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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.15 São João del Rei jul./dez. 2019

 

Do homem ao objeto: um percurso pela noção de estilo em Jacques Lacan1

 

From author to object: a trajectory of the notion of style in Jacques Lacan

 

De l'homme à l'objet : un parcours par la notion de style dans l'enseignement de Jacques Lacan

 

Del hombre al objeto: un camino por la noción de estilo en Jacques Lacan

 

 

Marinela Marques PortoI; Marcus André VieiraII

IDoutoranda em Psicologia Clínica: Psicanálise, Clínica e Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Psicanalista. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro
IIPsicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise (AME). Professor adjunto do departamento de Psicologia Clínica: Psicanálise Clínica e Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

 

 


RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar a noção de estilo, tal como abordada por Jacques Lacan em 1966, no texto de abertura da coletânea dos seus Escritos. Nesse pequeno texto, Lacan conduz o leitor por uma série de proposições acerca do estilo, partindo de sua acepção clássica, cristalizada pelo pensamento de Buffon, em que o estilo é o próprio homem, depois passando pela ideia do estilo como endereçamento e, finalmente, chegando à formulação segundo a qual o estilo é o objeto. Buscaremos percorrer esses passos com Lacan, no intuito de melhor compreender os desdobramentos pelos quais nos guia o psicanalista francês. Para tanto, será fundamental analisarmos os principais desenvolvimentos dessa complexa noção em outros campos, tais como a Filosofia e a Literatura, desde seu sentido clássico até a acepção moderna de estilo, que vigorava na década de 1960, quando Lacan publica os Escritos. Tal investigação nos fornecerá uma base teórica para abordarmos a especificidade do estilo no ensino de Lacan. Sua especificidade parece se tornar evidente quando, ao final de seu texto de Abertura, o psicanalista faz o estilo ressoar no campo do objeto próprio à Psicanálise: o objeto a.

Palavras-chave: Estilo. Psicanálise. Literatura. Sujeito. Objeto a.


ABSTRACT

This paper seeks to analyze the notion of style, specifically in the manner through which it is approached by Jacques Lacan in 1966, in the foreword to his collected works, the Écrits. In this small text, Lacan guides the reader through a series of propositions concerning the notion of style. He begins with a reference to the thinking of Buffon, according to whom style is equivalent to the man himself, and then points to the idea of style as a form of addressment, which would include the notion of the Other. Finally, he arrives at a formulation according to which style is the object. In this paper, we intend to follow these steps, with the aim of better understanding the developments through which the French psychoanalyst guides his reader. To reach this objective, it is crucial that we first analyze the main historical developments of the complex notion of style in other fields, such as literature and philosophy, beginning with its classical sense and working toward its modern conception, which gained force in the decade of 1960, when Lacan publishes his Écrits. This investigation will offer us a theoretical basis upon which to approach the specificity of the notion of style in Lacan's teachings. This specificity seems to become evident when, at the end of his foreword, Lacan relates the idea of style to the object pertaining to the field of psychoanalysis: the object a.

Keywords: Style. Psychoanalysis. Literature. Subject. Object a.


RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif d'analyser la notion de style telle que Lacan l'a abordé en 1966, dans le texte d'ouverture de ses Écrits. Dans ce petit texte, Lacan conduit son lecteur par une série de propositions sur le style, partant de son acception classique, canonisée par la pensée de Buffon, où le style est identifié à l'homme lui-même. Ensuite, il passe par l'idée du style comme quelque chose que l'on adresse, et, finalement, il arrive à la formulation selon laquelle le style est l'objet. Nous chercherons suivre ce chemin avec Lacan, ayant pour objectif de mieux comprendre les développements par lesquelles nous conduit le psychanalyste français. Pour atteindre ce but, il sera fondamental que nous analysions les principaux développements de cette complexe notion dans d'autres champs, telles que la littérature et la philosophie, allant de son sens classique jusqu'à l'acception moderne du style, régnante pendant les années 1960, quand Lacan publie ses Écrits. Cette recherche nous fournira une base théorique sur laquelle nous pourrons aborder la spécificité du style dans l'enseignement de Lacan. Sa spécificité semble devenir évidente quand, à la fin de son texte d'ouverture, le psychanalyste fait le style résonner dans le champ de l'objet propre à la psychanalyse : l'objet a.

Mots-clés: Style. Psychanalyse. Littérature. Sujet. Objet a.


RESUMEN

Este artigo tiene el objetivo de analizar la noción de estilo, así como abordada por Jacques Lacan en 1966, en el texto de abertura de sus Escritos. En ese breve texto, Lacan conduce su lector por una serie de proposiciones sobre el estilo, partiendo de su acepción clásica, canonizada en el pensamiento de Buffon, donde el estilo es identificado al propio hombre, pasando luego por la idea del estilo como enderezamiento. Finalmente, él llega a la formulación según la cual el estilo es el objeto. Buscaremos recorrer esos pasos de Lacan, con el objetivo de mejor comprender los desarrollos por los cuales nos conduce el psicoanalista francés. Para tanto, será fundamental analizar los principales desdoblamientos de esa compleja noción en otros campos, como en la filosofía y la literatura, desde su sentido clásico hasta la acepción moderna del estilo, que reinaba en la década de 1960, cuando Lacan publica sus Escritos. Esta investigación nos proporcionará una base teórica para abordar la especificidad del estilo en la enseñanza de Lacan. Su especificidad parece tornarse evidente cuando, al fin de su texto de Abertura, el psicoanalista hace el estilo resonar en el campo del objeto proprio al psicoanálisis: el objeto a.

Palabras clave: Estilo. Psicoanálisis. Literatura. Sujeto. Objeto a.


 

 

Em outubro de 1966, após ter passado boa parte do mesmo ano relendo e reescrevendo os textos que comporiam a sua grande coletânea, o psicanalista francês Jacques Lacan escreve a "Abertura" de seus Escritos. Esse pequeno e denso texto dá o pontapé inicial para a leitura de sua não menos densa obra, o que confere a essas páginas iniciais um lugar bastante específico: elas são a porta de entrada ou até mesmo o primeiro encontro do leitor com os Escritos de Lacan. É interessante, portanto, notarmos que o fio que conduz as três páginas desse prefácio é um tema que, curiosamente, havia caído em desuso na década de 1960: o estilo. Uma pergunta é levantada de imediato, tendo em vista os movimentos nos campos da Filosofia e da Literatura na época: por que Lacan teria escolhido abrir sua coletânea com uma referência ao estilo, que, como aponta Antoine Compagnon (1999, p. 176), havia se tornado uma das ovelhas negras da teoria literária?

Se nos permitimos, por um momento, jogar com a hipótese de que Lacan não teria escolhido a esmo abordar o tema do estilo em sua "Abertura", seremos também obrigados a interrogar de que estilo ele estaria falando. Veremos como, ao longo do pequeno texto, Lacan (1966/1998) nos conduz por alguns desdobramentos da noção de estilo, partindo de sua acepção clássica, cristalizada na formulação buffoniana, "o estilo é o homem" (p. 9), depois passando pela ideia do estilo como endereçamento e, finalmente, chegando à formulação um tanto enigmática, segundo a qual "o estilo é o objeto" (Lacan, 1958/1998, p. 751; 1966/1998, p. 11).

Veremos que toda a problemática do estilo, desde sua acepção clássica, se fundamentou na dualidade entre fundo e forma. Essa ideia trazia o estilo como uma espécie de ornamento ou vestimenta escolhida e utilizada para melhor expressar um conteúdo. O fundo equivaleria à ideia ou pensamento que o autor pretendia expressar (inventio), e a forma seria a maneira pela qual o autor escolheria veicular sua ideia (elocutio). Tributária da ideia de que o pensamento e a linguagem são duas operações distintas, a conceituação clássica de estilo, pautada na dualidade das figuras de fundo e forma, seria colocada em questão pelos proponentes do estruturalismo, movimento que ganha força na década de 1960. Visto que a estabilidade do campo que abordava a problemática do estilo a partir da dualidade entre fundo e forma sofria abalos profundos, e que os autores que participavam do debate acerca desse tema eram lidos por Lacan, não nos parece que, no momento da redação do prefácio dos Escritos, o psicanalista francês fosse alheio às questões que tocavam ao estilo, na época.

