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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A metáfora paterna e a tríade R-S-I no romance A Morte sem Nome, de Santiago Nazarian

 

The paternal metaphor and the triad R-S-I in the novel a Morte sem Nome, by Santiago Nazarian

 

La métaphore paternelle et R-S-I triade dans le roman a Morte sem Nome, Santiago Nazarian

 

La metáfora paterna y la tríada R-S-I en la novela a Morte sem Nome, de Santiago Nazarian

 

 

Talita BaldinI; Kátia Alexsandra dos SantosII; Paulo Eduardo Viana VidalIII

IAtriz e psicóloga. Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES. Email: talitah_0507@yahoo.com.br
IIDoutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo-USP/ Ribeirão Preto (2012), Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). E-mail: kalexsandra@yahoo.com.br
IIIDoutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: paulovidal@id.uff.br

 

 


RESUMO

A morte sem nome aborda a história de Lorena, uma mulher que vive para se matar. Entremeio às mortes da personagem, Lorena, surgem ideias, pensamentos, esclarecimentos sobre a personagem e sua relação com o Outro. Na busca por si mesma, Lorena se encontra aos pedaços entre um adolescente, um garçom, um feirante e um estuprador. Pela riqueza de conteúdo, a obra pode ser analisada à luz da Psicanálise, principalmente no que diz respeito à metáfora paterna e os registos R-S-I, de Lacan. Levando isso em conta, este trabalho tem por objetivo explanar os três elementos descritos e argumentados por Lacan, articulando-os por meio da obra literária. Feito isso, foi possível adentrar o psiquismo desse sujeito e sentir de forma mais próxima as delicadas consequências do não desenvolvimento, ou de um desenvolvimento problemático, do momento do estádio do espelho na vida de um sujeito. A relação R-S-I é trazida em evidência e pôde ser refletida com mais detalhes no plano Simbólico, no qual a linguagem permite que se faça relações abstratas e consistentes, metafóricas e metonímicas, sempre tendo como pano de fundo a dramática história de Lorena.

Palavras-chave: Psicanálise. Lacan. Nomes-do-pai.


ABSTRACT

A morte sem nome addresses the story of Lorena, a woman who lives to kill herself. Between the deaths of the character, Lorena, come ideas, thoughts, clarifications about the character and their relationship with the Other. In her quest for herself, Lorena finds herself torn between a teenager, a waiter, a shopkeeper and a rapist. By the richness of content, the literary work can be analyzed in the light of Psychoanalysis, especially with regard to the paternal metaphor and the records R-S-I, of Lacan. Taking this into account, this work aims to explain the three elements described and argued by Lacan, articulating them through the literary work. Once this was done, it was possible to penetrate the psyche of this subject and to feel more closely the delicate consequences of non-development, or a problematic development, of the moment of the mirror stage in the life of a subject. The R-S-I relationship is brought into evidence and could be reflected in more detail in the Symbolic plane, in which language allows abstract and consistent relations, metaphorical and metonymic, always taking into account the dramatic history of Lorena.

Keywords: Psychoanalysis. Lacan. Names-of-father.


RÉSUMÉ

A morte sem nome couvre l'histoire de la Lorena, une femme qui vit à tuer. Empiècement à la mort du personnage, Lorena, il y a des idées, des pensées, des éclaircissements sur le caractère et sa relation avec l'Autre. Dans la recherche d'elle-même, la Lorena est en dehors d'un adolescent, un serveur et un agent de commercialisation d'un violeur. La richesse du contenu, le travail peut être analysé à la lumière de la psychanalyse, en particulier en ce qui concerne la métaphore paternelle et les dossiers R-S-I, Lacan. En prenant cela en compte, ce document vise à expliquer les trois éléments décrits et argumentées par Lacan, en les reliant par le travail littéraire. Ensuite, il était possible de pénétrer la psyché de ce sujet et se sentent plus près les conséquences délicates de non-développement, ou un développement problématique, le moment de la phase de miroir dans la vie d'un sujet. La relation R-S-I est mis en évidence et pourrait se refléter de manière plus détaillée dans le plan symbolique, dans lequel la langue vous permet de faire des relations abstraites et cohérentes, et métaphoriques métonymique, toujours avec la toile de fond de l'histoire dramatique de Lorena.

