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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.14 São João del Rei Jan./June 2019

 

RESENHA

 

A feminilidade na Psicanálise: Freud, Lacan e outros psicanalistas

 

 

Raul Albino Pacheco Filho

Psicanalista AME da EPFCL-Brasil. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, onde coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública. Psicólogo (PUC-SP). Mestre e Doutor em Psicologia (USP). Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP, atuando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade, e no Curso de Graduação em Psicologia, onde coordena o Núcleo de Psicanálise: Práticas Clínicas e Saúde

 

 

Resenha de Prates, A. L. (2019). Feminilidade e experiência psicanalítica. São Paulo: Larvatus Prodeo. (Coleção Heresia Lacaniana).

Pela relevância do tema e pela qualidade do tratamento que lhe é dado, o livro de Ana Laura Prates foi uma excelente escolha para inaugurar a Coleção Heresia Lacaniana, da recém-surgida Editora Larvatus Prodeo: três comemorações de uma só vez, neste ano de 2019. Nele se encontra um percurso rigoroso e consistente de como a feminilidade foi abordada teoricamente na Psicanálise - por Freud, por psicanalistas contemporâneos e posteriores a ele e, especialmente, por Lacan -, além de uma análise das implicações, para a clínica psicanalítica, dessas distintas formulações. A questão central é "A Mulher: não existe?" e, como diz a autora, a noção lacaniana d'A Mulher "possibilitou uma articulação teórica do incômodo que percorre o tema da sexualidade feminina", além de viabilizar a discussão do que seria "um final de análise para além da rocha da castração e, portanto, sobre a posição do analista na direção da cura" (p. 51).

Um aspecto essencial que não poderia deixar de ser trabalhado é o porquê do rompimento definitivo, em se tratando da sexualidade humana, da complementaridade entre macho e fêmea, que, no âmbito do mundo da natureza animal, sempre esteve a serviço da procriação e manutenção da espécie. "De que ordem seria essa ruptura foi o ponto fundamental que motivou a escrita deste livro" (p. 37).

A epígrafe do capítulo 1 do livro, extraída dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1981), já coloca na mira a originalidade subversiva da concepção psicanalítica sobre o sexual: "Provavelmente, a pulsão sexual é um princípio independente de seu objeto e não deve sua origem às excitações emanadas dos atrativos do mesmo" (p. 53). Aí estão a independência e a margem de liberdade que fazem do sexual o epicentro dramático da vida do bicho homem e do bicho mulher. É isso que faz Lacan afirmar, no Seminário 23, que "toda sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o que Freud diz" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 149).

Sem pretender esgotar o assunto, o capítulo 1 percorre a rota da história da construção do conceito de sexualidade, em Freud. Nesse percurso, a autora não se furta a oferecer seu próprio entendimento sobre passagens e aspectos ambíguos das proposições freudianas, como a aparente antinomia, que existe entre a hipótese da bissexualidade original e a descoberta da primazia fálica. A autora propõe entendê-la como já decorrente de uma tentativa freudiana de caracterizar diferenças entre as posições sexuais masculina e feminina.

O capítulo 2 oferece um breve percurso das discussões que as teorizações de Freud sobre a feminilidade despertaram entre os membros do movimento psicanalítico, nas décadas seguintes. O critério para a escolha dos autores (Karl Abraham, Karen Horney, Helene Deutsch, Ernest Jones, Melanie Klein, Sándor Ferenczi, Joan Riviere e Ruth Mack Brunswick) foi a sua importância no interior da comunidade psicanalítica e a relevância que eles atribuíram ao tema da feminilidade. A autora argumenta que eles não conseguiram resgatar o verdadeiro significado do Complexo de Castração na constituição da sexualidade humana, por recorrerem à Biologia como fundamento para as descobertas da Psicanálise sobre o sexual e por não distinguirem o órgão anatômico sexual masculino (o pênis) da noção psicanalítica de falo. Daí terem preferido "retomar o paralelismo e a proporção entre as sexualidades masculina e feminina, no esforço de suturar a ferida aberta por Freud" (p. 104).

A epígrafe do capítulo 3 já indica o norte do caminho a percorrer, em Lacan, ao apontar que a sexualidade do sujeito humano envolve necessariamente o registro simbólico ("é o que quer dizer o Édipo") e que essa circunstância rompe com qualquer harmonia no âmbito do sexual: "O significante não é feito para as relações sexuais" (Lacan, Seminário 17, 1969-1970/1992, p. 31). Como inconsciente e linguagem são indissociáveis, a feminilidade e a masculinidade não são características biológicas e sim posições construídas e estruturadas a partir do atravessamento pelo significante. E retomam-se os avanços de Lacan em relação aos impasses teóricos e clínicos deixados por Freud (sem, contudo, descartar-se de suas contribuições fundamentais), para se apresentar o Édipo estrutural como articulador do desejo à lei.

