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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.13 São João del Rei Jul./Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Histeria, feminino e corpo: elementos clínicos psicanalíticos

 

Hysteria, female and body: clinical psychoanalytical elements

 

L'hystérie, féminin et corps: éléments cliniques psychanalytiques

 

Histeria, femenino y cuerpo: elementos clínicos psicoanalíticos

 

 

Carlos Alberto Ribeiro CostaI; Renata Gonçalves de BrittoII

IProfessor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, campus de Niterói. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Psicanalista. E-mail: carloscosta.psi@gmail.com
IIPsicóloga formada pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduanda em Psicologia Hospitalar. E-mail: renatabritto@id.uff.br

 

 


RESUMO

Em relação ao tratamento de base psicanalítica, nos consultórios, ambulatórios, ou estudos teóricos, a "histeria", é, ao mesmo tempo, algo clássico e atual: partindo de sua "descoberta", em suas primeiras manifestações, até suas formas atuais, essa estrutura clínica ganhou várias modulações. Percorrendo os estudos de Freud e Lacan sobre o tema, te artigo busca apreender algumas das diferentes formas de articulação entre "histeria", "corpo" e "feminino". Para tal, visaremos, num primeiro momento, apreender algumas posições de Freud ao propor essa problemática para, posteriormente, intentar pensar, com Lacan, a abertura para novas possibilidades e composições sobre o assunto. Se para Freud a histeria é perpassada pelas questões da "erogeneização de funções orgânicas" e da "conversão", e Lacan, nos anos 1950, evoca a dialética de posições simbólicas, instaurada pelo significante fálico, este artigo privilegiará um resgate dessas modulações a partir da noção, mais tardia em Lacan, de "encontro com o real" relativo à própria sexualidade: o corpo e o feminino.

Palavra-chave: Histeria. Feminilidade. Real e sexualidade.


ABSTRACT

Regarding the treatment of psychoanalytical basis in offices, clinics, or theoretical studies, "hysteria" is at the same time, something classic and current: starting from its "discovery" in its first manifestations, to their present forms this clinical structure won several modulations. Walking through the studies of Freud and Lacan on the topic, this article attempts to grasp some of the different forms of articulation between "hysteria", "body" and "feminine". To this end, will target at first, grasp some positions of Freud to put this issue to later bring think, with Lacan, opening to new possibilities and compositions on the subject. If Freud hysteria is crossed by issues of "erogenization organic functions" and "conversion", and Lacan, in the 50s, evokes the dialectic of symbolic positions established by the phallic signifier, this article focuses on a rescue these modulations from the notion, later in Lacan of "encounter with the real" on the own sexuality: the body and the female.

Keywords: Hysteria. Femininity. Real and sexuality.


RÉSUMÉ

En ce qui concerne le traitement des bases psychanalytiques, dans les cliniques, services externes de santé ou études théoriques, "l'hystérie" est, à la fois, classique et actuelle: à partir de sa "découverte", dans ses premières manifestations, jusqu'à ses formes actuelles, cette structure clinique a acquis plusieurs modulations. En parcourant les études de Freud et Lacan sur le sujet, l'article cherche à appréhendre certaines des différentes formes d'articulation entre "hystérie", "corps" et "femminin". À cette fin, nous essaierons d'abord de saisir certaines des positions de Freud en proposant ce problème, puis de penser avec Lacan à l'ouverture de nouvelles possibilités et compositions sur le sujet. Si, pour Freud, l'hystérie est imprégnée par les questions de "l'érogénisation des fonctions organiques" et de "conversion", et Lacan, dans les années 1950, évoque la dialectique des positions symboliques, établie par le signifiant phallique, cet article va privilégier le sauvetage de ces modulations de la notion, tardive à Lacan, de "rencontre avec le réel", concernant la sexualité elle-même: le corps et le féminin.

Mot-cleés: l'hysterie; femini; réel; sexualité.


RESUMEN

En lo que concierne al tratamiento de base psicoanalítica, en los consultorios, ambulatorios, o estudios teóricos, la "histeria", es a la vez algo clásico y actual: partiendo de su "descubrimiento", en sus primeras manifestaciones, hasta sus formas actuales, esta estructura clínica ganó varias modulaciones. Recorriendo los estudios de Freud y Lacan sobre el tema, el artículo busca aprehender algunas de las diferentes formas de articulación entre "histeria", "cuerpo" y "femenino". Para ello, en un primer momento, vamos a aprehender algunas posiciones de Freud al proponer esa problemática para, posteriormente, intentar pensar, con Lacan, la apertura a nuevas posibilidades y composiciones sobre el asunto. Si para Freud la histeria es atravesada por las cuestiones de la "erogeneización de funciones orgánicas" y de la "conversión", y Lacan, en los años 1950, evoca la dialéctica de posiciones simbólicas, instaurada por el significante fálico, este artículo privilegiará un rescate de esas modulaciones a partir de la noción, más tardía en Lacan, de "encuentro con lo real" relativo a la propia sexualidad: el cuerpo y el femenino.

Palabra clave: Histeria. Feminidad. Real; sexualidad.


