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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.14 São João del Rei jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

O sujeito e a musicalidade da fala

 

The subject and the musicality of speech

 

Le sujet et la musicalité de la parole

 

El sujeto y la musicalidad del habla Resumen

 

 

Leticia Maria Soares FerreiraI; Daniela Scheinkman ChatelardII

IMestrado em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. Doutorado em curso no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília pelo Programa de pós-graduação em Psicologia clínica e cultura, com incentivo de bolsa pela Capes. E-mail: leticiapsico@yahoo.com.br
IIMestrado em Psicanálise pela Université de Paris 8. Doutorado em Filosofia pela Université de Paris 8. Professora Associada ao Departamento de Psicologia Clínica e ao Programa de Pós-Graduação de Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro da Associação Nacional dos Estudos sobre o Bebê. Autora do livro O conceito de objeto na Psicanálise: do fenômeno à escrita, Editora da Universidade de Brasília, 2005. Organizadora do livro O corpo no discurso psicanalítico, Ed. Appris, 2019. E-mail: dchatelard@gmail.com

 

 


RESUMO

Procura-se abordar neste trabalho as questões relativas à musicalidade da fala. O sujeito se faz diante do limite imposto pelo interdito simbólico, mas, no canto de sua fala, se coloca para além dos significados das palavras. A prosódia da fala, com sua musicalidade e entonação, destaca um valor não linguístico e transmite o desejo, deixa de fora a dimensão de sentido e transparece o que com palavras não pode ser dito. A musicalidade seria aquilo que escapa à censura e torna suportável a dívida simbólica. Aposta-se que a possibilidade do retorno ao sem sentido, à voz perdida no encontro com o simbólico, por meio da condição musical da fala, sobretudo no processo analítico, pode revelar algo sobre o funcionamento do sujeito. Enquanto cantarola em sua fala, ele se faz ouvir na sua posição subjetiva por esses vestígios musicados.

Palavras-chave: Musicalidade da fala. Voz. Psicanálise. Clínica.


ABSTRACT

The aim of this work is to address the issues related to the musicality of speech. The subject makes himself before the limit imposed by the symbolic interdict; however, in the song of his speech, puts himself beyond the meanings of words. The prosody of speech, with its musicality and intonation, emphasizes a non linguistic value and conveys desire, leaves out the dimension of meaning, and reveals what cannot be said with words. Musicality would be what escapes censorship and makes the symbolic debt bearable. It is argued that the possibility of returning to the senseless, to the voice lost in the encounter with the symbolic, through the musical condition of speech, especially in the analytic process, may reveal something about the functioning of the subject. While humming in his speech, he makes himself heard in his subjective position through these musical traces.

Keywords: Musicality of speech. Voice. Psychoanalysis. Clinic.


RÉSUMÉ

Le but de ce travail est de approcher les problèmes liés à la musicalité de la parole. Le sujet est fait avant la limite imposée par l'interdit symbolique, mais, dans le chanson de son parole, se met au-delà des significations des mots. La prosodie de la parole, avec sa musicalité et son intonation met l'accent sur valeur non linguistique et transmet le désir, omet la dimension du sens et transcende ce qui ne peut être dit avec des mots. La musicalité est ce qui échappe à la censure et rend la dette symbolique supportable. On parie que la possibilité de revenir à l'insensé, à la voix perdue dand la recontre avec le symbolique, à travers la condition musicale de la parole, notamment dans le processus analytique, peut révéler quelque chose sur le fonctionnement du sujet. En bourdonnant dans son parole, il se fair entendre dans sa position subjective par ces traces musicales.

Mots-clés: Musicalité de la parole. Voix. Psychanalyse. Clinique.


RESUMEN

Se busca abordar en este trabajo las cuestiones relativas a la musicalidad del habla. El sujeto se hace ante el límite impuesto por el interdicto simbólico, pero, en el canto de su habla, se sitúa más allá de los significados de las palabras. La prosodia del habla, con su musicalidad y entonación, destaca un valor no lingüístico y transmite el deseo, deja fuera la dimensión de sentido y transparece lo que con palabras no puede ser dicho. La musicalidad sería aquello que escapa a la censura y hace soportable la deuda simbólica. Se apunta que la posibilidad del retorno al sin sentido, a la voz perdida en el encuentro con lo simbólico, por medio de la condición musical del habla, sobretodo en el proceso analítico, puede revelar algo sobre el funcionamiento del sujeto. Mientras cantarola en su discurso, él se hace oír en su posición subjetiva por esos vestigios musicados.