É também esse capítulo que concentra algumas das proposições essenciais para que se desfaçam confusões frequentes sobre as concepções psicanalíticas de sexualidade, feminilidade e masculinidade: notadamente, muitas das que são equivocadamente utilizadas nas acusações de que a concepção psicanalítica da sexualidade seria machista, por pensadoras e pensadores de algumas das teorias feministas e de gênero. Nesse sentido, a autora lembra que a noção lacaniana de falo não se limita à ordem do imaginário e, menos ainda, ao pênis como órgão sexual, já que o falo é um artifício forjado pela cultura para lidar com a "falta": trata-se de um significante (registro simbólico) e é em torno dele que acontece o posicionamento sexual do humano falante. O falo é o parâmetro da constituição sexual, tanto para os que vêm a se posicionar como "homens" quanto para os que vêm a se posicionar como "mulheres". Mas isso não implica que o gozo sexual se esgote no registro simbólico e que o gozo feminino se inscreva inteiramente no âmbito da função fálica, como a autora explicará, adiante, no livro.

Os capítulos 4 e 5 mostram como Lacan procedeu à formalização da "desproporção entre os sexos", a partir do fim dos anos 1960, projeto que se concluiu nos anos 1970, principalmente, no Seminário 19 "...ou pior" (1971-1972), no Seminário "O saber do psicanalista" (1971-1972), no Seminário 20 "Mais, ainda" (1972-1973) e no escrito "O aturdito" (1973). A autora mostra como, inspirado no "quadrado das oposições" de Aristóteles, Lacan emprega e subverte as relações lógicas clássicas para escrever as inscrições sexuais. É assim que a premissa fálica é formalizada como uma função e "homem" passa a ser definido como aquele que tem todo o seu gozo submetido à função fálica, enquanto "mulher" é definida como aquela cujo gozo é "não-todo" inscrito na função fálica.

Com isso, formaliza-se a noção de "Outro gozo", que responde pelo fato de algo no gozo da "mulher" escapar ao discurso e articular-se com o Real: o que leva Lacan a propor que "Não há A Mulher" (Seminário 20, 1972-1973/1985, p. 98). E a autora mostra como os matemas correspondentes ao lado "homem" [ ] e ao lado "mulher" [ x] das fórmulas da sexuação remetem a posições estruturais de gozo e não à característica somática masculina ou feminina do sujeito que assume essas posições. A substituição da norma biológica pela ordem social "é uma recusa (Verwerfung) das diferenças sexuais biologicamente condicionadas" (p. 177).

A falta de complementaridade e simetria entre os gozos do homem e da mulher, e a impotência do amor em fazer Um (dada a hiância entre o Um, articulado ao significante, e o gozo), levam Lacan à proposição de seu aforismo "Não há relação sexual" (Seminário 20, 1972-1973/1985, p. 22). Como diz a autora do livro, "o Um da relação sexual não existe, porque não há proporção na relação que homens e mulheres (dois significantes, como quer Lacan) estabelecem com a castração" (p. 171).

E o "não existe", proposto para designar "A Mulher" na frase "A Mulher não existe", tem que ser entendido a partir da nova lógica proposta por Lacan, como nos diz a autora na página 174: esse "não existe" é "causado pela incidência da negação na particular afirmativa original", que, então, se torna: "não existe x que não se refira ao falo"; ou seja, a não existência de algo que não se refira à lei.

Podemos, portanto, concordar com o que a autora já dizia no fim da primeira edição do seu livro (esta edição de 2019 foi revista e aumentada), que o aforismo "A Mulher não existe" e o neologismo "não-toda" não podem, de modo algum, ser entendidos a partir de uma pretensa (e falsa) intenção, de Lacan, de reintegrar a mulher no plano imaginário: o que sua invenção se esforçou por superar. Contrariamente a isso, sua formalização constrói uma teoria positiva da mulher: referida à função fálica, mas "não-toda" submetida a essa função.

Cumpre-se, assim, a promessa da autora estampada na contracapa do livro:

A partir da formulação lacaniana a respeito d'A Mulher ser não-toda em relação ao gozo fálico e da teorização da experiência de Outro gozo é possível articular um posicionamento além do falo, embora referido a ele. A mulher é tomada como paradigma que possibilita falar do gozo que emerge do Real, positivando sua função na Psicanálise e reservando-lhe um lugar conceitual próprio.

Aqueles que apreciam o rigor e a clareza e que se interessam pelas concepções de Freud e Lacan sobre a feminilidade e por suas decorrências para a clínica psicanalítica encontrarão em Feminilidade e experiência psicanalítica a leitura que atenderá à sua curiosidade e exigência.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1905/1981). Tres ensayos para una teoría sexual. In Obras completas (Tomo II). Biblioteca Nueva.         [ Links ]

Lacan, J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1971-1972/2012). O Seminário, Livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1971-1972/2001). O saber do psicanalista. Publicação para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife.         [ Links ]

Lacan, J. (1972-1973/1985). O Seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1973/2003). O aturdito. In Outros Escritos (pp. 448-497. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1975-1976/2007). O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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