 

 

Introdução

Na abordagem psicanalítica sobre histeria, Freud é referência incontornável: sua clínica e estudos tiveram portas abertas por estes encontros clínicos. Se inicialmente a histeria era alvo de injúrias médicas, potenciadas pela "teatralidade sintomática" da conversão, no decorrer das análises que Freud fazia de seus pacientes, a histeria assume cada vez mais o lugar de enigma, transcendendo a mera dimensão de categoria psicopatológica. Para além da riqueza dessa referência teórico-clínica, a escolha do tema deste trabalho ganhou sentido a partir do encontro com pacientes: a escuta, o interesse sobre a lógica das formações sintomáticas, as hipóteses diagnósticas, aquilo que o encontro suscitou de produções teóricas e práticas. Desse modo, este trabalho buscará apreender, por meio da referência a essa tradição psicanalítica, como em diferentes momentos da obra de Freud e Lacan, "histeria", "corpo" e "feminino" encontram conjugações específicas. Nosso intuito é o demonstrar como essas diferentes conjugações, de modo dialético, podem contribuir para a escuta, diagnóstico e tratamento desses casos.

 

Histeria: Freud perante os desencontros com o real do sexo

Em 1895, nos Estudos sobre a Histeria, em parceria com Breuer, Freud publica cinco casos clínicos: Ana O, Sra. Emmy Von N, Miss Lucy R, Katharina, Sra. Elizabeth Von R. Sua tentativa, ali, era a de entender as relações entre um sintoma e sua significação, o que o levou a formular conceitos importantes, como a divisão do aparelho psíquico entre consciente e inconsciente, a resistência exercida pelo consciente contra o material inconcebível ao eu, vindo do inconsciente, e principalmente o processo do recalque. De certa forma, Freud funda a Psicanálise quando entende que a histeria, acusada de "teatralidade sintomática" pela Medicina, na realidade pode contribuir para explicitar certos aspectos da estrutura do aparelho psíquico.

Em sua investigação sobre os sintomas e a história do paciente, Freud faz ligações importantes sobre eventos que foram sentidos com grande intensidade e expulsos da consciência. Tais ideias posteriormente foram convertidas, por meio de relações simbólicas, em sintomas corporais, como no caso de Ana O, atendida por Breuer, e de Elizabeth Von R, atendida por Freud. Os dois casos se tocam e se separam em sua historiografia. Assim como Ana O, Elizabeth Von R cuidava do pai enfermo, os dois seguidos de óbito, levando ambas à exaustão, e fazendo com que renegassem boa parte de suas atividades pessoais. No caso de Ana O, sua intensa dor e tristeza eram incessantemente afastados e recalcados para que o pai não a percebesse em desalento, o que dava lugar a sintomas corporais.

Muitas vezes, a ligação é tão nítida que se torna bem evidente como foi que o fato desencadeante produziu um dado fenômeno específico, de preferência a qualquer outro. Nesse caso, o sintoma foi de forma bem óbvia determinado pela causa desencadeadora. Podemos tomar como exemplo muito comum uma emoção penosa surgida durante uma refeição, mas que suprimida na época, e que produz então náuseas e vômitos que persistem por meses sob a forma de vômitos histéricos. (Freud, 1895/2006, p. 40)

Nem sempre é evidente a ligação, pois na maioria das vezes os sintomas são distorcidos pelas relações simbólicas menos evidentes. No caso de Elizabeth, uma intensa afeição pelo cunhado é brutalmente posta em evidencia quando ele adentra o quarto de sua irmã falecida e pensa: "Agora ele está livre novamente e posso ser sua esposa" (Freud, 1895/2006, p. 186).

Tal afirmação foi tão inconcebível à instância do eu que a cena foi recalcada e afastada da consciência por ser moralmente inaceitável; o afeto posteriormente ressurge em sintomas somáticos: sua perna paralisada simbolizava que Elizabeth não conseguia "dar um único passo à frente" (Freud, 1895/2006, p. 182), não podia ir adiante. Freud observa:

É que verificamos a princípio com grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com maior número de detalhes possíveis e traduzido o afeto em palavras. (Freud, 1895/2006, p. 42)

A histeria é compreendida, então, como ligada a desencontros com cenas de grande intensidade pulsional, como o caso Elizabeth. Essa cena, porém, só ganha valor de trauma e é recalcada num "só depois", como é o caso de Katharina, cuja a excitação sentida na primeira infância recebe um valor de trauma posteriormente, na adolescência, quando esta é ressignificada. Freud define, assim, que "os histéricos sofrem principalmente de reminiscências" (Freud, 1895/2006, p. 43), ou seja, estão fixados em um material que foi recalcado e afastado da consciência. O sintoma para Freud passa a ter valor simbólico de uma representação da dimensão sexual da vida do paciente, que é recalcada e convertida para o corpo.

Freud, mais adiante, em 1905, formulará que as áreas de excitação corporal nas quais as pulsões sexuais se manifestam também estão submetidas às funções orgânicas como alimentação e necessidades físicas, ou seja, os mesmos sistemas estão bipartidos entre pulsões sexuais e pulsão do ego, de autoconservação, e que, quando se está mais fixado a uma, há defasagem na outra. A conversão histérica, assim, é compreendida por ele como um conflito entre essas funções, na qual a função orgânica é hipersexualizada e a sensação de excitação sexual é deslocada da região genital para outras áreas erógenas. Assim destaca Serge André debruçando-se sobre o texto de Freud:

Lembremo-nos de que desde 1905, Freud compreende a pulsão como um conceito-limite entre o somático e o psíquico. Ele dá o modelo desse limite estabelecendo entre o orgânico e o sexual o mesmo dualismo que entre a fome e o amor. A pulsão sexual se apoia, assim, na função somática, mas não se confunde com ela [...] (André, 1987, p. 105)

Em complemento a esse pensamento,André (1987, p. 107) explicita que, "na conversão histérica, o conflito entre o orgânico e o sexual, entre a necessidade e o desejo se resolve na invasão completa da função orgânica pela função sexual".