Palabras clave: Musicalidad del habla. Voz. Psicoanálisis. Clínica.


 

 

1 Introdução

Quando o sujeito fala não apenas comunica o que a decodificação das palavras se encarrega de transmitir, ele se apresenta e, de alguma forma, se desvela. Reconhecemos pessoas pelas peculiaridades de sua fala e pela particularidade sonora de sua voz, ou seja, pelo seu canto. Algo intrínseco ao modo de ser do sujeito se denuncia nessa expressão prosódica espontânea, que se faz única e singular. Além disso, pela musicalidade da fala, identificamos aspectos do estado emocional circunstancial. Podemos fazer conjecturas, pelo que se escuta enquanto trilha sonora do sujeito, de seus sentimentos, afetos e impressões. Inclusive em análise, por alterações na voz, se tem notícias da aproximação de algo da ordem do desejo.

A prosódia da fala, que porta a entonação e o timbre da voz, a fluidez que alonga ou encurta as emissões silábicas, a gagueira, os entroncamentos, a velocidade, a melodia, a dinâmica, as pausas, as cadências, as variações ou a monotonia, são alguns dos elementos musicais1 que acompanham o ato gozoso de falar. São recursos dos quais o sujeito lança mão de forma inconsciente e que transmitem algo que pela palavra não alcança o outro que escuta. A musicalidade da fala diz o que o significante não diz.

Em um tempo mítico inicial, anterior à constituição do sujeito, tudo é expressão sonora. O grande trauma do sujeito, tomado pela condição da linguagem, está na perda do gozo absoluto, que é efeito do puro real e é anterior a qualquer amarração simbólica. Esse efeito traumático se dá quando a experiência de gozo do corpo cede lugar à representação e ao significado, quando o som deixa de ser apenas som para se remeter a alguma outra coisa. O sujeito é resultante dessa assimilação, do efeito desse encontro mediado pela condição musical.

O sujeito se faz diante do limite imposto pelo interdito simbólico. Nesse percurso, algo que permaneça não regido pela lei da palavra, um dejeto, impõe um silêncio absoluto e inumano, pelo qual se tem notícias do caos do real. Esse ato originário enigmático provoca horror por deixar uma parte sem palavras. De um lado a palavra e do outro o silêncio.

Porém, a voz como objeto tem uma ação silenciosa, como uma não fala, que continua a tocar o sujeito, que implica um endereçamento e expressa a alteridade significante primordial. Para Vivès (2009), a voz é o primeiro objeto perdido quando deixa velar sua dimensão real pela formação do significante. Ela porta um resto de gozo absoluto quando livre do domínio da significação, "a voz é este real do corpo que o sujeito consente perder para falar" (p. 336). A voz perde sua materialidade sonora, e enquanto objeto a, fica perdida e velada pela fala. Ela desaparece por trás do sentido da enunciação. A ação da palavra emudece a voz, isso faz marca e permite o advir do sujeito. Com a entrada no campo do simbólico, algo é, para sempre, perdido por ele. Vivès (2012, p. 23) coloca ainda que "o silêncio da fala, ao contrário, está aberto à acolhida dos significantes a advir".

A voz, que transcende o evento sonoro, inclui subjetividade porque exprime o inconsciente. A prosódia da fala, com sua musicalidade e entonação, destaca seu valor não linguístico, deixando de fora a dimensão de sentido, ressalta o componente emocional que vai além do puro enunciado e revela elementos inconscientes deste. Lacan chama de lalangue essa prosódia que subverte o padrão da língua e que se presta a coisas diferentes da comunicação.

Organizado como linguagem pela cadeia significante, o inconsciente sofre recalque feito pela barreira da língua. O desejo fica impedido de ser apreendido ou articulado pela linguagem.

Lalangue é justamente o encontro da língua com o desejo inconsciente, é "o modo como cada um se apropria da língua materna ao aprender a falar" (Maurano, 2015, p. 92). "A prosódia é a tradução acústica da enunciação. Ela diz mais do que o conteúdo do texto (enunciado) do que o ser falante gostaria de ter dito, isto é, ela é portadora dos elementos mais inconscientes da situação" (Catão, 2009. p. 132).

A musicalidade da fala, o canto do sujeito, profere para além de seus significantes, ela transmite o desejo e deixa transparecer o que com palavras não pode ser dito. A possibilidade do retorno ao sem sentido, à voz perdida no encontro com o simbólico, por meio da condição musical da fala, sobretudo no processo analítico, pode revelar algo sobre o sujeito. Penso que a singularidade sonora, a afetação musical, dá indícios sobre a posição psíquica tomada pelo sujeito: Sou onde não falo, canto.

