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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.14 São João del Rei Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Precária ontologia: a subjetividade entre Psicanálise e dialética

 

Precarious ontology: the subjectivity between Psychoanalysis and dialectic

 

Précaire ontologie: la subjectivité entre Psychanalyse et dialectique

 

Precaria ontología: la subjetividad entre Psicoanálisis y dialéctica

 

 

Pedro Sobrino LaureanoI; Jô GondarII

IDoutor e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Professor adjunto da UFSJ-DPSIC. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ (PPGPSI)
IIPsicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. doutora em Psicologia pela PUC-Rio. Professora titular da Unirio, atuando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Vice-presidente do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. É autora, entre outros livros, de Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (em parceria com Eliana Reis, Ed. 7Letras)

 

 


RESUMO

Procuramos desenvolver, neste artigo, algumas teses comuns à Psicanálise e à dialética, principalmente à respeito da centralidade que ambas conferem à categoria de contradição. Dessa forma, nos utilizamos de interpretações recentes de Hegel, que afirmam que, para o filósofo alemão, não se trata de resolver a contradição em uma nova identidade, mas sim de afirmá-la como causa mesma do processo dialético. Nesse sentido, observamos relações possíveis entre conceitos freudianos fundamentais, como os de inconsciente e ambivalência, e alguns marcos da Filosofia de Hegel.

Palavras-chave: Ontologia. Dialética. Psicanálise. Subjetividade.


ABSTRACT

In this article we have tried to develop some theses that are common to psychoanalysis and dialectics, especially regarding the centrality that both confer to the category of contradiction. Thus, we use recent interpretations of Hegel, who claim that, for the German philosopher, it is not a matter of resolving the contradiction in a new identity, but of stating it as the very cause of the dialectical process. In this sense, we observe possible relationships between fundamental Freudian concepts, such as those of the unconscious and ambivalence, and some milestones of Hegel's philosophy.

Keywords: Ontology. Dialethics. Psycoanalysis. Subjectivity.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous avons essayé de développer certaines thèses communes à la psychanalyse et à la dialectique, en particulier en ce qui concerne la centralité qui confère à la catégorie de la contradiction. Ainsi, nous utilisons les interprétations récentes de Hegel, qui prétendent que, pour le philosophe allemand, il ne s'agit pas de résoudre la contradiction dans une nouvelle identité, mais de l'affirmer comme étant la cause même du processus dialectique. En ce sens, nous observons des relations possibles entre des concepts freudiens fondamentaux, tels que ceux d'inconscient et d'ambivalence, et certains jalons de la philosophie de Hegel.

Mots-clés: Ontologie. Dialectique. Psychanalyse. La subjectivité.


RESUMEN

En este artículo hemos tratado de desarrollar algunas tesis comunes al psicoanálisis y la dialéctica, especialmente con respecto a la centralidad que ambas confieren a la categoría de contradicción. Por lo tanto, utilizamos interpretaciones recientes de Hegel, quien afirman que, para el filósofo alemán, no se trata de resolver la contradicción en una nueva identidad, sino de declararla como la causa misma del proceso dialéctico. En este sentido, observamos posibles relaciones entre conceptos freudianos fundamentales, como los del inconsciente y la ambivalencia, y algunos hitos de la filosofía de Hegel.

Palabras clave: Ontología. Dialéctica. Psicoanálisis. Subjectividad.


 

 

A obra de Hegel assiste, em tempos recentes, a uma retomada após as circunstâncias que, no século XX, a haviam relegado a uma espécie de tabu filosófico. De fato, segundo Zizek (1991), Hegel constituiu uma espécie de índice negativo universal para a Filosofia do século XX. Do marxismo, que enxerga seu sistema como idealista, procurando inverter a dialética e "colocá-la sobre seus próprios pés", ao positivismo lógico do círculo de Viena, que encarou a "lógica" desenvolvida por Hegel como um retorno à metafísica após os interditos de Kant, passando pelas diversas correntes pós-estruturalistas, Hegel fora apresentado como o Filósofo a ser superado, quando não meramente relegado como apanágio histórico, testemunho de uma época metafísica que deveria ser superada.

Entretanto, é verdade que, atualmente, assistimos a uma espécie de retorno multivariado à dialética hegeliana. Tal retorno pode ser retraçado a partir das diversas escolas, como o pragmatismo norte-americano, que buscaram apresentar a Filosofia de Hegel retirando seus argumentos ontológicos mais "fortes", e compreendendo-a como uma Filosofia do reconhecimento atada a um conceito pós-kantiano de subjetividade.

Por outro lado, assistimos a um retorno a Hegel que procura constituir-se como um retorno à radicalidade das teses hegelianas acerca da ontologia. Podemos citar aqui a contribuição de filósofos como Slavoj Zizek (1991), Frank Ruda (2011) e Fredrik Jameson (1991). No Brasil, da mesma forma, por meio de autores como Vladmir Safatle (2005) e Christian Dunker (2011), assistimos à utilização das teses de Hegel como fundamentais para a compreensão de temas como o sujeito e o reconhecimento.

Em relação à Psicanálise, encontramos hoje o campo de articulação entre Psicanálise e Filosofia, principalmente, mediante autores do chamado pós-estruturalismo, como Foucault e Deleuze. Dessa forma, encontramos em Birman (2001), por exemplo, a articulação entre Freud e Foucault, assim como assistimos à tentativa de compreensão da Psicanálise e de sua clínica por intermédio da Filosofia de Spinoza, marcada pela leitura deleuziana do filósofo holandês (Peixoto Júnior, 2009).