No estudo sobre o aparelho psíquico, Freud passa a compreender que as percepções e sensações precisavam ter uma representação para que pudéssemos apreendê-las, e que para darmos um significado a certa cena é preciso que esta seja representada e armazenada no aparelho psíquico como um traço mnêmico, ao qual posteriormente temos acesso. Tal questão é mais propriamente desdobrada a partir de Além do Princípio de Prazer, de 1920, texto em que se pontua um limite entre o representável e o não representável, ou seja, o que poderia ter um significado e algo que ainda não se era capaz de dizer. Nesse momento dos Estudos, 25 anos antes do Além do Princípio de Prazer, nota-se que o recalque é relacionado a uma representação ligada a algo outrora "vivido", ou seja, sentido como factual. Esse processo de recalcamento presente em diversas partes da obra de Freud - tendo registro no Comunicação Preliminar, de 1892, nos Estudos, de 1895, e no A História do Movimento Psicanalítico, de 1914 -, é tido como um importante processo para a clínica.

Nas primeiras abordagens, como nos Estudos, Freud relaciona que o recalque pode ser considerado um processo amplo, respondendo como uma defesa de algo que é percebido externamente, e, considerado como inconciliável, é recalcado e ressurge como sintoma. O recalque, na época do caso Dora, é compreendido como se ocorresse em função de um conteúdo sexual, também inconciliável e recalcado, mas não necessariamente relacionado ao Édipo como ponto nodal de produção de fantasias sexuais inconscientes parentais, sendo este estabelecido a partir de Hans. Já em 1925, no artigo "Inibições, Sintomas e Angustia", o recalque é retomado como nos Estudos, porém acrescido de modificações. Ocorreria devido a algo não apenas de ordem sexual, que é percebido como inconcebível, mas algo que geraria angústia - afeto desvinculado -, ou seja, não apenas da "realidade concreta", mas, sobretudo, relacionado à ordem da fantasia, que é recalcada.

A questão do afeto desvinculado havia sido trabalhada em Além do Principio do Prazer, de 1920, cinco anos antes de Inibições: os afetos quando não se ligam a nenhuma representação causam angústia; uma forma de defesa para essa angústia seria ligá-la a uma cena de grande intensidade pulsional, ou seja, dando um sentido e possibilitando o recalque. Em sua pesquisa clínica, Freud, ao investigar sobre a cena sexual ou cena primária como parte dos desenvolvimentos psicossexuais, formula que as experiências vividas em terna infância, gerando prazer ou desprazer, podem servir como propulsão para o aparecimento de uma neurose. Retornando à Carta 42, de 30 de maio de 1896, e à Carta 52, de 2 de novembro do mesmo ano, esse quadro de formulações é trabalhado mais especificamente.

Nessas cartas, podemos encontrar tabelas sobre o desenvolvimento psicossexual, e de que forma o aparelho psíquico registra tais eventos, podemos entender que esses eventos são tidos nesse período como factuais. O trauma sexual é entendido quando há a incapacidade de compreender o que é experimentado, no caso da histeria, até os 4 anos, e que posteriormente ganha sentido com uma nova experiência que gera novamente um desprazer. Como ele salienta, há um excesso relacionado à sexualidade que é sentida nesse período e que não pode ser traduzida, ou seja, compreendida como um traço ainda sem vinculação representacional, constituindo assim o traumático, que só ganhará esse valor num futuro rearranjo do aparelho psíquico com outras experiências, que podem inibir ou reforçar esse afeto anteriormente desvinculado.

Essa "Teoria da Sedução" será abandonada a partir da Carta 69, de 1897. No início da Carta, Freud escreve: "Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]". (Freud, 1897/2006, p. 315). Após essa teoria cair em1897, passa-se a entender que essa experiência primária ganha valor de trauma só depois, em consequência de uma fantasia que ressignifica a experiência, o sexual é fantasiado como traumático, no caso da histérica, e com o fracasso do recalque, o sintoma se forma, sendo definido como a formação de compromisso entre o inconsciente e o consciente, sendo que a via de escape para a realização do desejo inconsciente é desviada para a inervação somática. A queda da Teoria da Sedução, logo, marca a passagem do trauma sexual para o sexual vivido como traumático. Nesse sentido, a cena traumática recalcada ou fantasmática já pode ser considerada como uma tentativa de simbolizar o trauma, que em si é justamente o que não pode ser dito, o furo, "[...] encontro sempre faltoso com um real que não se consegue designar, no discurso, senão como ponto de umbigo, lacuna, representação faltosa" ( André, 1987, p. 10). No pensamento de Lacan, esse real não pode ser representado a não ser pela borda, para Freud, por meio de representações-limite, remendo que de forma não completa tenta significar costurar o que se sentiu como irrepresentável. Um dos vieses do estudo inicial de Freud sobre a histeria é no sentido de entender essa relação com o real, o real do corpo que causa angústia e traumatiza.

