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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.13 São João del Rei jul./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

Pêcheux entre o sujeito da interpelação e o do inconsciente ou duas saídas para uma mesma questão

 

Pêcheux between the subject of the interpellation and that of the unconscious or two ways for the same issue

 

Pêcheux entre el sujeto de la interpelación y el del inconsciente o dos salidas para una misma cuestión

 

Pêcheux entre le sujet d'interpellation et le du inconscient ou deux sorties pour le même problème

 

 

Karen CorreiaI; Thaïes FonsecaII

IMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (Promel) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Graduada em Letras pela UFSJ
IIMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Graduado em Psicologia também pela UFSJ

 

 


RESUMO

No presente artigo, buscaremos problematizar a articulação, realizada por Michel Pêcheux, entre as teorias de Louis Althusser e de Jacques Lacan, partindo de um tópico central, qual seja: a questão da identidade/identificação de um profissional como parte de uma "classe" que compartilha certos elementos e ideias, mas que não forma uma categoria homogênea. Para tanto, em um primeiro momento, nos ocuparemos do processo de identificação para Análise do Discurso. Em seguida, apresentaremos duas saídas possíveis para nossa questão central. Por fim, buscaremos refletir sobre os motivos para haver duas saídas para essa questão, tendo em vista o impasse teórico enfrentado por Pêcheux ao teorizar sobre o sujeito, partindo da articulação entre duas abordagens distintas no que diz respeito a tal conceito. Nesse sentido, apontamos na contribuição teórica de Slavoj Zizek uma possibilidade de se pensar o sujeito perpassado pelo inconsciente e pela ideologia.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Sujeito. Inconsciente. Ideologia. Interpelação.


ABSTRACT

In this article, we will try to problematize the articulation, did by Michel Pêcheux, between the theories of Louis Althusser and Jacques Lacan, starting from a central topic, namely: the question of the identity/identification of a professional as part of a "class" that shares certain elements and ideas, but does not form a homogeneous category. To do so, we will first deal with the identification process for Discourse Analysis. Then we will present two possible ways for our central question. Finally, we will try to reflect on the reasons to have two ways to this question, in view of the theoretical impasse faced by Pêcheux in the theorizing about the subject, starting from the articulation between two distinct approaches with respect to such concept. In this sense, we point out, in the theoretical contribution of Slavoj Zizek, a possibility of thinking the subject perpassed by the unconscious and by the ideology.

Keywords: Discourse Analysis. Subject. Unconscious. Ideology. Interpellation.


RESUMEN

En el presente artículo, buscaremos problematizar la articulación, realizada por Michel Pêcheux, entre las teorías de Louis Althusser y de Jacques Lacan, partiendo de un tópico central: la cuestión de la identidad/identificación de un profesional como parte de una "clase" que comparte ciertos elementos e ideas, pero que no forma una categoría homogénea. Para ello, en un primer momento, nos ocuparemos del proceso de identificación para Análisis de Discurso. A continuación, presentaremos dos salidas posibles para nuestra cuestión central. Por último, buscaremos reflexionar sobre los motivos para haber dos salidas para esa cuestión, teniendo en vista el impasse teórico enfrentado por Pêcheux al teorizar sobre el sujeto, partiendo de la articulación entre dos enfoques distintos en lo que se refiere a tal concepto. En ese sentido, apuntamos, en la contribución teórica de Slavoj Zizek, una posibilidad de pensar el sujeto atravesado por el inconsciente y la ideología.

Palabras clave: Análisis de Discurso. Sujeto. Inconsciente. Ideología. Interpelación.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous tenterons de problématiser l'articulation, faite par Michel Pêcheux, entre les théories de Louis Althusser et Jacques Lacan, à partir d'un thème central, à savoir: la question de l'identité/identification d'un professionnel dans le cadre d'un "classe" qui partage certains éléments et idées, mais qui ne constitue pas une catégorie homogène. Pour ce faire, nous aborderons d'abord le processus d'identification de l'analyse vocale. Ensuite, nous présenterons deux résultats possibles pour notre question centrale. Enfin, nous essaierons de réfléchir sur les raisons de deux sorties à cette question, compte tenu de l'impasse théorique rencontrée par Pêcheux dans la théorisation du sujet, à partir de l'articulation entre deux approches différentes concernant ce concept. En ce sens, nous soulignons, dans l'apport théorique de Slavoj Zizek, une possibilité de penser le sujet perpétré par l'inconscient et par l'idéologie.

Mots-clés: Analyse du Discours. Sujet. Inconscient. Idéologie. Interpellation.


 

 

Introdução

O termo interpelação nos remete muito facilmente às elaborações teóricas de Michel Pêcheux, que, com base em Althusser, pensa o processo de constituição do sujeito em relação a esse mecanismo. A constituição do sujeito se aproxima também, em formulações posteriores do autor, a uma teoria lacaniana do sujeito. As questões relacionadas à categoria de sujeito, de alguma forma, nos remetem ao tema das identificações, das identidades. Aliás, o próprio Pêcheux fala em um processo de interpelação-identificação que acontece via discurso.

Inicialmente, o entrecruzamento que aqui propomos foi estabelecido apenas como uma vaga ideia enquanto tentávamos pensar a questão da identidade do professor de Português - o que serve para pensar qualquer outro profissional - como "classe" que compartilha certos elementos e ideias, mas que não forma uma categoria homogênea. Todo o trabalho foi desenvolvido com base nessa ideia inicial, ainda que ela não seja retomada de forma explícita ao longo do texto.