Ora, nesse sentido, talvez possamos encontrar em Hegel e na dialética outro caminho para a compreensão da Psicanálise, um caminho de articulação capaz de contribuir, igualmente, para as questões clínicas. Propomos, então, neste artigo, investigar algumas das teses da Filosofia hegeliana, em sua articulação possível com a Psicanálise. Para tanto, será preciso, em um primeiro momento, nos perguntarmos pela constituição de um campo "dialético" do pensamento, para que possamos nos debruçar, posteriormente, sobre algumas das teses de Hegel acerca da subjetividade.

 

A dialética como campo

O que significa sustentar a ideia de que a dialética constituiria um "campo"? Ora, pensamos que se trata de um campo no sentido de que a dialética inaugura uma determinada forma de pensar e de fazer Filosofia, constituída pelo corte operado por Hegel (1992) a respeito da Filosofia anterior. Foucault (1966) refere-se, em um artigo célebre, a autores como Freud e Nietzsche como instauradores de discursividade; tratam-se de autores capazes de inaugurar certo campo de pensamento e que não poderiam, assim, ser meramente superados, já que suas obras inauguram posições, perspectivas irredutíveis à mera negação por outras escolas.

Poderíamos acrescentar, a Freud e Nietzsche, também a dialética hegeliana nesse rol de autores? Pensamos que sim, se compreendermos que Hegel funda uma determinada perspectiva de pensamento. Pode-se preferir outras, pode-se descartá-la baseando-se em argumentos éticos ou filosóficos, mas tal perspectiva inaugura um discurso capaz de reconhecer e inscrever filosoficamente uma determinada forma de pensar.

Quando argumentamos que a dialética seria um campo, pensamos aqui nos autores que, de alguma forma, tiveram na dialética um ponto fundamental de diálogo e pesquisa: desde os chamados "hegelianos de esquerda" até a escola de Frankfurt, passando pela retomada da dialética no pensamento de Sartre e em filósofos como Alexander Kojéve (2002). Também é verdade que, nos primeiros momentos de seus seminários, Lacan (1987) fora fundamentalmente marcado pela dialética, principalmente pela leitura realizada por Kojéve.

O que nos permite, então, traçar um denominador comum a esse "campo" da dialética? De fato, podemos perceber que se trata de autores e escolas fundamentalmente heterogêneos, diversos. Entretanto, aquilo que nos parece constituir a base comum da dialética, independentemente de sua multivariada herança, é certo reconhecimento do problema lógico e ontológico da contradição, e da centralidade dessa categoria na compreensão da subjetividade.

Para adentrarmos nas questões trazidas por Hegel, e para que possamos, posteriormente, trazer a Psicanálise para nossa discussão, podemos partir, então, das reflexões do filósofo e lógico Graham Priest acerca do que ele chama de dialeteia.

 

Priest e o problema das aporias filosóficas

Graham Priest é um Filósofo e lógico australiano que, com outros autores, inventou uma nova lógica denominada "dialeteia". A ideia de Priest (2002) é que seria possível construir um sistema lógico que aceitasse contradições sem que, para isso, a integralidade do sistema fosse ameaça e todos seus enunciados se tornassem triviais, isto é, ao mesmo tempo verdadeiros e falsos. A criação da dialeteia insere-se em uma tentativa de inscrever algumas das intuições de Hegel em sistemas lógicos plenamente formalizados, tentativa que pode ser encontrada também na criação da lógica paraconstistente pelo brasileiro Newton da Costa.

O que nos interessa para nossa argumentação é uma observação, desenvolvida por Priest em seu livro Além dos limites do pensamento (2002), acerca da presença constante, até mesmo estrutural, de paradoxos ou1 no discurso filosófico. Poderíamos dizer, a partir de Priest, que o discurso filosófico seria especialmente caracterizado pela presença de contradições lógicas, e isto por uma razão simples: ao buscar pensar a totalidade, ou seja, a ontologia, a Filosofia se depara sistematicamente com contradições aparentemente insolúveis, contradições que aparecem sempre que se busca, de alguma fora, pensar o problema da totalidade.

Priest afirma que a dialética hegeliana é a primeira a reconhecer plenamente tal caráter contraditório do discurso filosófico e a buscar sistematizá-lo. Isso não significa, é claro, que Hegel detenha a última palavra sobre esse problema, e Priest, parodiando Marx, chega mesmo a argumentar que seria preciso destacar o "núcleo racional da dialética hegeliana". No caso de Priest e do dialeteismo, tal núcleo racional equivale à busca por construir uma lógica formal capaz de pensar o caráter produtivo que a contradição assume na dialética.

Segundo Priest as condições formais para que contradições verdadeiras sejam produzidas é as de que, ao mesmo tempo, tenhamos uma totalidade e um objeto que se encontra dentro e fora dessa mesma totalidade.