Lacan, ao fazer uma releitura de Freud, demarca que esse primeiro momento da obra de Freud pode ser considerado focado nesse trauma que o corpo suscita na histeria, trauma esse que é recalcado e convertido para o corpo em forma de sintoma no qual Freud se debruça na tentativa de apreender o indizível, só podendo ser representado com o corpo pelo sintoma -formação de compromisso.

 

Dora entre o passo e o rastro: o significante fálico e seu mais além

Lacan, assim como Freud, forma-se em Medicina, passando da Neurologia para a Psiquiatria (Jorge & Ferreira, 2007, p. 14). Volta-se para a Psicanálise balizado pelo surrealismo e seu primeiro escrito, considerado uma análise psicanalítica, foi o caso da paciente Aimée, em 1931. A partir de 1934, entra para a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e inicia carreira na Psicanálise (Jorge & Ferreira, 2007, p. 18). Ao retomar a obra de Freud, Lacan desenvolverá outro conjunto teórico, e seu "retorno a Freud" abrirá novas alternativas de interpretação psicanalítica.

Trata-se agora de entender o inconsciente não como representações recalcadas, imagéticas, que se relacionem com a pulsão. Entende-se a partir desse momento que para compreender a questão histérica deve-se compreender que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, e, partindo disso, os processos psíquicos se relacionam a três registros psíquicos: real, simbólico e imaginário. Ele toma o início da obra de Freud, na qual o real, o inominável, é sondado pela análise, mas que será apagado posteriormente com o primado do falo nas questões das psiconeuroses.

 

A dissimetria significante

Em se tratando de analisar o discurso do paciente, devemos apreender a forma como ele o estrutura linguisticamente, de que forma se expressa em sua narrativa. No texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (1957). Lacan expões suas considerações sobre a importância de se apreender o discurso com seus significantes e significados para que possamos intervir nesse material inconsciente. Antes de entender o que deseja um paciente ao contar sua história na análise, é preciso perceber sua relação com o desejo, de que forma está ele em relação a sua história, que posição assume em seu discurso.

Em "A instância da letra", Lacan diferenciará a letra como título de uma marca, o que delineia e limita o que se escuta - na forma material da letra, não em contraponto à oralidade, mas em congruência. Com a incidência das palavras, passamos a utilizar sempre um significante para designar algo, nos representar como sujeitos, e encadear nosso desejo que, metonimicamente, é sempre de outra coisa. De acordo com Lacan, todos nós estamos submetidos a essa linguagem que nos atravessa. Somos falados antes de falar, designados por nosso nome próprio, parte da história de uma família, comunidade e cultura. Assim, o inconsciente é a linguagem de um Outro que nos perpassa, a partir dessa referência nos estruturamos, essa mesma linguagem que os artistas desestruturam e com a qual o neurótico simboliza sintomas. Mas, e o corpo?

Um dos aparelhos de construção da imagem do corpo próprio, descrita por Lacan como "estádio do espelho", permite apreendermos o processo de reunião das falas, imagens e pulsões fragmentárias nascidas do encontro com a alteridade. A relação especular entre o sujeito e uma primeira modalidade de Outro - mormente materno - se manifesta: 1. No registro simbólico, posto que antes de falar somos falados, devemos nossa primeira corporeidade ao "corpo da linguagem"; 2. No registro imaginário, temos nossa primeira assunção da imagem corporal pela ação psíquica de nos equivalermos a uma imagem que nos é externa, nomeada e apresentada via alteridade; 3. No registro do real, há a relação com nosso lugar, via dependência fundamental do sujeito humano, de objeto do outro. Ora, essas operações de alienação simbólica, real e imaginária passam a ser transformadas a partir do momento que o sujeito apreende que sua primeira modalidade de Outro não pode dizer tudo sobre ou pelo sujeito, não pode garantir sua consistência unitária em termos de imagem, e deseja algo além do sujeito. A criança, então, passa a se questionar se ela é ou não o objeto de desejo de sua mãe, se ela tem ou não o que a mãe deseja. Esse algo além que a mãe deseja então é um terceiro objeto, o falo. Essa separação entre a criança e esse algo a mais é bem rudimentar, inicialmente. Esse significante faz intermédio entre essa relação dual, vai introduzi-la na ordem simbólica e barrar o acesso à mãe. A relação quaternária entre a mãe, filho, falo e a ordem simbólica, é a base da constituição da imagem do próprio corpo, que a criança simbolizará pela linguagem. A metáfora paterna seria, assim, essa formação quaternária, introduzindo o sujeito na linguagem, que simbolizará seu desejo, dará significação para sua demanda. Essa simbolização é de extrema importância para a sexuação do sujeito, pois isso o colocaria numa posição sexual.