Embora o foco de Pêcheux não esteja na identidade, ele, de alguma maneira, trabalhou esse aspecto ao tentar conceber uma teoria da constituição do sujeito por meio da articulação entre a perspectiva althusseriana da interpelação ideológica e do conceito lacaniano de sujeito do inconsciente. Porém, como veremos, tais abordagens da noção de sujeito, retomadas por Pêcheux, são contraditórias entre si em alguns aspectos - não sendo, portanto, passíveis de articulação -, o que acaba por gerar um impasse teórico que se reflete em duas saídas possíveis para a nossa questão central.

Assim sendo, em um primeiro momento, vamos nos ocupar das noções de identidade/identificação sob a perspectiva da Análise do Discurso (AD). Em seguida, apresentaremos as duas possíveis saídas para a questão que norteia o presente trabalho. Enquanto a primeira estará bastante atrelada à noção de interpelação, tal como é apreendida por Pêcheux, a segunda dará primazia para a aproximação da AD com a Psicanálise, mais especificamente com o conceito de sujeito do inconsciente, em que apresentaremos quais seriam as implicações de sua utilização, tendo em vista a dinâmica pulsional que ele comporta. Por fim, buscaremos problematizar o fato e os motivos de a tentativa de articulação realizada por Michel Pêcheux desembocar em duas saídas para uma mesma questão.

 

Pêcheux e a questão da identidade

É impossível, ao se pensar a Análise do Discurso conforme formulada por Pêcheux, não se ater à constituição de sentido dos textos, ou aos efeitos de sentido que um texto gera, à diferença de sentido entre um texto e outro. Enfim, a Análise do Discurso de Pêcheux não é um campo do saber interessado em uma análise puramente linguística, textual, mas em sua extrapolação. Já em 1969, o autor explicita essa questão: "[...] mas que talvez a conceptualização dos fenômenos que pertencem ao 'alto da escala' necessite de um deslocamento da perspectiva teórica, uma 'mudança de terreno' que faça intervir conceitos exteriores à região da lingüística atual" (Pêcheux, 1969/1997, p. 73). E Pêcheux (1969/1997, p. 79) deixa marcado que um discurso não é simplesmente um texto, não devendo, portanto, ser analisado como se fosse: "[...] é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, mas que é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção [...]".

Para ele, o termo "discurso" também não tem a ver com transmissão de informação, mas com efeito de sentidos entre um ponto A e um ponto B. A partir dessa definição, o autor demonstra que os pontos A e B não designam uma presença física, mas "lugares determinados na estrutura de uma formação social [...]" (Pêcheux, 1969/1997, p. 82). Assim sendo, tais lugares

[...] estão representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. [...] o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações). (Pêcheux, 1969/1997, p. 82, grifos do autor)

Desse modo, o discurso muda conforme mudam essas posições, ou seja, conforme mudam as formações discursivas, o contexto sócio-histórico a que um discurso está relacionado, a maneira como o sujeito é interpelado na formação ideológica.

Assim, mesmo na fase inicial do desenvolvimento da AD, como no texto de 1969, começamos a identificar os aspectos sociais sendo tratados. Isso é percebido na própria definição de discurso, que é o nível do particular, isto é, o nível intermediário entre o universal (a língua) e o individual (a fala), sendo necessário levar em conta a situação de produção, o lugar que ocupa aquele que fala para pensar a produção de sentidos. É essencial pensarmos a relação que Pêcheux estabelece com Althusser, relação que incide sobre a noção de discurso. É com base nisso que conseguimos entender porque a liberdade do falante é, na realidade, uma ilusão, pois "um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas" (Pêcheux, 1969/1997, p. 77, grifos do autor).

É interessante, ainda, observar que Pêcheux se refere, de alguma forma, à representação. Isso porque ele considera que os sujeitos da troca discursiva não remetem à presença física, mas a lugares representados nos processos discursivos, ou seja, a uma "série de formações imaginárias", de posições que representam as situações (objetivamente definíveis). Nos processos discursivos não estabelecemos contato com sujeitos físicos, mas com representações, com imagens que criamos sobre os outros e nós mesmos.

Pensar o processo de representação como atrelado à ideia de posições ocupadas pelo sujeito, de imagens construídas, coloca-nos frente à questão da identidade como construção, e não algo dado, biológico, inerente ao sujeito. Pensar que as identidades são algo que nascem conosco, como parte essencial nossa, ainda que não sejam, pode ser explicado pelo funcionamento ideológico, que age sem se mostrar agindo, e mostra a identidade como algo da essência, e não uma construção, gerando a ilusão de que são naturais, de que estão sempre ali. Essa construção identitária, pensada a partir de Pêcheux, pode ser associada às formações discursivas, que funcionam dentro de uma formação ideológica e com as quais o sujeito se identifica sem que se enxergue sendo interpelado.

 

Primeira saída: ideologia e interpelação do sujeito

Tomando Pêcheux como base, entendemos que são as condições de produção que determinam o processo discursivo, e este tem relação com os processos de substituição de significantes. Dessa forma, o processo discursivo pode ser considerado uma matriz geradora de sentido, lugar onde ele é produzido. Logo, o sentido é produzido exatamente pela possibilidade de substituições significantes. Para Pêcheux (1969/1997), todo processo discursivo deve ser remetido às relações de sentido que o produzem. Isso significa que nenhum discurso é original, que nenhum processo discursivo tem, de fato, início. Conforme o próprio Pêcheux (1969/1997, p. 77),

Se prosseguirmos com a análise do discurso político - que serve aqui apenas de representante exemplar de diversos tipos de processos discursivos - veremos que, por outro lado, ele deve ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido: assim, tal discurso remete a tal outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele "orquestra" os termos principais ou anula os argumentos. Em outros termos, o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com as "deformações" que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido. Isso implica que o orador experimente de certa maneira o lugar de ouvinte a partir de seu próprio lugar de orador: sua habilidade de imaginar, de preceder o ouvinte é, às vezes, decisiva se ele sabe prever, em tempo hábil, onde este ouvinte o "espera".