Em cada um destes casos existe uma totalidade (de todas as coisas exprimíveis, descritíveis, etc.) e uma operação apropriada que gera um objeto que está ao mesmo tempo dentro e gora desta totalidade. Chamarei estas situações de Clausura e Transcendência, respectivamente. (Priest, 2002, p. 4)

Sendo assim, aquilo que é capaz de gerar uma contradição verdadeira é chamado por Priest (2002, p. 5) de Auto-referência. Ora, como Hegel observou, a característica básica da consciência, do pensamento consciente, pode ser descrita justamente por meio dessas condições pelas quais contradições verdadeiras são produzidas: por um lado, uma totalidade, a do pensamento consciente; por outro, um objeto que está ao mesmo tempo dentro e fora dessa totalidade: a própria consciência, que, ao refletir a si mesma, separa-se de si mesma.

Dessa forma, a consciência poderia ser caracterizada tanto pelo que Priest chama de "clausura" - trata-se de uma propriedade sistêmica, no sentido de que ela fecha-se sobre si mesma - quanto pela "transcendência". Isto é, a consciência é autorreferente, o que faz com que ela possa ser pensada como contraditória.

De fato, para Hegel, a subjetividade é necessariamente contraditória, dividida. Não estamos longe aqui, como buscaremos argumentar mais adiante, da ideia de Freud (1900/2006) de que a subjetividade apenas poderia ser compreendida por meio de uma divisão da consciência, entre consciência e inconsciente. Isto é, como Foucault já havia argumentado em seu As palavras e as coisas (1966), o inconsciente seria uma consequência inerente de certo "fracasso" de inscrição da consciência "dentro de si mesma", fracasso constitutivo da reflexividade inerente ao ato de se estar consciente de si mesmo. Freud teria seguido tal fracasso até suas últimas consequências, ao propor o conceito de inconsciente.

Ora, uma leitura "sintomática" do discurso filosófico poderia ser capaz, então, de mostrar como tais aporias nascem dentro da Filosofia mas, da mesma forma como esta busca contorná-las. Podemos trabalhar brevemente, aqui, o exemplo da Filosofia de Aristóteles, tal como Priest a aborda. O sistema de Aristóteles (2001) obedece, igualmente, a estes dois critérios que provocam o surgimento de uma contradição verdadeira: clausura, transcendência e, consequentemente, autorreferência. Como isso ocorre?

Primeiramente, devemos observar a forma como o conceito de ser aparece na Filosofia aristotélica, constituindo um ponto polêmico amplamente debatido. Como observara Etiénne Gilson (2007), tal aparecimento é problemático, já que Aristóteles, buscando pesar a totalidade dos entes a partir do pressuposto de uma hierarquia entre gêneros e espécies, supõe o ser como conceito "máximo", o conceito último da hierarquia, o conceito mais geral e mais indeterminado. Entretanto, o ser também deve aparecer nos diversos gêneros e espécies que constituem a hierarquia ontológica, e aos quais "ser" é atribuído como um predicado: a pedra é um mineral, o homem é um animal racional, Paulo é um homem, etc.

Parece que encontramos, aqui, um problema, já que o ser se expressa conforme dois modos, ou vozes: primeiro, como categoria máxima e, segundo, conforme ele se apresenta nos gêneros e espécies. Isso ocorre porque, como observou Gilson, o ser não pode ser pensado como gênero maior, já que, se o fosse, ele seria atribuído de si mesmo como espécie. Isto é, o ser seria, ao mesmo tempo, universal e particular.

Se a hierarquia de gêneros e espécies distribui os entes conforme uma escala que vai do particular ao geral, um gênero mais baixo termina por desempenhar a função de espécie para um gênero mais alto. Por exemplo, homem é gênero em relação ao indivíduo particular, mas é espécie em relação ao gênero mais amplo, "animal". O problema do conceito de ser, entretanto, é o de que se admitirmos que os entes são suas espécies, segundo a hipótese de que o ser seria um gênero máximo, teríamos uma categoria - a de ser - que seria ao mesmo tempo gênero e espécie, universalidade e particularidade. Isto é, teríamos uma categoria que inclui a si mesma entre os predicados que ela abrange. Tal inclusão gera, no entanto, uma contradição: o ser seria ao mesmo tempo universal e particular, seria distinto de si mesmo.

A "solução" de Aristóteles para esse problema foi, como aponta Deleuze, propor a interpretação do ser por intermédio da categoria de equivocidade (Deleuze). Segundo esta, o ser se diria de forma distinta conforme o tomemos como categoria ou conforme ele é repartido entre gênero e espécie. Tal distinção seria uma petição de princípio, não podendo ser racionalmente demonstrada: existiria o ser como categoria, o ser da univocidade e da totalidade, por um lado, e o ser das espécies, aquele que é atribuído equivocadamente à diversidade dos entes, por outro. E a relação entre ambos seria, para Aristóteles, de analogia.

Ora, segundo Priest, este paradoxo relacionado ao conceito de ser não poder ser negado e os artifícios utilizados por Aristóteles para escamotear a contradição seriam inteiramente arbitrários, sem nenhuma justificativa racional. Na verdade, o que essa aporia encontrada no conceito central da ontologia aristotélica demonstraria é a ideia de que o ser é, justamente, contraditório, e que, portanto, a totalidade aristotélica, a constituição de sua metafísica, é inconsistente segundo seus próprios critérios.

A reflexão de Aristóteles obedece aos dois parâmetros que, como vimos, são elencados por Priest como característicos do pensamento dialético: por um lado, trata-se de um sistema fechado sobre si mesmo, isto é, uma totalidade; por outro, há um elemento que está e não está incluído nessa totalidade, que é incluído como excluído: justamente o conceito de ser, que constitui um ponto cego inerente à hierarquia ontológica. Dessa forma, também encontramos a terceira característica designada por Priest, a autorreferência. O sistema é autorreferente, na medida em que seu conceito central, o de ser, refere-se a si mesmo, desdobrando-se, dividindo-se, como universal e particular.