Isso nos leva a uma pergunta fundamental: será que o estilo abordado por Lacan em seu prefácio, assim como em outros momentos pontuais de seu ensino, é o estilo pensado à imagem da contestada dualidade entre fundo e forma? Ou é possível que tenhamos que ampliar o escopo de nossas investigações, munidos dos desenvolvimentos da época acerca do tema, para buscar compreender, de forma mais específica, aquilo que parece ser veiculado por meio de sua referência ao estilo?

Buscaremos, neste artigo, percorrer os passos dados por Lacan em referência ao estilo, na tentativa de melhor compreender os desdobramentos pelos quais nos guia o psicanalista francês. Para tanto, será fundamental analisarmos alguns dos principais desenvolvimentos da complexa noção de estilo nos campos da Literatura e da Filosofia, desde sua acepção clássica até a noção de estilo tal como vigorava na década de 1960, momento em que Lacan publica seus Escritos. Acreditamos ser para esse desenvolvimento histórico que Lacan aponta em seu texto de "Abertura", ao final do qual o psicanalista dá um passo além, fazendo o estilo ressoar no campo do objeto por ele inventado: o objeto a. Não pretendemos, no escopo deste artigo, esgotar a discussão acera da relação entre o objeto a e estilo, e sim percorrer o caminho que leva Lacan a postular que o estilo não se resume ao homem nem ao endereçamento, mas que sua chave se encontra no objeto.

Com esse percurso, visamos a fundamentar a noção de estilo, levando em consideração tanto a sua pluralidade quanto os seus desenvolvimentos. Essa investigação tem como objetivo fornecer uma base teórica a partir da qual se possa pensar, futuramente, o lugar do estilo na clínica psicanalítica.

 

Estilo: noção histórica e polissêmica

Para abordar o estilo, um retorno à etimologia da palavra nos fornece algumas pistas importantes. Segundo o Dicionário etimológico de Bloch e Wartung (1975, p. 610), é em torno de 1540 que a palavra style, na língua francesa, ganha sua acepção como "maneira de expressar os pensamentos" (Bloch & Wartung, 1975, p. 610), da qual partem seus sentidos mais recentes, especialmente no campo das belas artes em torno do século XVII. Originalmente, a palavra é derivada do latim "stilus, também escrita stylus, de onde vem a ortografia francesa" (Bloch & Wartung, 1975, p. 610). O estilo teria também uma raiz na língua grega, vindo de stylos, que, por falsa aproximação, significa "coluna". Os autores ressaltam que a palavra grega stylos significa, propriamente, poinçoin: uma espécie de haste pontiaguda que serve para escrever (Bloch & Wartung, 1975, p. 610, tradução nossa).

A raiz grega de estilo indica que a palavra era associada a um instrumento de corte que, ao talhar uma superfície, promovia uma inscrição. A partir de sua origem, vemos que o estilo, desde suas raízes etimológicas, estava intrinsecamente ligado a uma espécie de escrita pela via da punção. A esse respeito, Haroldo de Campos faz um jogo espirituoso com a palavra ao substituí-la por stylo em francês:

No meu Witz [...], stylo ("lapiseira", caneta tinteiro ou esferográfica, em francês) se substitui a "estilo", ambos style e stylographe (ou stylo, abreviadamente) provenientes da mesma palavra latina stilus, com o sentido de instrumento pontiagudo, de metal ou osso, com o qual se escrevia nas tábuas enceradas; aliás, esta é também uma das acepções, ainda que pouco usada, de "estilo" em português; lembre-se, na mesma área etimológica, o diminutivo "estilete", lexicalizado como "espécie de punhal", que nos chegou através do italiano stiletto; foi por um passe metonímico - por um transpasse de significantes - que o instrumento manual da escritura passou a designar a marca escritural mesma: o estilo. (Campos, 2009, p. 2)

Vemos, a partir das contribuições de Bloch e Wartung, assim como as de Haroldo de Campos, que o estilo, com suas diversas raízes etimológicas, também se presta ao deslocamento metonímico que vai da inscrição à própria marca escritural. Uma investigação acerca do estilo parece pedir, portanto, uma abordagem que o aproxime da escrita. É por esse motivo que elegemos, como ponto de partida, estudar a maneira pela qual essa noção se situou no campo da Literatura.

Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria: Literatura e senso comum (1999), concede um capítulo à temática do estilo, no qual se dedica a destacar os meandros históricos desta complexa noção que, embora ocupasse "um lugar de destaque desde o fim da retórica", havia se tornado persona non grata na teoria literária (Compagnon, 1999, p. 165). O autor adverte, entretanto, contra o engano de decretarmos, de uma vez por todas, a morte do estilo, e aponta para a tendência "aparentemente inevitável de restauração do estilo, cada vez que ele ameaça desaparecer da paisagem literária" (Compagnon, 1999, p. 166). É possível que tanto a resiliência quanto o infortúnio do termo possam ser atribuídos, ao menos em parte, à multiplicidade de suas significações.

No campo da Literatura, o autor descreve o estilo como uma noção situada na "relação entre o texto e a língua" (Compagnon, 1999, p. 165), mas ressalta que o estilo, evidentemente, não se restringe aos campos da arte e da crítica literária. O fato de a noção de estilo abarcar diversas significações em campos distintos de atividades (a arte, a crítica, a moda, o esporte, a Sociologia e a Antropologia são alguns dos exemplos citados pelo autor) se torna uma "desvantagem séria, talvez fatal, para um conceito teórico" (Compagnon, 1999, p. 166). Eis o primeiro impasse ao se abordar o estilo: a dificuldade que se tem de defini-lo de forma precisa, uma vez que seus aspectos são numerosos e ele pode ser utilizado em referência a campos diversos. Em razão de sua multiplicidade e dificuldade de definição, o estilo é, em geral, abordado como noção - "conhecimento sintético intuitivo e impreciso" (Perrone-Moisés, 2012, p. 75) -, e não como conceito teórico.2

Para Compagnon (1999, p. 173),

O estilo, pois, está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa, rica, ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquiria outras, a palavra acumulou-as e hoje pode comportá-las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que queremos dizer, separadamente, quando falamos de um estilo.

O percurso feito por Compagnon em seu capítulo sobre o estilo demonstra, com grande riqueza de detalhes, o quanto a noção é polissêmica. A origem da acepção do estilo como norma, ornamento e desvio pode ser traçada até a retórica clássica, que pressupõe uma distinção entre res (a coisa) e verba (a palavra). Em última instância, pode-se fazer uma ligação direta entre essa distinção e a ideia tradicional da dualidade entre o pensamento e a linguagem. (Compagnon, 1999, p. 169).

Para Compagnon (1999, p. 168), "o estilo, pelo menos desde Aristóteles, se entende como um ornamento formal, definido pelo desvio em relação ao uso neutro ou normal da linguagem". É nesse sentido que o estilo foi, com frequência, associado a uma roupagem ou um adorno que recobre o corpo da ideia. Ou seja, a noção clássica de estilo se resumiria a "uma variação contra um fundo comum" (Compagnon, 1999, p. 168). Ainda segundo o autor (1999, p. 179), "o dualismo do conteúdo e da forma, lugar-comum do pensamento ocidental, estava presente em Aristóteles no par muthos e lexis, a história ou assunto de um lado, e a expressão de outro". A lexis, geralmente traduzida como "elocução" ou "expressão verbal", por vezes também aparece como "estilo" em algumas traduções da obra de Aristóteles.

