como acontecimento, liberta-a da escravidão da situação, dos jogos de verdade impostos pela cultura, tornado-a um discurso universal e singular (Badiou, 2009). A singularidade está nos pensamentos oriundos de localidades determinadas, de tempos específicos que conferem particularidade, mas que por sua potência se torna universal. Reverberar em uníssono, por contiguidade não hierárquica, por contaminação, essa é a característica das ideias que se pretendem universais.

Como fruto de seu tempo, a arte traz consigo a ambivalência de suas determinações, nos dias de hoje. Ela está subjugada às forças que a capturam, afinando-a com o mercado e o capitalismo (Almeida, 2009; Foucault, 1999). Como mercadoria, torna-se volátil e efêmera, existindo sempre o risco de tornarmos a arte um fenômeno do instante do consumo. No contemporâneo, o consumo é a captura que faz da arte um produto consumido e descartado de forma veloz, perdendo na maior parte das vezes seu caráter revolucionário.

Para Badiou (2015), a arte contemporânea é tanto uma ilustração do presente como uma forma de contestação, colocando-se criticamente diante dele. No entanto, a arte pode mais que isso, ela possui a potência de descobrir o mundo, de tirá-lo da obscuridade, trazendo à visibilidade os processos de libertação.

O teatro, como veículo de crítica dos costumes, é capaz de produzir expansão, fazendo os corpos vibrarem em outras intensidades, ao fazer do encontro, um encontro de liberdade.

Assim, a releitura de Gasparani evidencia a potência do corpo do ator como diapasão da história. É ele que faz reverberar uma leitura que põe luz sobre a atualidade e os costumes, nos convidando, por meio da ressonância proveniente do espaço cênico, a continuar a pensar com Shakespeare e a partir dele.

 

Referências

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