Certamente, o caso de Aristóteles é apenas um exemplo, mas Priest, em seu livro, segue para demonstrar como em outros filósofos encontramos o mesmo problema sistematicamente posto e recusado, aparecendo no interior do pensamento para ser em seguida sistematicamente negado.

Em Hegel, a possibilidade de reconhecimento dessas contradições é prenhe de consequências para o pensamento, inaugurando a dialética. Primeiramente, Hegel procura criticar toda forma de pensamento que se separa da contradição, que busca eliminá-la como uma espécie de erro lógico. Em seguida, o filósofo busca construir um sistema de pensamento no qual a contradição é incluída como elemento central.

Não procuraremos, entretanto, desdobrar a diversidade de temas que encontramos em Hegel acerca do papel desempenhado pela contradição, mas sim compreender, agora, algumas das implicações desse pensamento na Psicanálise. Para isso, investigaremos aquilo que é proposto por Hegel como movimento dialético de superação das oposições conceituais.

 

Totalidade?

O pensamento ontológico de Hegel assume, como vimos, as consequências de que o ser, como totalidade, é necessariamente contraditório. Essa ontologia supõe a introdução de uma negatividade no ser, uma cisão que é consequência de sua autorreferência.

Essa torção do ser sobre si mesmo corresponde, então, a uma contradição que não pode ser "curada" por nenhum "passe de mágica" dialético capaz de transformação, a contradição em uma nova identidade. Isto é, o motor do movimento dialético não constitui na construção de uma nova identidade capaz de integrar os opostos -ser e não ser, por exemplo -, mas também todas as oposições que a lógica hegeliana desdobra em sua construção, como: essência e aparência, determinado e indeterminado, sujeito e objeto, etc.

Aquilo que Hegel (1992) busca com o movimento dialético é justamente chegar ao reconhecimento da contradição como causa do processo, integrar o contraditório como plenamente racional, o avesso inerente à razão, seu pressuposto imanente, que não pode ser excluído no processo.

Isto é, a respeito da famosa "síntese dos contrários" que Hegel (1992) pede, como movimento próprio da Razão (vernunft), trata-se, não da construção de uma nova identidade em que o contraditório é superado, ou suprassumido (aufhebung), mas sim da constatação de que a síntese - o movimento de reconciliação da contradição -já é realizada na própria contradição. Não há nenhum "passo a mais", no sentido de superar o que, na realidade (e no sujeito) se coloca como contradição, portanto, a não ser seu próprio reconhecimento; isto é, trata-se de operar uma identificação que não é realizada com nenhum aspecto positivo do ser, mas sim com a própria contradição. Outra maneira de colocar essa tese é de que a contradição, em vez de ser expulsa do pensamento como irracional, se torna uma espécie de causa sui, causa de si mesma.

Aqui observamos também a influência estoica de Hegel: o estoicismo, como nos lembra Deleuze, constitui-se como uma ética do acontecimento; este, segundo os estoicos, não concerne um estado de coisas determinado, a materialidade fixa dos corpos, mas sim a "algo que acontece, no que acontece" (Deleuze, 2007, p. 92). A ética estoica não muda nada na "realidade", mas afirma alguma coisa na própria realidade, uma mudança que concerne à forma como se vive o real, e não à realidade nela mesma, o que Deleuze, em a lógica do sentido, associa ao tema nietzschiano do amor fati: o amor pelo que acontece, a união entre fatalismo e liberdade. Na obra hegeliana, trata-se de um amor pelo caráter contraditório da própria realidade, em que o sujeito não busca curar a contradição que lhe habita, ou usá-la "produtivamente", mas sim afirmá-la integralmente.

Assim sendo, Hegel chama de "entendimento" (vestand) ao pensamento pautado em dicotomias e oposições conceituais, e que não consegue pensar além desses limites gerados pela concepção de que a identidade e a diferença seriam exteriores. Trata-se do pensamento para o qual ou alguma coisa é má, ou ela é boa, ou algum grupo político é revolucionário, ou é conservador, etc. Esse pensamento, pautado pela necessidade do reconhecimento da repartição absoluta entre identidade e diferença, enxerga o contraditório como figura maior da húbris epistemológica, mas também moral e política.

Ora, a parte final da Ciência da Lógica (2011) de Hegel constitui-se justamente pela possibilidade de superação desse rígido maniqueísmo, naquilo que Hegel denomina aufhebung, como movimento de suprassunsão das oposições conceituais; assim como, em seus outros livros de maior importância, como a Fenomenologia do espírito (1991), também trata-se de chegar a um termo, a uma finalidade do processo dialético, em que as oposições seriam superadas, e a razão fosse conduzida ao termo de seu dilaceramento. Ora, compreender o que Hegel significa por meio da ideia de "termo" do processo dialético constitui um dos temas mais controversos no legado de interpretação do hegelianismo.

De fato, o termo do processo poderá significar, meramente, a integração dos opostos na cura das fraturas do espírito, isto é, na produção de uma totalidade não mais cindida, em que os opostos seriam finalmente reunidos. Dessas interpretações Advêm, inclusive, as acusações do hegelianismo e da dialética como defensores filosóficos do totalitarismo político, já que este buscaria expulsar a negatividade da vida política, com a construção de uma comunidade una, coesa.