Mots-clés: Psychanalyse. Lacan. Les noms du parent.


RESUMEN

A morte sem nome aborda la historia de Lorena, una mujer que vive para matarse. A las muertes del personaje, Lorena, surgen ideas, pensamientos, aclaraciones sobre el personaje y su relación con el Otro. En la búsqueda por sí misma, Lorena se encuentra a pedazos entre un adolescente, un camarero, un feriante y un violador. Por la riqueza de contenido, la obra puede ser analizada a la luz del psicoanálisis, principalmente en lo que se refiere a la metáfora paterna y los registros R-S-I, de Lacan. Teniendo esto en cuenta, este trabajo tiene por objetivo explicar los tres elementos descritos y argumentados por Lacan, articulándolos por medio de la obra literaria. Hecho esto, fue posible adentrar el psiquismo de ese sujeto y sentir de forma más cercana las delicadas consecuencias del no desarrollo, o de un desarrollo problemático, del momento del estadio del espejo en la vida de un sujeto. La relación R-S-I es traída en evidencia y pudo ser reflejada con más detalles en el plano Simbólico, en el cual el lenguaje permite que se haga relaciones abstractas y consistentes, metafóricas y metonímicas, siempre teniendo como telón de fondo la dramática historia de Lorena .

Palabras-clave: Psicoanálisis. Lacan. Nombres de padre.


 

 

A morte sem nome é o primeiro romance escrito por Santiago Nazarian, em 2004. Ele aborda a história de Lorena, uma mulher que vive para se matar. Nesse sentido, o autor promete um suicídio em cada capítulo. Entremeio a essas mortes surgem ideias, pensamentos, esclarecimentos sobre Lorena e sua relação com as pessoas, mais especificamente com seu pai e sua mãe, sobre os quais repetidamente volta a tratar ao longo de todo o romance.

Na capa da obra, o autor descreve Lorena como "uma suicida serial, uma mulher sem amor e sem esperança, derramada por páginas e páginas de delírio e poesia" (Nazarian, 2004, capa). E é em meio a delírios e poesias que Lorena abre sua alma para o leitor, retratando uma vida marcada por perdas, abusos e negligências. Uma morte sem nome, essencialmente do plano do real. Essa obra foi escolhida para a análise com os conceitos lacanianos porque traz com sensibilidade em suas entrelinhas a essência do que é humano de forma tocante: a vida -marcada por angústias, desejos, pulsões de vida e de morte e em relação ambígua.

Na busca por si mesma, Lorena se encontra aos pedaços entre um adolescente, um garçom, um feirante e um estuprador. A grande questão que permeia suas mortes é quem escreverá seu epitáfio, por meio de uma relação de retorno repetido à função do Nome-do-pai.

A morte sem nome aborda reiteradamente a questão da morte que, conforme os estudos lacanianos, se encontra no campo do real no que diz respeito à tópica lacaniana. As instâncias real-simbólico-imaginário foram postuladas em 1953 pelo próprio Lacan em um de seus seminários. Nele, Lacan estabeleceu essas três estruturas para explicar o psiquismo humano desde a origem do sujeito, declarando que uma etapa é complementar à outra e que ambas caracterizam o funcionamento psíquico. Levando isso em conta, este trabalho tem por objetivo explanar os três elementos descritos e argumentados por Lacan, articulando-os por meio da obra literária de Santigo Nazarian (2004), A morte sem nome.

 

Fundamentação teórica

Na fundamentação teórica abordaremos apenas os conceitos de estádio do espelho, importante para perceber como o sujeito se relaciona com a realidade, desde criança, e os registros Real-Simbólico-Imaginário (R-S-I). Quanto ao estádio do espelho, Lacan (1966/1998) o compreende como um modelo que atravessa toda a vida do sujeito. Representa a relação libidinal do sujeito com sua imagem corporal, iniciada quando ainda é um bebê, pouco consciente de si.