No sexto capítulo de Poética, Aristóteles define a elocução como "a comunicação do pensamento por meio de palavras" (Poética, VI, 1450b: 13-14). Mais adiante, na mesma obra, ele defende que o principal objetivo da elocução é ser clara, "mas não banal" (Poética, XXII, 1458a: 15-20). Se a elocução for composta apenas por palavras corriqueiras, ela se tornará vulgar; por outro lado, se ela contar exclusivamente com "palavras estranhas" ou raras, que Aristóteles entende como todas aquelas expressões linguísticas que desviam de seu sentido corrente, tais como a metáfora ou a palavra alongada, a elocução ficará comprometida em sua clareza (Poética, XXII, 1458a: 20-25). Aristóteles propõe que a elocução busque uma composição entre o uso corrente das palavras e expressões - que tornam o discurso claro, mas correm o risco de banalizá-lo - e o uso de palavras estranhas e raras, que elevam a elocução, mas podem comprometer sua clareza. A medida dada à mistura de palavras correntes e expressões raras parece, portanto, estar relacionada à dimensão de norma e desvio, destacada como um dos aspectos do estilo.

No terceiro livro da Retórica, Aristóteles se refere também ao ornamento quando aborda a elocução. Um discurso mais ou menos ornamentado será mais ou menos apropriado em relação ao conteúdo abordado, assim como ao público a quem se endereça. Nesse sentido, Compagnon ressalta que, na retórica clássica, o estilo também era usado no sentido da classificação do gênero ou tipo de discurso em três níveis: simples (stilus humilis), moderado (stilus mediocris) e elevado ou sublime (stilus gravis). Trata-se, portanto, de um aspecto associado à conveniência, que visava à adequação do discurso ao público para o qual o autor se endereçava (Compagnon, 1999, p. 169).

Mais tarde, tomado como dimensão subjetiva, o estilo aparece como traço, que diz respeito à "marca do sujeito no discurso" (Compagnon, 1999, p. 170). Essa ideia é tributária de um movimento surgido no campo das artes plásticas durante o século XVIII, no qual a preocupação em relação ao estilo girava em torno do problema da atribuição de autoria e autenticação de obras que circulavam no mercado de arte. Compagnon (1999, p. 170) sublinha que, nesse movimento, ele se torna "um valor de mercado; a identificação de um estilo está doravante ligada a uma avaliação mensurável, um preço".

Nessa perspectiva, são os detalhes de uma obra que denunciam a sua autoria e "o conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria" (Ginzburg, 1989, p. 145). Carlo Ginzburg, em seu livro Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e História, comenta, a partir do método morelliano, as raízes do paradigma indiciário - uma espécie de método interpretativo centrado sobre indícios infinitesimais, como rastros e resíduos, que são, por sua vez, tomados como pista ou signo de algo a ser desvendado. Na década de 1870, começavam a circular artigos, assinados pelo conhecedor de arte russo Ivan Lermolieff, sobre um novo método para a atribuição de autoria de quadros italianos, baseado na catalogação dos mais negligenciáveis detalhes das obras, por exemplo, as formas das orelhas, unhas e dedos representados nas telas. A ideia era que a autenticação das obras só seria possível a partir de detalhes pormenorizados no quadro; ali onde o artista não deteria sua atenção. Esses traços marginais, que escapam ao controle do pintor, seriam equiparáveis a uma "assinatura" e permitiriam a sua identificação. Mais tarde, descobriu-se que o autor dos artigos, na realidade, era o médico italiano Giovanni Morelli, que escrevia sob o pseudônimo Lermolieff (Ginzburg, 1989).

Sigmund Freud, em seu texto "Moisés de Michelângelo" (1914), chega a comentar esse trabalho de Morelli, com o qual entrou em contato mesmo antes da invenção da Psicanálise, ainda em meados da década de 1870. Freud nota que o trabalho de Ivan Lermolieff, mais tarde identificado como Giovanni Morelli, provocou, na época, uma verdadeira revolução no mundo da arte na Europa. Ele destaca que a atenção de Morelli aos antes negligenciáveis detalhes e traços, deixados pelo pintor sobre a tela, permitiu diferenciar quadros originais e cópias, assim como a revisão da autoria de várias obras consagradas. Segundo Freud (1914/2017, p. 197),

[Lermolieff] realizou isso, na medida em que abstraiu a impressão geral dos grandes traços de um quadro e destacou o significado característico de detalhes subestimados, de pequenos aspectos tais como a formação das unhas, dos lóbulos das orelhas, das auréolas dos santos e outras coisas não levadas em consideração, que o copista imitou com descuido e que, de fato, cada artista executou de uma maneira especial. Mas considerei muito interessante quando soube que por trás do pseudônimo russo se escondia um médico italiano de nome Morelli. [...] Acredito que seu procedimento está muito próximo da técnica da Psicanálise praticada por médicos. Também a Psicanálise está acostumada a partir de traços subestimados ou não observados, do refugo - o refuse - para intuir o misterioso e o escondido.

É interessante notar o paralelo que Freud faz entre o método de Morelli e a própria técnica da Psicanálise, não no sentido de oferecer um manual para a prática analítica, mas de ressaltar, na Psicanálise, o lugar distinto concedido àquilo que, em outros campos, é subestimado: o resto, ou refugado, como diz o próprio Freud. Com frequência, o resto - aquilo que é considerado desimportante ou mesmo repugnante - é também o que há de mais íntimo e singular no ser falante. Podemos considerar que esses elementos subestimados e refugados encarnam algo muito próprio ao sujeito e tocam à maneira singular como o sujeito está no discurso.

Ao mesmo tempo em que designa um traço singular, o estilo também pode se referir a um elemento, ou "traço familiar", que dá unidade a um grupo ou uma cultura. Surge então a questão de como uma noção pode, simultaneamente, abarcar aspectos individuais (idioleto) e aspectos coletivos (socioleto). Essa tensão frágil entre o singular e o coletivo torna ainda mais difícil, ou impossível, a construção de uma definição abrangente e ao mesmo tempo precisa do estilo (Compagnon, 1999, pp. 172-173).

A partir das acepções destacadas, vemos que o estilo permaneceu, por muito tempo, atrelado à ideia clássica da retórica, na qual equivalia à forma de expressão aplicada sobre um fundo ou ideia. Mais tarde, sob a influência de estudos vindos do campo das belas artes, o estilo passou a ser associado a um traço singular do artista; algo mais relacionado à assinatura do que a uma intencionalidade do autor. Numa outra vertente, o estilo começa a ser relacionado à individualidade do autor, ao gênio e à imortalidade. A aproximação entre o estilo e a individualidade, representada pela figura do grande homem/autor, é expressada de maneira icônica no discurso de Georges-Louis de Buffon na Academia Francesa e retomada por Lacan no início do texto de abertura de seus Escritos.

 

O estilo é o homem?

Em 25 de agosto de 1753, diante dos ilustres da Academia Francesa, Conde de Buffon, filósofo naturalista e autor da obra Histoire Naturalle (1749), profere seu famoso Discurso sobre o estilo, no qual ele se debruça sobre as qualidades do bom escrito e associa o estilo a uma espécie de "ordem e movimento" que se instaura sobre os pensamentos (Buffon, 1753/2011, p. 6). Ademais, o estilo e o bom escrito parecem estar, para Buffon, relacionados ao "gênio", que mais se aproximaria ao dom de ordenar e organizar os pensamentos de maneira que eles possam melhor expressar a verdade sobre o objeto em questão.

Destacamos duas principais ideias que surgem no discurso de Buffon: primeiro, há o tema da forma, abordado de maneira muito semelhante à ideia sustentada pelos clássicos (como Aristóteles e, depois, Cícero e Quintiliano), a partir da qual o bom estilo resultaria de uma harmonia entre o conteúdo e a forma de expressão; segundo, há o estabelecimento de uma estreita relação entre o estilo e o indivíduo, que, embora não fosse uma ideia nova, foi imortalizada na canônica frase buffoniana "o estilo é o próprio homem" (Buffon, 1753/2011, p. 11). Ambas as ideias seriam interrogadas, posteriormente, por contemporâneos de Lacan.

