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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.15 São João del Rei jul./dez. 2019

 

Pesquisa em Psicanálise na Universidade: seguindo o método freudiano

 

Psychoanalysis Research at University: following Freud's method

 

Recherche Universitaire en Psychanalyse: suivre la méthode freudienne

 

Investigación en Psicoanálisis en la Universidad: siguiendo el método freudiano

 

 

Nadja Nara Barbosa PinheiroI; Rosane Zétola LustozaII; Débora Patrícia Nemer PinheiroIII

IPsicóloga. Doutora e Mestre em Psicologia com Pós-Doutorado em Psicopatologia e Psicanálise em Paris-7. Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do GT ANPEPP Psicanálise e Clínica Ampliada. Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
IIPsicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
IIIPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Doutora em Psicologia Clínica - Método Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Responsável Técnica pelo Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Psicanalista

 

 


RESUMO

A observação de que os alunos que integram a pós-graduação em Psicologia apresentam dúvidas quanto à definição do método de pesquisa próprio à Psicanálise deu início às considerações efetuadas no presente artigo. Nele, sem a intenção de apresentar uma proposta universal, as autoras defendem a tese de que o modo de construção utilizado por Freud na edificação da Psicanálise pode ser adotado como Método de Pesquisa em Psicanálise nas universidades. Com esse objetivo, discorrem sobre o momento inaugural do saber psicanalítico destacando que, desde seu início, Freud adota uma metodologia própria por meio da qual a condução clínica interroga o arcabouço teórico que a sustenta, indicando a necessidade de que esta sofra constantes processos de formalização.

Palavras-chaves: Método. Pesquisa. Psicanálise. Universidade. Freud.


ABSTRACT

The observation that students applying for the postgraduate degree in Psychology have doubts about the definition of the method of research proper to Psychoanalysis has triggered the considerations made in the present paper. In it, without the intention to present a universal proposition, the authors support the thesis that the method used by Freud in the construction of psychoanalysis' foundation can be used as a method of research in Psychoanalysis at Universities. With this aim, they present psychoanalysis birth moment, emphasizing that, since its beginning, Freud has adopted a singular methodology through which clinical management interrogates the theoretical framework that sustains it, indicating that constants processes of formalization are necessary.

Keywords: Method. Research. Psychoanalysis. University. Freud.


RÉSUMÉ

L'observation selon laquelle les étudiants de deuxième et troisième cycle en psychologie ont des doutes quant à la définition de la méthode de recherche propre à la psychanalyse est à l'origine des considérations formulées dans cet article. Sans vouloir présenter une proposition universelle, les auteurs défendent la thèse selon laquelle le mode de construction utilisé par Freud dans la edification de la psychanalyse peut être adopté comme méthode de recherche en psychanalyse dans les universités. À cette fin, les auters présents le moment inaugural de la naissance de la psychanalyse, en soulignant que, depuis sa création, Freud a adopté sa propre méthodologie par laquelle la gestion clinique questionne le cadre théorique qui la soutient, en indiquant la nécessité de la soumettre à des processus de formalisation constants.

Mots-clés: Méthode. Recherche. Psychanalyse. Université. Freud.


RESUMEN

La observación de que los estudiantes de posgrado en Psicología tienen dudas sobre la definición del método de investigación propio del Psicoanálisis inició las consideraciones hechas en este artículo. En él, sin pretender presentar una propuesta universal, los autores defienden la tesis de que el modo de construcción de Freud en la edificación del psicoanálisis puede adoptarse como método de investigación en psicoanálisis en las universidades. Con este fin, discuten el momento inaugural del conocimiento psicoanalítico, enfatizando que, desde su inicio, Freud ha adoptado su propia metodología mediante la cual el manejo clínico cuestiona el marco teórico que lo respalda, lo que indica la necesidad de que se someta a constantes procesos de formalización.

Palabras clave: Método. Investigación. Psicoanálisis. Universidad. Freud.