Para Lacan, o inconsciente guarda, pois, certa corporeidade, a materialidade, o significante, da imagem e do gozo. Por meio de deslocamentos significantes, "de palavra a palavra" e de um termo após o outro (metonímia), e de substituição ou condensação significante, "uma palavra por outra" (metáfora), emergem significados, articulam-se sonhos e atos falhos, e se constituem sintomas. Essa perspectiva lacaniana, então, comunga da hipótese de que o inconsciente tem uma estrutura de linguagem - apesar de articular, também como função sua, imagem e gozo. Entre a metonímia e a metáfora do que se diz, tenta-se tocar no desejo fugidio. No campo das neuroses, o sintoma é justamente aquilo que há de insistente naquele discurso, essas palavras como algo real do corpo, e a letra como marca pulsional que toca esse corpo. Temos então em Instancia da Letra que

O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina o sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num sintoma - metáfora em que a carne ou a função são tomadas como elemento significante - a significação, inacessível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver. (Lacan, 1957/1998, p. 522)

Uma das possibilidades de trabalho analítico na clínica com neuróticos consiste em apreender onde o sujeito se localiza na sua história (sua posição subjetiva), o que na repetição se difere, e abrir sentidos para que ele possa se implicar em seu discurso. Entendendo como o neurótico tenta tamponar e nomear aquilo que resiste à simbolização - o real -, a possibilidade de intervir se faz no fato de lidar com aquilo que é da ordem do que falta e claudica, e vincular novos significantes que produzam a circulação do desejo. Nada haveria de encoberto nas "profundezas da mente", como poderia sustentar certa leitura de Freud, mas sim numa superfície da qual o sujeito não se dá conta. Escutar o paciente é ler seu discurso, localizar o que está entre os significantes, significados e localizar o gozo. Lacan descreve: "Porque o sintoma é uma metáfora, quer se queira ou não dizê-lo a si mesmo, e o desejo é uma metonímia, mesmo que o homem zombe disso" (Lacan, 1957/1998, p. 532). Temos, dessa forma, um panorama para se abordar sobre os registros psíquicos em Lacan, explicitando alguns de seus conceitos e de que forma Dora narra sua história e como encarna um personagem.

Considerando a dimensão linguageira do inconsciente, podemos retomar certos conceitos freudianos para rearticular as relações entre histeria, feminino e corpo. Sob essa perspectiva, não se trataria, no feminino, de uma ausência do órgão peniano, falta da imago fálica primordial, ou, ainda, da inveja do pênis - a ser sanada pela operação falo-filho, na maternidade. A experiência clínica nos apresenta o real de que, no inconsciente, há um limite para a simbolização: se é, não a imagem fálica, o significante fálico que permite cifrar algo do gozo, a dimensão do feminino será aquela atrelada à incompletude simbólica, à inexistência de um significante complementar ao falo ("A Mulher"). Por não haver complementaridade simbólica entre um significante para o feminino e o significante falo, essa falta relativa ao sexual não é simbolizável em nível inconsciente; o que o processo de recalque - como dizia Freud - faz é colocar uma barreira entre o erótico e o não sexual. Na histeria, o encontro com esse indizível, com a essa falta de significante desencadeia um duplo questionamento acerca do que é o feminino (busca de saber) e de uma destituição dos semblantes do feminino (denúncia da falha no saber).

Analisemos agora o que fica entre o passo e o rastro, entre um significante e outro, o que emerge do real do corpo, e desestabiliza gerando o sintoma histérico.

 

O mais além do falo

O processo de sexuação, tanto para o homem como para a mulher, perpassa as relações entre o significante fálico, e o mais além do falo. Assim, aqueles referidos à função fálica devem lidar com o desejo, o gozo (real), e o feminino que transbordam o registro simbólico, que não lhes dá acesso à Mulher. No teatro fálico dos sexos, o homem quer ter o falo, a mulher tanta sê-lo. Temos aí dois caminhos diferentes para apreender o sexo feminino. O que escapa ao recalque, ou seja, para Lacan o que escapa à simbolização é justamente o que não pode ser preenchido com significantes. A castração seria o recurso de tamponar a falta, assim, como explica André (1987, p. 12-13), "A castração constitui aquilo que exclui - ou, para retomar um termo lacaniano, aquilo que foraclui - o sexo feminino como tal. A castração faz da ausência um resto de presença, ela é um embelezamento (este é o sentido próprio de beschõnigen), ou, melhor ainda, um eufemismo (sentido figurado)".

Para apreender isso que "escapa à simbolização fálica", cabe aqui nos determos sobre como Lacan apreende o registro do real, e tirar consequências dessas formulações na formulação da noção de feminino, salientada neste trabalho, a partir da histeria, exemplificada no caso Dora.

Na tripartição psíquica "real, simbólico e imaginário", Lacan compreenderá e ampliará os conceitos de Freud. Em relação ao real, pensado a princípio em termos de algo que não é simbolizado, Lacan entende que Freud, já no início de sua obra, se coloca essa questão, desenvolvendo os conceitos de representação-limite como barreira para o somático. Esse real evidenciado no início da obra de Freud, Lacan retoma e faz distinção de que forma se apresenta. Para ele, o real não é a mesma coisa que a realidade, pois apesar de estar lá só pode ser dito pelo simbólico. O real é acima de tudo o furo que resiste à significação. Englobando as áreas de estudo de Lacan, como a Linguística, a Matemática e a Antropologia Estrutural, ele articula que o significante vem do Outro e a realidade se constituiria via uma rede, ou melhor, utilizando seu próprio exemplo, no encontro desses registros que a produziriam. Dessa forma, a realidade seria o encontro no qual o simbólico e o imaginário tentam significar um real que sobra, e marca em si a falta.