Em relação ao primeiro tema destacado, Buffon frisa que as ideias são a base fundamental do estilo. Dito de outro modo, a forma é secundária ao conteúdo. Para o autor, "o estilo deve gravar pensamentos" (Buffon, 1753/2011, p. 10). É possível perceber, na lógica seguida por Buffon, a presença de uma distinção entre o pensamento e a expressão, como se a ideia fosse anterior e separada da própria palavra que dá forma ao pensamento. A forma aparece, novamente, como adorno: "as ideias, só por si, formam o fundo do estilo, a harmonia das palavras é tão só acessório e depende apenas da sensibilidade dos órgãos" (Buffon, 1753/2011, pp. 10-11). Se o estilo tem a ver com a forma, como aponta Buffon, a forma está a serviço da transmissão de uma ideia. A obra bem escrita é aquela que conta com boas ideias e que tem uma clara organização dos pensamentos que o autor visa a expressar. O foco parece recair sobre a intenção do autor e prevalece, sobre qualquer outra possibilidade de leitura, o sentido original que o autor buscava dar ao texto.

Na vertente da aproximação entre o estilo e o indivíduo, temos a referência à posteridade: "as obras bem escritas serão as únicas que passarão à posteridade: a quantidade dos conhecimentos, a singularidade dos factos [sic], a própria novidade das descobertas não são garantias seguras da imortalidade" (Buffon, 1753/2011, p. 11). Com isso, Buffon aponta que os fatos e as descobertas podem facilmente ser arrebatados, transpostos ou mesmo cair por terra, uma vez que "tais coisas são exteriores ao homem" (Buffon, 1753/2011, p. 11). O estilo, por sua vez, não é exterior ao homem, ele é o homem. Nas palavras desse autor, "o estilo é o próprio homem. O estilo não pode, pois, nem arrebatar-se, nem transportar-se, nem alterar-se: se for elevado, nobre, sublime, o autor será igualmente admirado em todos os tempos" (Buffon, 1753/2011, pp. 11-12). Assim, ele aponta que é o estilo, e não o conteúdo, que determinará se um autor passará para a posteridade. O estilo é, nesse ponto, relacionado a algo inerente ao autor; algo associado à essência do homem, e que pode, inclusive, sobrevivê-lo. Eis o estilo transportado para a esfera da individualidade e tomado como signo do homem. Essa ideia de Buffon se torna notória e é, em parte, responsável pela celebridade de seu discurso sobre o estilo. Ao associar o estilo ao homem, Buffon parece apontar para o próprio homem como desvio em relação à norma. Podemos reconhecer, na famosa afirmação de Buffon, um passo relevante no âmbito das discussões sobre o estilo.

Mais tarde, os desenvolvimentos teóricos surgidos a partir do pensamento estruturalista, que ganha força aproximadamente dois séculos depois do discurso de Buffon, viriam lançar algumas interrogações, entre outros temas, sobre o lugar ocupado pelo autor em relação à obra, e também sobre a consagrada dualidade entre fundo e forma. Veremos, a seguir, algumas contribuições de autores cujas teorias foram influenciadas pelo movimento estruturalista, como Émile Benveniste, Roland Barthes e Michel Foucault.

Destacamos que a clássica a dualidade fundo/forma, que prevalecia nas discussões acerca do estilo, era, de certa maneira, tributária da ideia de uma separação entre pensamento e linguagem. Nessa perspectiva, o pensamento precederia a linguagem e sua essência seria diferente da essência da fala.

Em 1958, com um artigo no qual explora a relação entre pensamento e linguagem, Émile Benveniste fornece uma das bases para a desconstrução dessa dualidade. Ele argumenta que não haveria uma anterioridade do primeiro termo em relação ao segundo e que o pensamento seria, em si, inapreensível sem o recurso da linguagem. O autor contestaria, assim, a ideia difundida de que pensar e falar seriam atividades distintas que se encontrariam apenas pela necessidade de expressão. Ao contrário, o pensamento só receberia sua forma "da linguagem e dentro da linguagem" e essa seria a condição mesma para a realização do pensamento (Benveniste, 1958, p. 64). A linguagem é por ele entendida como uma grande estrutura, pela qual o pensamento precisaria passar para se formar. Segundo Benveniste (1958, p. 64, tradução nossa),

[...] esse conteúdo deve passar pela linguagem e tomar emprestado seus enquadres. De outra maneira, o pensamento se reduz, se não a exatamente a nada, em todo caso, a algo tão vago e tão indiferenciado que nós não temos nenhuma forma de apreendê-lo como conteúdo distinto da forma que a linguagem lhe confere. A forma linguística é, portanto, não somente a condição da transmissibilidade, mas, antes de mais nada, a condição da realização do pensamento. Não alcançamos o pensamento senão quando já apropriado aos enquadres da língua. Fora disso, não há nada além do anseio obscuro, impulso que se descarrega em gestos, mímica.

O autor aponta que pensamento e linguagem não são apenas mutuamente solidários, mas dependentes e essencialmente inseparáveis um do outro. Assim, "o pensamento não é uma matéria à qual a língua emprestaria uma forma" (Benveniste, 1958, p. 73), isso porque essa forma não poderia existir independente de seu conteúdo e nem esse conteúdo (que podemos entender como o fundo) poderia ser apreendido sem sua forma. Portanto, para Benveniste, seria uma ilusão a ideia de que há uma separação entre o pensamento e a linguagem, e equivocada a noção de que haveria uma lógica inerente ao espírito, entendida como o pensamento puro, anterior e externo à linguagem.

Nesse mesmo sentido, alguns anos depois, Roland Barthes também contesta a tradicional separação entre as figuras de fundo e forma. Mais especificamente, ele fala dessas figuras em "O estilo e sua imagem", texto no qual aborda as imagens tradicionais do estilo, precisamente baseadas nessa dicotomia (Barthes, 1969/2012). Ao final desse texto, depois de haver discorrido sobre a imagem do estilo que lhe incomodava - baseada na ideia de que haveria um "caroço" de sentido equivalente ao fundo, ou à verdade do texto, e uma polpa que equivaleria à forma dada ao conteúdo -, Barthes (1969/2012, p. 159) aponta para a imagem do estilo que ele deseja:

O problema do estilo só pode ser tratado com relação ao que eu chamaria ainda de "folheado" do discurso, e, para continuar com as metáforas alimentares, resumirei essas poucas propostas dizendo que, se até agora se viu o texto sob as espécies de um fruto com caroço (um damasco, por exemplo), a polpa sendo a forma e a amêndoa, o fundo, convém de preferência vê-lo agora sob as espécies de uma cebola, combinação superposta de películas (de níveis, de sistemas) cujo volume não comporta finalmente nenhum miolo, nenhum caroço, nenhum segredo, nenhum princípio irredutível, senão o próprio infinito de seus invólucros - que nada envolvem a não ser o próprio conjunto de suas superfícies.

As metáforas alimentares de Barthes acerca do estilo nos servem de guia para acompanharmos o desenvolvimento dessa noção, desde sua acepção clássica, como uma forma (polpa) dada a um fundo (caroço), que equivaleria ao segredo ou sentido a ser desvelado no texto, até a acepção moderna, que encontraria na imagem da cebola a sua representação. O que Barthes postula é que o texto não mais poderia ser entendido como uma construção sobre um sentido unívoco e pretendido pelo autor, mas como um trançado polissêmico, no qual não há fundo, e sim um folheado de camadas que permitem múltiplas leituras possíveis.

Essa ideia converge com a noção, também trabalhada por Barthes, da morte do autor. Nesse ponto, retomamos o segundo tema abordado no discurso de Buffon, no qual ele faz equivaler o autor à figura do grande homem, de quem o estilo é signo por excelência, uma vez que o estilo seria o próprio homem. Barthes, por sua vez, parece nos oferecer um contraponto a essa ideia ao destronar o autor de seu lugar de primazia em relação à significação do texto, em seu famoso artigo de 1968 intitulado "A morte do autor".