O estádio do espelho consiste num momento, por volta dos seis meses de idade, em que ao começar a observar sua imagem no espelho a criança passa a experimentar uma grande diversidade de gestos e movimentos lúdicos com sua imagem refletida, de modo que a relação com a imagem duplicada permite que o sujeito possa desenvolver vínculos com pessoas e objetos que se encontram no seu entorno. A imagem que se confere no espelho, até aproximadamente os 18 meses, é reveladora do dinamismo libidinal, cuja identificação abrirá portas para o sujeito viver em sociedade (Lacan, 1966/1998).

Porém, Lacan (1966/1998) atenta para o fato de que mesmo muito pequeno, por volta dos seis meses, o bebê já dá indícios de reconhecer sua imagem refletida no espelho, que passa de uma relação da ordem do real, daquilo que não pode ser simbolizado, até a compreensão do eu como imagem, chamada de imagem especular. Isso tem total relação com os três registros, real, simbólico e imaginário, que abordarei posteriormente. Neste momento, porém, quero destacar que Lacan desenvolveu a metáfora do espelho para representar a relação da criança com a realidade ao seu redor, "uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (Lacan, 1966/1998, p. 97).

Para que a criança reconheça que está em relação com outros, primeiro ela precisa compreender que a imagem que vê é ela, ao mesmo tempo em que não é somente ela, uma vez que o eu se encontra alienado ao outro (o semelhante, a identificação) e também ao Outro (pois a criança, para constituir-se sujeito, precisa estar imersa na Linguagem, na Cultura e no Simbólico). Dessa forma, falar de sujeito, com Lacan, é falar de um eu assujeitado, que se constrói na relação com outros e o Outro, assujeitado pelo próprio desejo (Lacan, 1966/1998).

Assujeitar-se é fundamental para a constituição do eu. É assim que a criança passa da imagem fragmentada do corpo para um eu que está longe de ser total, embora possa ser estruturado. Conforme Lacan (1966/1998, p. 101), "esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial, [...] a dialética que desde então liga o eu a situações socialmente elaboradas", passando de um eu especular para um eu social.

Não perdendo a metáfora do espelho lacaniana de vista, cabe aqui uma explicação sobre o nó borromeano e as três instâncias que compõem o aparelho psíquico, o registro Real-Simbólico-Imaginário, ou R-S-I, para que possamos aprofundar a discussão em torno da velhice como a impossibilidade de ser, logo algo que compete ao campo do Real. No Seminário XX, Mais ainda Lacan (1972-1973/1985) apresenta o nó borromeano, formado por três círculos entrelaçados e que juntos formam um nó. Cada um desses círculos corresponde a uma instância psíquica, portanto todas interligadas, e o corte de uma delas deixaria todas soltas.

Quanto aos três círculos, um deles representa o Real, outro o Simbólico e o terceiro o Imaginário. No cerne dos elementos, encontra-se a Linguagem, por sua presença ou falta, pela interação com o Outro e reconhecimento das Leis sociais. O Real estaria num plano anterior à linguagem, referindo-se àquilo que não pode ser dito, que não pode ser nomeado, o inalcançável. A partir do momento em que se é possível falar sobre algo, entramos no plano do Simbólico (Lacan, 1972-1973/1985). Nesse sentido, Lacan (2005, p. 15) aponta que "falar já é introduzir-se no objeto da experiência analítica", momento da simbolização, por meio da qual a experiência singular de cada sujeito pode ser transmitida ao outro por intermédio da interação. O Imaginário, por sua vez, refere-se ao objeto para além do símbolo, abrangendo assim o plano da fantasia, aquilo que já tem "seu próprio valor de imagem para um outro sujeito" (p. 20), o que denota a singularidade das relações inter e intrapessoais, com o Outro.

Assim, como características gerais, que serão aprofundadas com fragmentos da obra de Santiago Nazarian (2004) a seguir, pode-se determinar o Real como instância do não sentido, do impossível e da falta. Já o simbólico representa a inserção da Lei por meio da linguagem, o corte com a fusão materna, delimitada pelo estádio do espelho em que duplos sentidos são possíveis para culminar com a resolução do Complexo de Édipo. E, por fim, o imaginário como as representações com sentido evidente, a imagem quando percebida como unidade (após a passagem pelo estádio do espelho), o lugar em que os processos identificatórios são possíveis (Jorge, 2005).