Esse mais além do significante pode ser colocado como bojo nos casos de histeria. A forma como a histérica lida com o real do corpo, apontada por Freud, é esmiuçada por Lacan, e pode ser exemplificada pelo sonho da injeção de Irma.

Freud resolve atender uma amiga de sua família que apresentava sintomas que dividiam opiniões entre seus amigos médicos e ele. Irma, em sua concepção, tinha sintomas relacionados à histeria, mas é contradito por diagnósticos de afecção orgânica. Destarte, resolve levá-la para se consultar com Fliess, que lhe faz um procedimento nasal, deixando por imperícia uma gaze no local, gerando posteriormente uma infecção de tal gravidade que a paciente corre risco de vida. Com esse quadro formado, Freud sonha com Irma, deixando expresso no sonho seu desejo de estar certo em seu diagnóstico, colocando a culpa na própria paciente por ela não ouvir sua solução. Em poucas linhas, o sonho mostra Freud tentando examinar Irma e ela se recusando a abrir a boca. O que acontece em seguida é de importância para a elaboração de sua teoria. Ao abrir a boca, Freud vê um cenário de repugnância: "Irma, a princípio resistente, acaba abrindo a boca, e Freud percebe então o espetáculo assustador de uma grande placa branca e de crostas branco-acinzentadas que têm aparência de cornetos nasais" (André, 1897, pp. 46-47). E numa outra passagem, em Lacan (1955/1985, p. 197), temos: "Eis aí a descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca angústia".

O recurso ao sonho de Irma se faz importante pelo fato de revelar, por via da associação, o quanto se tenta apreender o real corporal para além da simbolização fálica. Esse buraco, essa carne de onde tudo sai, esse corpo não falicizado, é exposto e causa repugnância. Para Freud, a questão de Irma estava de alguma forma ligada à histeria. Lacan retoma esse sonho achando-o importante por demonstrar como o sonho faz uma referência imagética - referência a vários sintomas desconexos apresentados por ela como esfacelamento especular da unidade do eu -e simbólica - fórmula da trimetilamina com significando de conteúdo sexual -, até chegar ao umbigo do sonho, o limite de simbolização, e esse real - a carne crua - que emerge do corpo de Irma.

André sugere em O que quer uma mulher? (1987) que essa coisa fora do sexo com a qual a histérica se depara resiste ao adorno fálico, e expõe o estado de carne desfigurada que o simbólico não recobre. André, a partir do conceito lacaniano de real, organiza as construções freudo-lacanianas em torno da histeria, do corpo e do feminino, em três polos: o encontro, seja de homens, seja de mulheres, 1. Com o real do corpo não balizado pelo falo, causando horror e repugnância; 2. A morte, lugar onde tudo se cala, na qual a palavra nada representa nem denomina; e 3. O incognoscível, fratura no saber. Esses três temas se coadunam e expressam a tentativa de encobrir falicamente o furo, tomando-o por suas bordas e limites. Temos aqui a mãe como o simbólico do feminino, "aquela da onde tudo vem, mas também aquela para que se retorna" (André, 1987, p. 56), algo nesse corpo real, que destaca a morte, barrada pelo significante, e que sugere algo a mais.

Poder-se-ia dizer que são as três inevitáveis relações, entre o homem e a mulher que estão aqui representadas: eis a genitora, a companheira, e a destruidora. Ou ainda as três formas sob as quais se apresenta, no decorrer da vida, a própria imagem da mãe: a mãe ela mesma, a amante que o homem escolhe à imagem daquela, e finalmente, a Terra-mãe, que o retoma. [...] Assim é a morte a palavra pela qual Freud significa, de maneira genial, o que resta da mãe, da mãe enquanto real, enquanto proibida. Na medida em que uma parte dela fica sem significante, como uma zona de silêncio com relação àquilo que se diz e que se nomeia, a mãe é um equivalente da morte, e só na morte é reencontrada. (André, 1987, p. 59)

Expressas as relações entre feminino com as incidências do pulsional que transcendem ao fálico, iremos, agora, buscar aprofundar, desde Lacan, como a histeria e as fórmulas de sexuação indicam o gozo feminino e algo do sexo como inapreensível.

 

A instabilidade da posição sexual

Um dos pontos centrais da problemática histérica é a relação desta com sua imagem. Freud aborda esse assunto com o texto intitulado O Narcisismo (1914), o qual apresenta a divisão da pulsão sexual entre libido do objeto e libido do eu. Estabelece também que o sujeito deseja no outro a própria imagem corporal, sendo seu objeto sexual revestido por sua própria imagem. Essa ligação indissociável significava, ou seja, sexualiza, a carne, o orgânico, que passa a ser investido libidinalmente. Para a histérica, essa imagem não recobre totalmente esse corpo, e de forma instável parece a qualquer momento revelar esse corpo dessexualizado. André pontua essa falta em nível da imagem corporal: "Com efeito, a histérica jamais se sente o bastante revestida por essa imagem corporal, como se essa vestimenta imaginária ameaçasse sempre se entreabrir para a realidade repulsiva de um corpo..." (André, 1987, pp. 109-110).