Certamente, o método dialético de Hegel buscou criticar todas as formas de oposição que constituem o pensamento como "oposições do entendimento", isto é, estruturas fixas que buscam exteriorizar a diferença. Entretanto, o objetivo do movimento conceitual apresentado por Hegel não é o de reconciliar essas cisões, no sentido de produzir uma totalidade capaz de expulsar a negatividade. Pelo contrário, seu objetivo é reconhecer a cisão que, para o entendimento, ainda é percebida como uma negatividade exterior; isto é, trata-se de reconhecer plenamente que a oposição já é, desde sempre, uma contradição, e que a totalidade como "unidade dos opostos" é, portanto, cindida.

Podemos dizer que é o movimento dessa contradição que dá o caráter teleológico da Filosofia de Hegel, já que se trata de uma autoteleologia, de uma finalidade estritamente imanente, uma espécie de Causa sui autorreferente. Esse movimento autotélico constitui, certamente, a tentativa de superação das oposições, mas tal superação não pode ser pensada como anulação da negatividade, mas sim como produção de uma totalidade cindida, que é idêntica a si mesma sendo distinta de si mesma.

Ora, não encontramos aqui algumas das características que podemos relacionar ao sujeito freudiano, o sujeito da Psicanálise, pensado como dividido, contraditório?

 

Psicanálise e cisão

Certamente, muito já foi dito sobre as relações entre Psicanálise e dialética. Lacan (1987), de certa forma, se utilizou da dialética tal como apresentada por Kojéve, no início de seu ensino, vindo a abandoná-la posteriormente. Entretanto, pensamos que a caracterização realizada por Kojéve do hegelianismo ainda é refém de uma interpretação "finalista" e metafísica, no sentido de que postula, por meio de ideias como "fim da história" e de figuras da consciência como aquelas do "homem sábio", o aplainamento dessa diferença interna que, segundo a interpretação que adotamos aqui, proposta por filósofos como Ruda (2011), Zizek (1991) e Priest, constituiria o sentido mais radical da dialética hegeliana.

Podemos nos concentrar, para compreendermos as relações entre dialética e Psicanálise, sobre as três características que buscamos apresentar como inerentes ao problema da contradição na dialética hegeliana, estas que, segundo Priest, seriam capazes de produzir uma contradição verdadeira. Lembremos que essas três características são apontadas pelas seguintes condições: fechamento, transcendência e, por fim, autorreferência, essa última constituindo um produto das duas primeiras.

Ora, com o conceito de inconsciente, Freud (1915/2006) não aponta, justamente, para o caráter paradoxal da consciência, para o inconsciente como o duplo, ou o avesso inerente à consciência? Segundo essa interpretação, o inconsciente não poderia ser pensado como uma "coisa" que seria exterior à consciência, algo que lhe seria oposto, mas sim como fruto da impossibilidade da consciência em fechar-se enquanto totalidade. De fato, Lacan (1987) argumenta, nesse sentido, que Freud é um herdeiro de Descartes, mesmo que busque pensar o avesso do sujeito cartesiano, este que é apresentado como idêntico a si e autoconsciente.

A reflexão sobre o problema da subjetividade a partir da consciência permite que falemos na operação de uma divisão, de uma cisão. Tal cisão apresenta-se como uma aporia lógica quando constatamos que a consciência é um sistema que apresenta ao mesmo tempo as três características elencadas por Priest como inerentes à constituição de contradições verdadeiras.

A consciência é um sistema fechado, já que busca totalizar aquilo sobre o que ela reflete, constituindo os objetos de sua reflexão como um campo, um conjunto. Entretanto, ela se mantém fora dessa mesma totalidade que busca constituir, já que, ao refletir sobre si mesma, é expulsa de si mesma, dividindo-se entre sujeito e objeto. A consciência é um movimento de reflexão virtualmente infinito, já que, ao dobrar-se sobre si, ela torna-se ao mesmo tempo idêntica e distinta de si mesma.

É nesse sentido, então, que poderíamos compreender o próprio postulado do conceito central da Psicanálise, aquele de inconsciente, como relacionado a uma contradição, uma divisão inerente à atividade consciente. O inconsciente, longe de constituir uma substância oculta ou um núcleo irracional, tem uma estrutura que, como aponta Zizek (1991), pode ser relacionada à presença de uma impossibilidade inerente à atividade reflexiva da consciência.

Daí que Freud (1915/2006) possa falar sobre um recalque original, responsável pela divisão primária da subjetividade entre consciente e inconsciente. Nossa hipótese, ao lado desses autores que, como vimos, pensam a relação entre Psicanálise e dialética, é a de que esse recalque original pode ser compreendido como movimento em que o psiquismo se constitui por um processo de cisão que o torna contraditório, constitutivamente dividido.

Tal divisão originária entre consciente e inconsciente irá se multiplicar, de fato, nas inúmeras outras que caracterizam os conceitos freudianos: sexualidade e cultura, princípio do prazer e de realidade, pulsão de vida e de morte, etc. Isto é, conforme podemos observar nos conceitos de Freud, trata-se de propor esquemas duais de compreensão do psíquico. Segundo a interpretação que propomos, não poderíamos compreender tais divisões, entretanto, como meras oposições conceituais, ou como representativas da insistência pela parte de Freud de pensar em termos maniqueístas o aparelho psíquico.