O sentido não está propriamente nas palavras, mas na posição ocupada por quem as emprega, podendo mudar conforme mudam essas posições. Essa relação entre o sentido das palavras e a posição ocupada pelo falante é mais bem explicada quando trabalhamos as noções de formação ideológica e formação discursiva. A formação ideológica é "[...] um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem 'individuais' e nem 'universais', mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras" (Pêcheux, 1971, p. 12, grifos do autor). As formações ideológicas têm como um de seus constituintes uma ou várias formações discursivas. Tais formações discursivas, por sua vez, determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma situação e posição determinadas. Assim sendo, o sentido não está nas palavras apenas, mas nas formações discursivas em que tais palavras estão inseridas. Podemos resumir essa questão fazendo uso de uma fala de Pêcheux (1971, p. 12, grifos do autor): "as palavras 'mudam de sentido' ao passar de uma formação discursiva a outra".. É exatamente por isso que, ao realizar a análise de um discurso, não se deve ater apenas às palavras, mas sim observar as palavras em suas condições sócio-históricas. Para Pêcheux (1971, p. 6), "[... ] o laço que une as 'significações' de um texto às suas condições sócio-históricas não é meramente secundário, mas constitutivo das próprias significações". Ou seja, o interesse da Análise do Discurso não está na língua propriamente dita, mas naquilo que é particular, o discurso; o interesse recai sobre a língua em uso, inserida em sua dimensão sócio-histórica.

Ao retomar Althusser, Pêcheux (1975/1988) mostra que nenhuma classe existe previamente à luta de classes, mas são constituídas por ela por meio de mecanismos de produção-reprodução da sociedade, como se as classes fossem uma evidência natural. A evidência do sujeito e do sentido são efeitos ideológicos. É a ideologia que interpela o indivíduo em sujeito. Vejamos como Althusser define o processo de interpelação:

Sugerimos então que a ideologia "age" ou "funciona" de tal forma que "recruta" sujeitos dentre os indivíduos (ela os recruta a todos), ou "transforma" os indivíduos em sujeitos (ela os transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação policial (ou não) cotidiana: "ei, você aí!". (Althusser, 1970/1985, p. 96, grifos do autor)

Por isso, todo indivíduo recebe como evidente aquilo que vê, que diz e, talvez, até mesmo o que é, a sua identidade. É parte da ilusão do sujeito colocar-se como a origem daquilo que diz. No entanto, como já dissemos, não há discurso original; tudo que dizemos remete a discursos anteriores a nós e antecipa outros que estão por vir. Como nos mostra Pêcheux no texto "Língua e Ideologia", a comunicação, a relação que se estabelece entre o "eu" e o "tu", é marcada pela ilusão da evidência do sujeito. Essa ilusão existe sempre na relação que é estabelecida com o outro por meio da língua. A ilusão de liberdade, de que dizemos exatamente aquilo que queremos e de que somos conscientes e controlamos o que é dito por nós, funciona a todo instante como consequência dessa ilusão da evidência do sujeito. Na verdade, porém, conforme Pêcheux (1988), a língua não pode ser entendida apenas como instrumento de comunicação, mas também de não comunicação, já que abarca falhas.

[...] a expressão "instrumento de comunicação" deve ser tomada em sentido figurado e não em sentido próprio, na medida em que esse "instrumento" permite, ao mesmo tempo, a comunicação e a não-comunicação, isto é, autoriza a divisão sob a aparência da unidade, em razão do fato de não se estar tratando, em primeira instância, da comunicação de um sentido. (Pêcheux, 1988, p. 93, grifos do autor)

Como já dissemos, o sentido de uma palavra não está propriamente nela, mas na posição daquele que fala, que é sempre uma posição de classe. Nisso consiste o caráter material do sentido. A interpelação, pela criação da evidência do sentido, apaga o seu caráter material, criando a ilusão de que o sentido é algo dado, e não algo que se relaciona à estrutura social, como se fosse algo já codificado e pronto para ser decodificado pelo outro. Sobre a relação entre a língua e a luta de classes, é importante destacar ainda que as relações de classe são asseguradas pela língua, pois é no discurso que o indivíduo é interpelado em sujeito. A interpelação é o que fornece a cada sujeito a sua realidade.

No início de suas formulações, Pêcheux entendia a Análise do Discurso na relação entre Linguística, Materialismo e Teorias do Discurso, as quais eram perpassadas por uma teoria do sujeito de base psicanalítica. Depois, o autor passa a se aproximar mais da Psicanálise de Lacan. Assim sendo, é relevante destacar a relação existente entre ideologia e inconsciente. Além do fato de ambos não terem história, o funcionamento deles é parecido, já que os dois determinam, mas apagam essa determinação. Isso gera a evidência do sujeito, a ilusão da autonomia (do "eu" que comunica com o outro, que sabe o que diz). É nesse sentido que podemos dizer que a interpelação funciona não se mostrando como tal. Por intermédio de mecanismos, o sujeito se identifica com a formação discursiva. À ilusão do sujeito está relacionada a forma-sujeito do discurso, que é a unidade imaginária do sujeito, com a qual o sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o constitui. A ideologia é o que dá forma ao sujeito, preenche o lugar vazio. Com o hábito e o uso, ela define o que é e o que deve ser. Por isso, "[...] todo sujeito é assujeitado no universal como singular "insubstituível" [...]" (Pêcheux, 1975/1988, p. 171).