A noção de alteridade também se faz presente na relação, trazendo consigo a ideia de que o outro é um elemento constitutivo do sujeito e que, por conta disso, estabelece uma relação particular com ele, a qual está inscrita em maior ou menor instância no Real, no Simbólico ou no Imaginário. Birmam (1997) também aborda o conceito fazendo referência a Freud com relação ao eu e o inconsciente. O eu, constituído pela alteridade, exige um grande esforço do ponto de vista imaginário para organizar as relações com os objetos. Nesse sentido, o sujeito encontra alívio ao equilibrar-se instavelmente em uma relação dialética na qual o sujeito se produz e reproduz tendo por meio as pulsões e o outro.

Destacados os supracitados conceitos, a próxima seção do artigo fará uma retomada de suas definições e componentes, articulando-os com trechos e ideias discutidas por Santiago Nazarian (2004) em A morte sem nome.

 

A representação dos registros R-S-I em a Morte Sem Nome

Conforme já apontado na seção anterior deste artigo, A morte sem nome aborda essencialmente a questão dos suicídios de Lorena, assim como pode servir de rico material de análise para se pensar a questão da metáfora paterna, embora não compreendida por este recorte teórico.

A vida da personagem Lorena parece oscilar entre representações das três instâncias abordadas por Lacan, de modo a retratar a fragilidade dos laços que transpõem e unem real-simbólico-imaginário, como o nó borromeano (Jorge, 2005; 2011). Logo nas primeiras páginas da obra, Lorena, adulta, discursa sua incompreensão sob um ponto de vista que poderia ser o imaginário nomeando o real: "o que uma criança pode entender de amor? O que uma menina de sete anos pode entender?" (Nazarian, 2004, p. 13). Nesse trecho, a Lorena adulta retoma algo que ela, quando criança, não era capaz de entender - o amor. Dessa forma, transpassa pelo olhar do Outro, que na alteridade construiu um símbolo singular para identificar o que para ela seria o construto amor e no presente é capaz de olhar para ele. Lacan retoma essa questão ao tratar do psiquismo semelhante a um nó borromeano (Jorge, 2005), em que as três estruturas são ao mesmo tempo separadas e interligadas, uma não existindo sem a outra. Nesse sentido, para efetuar a passagem do Real (o sentimento trazido pelo amor sem mediação da linguagem) para o Imaginário, é preciso de um símbolo (amor enquanto palavra dita, Lei) centrado em uma unidade e cuja finalidade é concretizar o significante anterior (o Imaginário, efetivamente).

Da mesma forma, esse trecho da obra pode ser analisado sob a óptica da diferença sexual. Conforme Lacan, a tripartição R-S-I é engendrada a partir da diferença sexual, uma vez que todo o conteúdo inconsciente tem esse cunho (Jorge, 2011). Assim, a falta primária sentida por Lorena, que será visto adiante ser constituinte do corte da ligação com o pai, precisa ser suprida com algum conteúdo simbólico para então ser parte do imaginário psíquico da personagem. A noção de completude da relação Lorena-pai é, com isso, imaginariamente suprida pelo contato com outros símbolos, significantes que expressam a relação que outrora fora fusional. Embora haja esse corte com a função materna, Lorena busca incessantemente seu objeto de desejo primário, o objeto a, não compreendido como linguagem (Fink, 1998).

 

A inserção da função paterna na vida de Lorena

A inserção da lei paterna é explicitada na fala da personagem do romance. No entanto, percebe-se que há uma inversão nos papéis e que é a mãe quem desempenha a função paterna e o pai a função materna. Isso pode ser verificado no trecho a seguir.