De fato, alguns autores chegam a apontar nesses dualidades que parecem caracterizar os conceitos de Freud o caráter ainda moderno de seu pensamento, no sentido de que a Psicanálise seria incapaz de pensar a subversão dessas dicotomias herdadas da modernidade. Essa é uma das críticas que, por exemplo, Jacques Derrida (2007) aponta contra a Psicanálise, nos momentos em que busca criticá-la. De certa forma, mesmo a insistência de Freud em ater-se à lei paterna, à interdição do incesto como ponto de articulação da passagem entre natureza e cultura, seria refém desse maniqueísmo, ou dualismo, que constituiria um problema central do pensamento moderno.

Entretanto, pensamos que podemos compreender essas dualidades que caracterizam o discurso de Freud não como oposições conceituais, mas sim como contradições, características de um psiquismo que é pensado por meio de um dos conceitos centrais de Freud, aquele de ambivalência. O sujeito freudiano, sendo assim, é natureza e cultura, sexualidade e civilização, pulsão de vida e de morte; não porque reúna esses polos aparentemente antagônicos em uma totalidade, entretanto, mas sim porque situa-se justamente no ponto de divisão, de torção, em que vida e morte, natureza e cultura, erotismo e civilização, são o mesmo em sua própria diferença.

A partir da característica contraditória inerente à consciência que, como vimos, pode ser pensada como totalidade fracassada, podemos afirmar que aquilo que Freud descreve não é um funcionamento dualista ou opositivo do aparelho psíquico, mas sim o movimento de um sistema dividido; de um aparelho psíquico que seria, ao mesmo tempo, divido e idêntico a si mesmo em sua própria divisão.

Podemos investigar, agora, a característica desse funcionamento do psiquismo no que diz respeito às reflexões de Freud sobre o laço social e sobre aquilo que o psicanalista chama de fantasia.

 

Grupos sociais, fantasia e ambivalência

A partir das análises acerca dos processos grupais, em textos como Psicologia das massas e análise do eu (1921/2006), Freud constata como a função do líder na constituição dos grupos é a de criar uma separação estrita entre dentro e fora, bem e mal, eliminando, assim, uma das características que a Psicanálise apontou como constituinte da subjetividade: a ambivalência afetiva. Com a identificação dos membros da comunidade ao ideal representado pelo líder, o antagonismo social é expulso; ele não divide mais uma mesma sociedade, mas estabelece um limite entre o dentro e o fora que transforma a divisão interna ao corpo social em uma divisão externa.

Zizek (1991) aponta como as ideias de Freud sobre a constituição dos grupos sociais podem ser compreendidas como uma crítica ao fantasma ideológico que constitui um determinado grupo. Segundo Zizek, essa exteriorização do limite interior significa, então, que a negatividade social é projetada em um outro. Tal projeção corresponde à interpretação dualista das relações sociais: o mundo é estruturado entre as categorias de bem e mal, dentro e fora, amigo e inimigo, normal e anormal, etc.

Obviamente, Freud mostra como essa construção é frágil, já que tal negatividade exteriorizada retorna, sempre ameaçando a coesão do grupo. De fato, o esquema de compreensão do laço social apresentado por Freud inspira-se naquele que já havia sido postulado em sua clínica, em que se trata de compreender as dinâmicas de retorno daquilo que é excluído pelo sujeito, no movimento que Freud nomeia "retorno do recalcado", e que dá origem ao sintoma como "solução de compromisso".

O que nos parece estar na base da reflexão freudiana, então, é a tentativa de compreender a forma como um sujeito ou grupo social são capazes de escamotear seu "antagonismo interno", para utilizarmos a expressão de Zizek (1991); trata-se de uma exclusão realizada por meio do movimento de negação que constitui o recalque. Em termos filosóficos, o problema da Psicanálise torna-se, então, o de criticar as compreensões dualistas sobre a subjetividade, aquelas em que a ambivalência do sujeito é anulada.

Isso nos leva a uma reflexão acerca do que Freud chama de fantasia. Ainda conforme Zizek, o conceito de fantasia na Psicanálise pode ser compreendido como a construção de uma narrativa cuja função primária é a de anular um antagonismo que não separa o sujeito de um outro, mas sim que o divide em si próprio. Ora, Zizek aponta que o modelo da fantasia, em Freud, é o complexo de Édipo, pensado como momento em que o sujeito encontra os interditos simbólicos da cultura por intermédio da fantasia que Freud (1915/2006) denomina como "complexo de castração". Trata-se da fantasia do sujeito que, ao deparar-se pela primeira vez com a diferença entre os sexos, atribui a ausência do órgão na mulher ao ato de castração paterno, ato empreendido como punição pelo desejo incestuoso.

De fato, diversos autores apontaram (Safatle, 2005; Zizek, 1991; Lacan, 1987) que o complexo de Édipo constitui, em Freud, a matriz fundamental do fantasma, que é compreendida não apenas em suas versões clínicas, mas também articulada à constituição do laço social, em textos como Totem e Tabu (1911/2006), além deste que temos abordado, o Psicologia das massas e análise do eu. Nesse sentido, poderíamos compreender o Édipo justamente como o fantasma com o qual o sujeito busca anular sua ambivalência, mas também como a forma como um grupo social busca anular seu antagonismo interior.