Segundo Barthes (1968/2004, p. 58), a elucidação da obra "é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a revelar sua 'confidência'". É essa lógica, a do autor como unidade última do texto, que Barthes contesta em 1968. Ele rebate a ideia de que o autor seria anterior ao escrito, como se existisse antes dele e guardasse, em sua história pessoal, o segredo para que se possa decifrar a obra.

Se, por muito tempo, o autor, entendido como indivíduo, era visto como uma espécie de antecessor de sua obra, Barthes (1968/2004, p. 61) aponta que, em essência, o escritor "moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto". Podemos compreender essa virada a partir da diferença entre o autor como indivíduo que diz "eu" e o sujeito da linguagem, que não é uma pessoa, mas "esse sujeito vazio" (Barthes, 1968/2004, p. 60). Não se trata, portanto, do homem que escreve, mas do sujeito da enunciação; sujeito esse que não existe de antemão, mas que é efeito do discurso, e não sua causa. Podemos traçar, aqui, uma relação entre o sujeito vazio do qual fala Barthes e o sujeito lacaniano, pontual e evanescente, que aparece no discurso como furo ou corte na cadeia significante.3 Trata-se de um sujeito que não encontra uma ancoragem fixa em sua história, nem uma unidade estável em seu corpo físico, mas que está sempre em deslocamento no discurso do qual é produto.

Numa perspectiva afim, ao retomar a tese de Barthes sobre a morte do autor, Michel Foucault (1969/2015, p. 271) aponta que a ideia do autor da obra como "primeira unidade, sólida e fundamental" não mais se sustenta. Foucault (1969/2015, p. 272) ressalta que, na escrita, "não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer". Assim, a marca do sujeito que escreve não se escora nos signos de sua individualidade como autor. Ao contrário, "a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência" (Foucault, 1969/2015, p. 273); e o filósofo destaca que é preciso que, nesse jogo de escrita, o escritor faça o papel de morto. Talvez seja apenas ao fazer papel de morto que o sujeito que escreve pode se deixar ultrapassar por sua escrita, não apenas no sentido de se fazer leitor de seu próprio texto, mas também de permitir o surgimento de novas e múltiplas leituras.

Esse argumento converge com a ideia de Barthes, ao final de seu texto sobre a morte do autor, no qual ele diz que, "uma vez afastado o Autor, a pretensão de 'decifrar' um texto se torna inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar uma escritura" (Barthes, 1968/2004, p. 63). Ou seja, a prevalência do autor é o que afasta a possibilidade de dar ao texto novas significações. Se o autor, na ideia clássica, encapsulava a verdade e o sentido último do texto, o escritor moderno não é senão uma ausência de um fundo; ele não é sentido, mas, quiçá, a causa de um sentido que sempre escapa. Se não há fundo, não há o que ser desvendado como unidade final do texto. O texto é algo a ser percorrido e desfiado, mas não decifrado. É isso que Barthes (1968/2004, p. 63) chama de "escritura múltipla", pautada tanto na recusa de um sentido último, ou de um fundo a ser desvelado no texto, quanto na ideia de uma escritura que é, em si, produto dos diversos outros textos, citações e discursos que a precedem.

Se a morte do autor significa a morte da suposta unidade última do texto, abrindo espaço para as escrituras múltiplas, há, entretanto, um lugar onde essa multiplicidade se reúne: o leitor. Nas palavras de Barthes (1968/2004, p. 64), "[...] o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino não pode ser pessoal".

Barthes responde à morte do autor com a ideia do nascimento do leitor. O preço que se paga pelo nascimento do leitor como função aglutinadora é, necessariamente, a morte do autor como grande homem, signo do bom estilo e unidade primordial no fundo de sua obra. A multiplicidade de sentidos, em que podem se desfiar os textos modernos, dissolve a oposição entre fundo e forma. O destino do texto não pode ser traçado a partir de sua origem; ele é o ponto para onde convergem as diversas tramas de uma escrita. Esse destino é o leitor. Entretanto, como ressalta Barthes, esse leitor não pode ser entendido como pessoal.

Se o interlocutor não é pessoal, ou seja, se não é, necessariamente, um interlocutor de carne e osso, como podemos entendê-lo? Aqui, o conceito lacaniano do Outro pode nos ser útil.

 

O estilo é aquele a quem nos endereçamos: o sujeito e o Outro

Lacan (1966/1998, p. 9) abre seus Escritos com uma menção ao famoso aforismo de Conde de Buffon, "o estilo é o próprio homem", ressaltando que essa formulação costuma ser repetida sem muita crítica e sem que se perceba que o homem não é mais "uma referência tão segura" (Lacan, 1966/1998, p. 9). A descoberta freudiana do inconsciente contribuiu significativamente para esse abalo do homem como referência incontestável. A Psicanálise veio deslocar o homem de seu lugar de protagonismo, apontando para aquilo que se desenrolava numa outra cena. Para Lacan, esse Outro lugar - que podemos chamar de inconsciente - é o lugar do discurso. É no campo do Outro que o sujeito se constitui como efeito de linguagem. A descoberta do inconsciente põe em cena um outro discurso que não se origina no eu, mas que tem o sujeito como sua consequência. Nesse sentido, Lacan (1966/1998, p. 9) aponta para a "fantasia do grande homem" que nos levaria, erroneamente, a fundir o estilo ao homem.

À fórmula inicial de Buffon, Lacan (1966/1998, p. 9) acrescenta um adendo, na forma de pergunta retórica: "o homem a quem nos endereçamos?". Eis um passo no caminho para uma abordagem distinta acerca do estilo: é preciso que se inclua, nessa problemática, o interlocutor. Ao introduzir a ideia de endereçamento, aponta-se para o laço que funda o discurso. Não há como abordar o estilo sem levar em conta a interlocução. A quem se endereça o sujeito a não ser ao Outro, que não é o semelhante, mas o lugar da alteridade por excelência? É nesse Outro, entendido como a própria ordem da linguagem, que o sujeito do inconsciente se constitui. Nesse ponto, é interessante destacarmos que uma das definições lacanianas do inconsciente é, precisamente, o discurso do Outro, do qual o sujeito recebe sua própria mensagem de maneira invertida (Lacan, 1957/1998). Ou seja, é a partir do que retorna desse discurso (que parece vir de "outro lugar"), que se dá a surpresa com a qual o sujeito se defronta quando se depara com algo que destoa, e que provoca efeitos de deslocamento, em relação a seu próprio enunciado. Um dos exemplos disso é o ato falho, pois o sujeito se reconhece, mas, ao mesmo tempo, se estranha no que diz.

Com esse passo, Lacan introduz, entre o estilo e o homem, a dimensão do inconsciente como lugar do Outro. Isso indica que o estilo, em vez de encarnado na figura ilustre do grande homem, estaria relacionado a um ponto de alteridade na obra - esse ponto de onde o sujeito emerge em sua cisão, deslocado em relação a seu próprio enunciado. No lugar antes ocupado pelo homem, surge o sujeito do inconsciente, dividido pela condição de ser puro efeito de linguagem, e descentrado do lugar que lhe fora atribuído na lógica cartesiana. Ali onde o homem pensava ser, ele mesmo, a joia da coroa do estilo, advém, justamente, isso que o destitui de seu trono e que age nele, sem pensar.

A denominação do Outro, com letra maiúscula, indica que há uma distinção entre o Outro simbólico e o outro como semelhante - o outro de carne e osso que figura nas relações imaginárias do eu. Segundo Jacques-Alain Miller (1988, p. 27), "[o Outro] está presente a partir do momento em que se escuta alguém, suposto também a partir do momento em que se fala a alguém. É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige".

Miller (1988, p. 27) aponta que o Outro está presente como terceiro, "em relação a todos os diálogos" e em relação a todos os laços. Ele é uma alteridade íntima ao ser falante, uma vez que é um "Outro que no seio de mim mesmo me agita" (Miller, 1988, p. 27). Podemos entender, nesse sentido, a formulação de que o inconsciente é o lugar do Outro, de onde o sujeito recebe a sua própria mensagem de forma invertida. A mensagem que o sujeito recebe será sempre balizada por esse terceiro. Desse modo, o que é dito ou escutado, vivido e experimentado, passará sempre pelas marcas que determinam o sujeito na cadeia significante.