 

2 O canto e sua relação com o outro

A condição da voz é aquela que não tem a ver com o simbólico, como justamente o que não encontra representante na linguagem e sobra enquanto resto, ela é a expressão mais pura do real para o humano, é objeto de gozo. Está relacionada à pulsão de morte e, como exigência da própria vida, precisa ser silenciada. O modo como o sujeito lida com a voz, no encontro que faz com o Outro, e como lida com a perda do gozo absoluto, determina seu funcionamento e sua estrutura psíquica. Acreditamos que o posicionamento do sujeito se declara na musicalidade de sua fala, no modo como a voz, enquanto objeto perdido, e a palavra se associam.

Catão (2009) afirma que a voz pode ser reconhecida como uma matriz primária, como suporte corporal para o funcionamento psíquico, unindo gozo pulsional e linguagem. Antes da possibilidade de significação por parte do bebê, a voz da mãe articula linguagem e corpo, veiculando as letras fundadoras do aparelho psíquico. O objeto voz e a pulsão invocante ganham importância particular na emergência do sujeito por essa ligação com o significante e com a fala.

Maurano (2015) destaca a prosódia, o envelope musical que acompanha a produção da fala, como o modo particular como cada um se acomoda na língua materna e que permite entrever o sujeito em seu modo de se haver com lalangue, sendo portadora dos elementos mais inconscientes da situação. Para ela, a entonação "decanta um gozo que mostra de que forma os efeitos da fala são suportados pelo sujeito, tanto em sua enunciação, quanto na refletividade relativa à auto-afetação que o ouvir-se implica" (Maurano, 2015, p. 93).

Didier-Weill (1997a, p. 61) chama de "Nota Azul", aquela que veicula o sujeito no sentido e na presença, e que é

Simbolizante no sentido em que nos abre para o efeito de todos os outros significantes, como se fosse sua senha: efetivamente, sob o impacto da Nota Azul, o mundo começa a falar conosco, as coisas, a ter sentido: os significantes da cadeia ICS, de mudas que eram, despertam e começam, assim causados pela Nota Azul, a nos contar casos.

A transmissão do significante acontece quando o sujeito deixa de resistir por um instante à vocação originária e questionadora que causa o efeito de sideração. Mas, segundo Didier-Weill (1997b, p. 163 e p. 23, respectivamente), "esse significante siderante, na medida em que ele excede todo significado, desafia qualquer tentativa de tradução", é o "passador possível desse real". A vocação do sujeito e o destino da palavra para ele dependerá, então, da escolha obrigatória que ele realizará entre o falar e o calar-se e da maneira como responderá à voz que o incita a falar.

Falando o sujeito contrai uma dívida simbólica frente ao real, por não conseguir nenhum significante correspondente ao seu alto valor psíquico. Ainda para Didier-Weill (1997b, p. 175), "o modo como vão se nodular real, simbólico e imaginário depende do que será meu posicionamento com relação à minha fala". Podemos pensar então que a dimensão musicante da fala, o modo como o sujeito faz a ligação entre o não sentido e o sentido, diz de sua posição e de seu sintoma. Portanto, há algo que se produz e que se resiste na fala.

Didier-Weill (1997b, p. 49) elabora algumas perguntas explorando a relação entre o real e o simbólico, tais como: "de que forma o silêncio do mundo sem lei, do caos, se aproxima do silêncio existente num mundo regido pela lei da palavra?", "em que essa parte maldita poderá ser subtraída à sua decadência e recolocada em relação transferencial com o simbólico de onde ela foi foracluída? (p. 63)", "o que você fez da palavra que lhe fez ser um falante?" (p. 33), para estimar o alcance ou interferência do real na enunciação da palavra.

Poderíamos pensar então na musicalidade, presente antes mesmo do convite do significante, como algo que permite ao real permanecer no mundo regido pela palavra, se recolocando em relação com o simbólico. Poderíamos acrescentar às questões: o que você fez da musicalidade do que ouvia antes de ouvir as palavras como significantes? Talvez grande parte dela permanece na expressão prosódica enunciada na fala. Então, como essa musicalidade se faz audível?