Ele não tinha estrutura para isso. Para ser pai, é preciso de um pouco mais, aos vinte e quatro. Aos dezessete anos, ele me teve, nove meses em sua barriga. Ou assim pensava eu, sete anos depois, até minha mãe me puxar para dentro, me trancar no quarto e me privar da sobremesa. Eu era doce até demais com o meu pai. (Nazarian, 2004, p. 13)

Por meio do rompimento da fusão mãe-bebê, com a inserção da função paterna a criança adentra no mundo simbólico e constrói as relações necessárias para inserir-se no mundo Imaginário. Nesse sentido, Lacan (1966/1998) apresenta que é essencial que a criança aprenda a se identificar e a identificar seu corpo no espelho, tornando o fantasma do corpo esfacelado em uma imagem como unidade para ser capaz de se relacionar com o Outro, ou seja, passe por uma boa resolução do estádio do espelho nos primeiros meses de vida.

Ainda, a metáfora paterna pode ser analisada em outro fragmento do texto, no momento em que Lorena relata ter engolido uma moeda. Ela relata a situação e situa o leitor sobre como todos, e em especial a mãe, se portam diante da situação.

Ninguém se importou. O valor era baixo. Esperavam que eu não entupisse o vaso. Me arrependeria de ter quebrado o cofrinho. Minha mãe não me daria mais um tostão. [...] Como se fosse remédio, eu me sentava e fechava a boca, trancando a respiração. Até embaçar a vista levava alguns minutos, e minha mãe reclamaria do meu silêncio, como reclamaria do meu entusiasmo. [... ] Absolutamente imóvel, até ser sacudida. Por minha mãe, eu seria internada. "Faça o favor de respirar, menina!", até eu cair. (Nazarian, 2004, p. 14)

Já com relação ao pai, relata que, ao cair aos seus pés, não precisaria de nada "a não ser derreter. Em lágrimas e soluços, eu era sua filha preferida. [... ] Chorando eu o fazia mais pai. E ele contente por conseguir me fazer parar. Deitar. Dormir" (Nazarian, 2004, p. 14). Com essa passagem, verifica-se que a relação simbiótica que existia entre Lorena e o pai é interditada pela mãe, mas constantemente a personagem retorna para os braços paterno.

Ainda, o ato de engolir a moeda e trancar a respiração pode ser visto como símbolo de engolir a própria mãe, rejeitando a lei dela. Lorena não conseguia se submeter nem à sua figura, nem à sua lei, e encontrava conforto no olhar do pai, que a mãe interdita ao mandar a filha morar com os tios, no campo.

Num sítio, morava com meu tio, minha tia e três primos, meninos. Eu era apenas mais uma. [... ] Representar toda a alegria, eu não conseguia. Embora meus primos comentassem que eu deveria. [... ] Meus tios diziam que eu deveria me esforçar mais um pouco. Para me integrar àquela vida era um esforço terrível. Longe do meu pai. (Nazarian, 2004, p. 15)

Ou seja, demarca-se que em nenhum momento da obra Lorena deixa explícito ou implícito o desejo de voltar para a mãe, somente para o pai.

Mais uma vez Lorena traz a interdição da mãe, rompendo-lhe a satisfação imediata de seus desejos, conforme só poderia ser, dada a não possibilidade de identificação com o Outro (Lacan, 1966/1998). Isso fica explícito com a passagem: "Como nunca deu importância para meus erros, que não eram seus. Não era da família. Como sempre encheu meu prato e calou a minha boca. Tapou os ouvidos. [...] Como nunca me condenou, nem aplaudiu" (Nazarian, 2004, p. 161). Na sequência lamenta que "devia ter me atirado de volta para meu pai. Devia ter me jogado para fora do carro. Devia ter me cuspido" (p. 162), o que parece trazer à cena a passagem ao ato como meio de simbolizar uma interdição (Lacan, 2005) que nunca lhe aconteceu, ao menos não por esse pai que ela tanto preza.

A relação de Lorena com a mãe é conflituosa, talvez justamente porque ela lhe tira todos os prazeres que sente estando ao lado do pai, traz-lhe para a realidade, nomeando a interdição de que fala Lacan (1998; 2005). Lorena parece desejar que a mãe se posicionasse de outra forma diante dela, que olhasse para ela. "Como nunca me condenou, nem aplaudiu" (Nazarian, 2004, p. 161). Conforme Lacan (1998, p. 100), "a função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade", e é essa realidade que Lorena conhece, mas não suporta. Por isso procuraria tanto a morte, experiência Real que não pode ser simbolizada?