Para tratar sobre o processo em que o indivíduo passa a ser sujeito por meio da interpelação, é importante tratar sobre os esquecimentos de que fala Pêcheux, que são divididos em n° 1, o qual é da ordem do inconsciente, e n° 2, da ordem do pré-consciente e da consciência. O esquecimento 1 é o que é fundamental, que tem a ver com o sujeito afetado pela ilusão de autonomia, "[...] que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina" (Pêcheux, 1975, p. 173); embora ele pense que é origem do que diz, está sempre na dependência da formação discursiva que o interpela, retomando em seu discurso aquilo que já foi dito de outras formas, antes mesmo de sua existência; já o esquecimento 2 diz respeito ao fato de que "[...] todo sujeito-falante 'seleciona' no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase [...]" (Pêcheux, 1975, p. 173). Há esquecimento do que não é dito, mas que poderia ser recuperado (assim como no funcionamento do préconsciente). O que é deixado de lado permanece acessível ao sujeito. Cria-se para ele um efeito de liberdade, mas, na verdade, há sempre um espaço delimitado pela própria formação discursiva para ele transitar. São as condições de produção que determinam o processo discursivo.

Essa noção de formação discursiva, portanto, é fundamental no pensamento de Pêcheux, pois, funcionando em uma formação ideológica, é o que interpela o indivíduo em sujeito, sendo que ele é sempre-já sujeito porque a ideologia está para ele sempre-já aí, preenchendo o lugar vazio, dando a ele forma. Antes mesmo de nascermos já somos colocados no mundo simbólico, na língua. O sujeito, pela interpelação, se identifica com a formação discursiva na qual está inserido e, tendo a ideologia apagado seu funcionamento, agindo como se não estivesse, o sujeito tem sua realidade criada por ela, mas funciona a partir da ilusão de ser a origem daquilo que diz e daquilo que é. É importante ressaltar sobre a questão da interpelação, da identificação dos sujeitos com a formação discursiva que, embora aproxime as pessoas que se identificam com a mesma formação discursiva, não as homogeneíza, já que a interpelação dos professores, por exemplo, não se dá apenas no âmbito profissional, mas em todas as esferas da vida cotidiana, desde antes de seu nascimento. E a forma como o indivíduo é interpelado mesmo antes de seu nascimento, o contexto sócio-histórico que o rodeia, as condições de produção de seu discurso, não apenas no âmbito profissional, interferem na sua identidade de professor e na maneira que ele se representa como tal.

Para Pêcheux (1975/1988), o sentido não está nas palavras, mas no lugar que ocupa aquele que fala. As pessoas, ainda que tenham, entre si, elementos comuns, que as integrem em determinado grupo, não são interpeladas do mesmo modo. Daí que, do ponto de vista da teoria pecheuxtiana, o processo de identificação, o processo de analisar discursos, por fim, está diretamente relacionado à análise da situação de comunicação, do contexto, do lugar de onde fala o sujeito. Tais questões interferem de maneira direta na análise, não sendo apenas um pano de fundo ou mera contextualização, mas sim parte constitutiva do processo. Dessa forma, podemos pensar que a noção de classe não é unificadora, pois a identidade muda de acordo com a maneira pela qual o indivíduo é interpelado. É por isso que pensamos que, ao analisar os discursos de pessoas pertencentes a uma mesma categoria - a de professores, por exemplo -, o fator de aproximação principal é o profissional; entretanto, não basta analisar o discurso de cada sujeito desvinculado da sua situação de fala, do lugar de onde fala. A classe "professor de Português" não homogeneíza, embora aproxime os sujeitos. A maneira particular pela qual cada professor de Português é interpelado pela ideologia pode gerar variáveis muitas que devem ser consideradas no empreendimento de uma Análise do Discurso, tomando os devidos cuidados para não pensar tais professores como uma massa homogênea, levando em conta apenas fatores de aproximação.

Dentre essas variáveis podemos citar as experiências desse sujeito como professor; o programa pedagógico e as relações de trabalho da escola onde o professor trabalha e a maneira como tais fatores lhe atingem; seu processo de formação, não apenas profissional, mas as marcas que carrega de sua experiência familiar, social, antes mesmo do nascimento; as ideologias que o interpelam como ser humano, como agente social; a faixa etária, que diz muito desses processos de formação; a classe social; a maneira como enxerga o outro e, principalmente, o outro aluno. Somos marcados pela diferença, a qual advém da forma como cada um de nós é interpelado, isto é, a qual formação discursiva estamos vinculados.

 

Segunda saída: o sujeito do inconsciente e suas implicações

Nesta seção iremos nos deter, de maneira mais minuciosa, sobre o entrecruzamento desses dois campos de saber, quais sejam: Análise de Discurso e Psicanálise. Para demonstrar tal articulação, que, como já enfatizamos, é constitutiva para a AD, aproveitaremos o caminho trilhado pelo próprio Pêcheux por meio do conceito de sujeito do inconsciente.

Antes, porém, retomemos brevemente a conexão, por nós já comentada e na qual Pêcheux se apoia, entre o inconsciente freudiano e o conceito de ideologia. Tal retomada não é sem motivo, já que, para Pêcheux (1982/1996), é graças ao mecanismo - comum ao inconsciente e à ideologia - de operar ocultando sua própria existência que o sujeito, constituído por essa operação, se apresenta como uma evidência. Tal operação de ocultação é de suma importância, tanto para a Análise do Discurso quanto para a Psicanálise, já que ambas denunciam e trabalham com o fato de que, para além da evidência do sujeito ou do sentido do discurso, há todo um processo de constituição desse sujeito, de produção desse sentido.