 

3 Interpretando o ininterpretável da enunciação

Trabalhemos com a ideia: o que se enuncia na fala, sobretudo na sua dimensão cantada, visto que ela existe amparada nos recursos sonoros audíveis nas suas diversas possibilidades de expressão, diz sobre o sujeito e sua amarração. Quando fala o sujeito assume, em uma escolha inconsciente, o fato de que se desvelará no ato da enunciação. O sujeito corre sempre um risco de tocar no não sentido para que consiga a transmissão do sentido.

Com isso, algumas indagações se fazem intrigantes. Diante da amarração entre real, simbólico e imaginário, seria possível pensar alguma correspondência entre o que se apresenta no modo de falar e cada uma dessas estruturas? Os ritmos, as entonações melódicas, as intensidades, prestam a funções diferentes dessa amarração estrutural no ato de falar? São tentativas de interpretações talvez ainda precoces, mas possivelmente algo se possa acrescentar percorrendo por elementos que a própria música nos faz pensar.

Existem algumas propriedades da música que são, concomitantemente, faculdades psíquicas: o tempo, com sua continuidade, descontinuidade, repetição e andamento; a topologia, com variabilidade ou monotonia melódica; e os impulsos e intensidades, com seus fortes e fracos. Pensar sobre essa relação pode nos ajudar no desenvolvimento de uma escuta analítica sobre o canto do sujeito. Comecemos pelo parâmetro do tempo.

O vivido no corpo do sujeito desde os seus primórdios é referente ao gozo e ao real. A sequência incessante da respiração, das batidas do coração e do piscar são exemplos da repetição rítmica natural, que alcançam o estatuto do contínuo e da repetição.

No silêncio da música, ausência de som necessária para que haja uma sequência melódica e um desencadear andante da música, existe uma previsibilidade de retorno, pois o ritmo marcado pede um novo evento sonoro. A garantia de retorno da "presença" subentendida na música é confortante, é apaziguadora da tensão despertada pela ausência. Essa movimentação rítmica de ir e vir é estatuto do Outro e na música há uma vivência dessa alternância.

Conforme Vivès (2012), para o sujeito existir é preciso que o Outro o invoque, e sua primeira manifestação se dá pelo ritmo musical de sua voz, sendo ela uma das formas fundamentais de o Outro se tornar presente e ausente. A alternância da voz, som e silêncio, é significante por sua característica faltante. Para Didier-Weill (1997b), o ritmo da musicalidade da voz materna funda uma alternância significante que faz referência ao registro simbólico. A criança só poderá ocupar o lugar de desejado e de ideal se reconhecer a falta na mãe, se for envolvido pelos objetos a dela, dentre eles a voz.

Segundo Vorcaro (1999), a matriz simbolizante é instaurada pelo ritmo criado entre o apelo do bebê e as respostas dadas a partir do imaginário dos pais. A visibilidade e a imaginarização feitas pelos pais acerca do corpo da criança irão introduzi-la no mundo simbólico. O organismo do bebê age no imaginário deles e esse ritmo é variável.

Conforme Azevedo (2008), o corte feito à continuidade pela fala opera separando o sujeito do campo do Outro, e o que resta dessa operação de significação é a voz como objeto a, que terá outro destino. A voz não coincide com o significante da fala nem com o significado, ela é justamente a falta do sujeito e do Outro, impossível de ser dita. Esse corte cria ritmo e tempo, permitindo que o infans, pela pausa e escansão da voz, abra o vazio do objeto perdido.

Caldas (2007) afirma que a voz emerge do material sonoro a partir do corte operado nele, do intervalo e da seriação criados. Dessa forma, a voz se marca por meio da função orgânica, mas discernirá o campo da percepção e o do falasser.

Para além das particularidades rítmicas do tempo, existe um jeito peculiar e exclusivo da comunicação entre a mãe e seu bebê, o manhês, que serve de matriz simbolizante para a palavra. Nessa linguagem diferenciada, a mãe, com sua voz de entonação melodiosa, deixa declarado seu desejo e coloca o bebê como objeto de gozo materno. A criança é banhada por essa musicalidade que por ora ainda não é verbo. O interesse do bebê, antes de tudo, pela voz da mãe depende dos picos prosódicos, da pontuação e da escansão.

A prosódia da fala da mãe apresenta registro mais agudo que o da fala normal, vogais alongadas e lentas, com entonação e mudanças melódicas destacadas. Segundo Catão (2009), além destas, as características lexicais ressaltam a simplificação morfológica, a reduplicação e multifuncionalidade das palavras e as características sintáticas são de frases curtas e independentes, com repetição e paradas no enunciado.