 

 

Introdução

A Universidade se caracteriza pela produção e transmissão do saber produzido para os agentes que dela participam, com destaque para a relação docente-discente. Nela, almejamos, dos discentes, interesse e desejo por pesquisas em torno de uma problemática conceitual e/ou empírica, restando ao docente a transmissão de um constructo teórico apoiado no modelo ontológico, heurístico, epistemológico e metodológico. Nessa perspectiva, na história e no desenvolvimento da Psicanálise, formularam-se, desde Freud, diversas propostas de teorização para problemas específicos da clínica, como verificado nos ensinos de Winnicott, Lacan ou Green. Talvez essa diversidade seja a responsável pela dificuldade, que percebemos em nossos alunos, em especificar o método de pesquisa próprio à Psicanálise, o qual deveria orientar as formalizações a serem produzidas em suas dissertações.

Cientes de que inúmeras são as possibilidades, assim como inúmeros são os autores que trataram (e tratam) desse tema, nossa proposta, neste curto ensaio, será a de sustentarmos a tese de que seja cabível tomarmos o percurso freudiano de construção da Psicanálise como modelo paradigmático para a condução de uma pesquisa acadêmica em Psicanálise no âmbito universitário. Nossa intenção, portanto, não será a de esgotarmos o assunto, nem tampouco a de oferecermos um manual de metodologia psicanalítica, mas, exclusivamente, a de apresentarmos coordenadas no sentido de viabilizar a pesquisa em Psicanálise, nas universidades, tomando o percurso freudiano como exemplar. Nesse sentido, por meio da trajetória freudiana, tentaremos demonstrar que uma investigação que se pretenda psicanalítica deve tomar como ponto de origem um impasse suscitado ao longo do desenvolvimento de um tratamento clínico psicanalítico. Uma questão, portanto, que insere, no analista, uma dúvida em relação à teoria que sustenta sua práxis e que obriga o analista disposto a enfrentar tal problema a fazer um movimento de retorno à teoria, objetivando melhor compreender o impasse que a própria clínica engendrou. Nesse procedimento, uma investigação sucede o impasse clínico, promovendo, temporariamente, uma escansão entre teoria e clínica em prol de uma formalização conceitual. Formalização essa que promoverá, em um terceiro momento, um retorno à clínica, na medida em que o analista à clínica retornará munido de referências teóricas mais rigorosas que lhe trarão sustentação na condução de sua práxis.

No presente ensaio, nossa proposta será a de sustentar que, nesse modelo tritemporal de trabalho, a pesquisa na universidade se ocupa do segundo momento. Tratando-se, portanto de um processo de formalização conceitual. O momento clínico que o antecede e o retorno à clínica que o sucede não se refere à pesquisa na universidade propriamente dita, embora dela seja parte integrante e indispensável. Em nossa opinião, tal modelo metodológico se configura como estritamente freudiano.

 

O início

Em inúmeros momentos de sua obra, Freud (1910/1986; 1914a/1986; 1940/1986) fez questão de indicar que a construção da Psicanálise, como campo de saber específico, encontra-se intrinsecamente interligada ao trabalho clínico que desenvolveu no âmbito da nascente Neurologia no fim do século XIX. Mais precisamente, o trabalho que desenvolveu proximamente a seu amigo e companheiro, o médico J. Breuer, que, ao apresentar a Freud suas hipóteses a respeito da etiologia da histeria e o método de tratamento desenvolvido para esse tipo de adoecimento, abriu as portas à construção da Psicanálise.

Gostaríamos de destacar, nessa construção, o ingresso de Freud no terreno de saber neurológico que vinha sendo construído por Breuer e outros cientistas à época. Freud, portanto, iniciou sua prática clínica sustentado por uma teoria que tentava dar conta da construção de uma neurose histérica. Teoria essa que se pautava em um modelo mecânico e simples. Para os autores, o aparelho psíquico era movimentado por uma energia proveniente de estímulos tanto internos quanto externos. Essa energia era a responsável por ligar as representações mentais de forma a permitir que cada sujeito respondesse às exigências que a vida cotidiana lhe impunha. Segundo os autores, o nível energético, no aparelho psíquico, deveria se manter em equilíbrio. Isto é, nem chegar a um nível extremamente baixo de forma a deixar a pessoa sem energia e forças para viver, nem alto demais a ponto de desorganizar o pensamento levando aos estados alterados da mente. Nessa perspectiva, para manter o equilíbrio, haveria modos de escoamento adequados à energia psíquica que incide sobre o aparelho mental. Segundo os autores, o escoamento energético seria possível por vários meios: a movimentação motora, a fala, a atenção, o pensamento, enfim, ações que respondem às vivências e escoam a energia de alguma forma, permitindo que o funcionamento mental cotidiano se processe de forma organizada (Breuer & Freud, 1893-1895/1986).