Como já evidenciamos, Pêcheux, largamente influenciado por Althusser, colocará a questão da interpelação-identificação na origem do sujeito, acrescentando a isso um processo do significante. Aproximando-se, assim, de Lacan, Pêcheux (1982/1996, p. 151, grifos do autor)) nos dirá do "[...] sujeito como processo (de representação) dentro do não-sujeito constituído pela rede de significantes [...]" (p. 151, grifos do autor), de modo que "[...] o sujeito é 'captado' nessa rede - 'substantivos comuns' e 'nomes próprios', efeitos 'deslizantes', construções sintáticas etc.". Para entender o que seria esse processo do significante de que fala Pêcheux, partamos da definição lacaniana de significante.

[...] um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse significante, todos os demais não representariam nada. Já que nada é representado senão para algo. (Lacan, 1960/1998, p. 833)

Para Lacan o significante, em si, é desprovido de significação. Desse modo, assim como um discurso só tem seu sentido em relação a outro discurso - tal como afirma Pêcheux (1969/1997) -, um significante só possui uma significação em relação a outro significante, e o sujeito (enquanto significante para outro significante) só se constitui em relação ao Outro: "o lugar do tesouro do significante" (Lacan, 1960/1998, p. 820). Assim, o sujeito só se constitui no interior de uma estrutura simbólica, de uma armação significante que o sobredetermina, que o captura: o Outro da estrutura, a Ordem social, isso que Pêcheux chamou de não-sujeito da rede de significantes. Ademais, o Outro denota obviamente alteridade, de modo que o sujeito lacaniano, ao se constituir frente à alteridade encarnada no social, é, por isso mesmo, um sujeito fundamentalmente social. Em outras palavras, para Lacan subjetividade e sociedade não podem ser dissociadas.

Prosseguindo com a aproximação entre a Análise de Discurso e a Psicanálise lacaniana, Pêcheux (1982/1996) diz que o processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos - isto é, interpelação do sujeito pelo Outro da formação discursiva - tem um efeito retroativo, de modo que todo indivíduo é sempre-já sujeito. Como já dissemos anteriormente, o sujeito está sempre-já aí, pois ele já nasce em um mundo de linguagem, ele já nasce no simbólico. Para Lacan (1957/1998, p. 498) "[...] a linguagem, com sua estrutura, preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental", de sorte que, "[... ] o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio.". Ora, isso é muito facilmente percebido, afinal, todo sujeito já nasce em um mundo socialmente estruturado, expresso na cultura do local onde o sujeito nasce, em seu núcleo familiar, nas instituições que lhe rodeiam, sem falar na língua enquanto sistema linguístico o qual ele é obrigado a se submeter para se comunicar.

Mas, além do fato de o sujeito, antes mesmo de nascer, já ter seu lugar inscrito em um universo simbólico, social, a aproximação com a teoria psicanalítica está no efeito retroativo destacado por Pêcheux e presente na constituição do sujeito. Lacan (1960/1998) indicou a presença de tal efeito no processo de constituição do sujeito - que como já foi dito, é definido por sua articulação pelo significante - ao explicar o ponto de basta, que fecha a significação detendo o deslizamento da cadeia significante, que, de outro modo, seria infinito. Assim, para Lacan (1955-56/1988; 1960/1998), o ponto de basta é o que, grosso modo, permite que o sujeito dê significado para os seus significantes (dando sentido para uma frase, como ilustraremos em seguida) e, nesse sentido, que o sujeito se represente (se identifique, constitua uma identidade simbólica) frente a outro significante.

Para ilustrar isso, Lacan (1960/1998) diz do sentido de uma frase que se modifica à medida que surgem termos novos, de modo que o último termo da frase sela, retroativamente, o sentido de todos os outros que o antecedem. Peguemos um exemplo básico: "Ivo viu a uva". A palavra "uva" - última da frase e, portanto, temporalmente, a última a surgir - sela o seu sentido, dando sentido às palavras anteriores, já que o fato de Ivo ter visto a uva é diferente de Ivo ter visto qualquer outra coisa, assim como o fato de Ivo ter visto é diferente de ele ter feito qualquer coisa em vez de ver. Nosso exemplo é análogo ao trabalhado por Lacan (1955-56/1988) no seminário sobre as psicoses ao falar justamente sobre o ponto de basta. Como ele conclui nessa ocasião: "É preciso verdadeiramente que tenha terminado para que se saiba de que se trata. A frase só existe acabada e seu sentido lhe vem só depois." (p. 305).

Esse processo, em que a significação é retroativa, diz respeito à temporalidade própria ao inconsciente, temporalidade essa do só depois, do a posteriori (Nachtràglich, no alemão). Por isso afirmamos que quando Pêcheux diz que o sujeito é sempre-já sujeito devido a um efeito retroativo presente no processo de interpelação ele se aproxima novamente da Psicanálise, pois tal efeito retroativo é peculiar ao inconsciente estruturado como linguagem. O sujeito, portanto, é o efeito de seu encontro com o Outro, efeito que significa, a posteriori, tal encontro, mas sem o qual o sujeito não existiria. Em suma, não há um sujeito a priori ao seu encontro com a Ordem social, não há um "sujeito puro" anterior a sua alienação pela linguagem, daí Freud (1921/2011) dizer que toda psicologia individual é também psicologia social.

Feita essa breve "sinopse" sobre a articulação entre a Análise de Discurso e a Psicanálise em que comentamos algumas concepções da teoria lacaniana "importadas" por Pêcheux, passemos para o momento de pensar quais são as implicações da noção de sujeito do inconsciente para a questão das identidades, isto é, do sujeito e sua representação - e, portanto, quais são as implicações no que tange ao modo como a AD irá tratar esse tema a partir da aproximação com a Psicanálise.