A simbolização para ele é essa tentativa de reparar esse processo. Lacan desenvolve sobre esse registro imaginário no momento do estádio do espelho, com ênfase especial ao papel do Outro como formador dessa imagem. É por meio da instância paterna que a simbolização ocorre, de forma que "se se produz uma falta ao nível da constituição da imagem corporal, uma falta correspondente deve ser situada ao nível da identificação simbólica" (André, 1987, p. 111). No texto A significação do Falo (1958), Lacan designará o falo e sua relação com o Outro, considerando sua função como significante do desejo do Outro. É justamente por aquilo que ele não satisfaz é que ele é desejado. A histérica indica uma falha no Outro, este que só indica o significante fálico, e que é sempre insuficiente e estruturalmente impotente em lhe fornecer o que é ser uma mulher. A incapacidade de recalcar o que lhe falta: "A insígnia paterna só indica o falo, só sugere identificação fálica" (André, 1987, p. 112), assim a imagem de seu corpo não consegue erotizar o real do corpo, mas apenas se aproximar de uma imagem que se pareça fálica.

Na histeria, a tentativa de reparação desse Outro impotente coloca-se como pleito de uma posição feminina possível, mas encara sua própria impossibilidade de revestir sua imagem. No caso de Dora, a Sra. K é, ao mesmo tempo, alvo de desejo e algo enigmático, uma imagem feminina inacessível, se colocando numa posição masculina em desejar o que um homem desejaria nessa mulher.

Quando Dora se vê interrogar a si mesma sobre o que é uma mulher?, ela tenta simbolizar o órgão feminino como tal. Sua identificação com o homem, portador de pênis, é para ela, nessa ocasião, um meio de aproximar-se dessa definição que lhe escapa. O pênis lhe serve literalmente de instrumento imaginário para apreender o que ela não consegue simbolizar. (Lacan, 1956/1985, p. 203)

Ao investir em sua imagem corporal, torna-se possível fazer semblante de ser um corpo fálico, para encobrir o real; o embelezamento faz frente à insegurança da identidade. Andando numa corda bamba, certa estratégia de acomodação do feminino constitui uma máscara que recobre, sem deixar que um corpo dessexualizado apareça.

Na utilização de um semblante, que por vezes desestabiliza, erige um artifício que mostra e esconde o enigmático da sexuação. Na histeria, coloca-se em questão a posição de objeto do Outro, e o falo como insuficiente para uma identificação exclusiva feminina.

Como Lacan havia formulado no Estádio do Espelho (1949) e no texto Instância da Letra (1957), é pela linguagem que nos inserimos no sistema simbólico, constituindo nossa unidade de imagem por meio do que o outro nos fala. Somos perpassados pelo discurso do outro. O papel desse outro, que ultrapassando as relações parentais que a criança estabelece, é simbolizado como a lei, como exemplifica no A Metáfora Paterna (1958) e no Os Três Tempos do Édipo (1958), demonstra de que forma o desejo circula, o qual dá indicativos de presença de algo a mais na relação, a princípio entre criança e a mãe, e depois da criança, da mãe e do pai. O pensamento de Lacan irá em direção de indicar que a relação com esse Outro, agora em maiúsculo, é o ponto nodal para entender a posição que o sujeito se encontra em relação com a sexualidade e o que ultrapassa mesmo o campo significante.

Ser ou não ser o falo? Ter ou não ter o falo?, questões essas que são trabalhadas no Os Três Tempos do Édipo, e que estabelecem a posição perante a esse significante paterno. O que será desenvolvido posteriormente por Lacan é que esse Outro é inicialmente tido como completo - em termos significantes e do gozo - (A). Ante esse Outro primordial, caprichoso, a castração simbólica vem inscrever uma impossibilidade - que transborda o campo da privação e da demanda - e constitui o desejo como experiência de negatividade e o Outro como "barrado",

(Λ). No texto A significação do Falo, temos que

A demanda em si se dirige a algo mais do que as satisfações a que ela apela. Ela é demanda de uma presença ou de uma ausência. Aquilo que a relação primordial à mãe manifesta, em estar grávida desse Outro a situar aquém das necessidades que ele pode suprir. Ela o constitui como já tendo o "privilégio" de satisfazer as necessidades, isto é, o poder de privá-las da única coisa pela qual elas são satisfeitas. [...] É assim que o desejo não é nem o apetite de satisfação, nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o fenômeno mesmo da clivagem. (Lacan 1958/2008, p. 268)

Temos assim que o desejo se produz na falta, e que é a partir da não satisfação é que se deseja algo a mais. O sujeito irá se comportar dessa forma em relação a isso assumindo a posição masculina, tentará parecer que tem o falo para escamotear sua falta, e numa posição feminina tenta ser o falo escondido mascarando um enigma.

Aqueles que se inscrevem no campo da sexuação sob a bandeira das "mulheres", estão, pois, relacionados à ordem fálica, mas não totalmente submetidas a ela: "É pelo que ela não é que ela quer ser desejada ao mesmo tempo que amada" (Lacan, 1958/2008, p. 271). Freud, centrando a inveja do pênis como algo incontornável para as mulheres, indica que o feminino estaria ligado ao tão esperado filho; com a maternidade a mulher encontraria a resolução do Édipo, sendo o filho a metonímia do pênis, sendo a maternidade o que alcançaria a posição feminina, sua identificação. Dora, para ele, recusa a sexualidade perante o Sr. K e volta-se para a relação com o pai. Lacan entende que a cena do lago, onde o Sr. K declara que a mulher não significava nada para ele, destitui a Sra. K de sua posição de enigma e quebra a identificação de Dora com ela, desestabilizando finalmente o quarteto. Um desejo que jamais é satisfeito, que se sustenta pela não descoberta, sua posição é de desejar o desejo que os homens têm pela Sra. K, sem que esse desejo tenha por fim seu intento.