Como uma espécie de mitologia inconsciente, o Édipo reparte o campo da interdição e da transgressão, da natureza e da cultura, do masculino e do feminino. A narrativa básica do Édipo é a de que a interdição, promulgada pela instância de autoridade simbólica, seria responsável pela introdução de um limite ao qual o sujeito teria de se adequar, sob pena de transgressão incestuosa do pacto civilizatório. A fantasia edipiana se articularia, sendo assim, à ideia de que o sujeito deve renunciar à transgressão, ao incesto, sob pena de ser mutilado - aquilo que Freud denomina, a partir da experiência clínica, de "ameaça de castração.

Ora, tal narrativa pode ser pensada como uma fantasia justamente devido ao caráter de exterioridade em que ela mantém termos que, na verdade, se constituem a partir de uma mesma operação.2 Natureza e cultura, por exemplo, não emergem em momentos distintos, sendo a cultura um avanço em relação ao natural. Natureza e cultura nascem concomitantemente; é apenas pela emergência de algo a que chamamos cultura que emerge, retroativamente, a ideia de um polo oposto que seria aquele da "natureza". Da mesma forma, a interdição e a transgressão não são exteriores, mas criadas em um mesmo movimento, em que a Lei proíbe e produz, fabrica o mesmo objeto que ela proíbe - daí o problema da aporia do superego, pensado por Freud (1923/2006) como agente de proibição, mas também de incitação, do gozo proibido pela lei.

Dessa maneira, para a Psicanálise a crítica da fantasia constitui-se como possibilidade de atravessar a estrutura edipiana, no sentido de desarticular essas dicotomias que a fantasia infantil do complexo institui. A fantasia, por exemplo, de que lei e transgressão seriam exteriores, ou de que mulheres e homens constituem dois gêneros separados pela presença ou ausência do falo. O que vemos com Freud é que o sujeito é, ao mesmo tempo, natureza e cultura, masculino e feminino, consciente e inconsciente, etc. Ele pode ser identificado, de certa forma, por sua própria divisão.

Por isso, é no retorno daquilo que é expulso pela fantasia que podemos flagrar a ação do que Freud chamou de inconsciente; por exemplo, no momento de queda do Édipo (Freud, 1924/2006), quando o sujeito deveria pretensamente haver renunciado ao objeto incestuoso, mas esse objeto continua "presente", mas agora como fantasma inconsciente. Esse fantasma perverso que Freud enxergou como um dado fundamental da neurose não seria nada mais, portanto, que o avesso inerente à lei, isto é, a transgressão postulada como dever. Tal presença revela que a lei e a transgressão constituem-se em um mesmo movimento, movimento que articula uma unidade entre essas categorias aparentemente opostas.

De fato, Freud (1925/2006) sempre apontou como o desenvolvimento da subjetividade implica na possibilidade do sujeito em reconhecer a ambivalência como marca fundamental de sua relação consigo mesmo e com os outros. A criança, coloca o psicanalista em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/2006), parte de uma visão dicotômica da realidade, que a divide entre o eu-prazer e o eu-realidade, constituindo esse último a instância psíquica capaz de suportar o desprazer. Como aponta no artigo A negativa (1925/2006), no começo da vida psíquica, todo prazer é interior, e o desprazer é exteriorizado. Tal construção deveria, então, ser superada devido à possibilidade do sujeito de reconhecer na ambivalência - na capacidade de amar e odiar, por exemplo, um mesmo objeto -, uma marca fundamental das relações humanas.

Ora, propomos que essa possibilidade de crítica ao fantasma como assunção da ambivalência, na Psicanálise, pode ser associada ao movimento que Hegel insistentemente pede em sua Filosofia, aquele em que, como vimos anteriormente, o pensamento é capaz de superar a perspectiva do entendimento (verstand) em prol da Razão (Vernunft). De fato, observamos como a diferença entre entendimento e razão, para Hegel, se relaciona à necessidade que o entendimento tem de pensar sempre por meio de oposições conceituais, enquanto a razão seria capaz de pensar o antagonismo interno, a dualidade como parte de uma mesma unidade.

Sendo assim, realiza-se a passagem àquilo que o filósofo chama de negação da negação. Esta constitui no retorno da negatividade excluída, exteriorizada, seja no sintoma neurótico, em um outro parceiro, seja em um objeto-fetiche; tal negatividade passa, então, a apresentar-se como negação interna, uma divisão inerente à própria subjetividade.

 

Conclusão

Propusemos, neste artigo, a possibilidade de pensar as relações entre dialética e Psicanálise por intermédio de uma leitura que aproxima o conceito de contradição, central ao hegelianismo, a conceitos freudianos como os de ambivalência e complexo de Édipo, além da própria distinção entre consciente e inconsciente. De fato, nossa leitura, baseando-se em filósofos como Zizek, Priest, e nos desdobramentos da Psicanálise tais como estes podem ser encontrados em alguns aspectos da obra de Lacan, baseia-se no pressuposto que uma determinada leitura da dialética pode ser criticada para que tal aproximação seja possível.

A questão coloca-se acerca da interpretação daquilo que viria a representar a "síntese" dialética, relacionada ao problema da totalidade. De fato, algumas das principais críticas ao pensamento de Hegel são colocadas a partir da forma pela qual a dialética pensa o problema da totalidade. Hegel teria elaborado, nesse sentido, uma Filosofia que buscaria curar as cisões históricas impingidas ao sujeito na modernidade, buscando restaurar sua unidade.