Nesse ponto, salientamos que o sujeito não é o produtor da cadeia significante, mas seu produto. O Outro pode ser entendido como uma estrutura essencialmente simbólica, lugar da cadeia significante. A linguagem antecede o sujeito e o constitui no discurso como puro efeito do jogo significante. Embora o Outro seja uma alteridade íntima, ele é, também, uma "exterioridade determinante" (Miller, 1988, p. 28), à qual o sujeito se aliena para se constituir.

Destacamos, aqui, a aparente semelhança entre o estilo como endereçamento, ideia proposta por Lacan, e a tese barthesiana da morte do autor. Vimos que o sujeito lacaniano, que é o sujeito do inconsciente e produto da linguagem, não pode ser confundido com o homem. O homem equivaleria ao indivíduo que escreve e escolhe, com toda a sua agência e clareza racional, adequar a forma ao conteúdo que visa a expressar, tal como parece postular Buffon. O sujeito lacaniano, por sua vez, parece estar sempre descentrado em relação ao discurso e, portanto, deslocado em relação ao sentido daquilo que é escrito ou falado. Em geral, o falante diz "sempre mais do que quer dizer, sempre mais do que sabe dizer" (Lacan, 1953-1954/2009, p. 346).

O sujeito não é causa do discurso, mas é seu efeito. Do mesmo modo, podemos dizer que o escritor é também uma consequência a ser verificada pelos desdobramentos que se dão, sempre a posteriori, em relação ao gesto da escrita. Dito de outra forma, verifica-se se há sujeito no texto a partir de suas repercussões, mas esse sujeito não é garantido de antemão.

Quando um texto chega ao leitor, às vezes separado do autor por uma série de transformações históricas, sociais e discursivas, ele já é outro. Sendo outro, é pouco potente em relação ao que queria seu autor; é lançado à sorte das leituras que sobrevivem mesmo às intenções mais nobres do escritor. Essa ideia nos transporta, novamente, à postulação de Barthes sobre a morte do autor, que não deve ser entendida como a morte da enunciação, e sim como a morte da intenção originária do homem que escreve, que pensa.

A tese da morte do autor nos conduz à ideia de que não há sentido verdadeiro a ser desvelado no texto e, mais especificamente, que a pessoa do autor não é a unidade última da obra. Essa ideia abre o caminho para uma nova abordagem do estilo, uma abordagem estruturalista, não mais pautada na oposição entre fundo e forma, visto que não haveria, no texto, um fundo propriamente dito (Barthes, 1969/2012). É importante notarmos, contudo, que essa concepção de estilo é um recorte que traduz um momento específico da obra de Barthes, no fim dos anos 1960. Barthes havia abordado o estilo anteriormente de outras maneiras, especificamente em 1953, e também o retomaria posteriormente, ao final de sua vida.

No início de seu primeiro livro, O grau zero da escrita (1953), por exemplo, o estilo é associado ao automatismo, o que significa que não é o produto de uma escolha. Isso parece indicar que o sujeito que escreve, em algum ponto, não é o sujeito autônomo da consciência. Barthes (1953/2016, pp. 11-12) diz, ainda, que o estilo "é a 'coisa' do escritor, seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão", e o relaciona a "uma lembrança encerrada no corpo do escritor".

Nesse ponto, uma articulação com Lacan pode nos interessar. O psicanalista diz que o próprio corpo é o lugar do Outro; lugar das "cicatrizes tegumentares" (Lacan, 1967/2001, p. 327) deixadas pelos primeiros encontros com a linguagem. O ser falante é aquele que carrega, tatuadas em sua carne e enganchadas à sua fala, as marcas de uma escrita que ele próprio não sabe ler.4 Essas insígnias primordiais, resultado dos sulcos cavados pela experiência da palavra no corpo do ser que nasce imerso na linguagem, formam as coordenadas do texto do sujeito (Marques Porto, 2018, p. 29). Nesse sentido, Lacan (1957/1998, p. 447) aponta que, no encontro entre a carne e a língua, o sujeito se faz "alfabeto vivo". Há, portanto, uma lembrança que se encerra no corpo, como também aponta Barthes, e que reverbera no sujeito - nas enunciações, na escrita, na própria maneira de viver a vida. Isso que vibra de uma certa maneira (sempre mais ou menos da mesma maneira), em geral, o faz a despeito de qualquer intenção que se possa atribuir ao ser falante.

Em uma entrevista concedida a Jean-Louis Ézine, em 1975, e intitulada "O jogo do caleidoscópio", Barthes retoma a articulação entre o corpo e o estilo, explorada mais de 20 anos antes, no livro O grau zero da escrita (1953). Ali, ele dirá que o estilo é uma aventura complexa: o estilo "não pode ser reduzido a uma intenção de boniteza pequenamente estética" (Barthes, 1975/2004, p. 284). Ele diz respeito a algo que pulsa "nas profundezas do corpo" do escritor, e que confere à viagem da escrita um tipo de prazer específico (Barthes, 1975/2004, pp. 284-285).

Do mesmo modo, para Lacan, o estilo não parece estar atrelado à intenção da boa forma. Pelo contrário, o psicanalista indica que ele está associado a algo que ultrapassa o "homem" e que implica um endereçamento perpassado pelo Outro.

 

Um passo a mais

Podemos traçar um paralelo entre os primeiros dois passos dados por Lacan quando se refere ao estilo na abertura de sua coletânea dos Escritos - (i) o estilo é o próprio homem; (ii) o estilo é o homem a quem se endereça - e os desdobramentos históricos da noção de estilo no campo da teoria literária, passando primeiro pela acepção clássica do termo e, depois, pelos desenvolvimentos trazidos por autores modernos, contemporâneos de Lacan. Finalmente, Lacan dá um passo além das discussões da época acerca do estilo, ao incluí-lo no campo do objeto próprio à Psicanálise (iii).5 Resumiremos, a seguir, o encaminhamento lógico desses passos. Buscamos retomar os primeiros dois passos de Lacan, já percorridos ao longo deste artigo, para, finalmente, introduzir o terceiro passo.

1o passo: em um primeiro momento, Lacan se refere à imagem de estilo ligada à do grande homem que, em sua genialidade, encontra a forma propícia para veicular um conteúdo que a precede. Assim, o bom estilo não somente se torna uma espécie de passaporte do autor para a posteridade, mas também se alinha à ideia de um adorno ou forma aplicada sobre um fundo. Ademais, na acepção clássica, a ênfase recai sobre a ideia que o autor buscava transmitir e não sobre as novas significações que, por ventura, pudessem ser extraídas do texto pelo leitor.

2o passo: em seguida, a partir da abordagem clássica do estilo atribuído à figura do grande homem, Lacan (1960/1998, p. 9) dá um segundo passo: "o estilo é o homem; vamos aderir a essa fórmula, somente para estendê-la: o homem a quem nos endereçamos?" Essa passagem parece refletir os movimentos do campo literário, que ocorriam na época em que Lacan escrevia sua "Abertura". Assim, podemos vislumbrar um ponto de consonância entre a inclusão do endereçamento na temática do estilo e, por exemplo, a ideia da morte do autor em Barthes. Uma nova concepção do texto como sendo plural leva, necessariamente, à consequência de que se tenha que incluir, na escrita, aquele a quem o autor se endereça: o interlocutor.

Como aponta Lacan (1966/1998, p. 11), é preciso que, nesse endereçamento que seu estilo impõe, o leitor possa "colocar algo de si"; que ele escreva algo de seu próprio texto. Isso diz respeito também ao endereçamento, uma vez que inclui o leitor, que, a partir dos restos de uma escrita, produz um texto próprio. O leitor não é apenas o ponto de retorno do discurso, mas um interlocutor que, a partir do texto, produz novas escritas.