A melodia e a escansão musical propõem uma ordenação com finitude, uma diferenciação que demarca o início e o fim de cada fraseado. A diferença entre as notas delimita uma separação e uma singularidade, havendo entre elas um encadeamento e uma sequência, similar ao caminho que o sujeito precisa percorrer perante o Outro.

Se pensarmos na melodia como a combinação de diferentes alturas, que se modificam de acordo com a amplitude e frequência de cada som, e entender que frequência tem a ver com ritmo, poderemos compreender também que a melodia é um desdobramento de um ritmo que teve suas pausas encurtadas, ou seja, a melodia é resultado de uma questão rítmica. Essa transformação, de ritmo em melodia, é um desenvolvimento que envolve uma perda da dimensão rítmica para a ascensão da dimensão melódica. Uma amarração que presume uma intercessão, assim como na amarração borromeana.

É uma identificação metafórica entre a estrutura sincrónica do sujeito - revelada pela nota azul - e sua estrutura diacrônica revelada pelo ritmo da melodia. Essa afinidade entre o íntimo da estrutura intemporal e a diacronia temporal exterior corresponde a esse "ex-timo", ao nível do qual as notas da melodia diacrônica representam o sujeito junto a essa morada intemporal que é a coisa freudiana - das Ding -, enquanto uma nota especial - a "nota azul" - pode fazê-la ressoar fugidiamente. (Didier-Weill, 1997b, p.198)

A sincronia diz da necessidade do sujeito de que tenha algo que o barre, que o corte em seu gozo, que faça um impedimento. Enquanto a diacronia dá continuidade e representa a impossibilidade de um corte perfeito, visto que algo sempre permanecerá na condição de inominável. As palavras cortam com sua sincronia, em que uma coisa passa a ser outra em um instante, mas a diacronia da entonação evade e mostra que algo permanece e perdura apesar do corte da temporalidade.

Diante disso, podemos supor que a forma como a sincronia rítmica e a diacronia melódica se colocam presentes na fala do sujeito denuncia, respectivamente, os impactos da vivência do corte simbólico, no encontro com o Outro, e revela como o sujeito suporta o real, que permanece sem caber nas palavras.

 

4 A censura e a dívida simbólica

Segundo Didier-Weill (1997b), o sujeito da neurose sofre com o impasse diante de dois tipos de escolhas antagônicas: desejo de devir e maldição de um gozo superegoico de não devir. O que resta de musical na fala do sujeito, que se remete à melodia do caos desprendida do simbólico, estaria a serviço primordialmente de alguma dessas escolhas? Poderia ela estar a favor de uma e depois de outra; hora pelo devir e hora pelo gozo do não devir? A musicalidade da fala pode ser pensada como indício, sinal e lembrança do que permanece inominável, mas que trabalha a favor de manifestar-se. Mas, ao mesmo tempo, podemos pensar que ela seria uma tapeação confortante que impede ou adia a força de um irrompimento, ou seja, que se empenha pelo não devir.

Diante dessa escolha enigmática do sujeito entre se deixar determinar pelo mandamento superegoico ou pelo mandamento simbólico, ele se depara com as questões da censura, que trabalham para o não advir no simbólico, e da dívida simbólica, visto que, advindo, algo permanece sem nome.

A aposta da censura é de que algo permaneça barrado da possibilidade de advir no simbólico, mas ela agiria para além desse campo? Talvez ela não possa atingir o poder do advir fora do simbólico, como o advir pela expressividade sonora, que existe para além da palavra. O caráter especial da musicalidade pode ser justamente o de deixar inábil parte do trabalho da censura. A musicalidade seria, ela mesma, aquilo que escapa à censura. Assim sendo, pensamos que a natureza sonoro-musical da fala faz alusão ao mais profundo do abismo do real, pegando carona com o simbólico manifesto pela palavra, que é cantada.

Diante da dívida simbólica que deixa o sujeito na impossibilidade de tudo nomear, ou seja, que produz um resto inominável, seria a musicalidade da fala algo que ficaria a favor de amenizar essa dívida, minimizando seus males? Produzir algo com o resto que escapa à palavra seria uma forma de abater ao menos o juros dessa dívida, tornando-a suportável.

 

5 A voz na análise

Segundo Didier-Weill (1997b), o simbólico tem êxito parcial, pois existe um mal-dizer, na origem estrutural, que nunca cessa de contestar o sentido. O analista supõe sempre esse maldizer associado à palavra. Na fronteira entre o real e o simbólico há continuidade, quando o real é levado à existência pela nomeação, e descontinuidade, quando o monstruoso permanece sem nome. Há também dessimetria, pois o falar é falar esquecendo o olho da consciência, mas sendo enganado por este outro que é inconsciente.