Para melhor compreensão disso, aponta-se que o simbólico é um registro diferente do imaginário e que tem por função, por ser constituído por linguagem, ocupar o lugar da falta real presente no imaginário (Jorge, 2011). Ou seja, refere-se a um terceiro elemento capaz de dar a falsa ilusão de completude para o sujeito, pois substitui a relação de completude inicial (simbiose mãe-bebê) com um elemento estruturante (a linguagem), como que dizendo à criança "olhe para cá, há algo mais interessante aqui", para além da mãe.

Uma análise do ponto de vista do Simbólico é muito evidente em A morte sem nome, mas também é inegável a presença de elementos do Real e Imaginário. Lorena é uma mulher consciente de sua realidade, no entanto em momentos distintos. Ela conhece as leis do mundo e as respeita em alguns momentos, mas também parece desconhecê-las em outros, ou mesmo não as suporta e/ou sustenta. Se fosse carcterizá-la estruturalmente como neurose/psicose/perversão, seria possível dizer que Lorena se mantém de forma intensa na psicose, uma vez que a personagem, na maior parte do romance, parece não ser capaz de reconhecer a Lei introduzida pela mãe.

Apesar disso, há elementos neuróticos, quando a personagem percebe e respeita as leis necessárias para a vida em sociedade, conforme abordado por Lacan (2005), tal como na situação relatada anteriormente do incidente com a moeda; e da perversão em alguns momentos também. As características perversas de Lorena se concretizam em seus amantes, uma vez que parece não se colocar nas relações, apenas torna-se objeto delas, seja tratando-se de Davi, de Miguel, do garçom ou de Mako. De modo a exemplificar, pode-se citar a forma como Lorena se refere a Miguel.

Pobre de meu amante, assim tão argentino, trágico, dramático. Eu o amaria, se não estivesse tão morta, meu querido. Sentiria sua infância, na ponta dos meus dedos. E sua masculinidade, na ponta da lança. [... ] Mas nós já tentamos tudo isso. Nós já tivemos nossa chance, meu amor. É hora de ir embora. O que pode me dar foi o que tiro de todos os homens. Os mesmos ingredientes em pratos diferentes. (Nazarian, 2004, p. 130)

Como outra forma de exemplo, trazemos a forma como a personagem trata de Mako: "Ora, ora. Mas eu nunca te amei. Nem prometi. Foi apenas o meu corpo sob o seu. Foram apenas líquidos derramados. Sobre o asfalto, foi apenas mais uma [relação sexual]. [...] Me desculpe se a fiz parecer diferente" (Nazarian, 2004, p. 157). Ou seja, Lorena conhece a Lei, mas se recusa a introjetá-la de forma simbólica. Ela é literal, vai ao ato (assim como o fará no suicídio).

Do início ao fim do romance, Lorena busca a simbolização, trazendo elementos que a colocam em contato com a realidade em alguns momentos e de repleta fantasia em outros. "Eu tentava apenas não fazer diferença, não pensar, não falar, não olhar. Nem respirar eu podia. Ser louca em movimento ou louca contemplativa. Era uma questão de escolha" (Nazarian, 2004, p. 14). É nesse entremeio de simbólico e realidade que Lorena concentra sua existência, não sendo capaz de realizar satisfatoriamente a passagem para o plano Imaginário, em que seria possível viver sem sofrer tanto (Lacan, 1966/1998).

Concentrando-se no Simbólico, Lorena somatiza a vida caótica e deprimida com tentativas de suicídio, cortes na pele, transtornos alimentares, cigarros, bebida, todas ações concretas - uma vez que não foram simbolizadas. A personagem realiza "uma corrida para vencer a fome" (Nazarian, 2004, p. 87) - de simbolização da vida? -, sendo que os cortes são a marca principal. Literalmente, como essencialmente Lorena se comporta, os cortes são cicatrizes que caracterizam sua existência: "minhas cicatrizes, na luz do sol, parecem um pedido de desculpa" (p. 87). Desculpas para ela mesma? Desculpas para a família, com a qual vive em constante amor e ódio? Parece desculpar-se por tentar, sem, no entanto, conseguir.