Tais cisões revelar-se-iam no processo de separação que sofre a subjetividade, fragmentada em múltiplas oposições, devido à emergência do individualismo moderno. O sujeito vê-se, então, separado da natureza e da totalidade social, tornando-se alienado, separado de sua relação imediata, tanto com os objetos naturais quanto com a estrutura social.

Ora, mas segundo a interpretação que investigamos, existiria outra forma de compreensão da dialética. Nessa outra forma, a cisão provocada pela modernidade não seria o índice da perda de uma relação imediata com a natureza, relação que poderia ser vagamente relacionada à história pré-moderna e às sociedades "primitivas". Pelo contrário, a ideia de uma relação imediata que haveria sido perdida constituiria, antes, uma ilusão retrospectiva. Para Hegel, a modernidade apenas evidencia, explicita, algo que já constitui a determinação ontológica do sujeito, isto é, a negatividade que lhe determina.

Dessa forma, aquilo que Hegel evidencia como movimento próprio à dialética não é o retorno a uma unidade perdida devido à irrupção da separação, a cura das feridas do espírito a partir do processo de separação entre o sujeito e o mundo. Pelo contrário, o objetivo fundamental da dialética, expresso no movimento que Hegel, chama de negação da negação, é radicalizar tal negatividade, isto é, eliminar a ilusão de que teria havido, em um tempo histórico anterior, uma relação imediata, não marcada pelo negativo, entre sujeito e mundo. Outra forma de dizer que a síntese hegeliana não se constitui como tentativa de superação do contraditório, mas sim de seu reconhecimento, ou de sua afirmação, portanto.

Radicalizar tal negatividade significa reconhecer que as oposições que a subjetividade ainda experimenta como exteriores, essas oposições que a dilaceram, já são contradições, partes de uma mesma totalidade cindida. Trata-se de um movimento em que a diferença exterior, opositiva, característica da maneira como o entendimento pensa, é transformada em uma diferença interior ao sujeito. Nesse sentido, a totalidade dialética não se constitui por meio da expulsão da negatividade, mas sim na produção de uma totalidade fracassada, contraditória.

Ora, tais ideias nos autorizariam a pensar a relação entre a dialética e a Psicanálise, na medida em que podemos observar, também em Freud, uma crítica das oposições e dualismos. Tal crítica também não busca pensar o processo clínico ou histórico como marcado pela reconstituição de uma totalidade perdida. Pelo contrário, a clínica psicanalítica, utilizando conceitos como os de fantasia, pode ser capaz de criticar as tentativas do sujeito em retornar a uma relação imediata, identitária, consigo, tentativas relacionas à busca, pelo sujeito, da negação de sua divisão, como aquela entre consciência e inconsciente.

De fato, como testemunha maior da divisão subjetiva, a distinção entre consciência e inconsciente é, para Freud, irredutível. Por isso, ao final do processo clínico na Psicanálise, o sujeito pode ser capaz de assumir sua própria divisão, aquilo que Freud, em seu último artigo publicado, chama de spaltung do ego.

Nessa direção, parece que encontramos movimentos convergentes, tanto na Psicanálise quanto na dialética, pois a resultante desses processos, em ambos os casos, diria respeito à possibilidade de reconhecimento da contradição como foram de superação das oposições conceituais, contradição que passa a ser instituída como causa do sujeito.

Como coloca Priest (2002, p. 7) sucintamente, em um trecho que sintetiza a ideia que buscamos articular neste artigo, "Um entendimento mais amplo de filosofias, assim como de pessoas, pode ser obtido à luz daquilo que foi reprimido".

Ora, o que é reprimido, tanto nos exemplos da Filosofia que Priest trabalha quanto para a própria Psicanálise, quando esta procura debruçar-se sobre os mecanismos inconscientes, não é algum conteúdo específico, alguma característica particular do sujeito, mas sim a contradição, a ambivalência que o constitui.

Criticar a fantasia seria reconhecer o caráter não ultrapassável da ambivalência primária que a Psicanálise identifica no sujeito, e que Freud denomina "recalque originário", aquele em que se produz a própria diferença entre consciente e inconsciente. Movimento por meio do qual a Psicanálise poderia encontrar, então, alguns dos pressupostos da dialética tal como estes foram pensados por Hegel.

 

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1 Não nos aprofundaremos, neste artigo, sobre as diferenças entre os conceitos de paradoxo, contradição e aporia. Entretanto, um lógico como Priest (2002) afirma que as diferenças entre contradição e paradoxo são, na realidade, mais históricas do que epistemológicas, já que o que caracteriza a contradição é que ela, ao contrário do mero erro, pode ser demonstrada; isto é, trata-se de um fracasso imanente à própria razão, e não de algo que lhe seria exterior. Priest argumenta, então, que, em termos formais, contradição e paradoxo são idênticos, já que em ambos os casos trata-se de destituir o princípio de identidade, como quando algo é ao mesmo tempo afirmado e negado de um mesmo objeto.
2 Lévi Strauss (2003) já havia notado, em sua obra, que os mitos são construções aptas a fornecer respostas a questões impossíveis de serem resolvidas e, no processo, instituir o pacto simbólico da comunidade em torno de um "ilusório" sucesso na resposta dessas questões, como as sobre a origem da vida e da morte.

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