Diante desse contínuo e descontínuo do real com o simbólico, o ato analítico contempla o querer saber e o saber que não se saberá, uma aproximação e um distanciamento sustentados pela aposta do amor de transferência. O analista se ampara nas intermitentes questões: Onde está o real, o monstruoso sem nome? Quais os significantes que deixam o sujeito traumatizado e siderado, sem voz?

Maurano (2015) reflete sobre a musicalidade da fala e o som como sua dimensão fundamental para destacar a primazia do significante sobre o significado, importante na regra da Psicanálise, em que o sujeito é convocado a dizer. A potência da musicalidade da voz na fala leva o sujeito a entranhar profundamente em terreno impossível de ser acessado de outra forma. O trabalho analítico precisa abrir espaço a essa musicalidade da fala para enfrentar o horror suscitado no endereçamento ao real, o que pode acontecer de forma transfigurada, dando voz a ele, enunciando-o. A entonação escutada revela o gozo decantado da forma como o sujeito suporta os efeitos da fala. Como também diz Didier-Weill (1997b, p. 75), "o modo de desvelamento da Coisa se submete à maneira como seu velamento é estruturado".

É pela musicalidade da fala que o gozo, refreado pela palavra, se torna audível ao próprio sujeito que fala e ao que o acompanha. Existe uma cantarolagem analítica na qual o analista também se utiliza dos recursos da dimensão melódica para sua intervenção, em que a modulação da voz se faz fundamental. A presença do analista colocada enquanto voz, enquanto aquele que também canta uma melodia, anuncia a alteridade, uma outra voz.

A musicalidade porta algo que o analista deve se atentar, mesmo que ela não diga pelo viés do sentido e, portanto, não se coloca à interpretação, tal como a palavra. Corso (2015, p. 52) coloca que "o analisando traz para a análise a voz primeira do Outro que o habita e que participou de sua constituição como sujeito". A relação que o sujeito tem com sua música revela a sua condição determinante de relação com o Outro. Essa musicalidade, que não passa batida pelo analista, pode auxiliar na análise dizendo algo desse sujeito, mesmo que seja da sua resistência.

 

6 Considerações finais

Embora a palavra imponha um limite, ela nunca se apresenta sozinha, pois porta o componente sonoro, que se faz material de análise necessário à construção do trabalho clínico e à promoção de uma mudança na posição do sujeito frente aos desígnios de seu desejo. Enquanto cantarola em sua fala, o sujeito se faz ouvir na sua posição subjetiva por esses vestígios musicados. Sou onde não falo, canto. Esse resto de lalangue que permanece no ato de falar de algum modo pode servir à análise. Esta é a especificidade do processo psicanalítico, a inclusão da categoria do real e da posição do sujeito frente a ele.

 

Referências

Azevedo, R. M. (2008). A voz como objeto a e a separação do sujeito frente ao Outro. In Trabalhos completos de mesas redondas do III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e IX Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. Recuperado em 20 janeiro, 2017, de http://www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/iii_congresso/mesas_redondas/a _voz_como_objeto_a_e_a_separacao_do_sujeito_frente_ao_outro.pdf.         [ Links ]

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Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage.         [ Links ]

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Didier-Weill, A. (1997b). Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical (A. M. Alencar, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Obra original publicada em 1995).         [ Links ]

Maurano, D. (2015). A perspectiva "musicante" da voz na Psicanálise ou notas sobre o ditirambo psicanalítico. In M. M. Dias (Org.). A voz na experiência psicanalítica: III Jornada Seminário Fundamentos da clínica do psicanalista pelas psicoses (pp. 87-106). São Paulo: Zagodoni.         [ Links ]

Vivès, J. M. (2009). Para introduzir a questão da pulsão invocante (J. M. Haddad, Trad.). Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 12(2), 329-341. Recuperado em 13 agosto, 2013, de http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/revistas/volume12/n2/ para_introduzir_a_questao_da_pulsao_invocante.pdf.         [ Links ]

Vorcaro, A. (1999). Crianças na Psicanálise, clínica, instituição e laço social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

 

 

1 As referências feitas à música serão consideradas aqui não como o resultado da produção musical artística, como obra, mas como aquilo que tem a ver com a musicalidade e com as questões das expressões sonoras.

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