Derretia, mas não desistia, do sol e do cigarro. Não desistia do verão. Não desistia do esconderijo. E da escuridão, parecia ser apenas o final inevitável de mais um dia malsucedido. Nunca descoberta, nunca descoberta. Sempre enterrada por minha família. Sob o sol, na escuridão. (Nazarian, 2004, p. 89)

Ainda tratando do plano Simbólico, Lorena se utiliza de metáforas e metonímias para discorrer sobre sua vida. Conforme Jorge (2011), ambos os termos são retomados das figuras de linguagem e representam conteúdos significativos recalcados a partir da inserção de outros elementos. Assim, enquanto a metáfora substitui significantes por outros significantes com relações similares, a metonímia está mais ligada ao deslocamento e combinação de significantes por relações de contiguidade. Para ilustrar, é possível retomar o trecho "até o fim desta história, eu encontro um caminho" (Nazarian, 2004, p. 159) como exemplo de metáfora, em que os significantes história e caminho são substitutos aos significantes vida e morte, pois é possível inferir que o que Lorena deseja é encontrar uma forma para morrer nesta vida. Já, com relação à metonímia, trata da solidão e da necessidade de algo mais, que não sabe precisar o que seja.

A gente leva uma vida tão solitária que eu achava que precisava de algo mais. Onde estava? Correndo nas minhas veias, pulsando em meu corpo, paixão e hormônios que me levam do amor à decepção, passando por todo o tipo de doenças. [... ] Eu poderia cozinhar sozinha, com minhas próprias mãos. Poderia tomar banho, enxaguar o cabelo, esfregar o chão e virar a garrafa de vodca sem ajuda de ninguém. (Nazarian, 2004, p. 158)

No supracitado trecho da obra, Nazarian (2004) se utiliza de significantes que representam elementos corporais, portanto concretos, para explanar sentimentos que perpassam a sua alma, pois o amor e a decepção, por exemplo, correm nas veias, pulsam no corpo e passam pelas mãos de Lorena, sendo seu próprio desejo metonímico - o objeto a, postulado por Lacan para caracterizar tanto o desejo do Outro quanto forma de simbolizar aquilo que falta ao sujeito (Fink, 1998).

Por fim, conclui-se que em sua busca incansável pela simbolização, Lorena chega àquilo que permanece no elemento Real por não poder ser simbolizado, sua própria morte, o que consegue, na última página do romance, quando diz para um de seus amantes que a "derrame no chão. Entre as frestas, entre os tacos, juntos com os insetos contamos uma história que é mais nossa. Neste apartamento. Derrame com o coração, entre as frestas, no chão. E este eu não vou esfregar, ah, não, este não" (Nazarian, 2004, p. 205). Este chão que não poderá esfregar, por não estar mais presente na mesma dimensão que o chão do apartamento. Nesse fragmento, a escrita em primeira pessoa do plural (nós) remete novamente ao pai, que a chama de Letícia em vez de Lorena, e a quem ela se dirige integralmente no último capítulo do romance. Mais uma vez reforça a hipótese de que a personagem viva na psicose, pois não conseguiu se descolar da figura materna (o pai), logo não se constituiu como sujeito estruturado (Fink, 1998; Lacan, 2005).

 

Considerações finais

A morte sem nome é uma obra literária com um potencial riquíssimo para interpretação e exemplificação de conceitos psicanalíticos na vida de uma personagem fictícia. Com Lorena nos foi possível adentrar o psiquismo desse sujeito e sentir de forma mais próxima as consequências do não desenvolvimento, ou de um desenvolvimento problemático, do momento do estádio do espelho na vida de um sujeito. Além disso, e mais profundamente, a relação Real-Simbólico-Imaginário é trazida em evidência e pôde ser refletida com mais detalhes no plano Simbólico, no qual a linguagem permite que se faça relações abstratas e consistentes, metafóricas e metonímicas, sempre tendo como pano de fundo a dramática história de Lorena, personagem composta em A morte sem nome, por Santiago Nazarian.

 

Referências

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