Para tanto, é preciso que retornemos ao ponto do qual partimos, qual seja: a perspectiva lacaniana de se pensar o sujeito enquanto um significante para outro significante. Ora, como dissemos, o significante em si, isto é, o significante fora da cadeia simbólica que o coloca em oposição a outro significante, não significa nada, pois trata-se de uma categoria formal e, como tal, vazia, desprovida de conteúdo positivo. É isso que dá inteligibilidade à premissa psicanalítica de que o sujeito é vazio.

Como nos explica Zizek (2010) em comentário sobre Lacan, as diversas características que identificam um sujeito, ou seja, que nos remetem ao que podemos chamar de identidade do sujeito, surgem através de identificações simbólicas e imaginárias que lhe integram no campo sócio-simbólico e lhe conferem atributos fenomênicos. Tais identificações nada mais são que tentativas do sujeito de nomear o vazio que lhe constitui. Porém, desse circuito de identificações, há sempre um hiato, algo que é fundamentalmente inacessível ao sujeito, tão inacessível que o divide, descentra-o de si mesmo. Ele nos diz: "[... ] estou privado [... ] de minha experiência subjetiva mais íntima, do modo como as coisas 'realmente parecem ser para mim', privado da fantasia fundamental que constitui e garante o cerne de meu ser, uma vez que nunca posso experimentá-lo e assumi-lo." (p. 68).

Ora, ao falar disso, tocamos no ponto que nos possibilitará pensar em uma saída possível, via aproximação com a Psicanálise, para o tópico central de nosso trabalho: a questão da identidade do professor enquanto uma classe, categoria, dotada de características comuns a todos que a ela pertencem, mas que, ainda assim, não é homogênea.

A saída da Psicanálise para essa questão, em uma fórmula simples, seria: o que impossibilita que a categoria de professores (ou qualquer categoria) seja homogênea é que ela é composta por sujeitos, e o sujeito, em si, é irredutível a uma categoria ou a uma identidade como, por exemplo, a de professor. Daí o questionamento central de toda a análise ser a pergunta - que implica o sujeito e seu desejo - vinda de quem se espera uma resposta, o analista: Che vuoi? Que queres? Que também pode ser entendida como um: Quem é você (qual a sua "identidade") e o que desejas? Ao se questionar o sujeito sobre o seu desejo, sua identidade é consequentemente desestabilizada, pois tal interrogação aponta para o real que resta da operação simbólica de identificação. Em outras palavras, assumir o seu desejo implica que o sujeito assuma, consequentemente, a sua própria divisão, isto é, assuma o fato de que a sua identidade, de que a forma ele se vê como eu (e como ele gostaria que o Outro o visse) não lhe garante qualquer tipo de unidade. É isso que dá inteligibilidade à premissa psicanalítica de que o sujeito é clivado.

É disso, ainda, que se deduz a leitura inaugurada por Lacan da célebre sentença de Freud - Wo Es war, soll Ich werden -, que ele propõe traduzir da seguinte maneira: "lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo eu advir" (Lacan, 1965/1998, p. 878, grifos nossos). Como podemos ver, o psicanalista francês tira o foco do eu como autoimagem, como uma espécie de identidade imaginária (moi) e o desloca para o sujeito do inconsciente (je), duplamente irredutível a uma identidade, pois vazio e dividido. Logo, o fato de uma classe, como a de professores, não formar um grupo homogêneo é fruto desse fracasso do sujeito em nomear a si próprio, da irredutibilidade do sujeito a uma nomeação que o defina, desse antagonismo que o constitui. Utilizando das palavras de Zizek (2010, p. 70): "[...] há um hiato que separa para sempre o cerne fantasístico do ser do sujeito dos modos mais superficiais de suas identificações simbólicas ou imaginárias. Nunca me é possível assumir plenamente (no sentido de integração simbólica) o cerne fantasístico do meu ser.".

Afinal, como já enunciamos, para a Psicanálise o sujeito é vazio e clivado: vazio porque, para além das suas tentativas de nomeação, do que ele é enquanto fenômeno, o que há é esse vazio que ele buscar nomear, encobrir com identidades simbólicas e imaginárias; e clivado, pois ele surge justamente nesse hiato, nesse antagonismo entre suas identificações e o âmago de seu ser na fantasia.

 

A reflexão que fica

O título de nosso artigo já indicava que ele se desenvolveria em torno de uma única questão, qual seja, a das identidades na Análise do Discurso pecheuxtiana, para a qual haveria duas saídas, as quais indicamos durante o trabalho. Além de as duas saídas envolverem a AD de Pêcheux, elas giram em torno da categoria de sujeito, tratada de duas maneiras distintas. Pensamos que é exatamente nessas duas formas distintas de se trabalhar a noção de sujeito - que acaba por "produzir" duas saídas, isto é, duas formas de se pensar uma mesma questão - que reside o impasse teórico enfrentado por Pêcheux e destacado por Teixeira (1997), que diz respeito ao fato de que os conceitos de sujeito do inconsciente, da Psicanálise, e de sujeito interpelado pela ideologia, de Althusser, não são passíveis de articulação.

O que distingue as duas saídas por nós encontradas é que, enquanto a primeira, fruto da noção de sujeito interpelado pela ideologia, considera a múltipla determinação do sujeito, que, como dissemos, é interpelado de várias formas, por diferentes Aparelhos Ideológicos do Estado; a segunda, calcada na noção de sujeito do inconsciente, pensa na irredutibilidade desse sujeito a tentativas de nomeação, a identificações simbólicas, irredutibilidade ao enquadramento em uma categoria, como a de professores de Português. Vejamos essa questão de forma mais aprofundada.