Esse entrelaçamento entre o gozo - dividido entre gozo do ser e gozo sexual - e o desejo comporia um ponto nodal da posição sexual assumida pelo sujeito, temas esses trabalhados por Lacan no seminário 20, no texto Do Gozo (1972), e no Deus e o Gozo D'A Mulher (1973). Temos aí o significante fálico que barraria o sujeito ao acesso de gozo do ser, apenas suposto, por termos acesso pela linguagem e não ao que ele ultrapassa. O gozo sexual faz limite do gozo do ser, ao mesmo tempo em que é a partir dele que é suposto. Por isso afirma que "a impossibilidade da relação sexual como tal" (Lacan, 1972/1985, p. 17), pois a mulher não toda inserida na ordem fálica camufla possuir esse falo que não possui, em sê-lo, e o homem da mesma forma tenta alcançá-la, forjando possuir o que não possui, ambos, nesta comédia dos sexos, lidando com a barreira significante que os impede, mas que impele a algo a mais, a causa desse desejo chamado de "objeto a".

 

Considerações finais

Propusemo-nos, neste artigo, a circunscrever algumas das relações possíveis entre "histeria", "feminino" e "corpo", num percurso de Freud a Lacan que privilegiasse o conceito lacaniano de real. Com esse intuito, iniciamos nosso estudo com as pesquisas de Freud sobre a histeria, percebendo mudanças em sua prática e teoria: a passagem do trauma sexual, enraizado num suposto acontecimento de sedução, para o sexual como traumático - queda da Teoria da Sedução, encontro com algo de não simbolizável no sexo.

No que concerne à corporeidade, a investigação da formação de sintomas conversivos denotavam que os conteúdos traumáticos das fantasias, incompatíveis com o ego e recalcados, retornavam gerando sintomas, pela erogeneização e conversão no corpo. Ao prosseguirmos em Freud, encontramos, no desenvolvimento psicossexual, a assimetria entre o menino e a menina, que em consequência daria um processo de sexuação diferente para ambos. Na histeria, temos que diante da sexualidade há uma outra via que não a genitalização, uma recusa, e o sintoma como principal atividade sexual do paciente pelo não abandono da posição masculina por parte da menina. Na conclusão desse processo, temos como ponto nodal a relação com a inveja do pênis, e sua saída e substituição do pênis pelo filho na maternidade, que asseguraria finalmente a posição feminina. Entretanto, para além da equação feminino-maternidade, o feminino em Lacan abre uma série de outras vias e conotações. Dito de outro modo, Lacan explorará o feminino por um viés que não se centra na questão da inveja do pênis.

A partir da hipótese de que o inconsciente é estruturado como linguagem, apreendemos o feminino, num primeiro momento, como "comédia fálica dos sexos", jogo em que entre "ser" e "ter" o falo, ninguém, de fato, o "é" ou "tem". Indo num passo além, nas teorizações sobre o real, Lacan colocará, com relação ao feminino, questões sobre os limites do simbolizável e do representável, sob as figuras do corpo não falicizado, da morte e do indizível. Ante esses avatares do real e do para além do falo, tanto aqueles que se inscrevem sob a bandeira dos "homens" quanto aqueles que o fazem sob a bandeira das "mulheres" devem construir recursos, um "saber fazer". O feminino, então, será pensado como correlacionado com a incompletude do simbólico, a não existência de um significante feminino, e que tanto o homem como a mulher se deparariam com essa falta, esse não simbolizável do real do corpo/ser feminino.

Desloca-se, assim, o conceito de feminino como deficit ante o falo; quando Lacan diz que nem todas as "mulheres" estão inseridas nessa ordem, isso implicará que esse furo no saber será apreensível apenas a partir de sua borda ou litoral. A histeria, logo, seria uma estrutura clínica marcada não pela formação específica de sintomas conversivos, ou pela erogeneização de funções corporais tornando-as disfuncionais, mas, sim, essa cabeça de Janus que, ao mesmo tempo em que busca dizer o que é o feminino, por razão da inexistência do significante d'A Mulher, denuncia os limites das respostas possíveis a esse enigma.

O trabalho que aqui se encerra pretende apenas alojar elementos para um debate clínico psicanalítico que considere as articulações entre histeria, feminino e corpo, de modo a contribuir para a releitura e construção de novas análises e elaborações a serem acrescidas à prática psicanalítica. Com essas apresentações teóricas de Freud e Lacan sobre a histeria e o feminino, interrogamos sobre outras formas de o feminino poder ser concebido: quais outros desdobramentos se depreendem da posição que ultrapassa a significação fálica, as indicações desse além do falo que a histérica denuncia?; que consequências a falta de um significante d'A Mulher, que transborda a inveja do pênis proposta por Freud, Lacan abre para se pensar a ordem do não saber, do não dito, do impossível de significar?

 

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