Em relação ao endereçamento, Lacan (1966/1988, p. 9) faz uma interrogação importante: "mas se o homem se reduzisse a nada ser além do lugar de retorno de nosso discurso, não nos voltaria a questão de para que [lhe] endereçar?" A pergunta de Lacan indica que não podemos entender o homem a quem o autor se endereça como o indivíduo-leitor. Como ressaltamos, o psicanalista aponta que esse interlocutor eminente é precisamente o Outro, lugar do discurso, de onde o sujeito recebe sua própria mensagem de maneira invertida. É nesse sentido que o leitor encontra no escrito aquilo que lhe toca: "da cena do texto partem traços de linguagem [...], dos quais nenhum se dirige a nós, mas cada um vem interpretar alguém" (Barthes, 1973/1982, p. 56). Dito de outra forma, é o leitor que é interpretado pelo texto, mais do que o contrário.

3o passo: o terceiro passo dado por Lacan não parece invalidar o segundo, e sim se somar a ele. Para sair da dualidade entre o sujeito e o Outro, o psicanalista introduz um novo elemento na discussão - o objeto. Trata-se, a nosso ver, de um passo além - além das discussões travadas por seus contemporâneos acerca da escrita, do lugar do autor e do estatuto do estilo. Esse passo inclui o estilo em um campo inédito: o campo do objeto da Psicanálise, sem, no entanto, refutar a ideia de que ele implica também um endereçamento.

Para Lacan, nesse lugar que Buffon atribuía ao homem, o que encontramos é a queda do objeto, revelada em sua dupla função: ao mesmo tempo em que o objeto se isola como causa de desejo (Lacan, 1966/1998, p. 11), ele é também aquilo que cai como resto da operação por meio da qual o falante se constitui como sujeito na linguagem.

Em entrevista concedida a Paolo Caruso depois do lançamento dos Escritos, Lacan retoma a temática do estilo abordada no pequeno texto de abertura e ressalta a centralidade do objeto a no que diz respeito a essa discussão. O psicanalista destaca a frase de abertura de sua coletânea, que trata da afirmação de Buffon sobre o estilo, e reafirma ser evidente que ele não poderia se contentar com a fórmula de que o estilo é o homem. Ele segue, então, para dizer que o estilo "precisa da relação de toda a estruturação do sujeito em torno de determinado objeto, que depois é o que se perde subjetivamente na operação, pelo fato mesmo da aparição do significante" (Caruso, 1969, p. 97, tradução nossa). Nessa passagem, Lacan estabelece a relação entre a operação de estruturação do sujeito e a queda desse objeto que ele denominará a.

A estruturação do sujeito diz respeito aos dois tempos lógicos de sua constituição: a alienação e a separação. O primeiro movimento, a alienação, implica uma espécie de escolha forçada, na qual, para que possa aceder à linguagem, a criança precisa primeiro se alienar aos significantes do Outro - e isso ao preço de uma perda de parte de seu ser (Lacan, 1964/2008, p. 207). Trata-se de um momento da constituição subjetiva no qual a criança incorpora as palavras do Outro para poder se estruturar como sujeito na linguagem. O segundo movimento, a separação, é uma resposta ao primeiro, e podemos entendê-lo como uma espécie de encontro com os limites da palavra do Outro. Nesse sentido, a separação pode ser pensada como uma justaposição de duas faltas (Fink, 1998, p. 76): ao mesmo tempo em que o campo do Outro é marcado pela falta de um significante que possa dizer tudo sobre o sujeito, do lado do sujeito, há também uma impossibilidade estrutural de obturar essa falta no Outro. A dupla-falta recai, portanto, sobre ambos. Essa operação gera um resto, um produto, que, seguindo a própria lógica do movimento de separação, escapa à possibilidade de ser inteiramente representado pela imagem ou pela palavra.

No Seminário A angústia (1962-1963), Lacan introduz o objeto como o que sobra da operação subjetiva. É à medida que algo sobra nessa operação, pela qual o sujeito se constitui na linguagem, que podemos reconhecer, nesse resto, o objeto perdido. Nas palavras de Lacan (1962-1963/2005, p. 179), "o a é o resto irredutível na operação total do advento do sujeito no lugar do Outro". Por ser irredutível, o objeto é "externo a qualquer definição possível" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 99). Trata-se, essencialmente, de um objeto que não tem imagem nem significação, razão pela qual Lacan o denomina, simplesmente, a. O objeto, "em sua função essencial, é algo que se furta ao nível da captação" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 115), mas isso não significa que o objeto não insista, a todo momento, em subir ao palco.

O objeto insiste, em parte, por ser causa de desejo e não seu alvo. Lacan (1962-1963/2005, p. 115) elucidará esse ponto ao dizer que o objeto não está na frente, mas "atrás do desejo". Ele faz essa distinção apoiado na diferença, já marcada por Sigmund Freud, entre o alvo (ziel) e o objeto (objekt). Em 1915, Freud ressaltara que, enquanto o alvo da pulsão é sempre a satisfação, o objeto da pulsão é aquilo que há de mais variável (Freud, 1915/2006, p. 128). Desse modo, o objeto e o alvo não podem ser situados no mesmo lugar. Seria somente ao confundir o alvo e o objeto que poderíamos, erroneamente, situar o objeto à frente da pulsão e do desejo, tal como a cenoura para o burro. Entretanto, para Lacan (1962-1963/2005), essa distinção indica que o objeto não se confunde com o alvo da satisfação, mas se localiza como causa de um movimento; ele está atrás do desejo. O a parece cair para dentro do circuito que traça a relação muito singular entre o sujeito e o objeto. Trata-se, portanto, de um objeto que é "invaginado" nesse circuito, que "desliza para dentro" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 115), como ressalta Lacan.

Ao mesmo tempo em que o objeto se situa atrás do desejo como aquilo que o causa, ele também se caracteriza como objeto resto, lixo ou rebotalho. Para Lacan (1962-1963/2005, p. 120), o lixo ou resto é uma faceta do objeto a, "mas sob a aparência do deslustrado, do atirado aos cães, à imundície, à lata de lixo, ao rebotalho do objeto comum, na impossibilidade de colocá-lo em outro lugar". Esse lixo é o próprio objeto de uma análise. Ao mesmo tempo, ele denota aquilo "que nos é mais íntimo" e o que nos é mais "estranho e vergonhoso" (Vieira, 2008, p. 117).

No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/2008), ao abordar a relação entre o objeto e a pulsão, Lacan propõe a seguinte formulação: a pulsão contorna o objeto. Delineia-se, assim, o percurso da pulsão em seu caráter circular, cujo movimento fundamental é precisamente o de vaivém, o de "retorno em circuito" (Lacan, 1964/2008, p. 176). Tal percurso se origina na fonte, que podemos entender como uma zona erógena do próprio corpo, definida por Lacan como uma superfície que se constitui como borda. O circuito da pulsão é esquematizado como uma flecha que parte dessa estrutura de borda, contorna o objeto e retorna à zona erógena. Nesse momento, Lacan (1964/2008, p. 177) conceitua o objeto como sendo apenas um cavo, em torno do qual o trajeto da pulsão se traça.

Tal circuito, que sai da borda, contorna o objeto e depois retorna sobre si mesmo, reduplicando "sua estrutura fechada", é o próprio movimento desse sujeito que Lacan (1964/2008, p. 178) chamou de o "sujeito acéfalo" da pulsão. A pulsão não pensa; ela se relança continuamente em seu circuito, a contornar o objeto. É justamente por não poder capturar esse objeto que a satisfaça de uma vez por todas que a pulsão se relança em seu o circuito. A pulsão não atinge seu objeto final porque esse objeto, essencialmente, é aquilo que está sempre em queda; é o que escapa, continuamente, à captura. Nesse circuito que se reitera, podemos entrever a presença de um outro conceito que Lacan ressaltou em seu Seminário de 1964: a repetição.