Como mostramos, a primeira saída para a questão central de nosso trabalho foi pensada a partir de uma visão pecheuxtiana bem calcada em Althusser, que pensa no sujeito assujeitado pela ideologia. Um sujeito que, ao ser interpelado de várias formas, não se enquadra a uma classe profissional, impossibilitando que uma categoria e um coletivo sejam homogêneos. Althusser (1970/1985), em sua teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado, propõe uma articulação teórica para se pensar a ideologia em sua raiz material. Para tanto, ele diz, em um primeiro momento, de um esquema que ele caracteriza como idealista - o qual ele critica -, em que a ideia precede os atos, de modo que uma ideia orienta e se expressa nos atos de um sujeito. De acordo com esse esquema, ele diz que

[...] todo "sujeito" dotado de uma "consciência" e crendo nas "idéias" que sua "consciência" lhe inspira, aceitando-as livremente, deve "agir segundo suas ideias", imprimindo nos atos de sua prática material as suas próprias idéias enquanto sujeito livre. Se ele não o faz, "algo vai mal". Na verdade se ele não o faz o que, em função de suas crenças, deveria fazer, é porque faz algo diferente, o que, sempre em função do mesmo esquema idealista, deixa perceber que ele tem em mente idéias diferentes das que proclama, e que ele age segundo outras idéias [... ] as "idéias" de um sujeito humano existem em seus atos, ou devem existir em seus atos, e se isto não acontece, ela lhe confere idéias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele realiza. (Althusser, 1970/1985, p. 90-91).

Buscando ultrapassar tal esquema idealista, Althusser (1970/1985) irá propor um esquema (que podemos caracterizar como materialista), em que, invertendo a lógica anterior, em que a ideia precede os atos, ele dirá que existem, primeiro, os Aparelhos Ideológicos de Estado - como evidência da origem material da ideologia -, que produzem rituais, que regem práticas (atos) e, somente daí, derivam as ideias. Em suas palavras: "Diremos portanto, considerando um sujeito [...] que a existência das idéias de sua crença é material, pois suas idéias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico material de onde provêm as idéias do dito sujeito" (Althusser, 1970/1985, pp. 91-92).

Em tal inversão proposta por Althusser, perdura, porém, o fato presente no esquema idealista, por ele criticado, de que um sujeito age de acordo com uma ideologia ou várias ideologias, com a diferença de que, em vez de ele agir de acordo com uma (ou várias) ideia cuja existência é independente de atos materiais, ele age de acordo com um (ou vários) Aparelho Ideológico material cuja ideologia veiculada o interpela. É exatamente nisso que consiste a primeira de nossas duas saídas para a questão de uma categoria, como a de professores de Português, que aproxima sujeitos, mas que não é homogênea. Isso porque um mesmo sujeito é interpelado por diversas ideologias, presentes em diversos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), por exemplo, a família, a religião a que pertence, a instituição escolar em que se formou etc. Como enfatiza Althusser (1970/1980), apesar de os AIE trabalharem em função da reprodução das relações de produção, isto é, em função da ideologia da classe dominante que quer se manter em tal posição, eles não formam uma unidade evidente. É essa pluralidade de interpelações de um mesmo sujeito que impede que uma classe seja homogênea ou forme uma unidade de sujeitos semelhantes, já que esses são interpelados por vários AIE e de maneiras distintas.

A segunda saída encontrada para a nossa questão se fundamenta na aproximação com a Psicanálise, realizada por Pêcheux a partir da noção de sujeito, tal como elaborada por Lacan. Porém, como já dito, a utilização do conceito de sujeito do inconsciente implica em algumas questões que acabam por contrastar com a constituição do sujeito via interpelação. Busquemos entender, mais especificamente, em que consiste o impasse teórico enfrentado por Pêcheux. Para Zizek (1996b, p. 322), o que falta à explicação althusseriana da interpelação, pensada sob a perspectiva psicanalítica, é que "[... ] antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico, o sujeito ($) é captado pelo Outro através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (a), mediante o segredo supostamente oculto no Outro: $ <> a -a fórmula lacaniana da fantasia".

Desse modo, como explica Zizek (1996b), há uma possibilidade de o sujeito obter consistência fora da rede simbólica que o aliena, que o interpela, e essa possibilidade se dá pela fantasia, em que o sujeito e o objeto a são conjugados - isto é, em que o sujeito se aproxima do âmago de seu ser. É essa possibilidade que Althusser ignora e que distancia as formas como ele e a Psicanálise pensam a categoria de sujeito. Lembremos o que foi dito na introdução, que o impasse pecheuxtiano, isto é, a impossibilidade da relação entre os conceitos de sujeito em Althusser e Lacan, se dá graças à dinâmica pulsional presente na teoria psicanalítica e ausente na teoria althusseriana. Ora, a importância da fantasia na constituição do sujeito, como podemos ver, está relacionada ao objeto pequeno a, objeto pulsional por excelência.

Para a Psicanálise, a satisfação da pulsão é sempre parcial, de modo que ela é sempre insatisfeita devido à natureza de seu objeto, que resiste a qualquer tentativa de integração simbólica. Como é evidente, a ideia de insatisfação constante da pulsão está diretamente relacionada à noção de desejo. Por isso o objeto da pulsão, o objeto a, é objeto-causa do desejo; por isso que ele "[... ] deve ser inserido, já o sabemos, na divisão do sujeito" (Lacan, 1965/1998, p. 878); o que explica, por fim, que tal objeto aponte, a um só tempo, para o que resta (excesso) e, paradoxalmente, para o que falta ao sujeito em seu processo de constituição simbólica. Não sem motivos, ele não só se configura como objeto-causa do desejo (falta), mas também como objeto mais-gozar (excesso).