Para Lacan (1964/2008, p. 128), "a função do ratear está no centro da repetição analítica. O encontro é sempre faltoso - é isto que constitui [...] a verdade da repetição". Podemos dizer, assim, que o encontro sempre faltoso com o objeto está no cerne da repetição. Seguindo a lógica de Lacan, Bruce Fink (1997, p. 240) aponta que "a repetição, na sua acepção lacaniana, é o retorno daquilo que permanece auto-idêntico, e que só pode ser o objeto a". Dessa maneira, a repetição envolve aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar; sempre ao lugar onde o sujeito não o encontra. É nesse circuito que se repete que o objeto pode ser entendido como o cavo em torno do qual gira a pulsão.

Nesse ponto, destacamos que a fantasia funciona como uma espécie de enquadre, ou moldura, que fornece as coordenadas para a relação de conjunção e disjunção entre o sujeito e o objeto. A fantasia é escrita como $a, e podemos lê-la como "sujeito barrado punção de a". Ela se apresenta como uma espécie de tela que recobre, sempre parcialmente, essa parte da experiência humana que escapa a qualquer simbolização e a que Lacan chamou de real. A escrita da fantasia situa o sujeito ($) em uma certa oposição em relação ao objeto (a). Tal relação, que Lacan chama de "polivalência", é explicitada pelo losango da punção (), composto por dois termos: a disjunção (v) e a conjunção (^) (Lacan, 1962-1963/2005, p. 193). Podemos entender a punção como a escrita de uma alternância, na qual prevalece o sujeito ou o objeto, mas nunca os dois ao mesmo tempo. A fantasia fundamental serve, assim, como uma matriz para a posição do sujeito em oposição ao objeto, e também como uma espécie de resposta do falante acerca do enigma do desejo do Outro (Lacan, 1960/1998, p. 829). É importante ressaltarmos, contudo, que as coordenadas dessa matriz não são apenas mapeadas em uma análise, mas, efetivamente, construídas ao longo de seu percurso.

Com isso, não podemos deixar de nos interrogar se aquilo que se repete como traço no estilo estaria relacionado a essa dimensão na qual a pulsão reitera seu movimento ao contornar o objeto. Seria o estilo uma maneira específica de incluir - nos trajetos desenhados pela pulsão e nos arranjos determinados pelo enquadre da fantasia - esse objeto que, em última instância, é puro cavo?6

 

Considerações finais

Buscamos localizar a noção de estilo, primeiro nos campos da retórica, da teoria literária e das artes e, depois, no campo da Psicanálise, com um olhar específico para a forma pela qual o estilo é abordado em 1966, no ensino de Jacques Lacan. Em um primeiro momento, situamos o estilo como uma noção ampla, cuja investigação precisará levar em consideração a pluralidade de suas acepções, assim como os seus desdobramentos históricos. Em seguida, acompanhamos a sequência de passos percorridos por Lacan acerca do estilo em seu texto de abertura da coletânea dos Escritos. Vimos que Lacan (1966/1998, p. 9) parte da afirmação de Buffon, "o estilo é o próprio homem", apenas para seguir para a formulação segundo a qual "o estilo é o homem a quem nos endereçamos". Com esse passo, o psicanalista inclui, na problemática do estilo, a noção do Outro como interlocutor eminente do discurso. Detivemo-nos nesses dois passos, com o intuito de os relacionarmos aos desenvolvimentos históricos acerca do estatuto do estilo nos campos da Literatura e da Filosofia. A partir dessa articulação, foi possível estabelecer que a noção de estilo, tal como abordada por Lacan, não parece se confundir com a acepção clássica do termo, pautada na oposição entre fundo e forma.

Feito esse percurso, buscamos introduzir um terceiro passo, em relação ao qual lançamos a hipótese de que se trataria de um passo a mais, dado por Lacan, ao traçar uma relação íntima entre o estilo e o objeto da Psicanálise - denominado objeto a. Vimos que, para abordar o objeto em sua articulação com o estilo, seria preciso, primeiro, percorrer a relação entre o objeto e a constituição do sujeito. Em seguida, foi necessário localizarmos alguns dos pontos de aproximação entre o objeto e outros dois conceitos fundamentais: a pulsão e a repetição. Finalmente, abordamos a fantasia como enquadre, no qual os termos detalhados anteriormente se articulariam. Mais especificamente, vimos que a fantasia estabelece as coordenadas para os arranjos da relação muito singular que se constitui entre o sujeito e objeto - objeto esse que se configura, ao mesmo tempo, como causa de desejo e como resto, lixo ou rebotalho. Assim, foi preparado o terreno para uma questão que não tivemos a intenção esgotar no escopo deste artigo: como situar o objeto em relação ao estilo, visto que o objeto se articula, ao mesmo tempo, com a pulsão, a repetição e a fantasia?

Para concluir, abrimos o escopo de nosso tema para uma interrogação que se relaciona diretamente com a clínica psicanalítica. Fomos conduzidos, ao final dessa investigação sobre o estilo, ao tema da fantasia. No final de seu Seminário de 1964, Lacan se interroga sobre o estatuto da fantasia (e também da pulsão), na saída de uma análise.7 Enquanto o percurso de uma análise pode ser concebido, em algum ponto, como um trabalho de construção da fantasia, o fim de análise, tal como postulado por Lacan (1964, p. 264) diz respeito ao atravessamento da fantasia. Seguindo essa lógica, se é a fantasia que fornece as coordenadas para a maneira pela qual o sujeito se situa em relação ao objeto causa de desejo, que tipo de relação podemos vislumbrar entre o sujeito e o objeto com o atravessamento da fantasia - travessia essa que Lacan estabelece como um dos paradigmas do final de análise? Uma vez que Lacan relaciona o estilo ao objeto, perguntamos, ainda: que efeitos essa travessia poderá ter sobre o estilo? Em que lugar podemos situar o objeto, chave para desvendar o mistério do estilo, ao final de uma análise? Conservaremos essas interrogações finais com o intuito de que possam servir como norte para o prosseguimento da nossa pesquisa.

 

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1 Este artigo é fruto de uma pesquisa de Mestrado em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), subsidiada pela Capes, e contou com as contribuições da pesquisa "A voz e seus limites", desenvolvida no contexto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica: Psicanálise, Clínica e Cultura, da PUC-Rio, com apoio do CNPq, sob a coordenação de Marcus André Vieira.
2 Em contrapartida, Leyla Perrone-Moisés (2012, p. 75) define conceito como uma "representação mental geral e abstrata de um objeto".
3 Uma referência semelhante pode ser encontrada no texto A subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano, no qual Lacan (1960/1998, p. 815) aponta que "esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real".
4 Em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan (1960/1998, p. 818) faz referência ao texto desconhecido, tatuado na carne do sujeito: "o sujeito que traz sob sua cabeleira o codicilo que o condena à morte não sabe nem o sentido nem o texto, nem em que língua ele está escrito, nem tampouco que foi tatuado em sua cabeça raspada enquanto ele dormia".
5 Em seu livro Estilo e verdade em Jacques Lacan (2013), Gilson Iannini esquematiza a formulação de Lacan sobre o estilo de maneira diferente, em cinco etapas: "(i') o estilo não é o homem; (ii') o que define o estilo é a queda do objeto; (iii') a queda do objeto é causa do desejo; (iv') o sujeito se eclipsa em seu desejo; (v') o objeto funciona como suporte do sujeito entre verdade e saber" (Iannini, 2013, p. 304). Optamos, aqui, por uma subdivisão mais ampla, que nos permitisse abordar a formulação de Lacan segundo as três temáticas gerais de nossa discussão: o homem, o Outro e o objeto.
6 Uma ideia semelhante, encontrada no texto Do objeto à letra (Vieira, 2018, p. 157), pode dar sustentação a essa pergunta: "o estilo não é a reiteração de um dizer, mas sim de um impossível de dizer, e sem que seja o signo de um fracasso, pois ele é a presença reiterada, em nosso modo de ser, daquilo que este modo não poderá nunca ser ou dizer".
7 "Como, um sujeito que atravessou a fantasia fundamental, pode viver a pulsão?" (Lacan, 1964/2008, p. 264).

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