Nesse sentido, concordamos com Teixeira (1997) de que o problema teórico de Pêcheux está no fato de ele, na leitura que faz de Lacan, não levar em conta que o grande Outro, o qual possibilita a constituição do sujeito, não é um Outro absoluto ao qual nada falta, mas sim um Outro desejante. É isso, que se apresenta como uma lacuna na leitura pecheuxtiana de Lacan, que distingue o Outro lacaniano de maneira bastante drástica do Sujeito (com "S" maiúsculo) proposto por Althusser (1970/1980), a partir do qual o sujeito se constitui no processo de identificação/interpelação. Ser desejante implica um objeto-causa do desejo, ou seja, implica o objeto a, conceito que falta a Althusser e, por conseguinte, a Pêcheux.

Demonstrado o que, fundamentalmente, distingue as abordagens althusseriana e lacaniana da noção de sujeito, pensamos que Zizek (1996b) contribui (para além dessa distinção, importante para o nosso trabalho), para uma articulação que, até então, demandava uma elaboração mais profunda. Essa articulação parece ter sido o que motivou Pêcheux a se aproximar da Psicanálise, qual seja: entre ideologia e inconsciente - caminho aberto por Althusser (1970/1980), mas que, como o próprio Pêcheux (1982/1996) notou, carecia de desenvolvimento teórico.

Se Zizek (1996b) não faz uma "ligação direta" entre os conceitos de ideologia e de inconsciente, ele, com certeza, consegue articular, com o rigor teórico que lhe é característico, a teoria marxista e a Psicanálise. Se pensarmos que o que faltou à teoria de Pêcheux foi uma elaboração teórica satisfatória que levasse em conta o papel da ideologia e do inconsciente para se pensar o sujeito e sua representação/identificação, talvez possamos propor que a chave para o impasse pecheuxtiano esteja em Zizek.

Esse último irá realizar uma inovação radical na leitura feita, até então, do conceito de ideologia, o que lhe permitirá defender a sua inexorável pertinência, demonstrando o quanto tal noção é atual para se pensar a nossa realidade social e o quanto ignorá-la já seria, em si, ideológico. Em suma, ultrapassando a ideia de que a ideologia se apresentaria como uma distorção na forma como os sujeitos percebem a realidade social, Zizek propõe que a realidade em si só se sustentaria a partir de tal distorção. Daí ele afirmar que "[...] o próprio gesto de sair da ideologia puxa-nos de volta para ela." (Zizek, 1996b, p. 15). Propondo um "retorno à ideologia" - não um retorno acrítico, mas um retorno que exige uma nova forma de se tratar o conceito -, Zizek (1996b) pensa o seu funcionamento como sendo homólogo ao da fantasia inconsciente, sugerindo, assim, que a ideologia estrutura a realidade social, em vez de deformá-la. Assim, ele nos diz: "'Ideológica' não é a 'falsa consciência' de um ser (social), mas esse próprio ser, na medida em que ele é sustentado pela 'falsa consciência'" (p. 306).

Ora, esse ser social, sustentado pela ideologia, não se aproxima da ideia, tão cara a Pêcheux, de sujeito interpelado pela ideologia? A diferença é que Zizek (1996b) reconhece aí o papel fundante da fantasia, que sustenta, inclusive, a trama do sujeito como ser social, envolvido em uma rede simbólica. É como se Pêcheux, ao falar da interpelação, levasse em conta somente o sujeito em suas diversas identificações (simbólicas e imaginárias), ignorando, porém, seu cerne (real) na fantasia. Como explica Teixeira (1997, p. 81, grifos da autora), "se a leitura de Althusser pode ser localizada no momento da obra de Lacan que enfatiza a noção de imaginário, a leitura de Pêcheux coloca-se no segundo momento, em que o sujeito é estruturado sob as leis da linguagem [...]", porém, como prossegue a autora, "[... ] desde sempre, a vocação do pensamento lacaniano é chegar a um sujeito advindo do real".

Podemos dizer que, com Zizek, o projeto pecheuxtiano de se pensar o sujeito perpassado pelo inconsciente e pela ideologia parece ter a sua realização. Resta saber quais as consequências de tal projeto - que envolve operar com um sujeito irredutível, pois desejante - no que tange à implicação prática da Análise do Discurso. Isto é, quais são as consequências, para a Análise do Discurso, de se ter em vista que o sujeito não se resume a sua alienação ao grande Outro, ou, em termos mais pecheuxtianos, não se limita às condições de produção da formação discursiva que lhe interpela ideologicamente? Nesse sentido, nos colocamos a mesma questão levantada por Teixeira (1997, p. 86), de que trabalhar com a noção de sujeito do inconsciente, tal como proposta por Lacan, talvez demande que a AD "reveja não só as bases que a sustentam, mas [... ] seu próprio objeto".

Estando Pêcheux dividido entre a perspectiva althusseriana do sujeito assujeitado e a perspectiva lacaniana do sujeito subvertido, ele acaba por não conseguir elaborar teoricamente a contradição presente em sua teoria. De todo modo, o que vemos neste trabalho é que a Análise do Discurso está marcada por constantes transformações realizadas por Michel Pêcheux em seu labor teórico - o fato de conseguirmos, aqui, pensar em duas saídas para uma mesma questão é fruto disso. Assim, a AD permanece aberta à revisão e, por que não, a possíveis progressos, de modo que o que foi um impasse no passado pode ser objeto de novas articulações no futuro.

 

Referências

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