Partindo dessa proposta, os autores tentam traçar os processos que tornam possível a construção de uma neurose histérica. Propõem, então, que, para algumas pessoas, esse processo de recebimento e escoamento energético se torna patológico. Na histeria, especificamente, diante da vivência de uma experiência extremamente carregada de energia, a pessoa em questão não fora capaz de reagir adequadamente de forma a permitir o escoamento energético necessário à manutenção de seu equilíbrio. Diante dessa dificuldade, dois movimentos foram produzidos: a) o esquecimento da experiência vivenciada e, em consequência, o corte de suas associações com as outras representações mentais que compunham a consciência, dividindo-a; b) por seu turno, a energia que estava, inicialmente, acoplada à experiência vivenciada, deveria receber um escoamento. O fato de não haver sido produzida uma reação à vivência, culminando em seu esquecimento, impede que esse escoamento se dê pelas vias adequadas (pensamento, fala, motilidade, etc.). Nesses casos, a possibilidade de escoamento encontrada pela paciente se localiza no endereçamento da energia pelas vias das enervações somáticas, energizando uma função motora e desorganizando-a: uma paralisação se impõe e um sintoma, no corpo, se instaura. O sintoma histérico, portanto, se sustenta sobre a energia psíquica desviada de seu processo de escoamento normal que inicialmente se relacionava a uma vivência cotidiana. Assim, uma proposta de tratamento pôde ser edificada. Nela, devia-se partir do sintoma de forma a permitir a rememoração da experiência vivenciada. Uma vez a lembrança da cena fosse alcançada, a paciente poderia produzir um escoamento adequado à energia patologicamente desviada à enervação somática. (Re)memorar a experiência, (re)contá-la em detalhas, (re)vivê-la afetivamente permitia uma reação, postergada à experiência original que se tornara traumática. O método de tratamento, portanto, promovia uma catarse, uma ab-reação ao afeto que ficara aprisionado, investindo o sintoma histérico. Por meio dele, a experiência esquecida era (re)ligada ao fluxo associativo, desfazendo a divisão da consciência e a energia psíquica era escoada adequadamente, desfazendo-se o sintoma (Breuer & Freud, 1893-1895/1986).

Nesse sentido, a teoria do trauma, que postulava como mecanismos básicos da histeria a divisão da consciência e a conversão do afeto à esfera somática e o método catártico que propunha como solução a ab-reação do afeto estrangulado, era a coordenada que sustentava Freud na condução dos primeiros tratamentos que dedicou à histeria. Ou seja, o que queremos destacar com isso é o fato de Freud, no início de seu trabalho, contar com recursos teóricos básicos na condução dos processos clínicos.

No entanto, percebemos que o desenrolar dos tratamentos vão apresentando a Freud impasses importantes que o fazem questionar a pertinência da teoria que o sustenta. Que o fazem colocar sob suspeita a adequação da teoria do trauma e, em consequência, a adequabilidade do método catártico.

 

Os impasses

Embora os sintomas fossem eliminados e as cenas traumáticas recuperadas pela consciência, rapidamente Breuer e Freud se depararam com algumas limitações. Em um curto espaço de tempo, todo o arranjo histérico era recuperado. As cenas traumáticas novamente esquecidas e os sintomas reconstruídos. Questões importantes surgiram em decorrência: por que o adoecimento retornava? O que provocaria a divisão da consciência? Seria a magnitude da intensidade da vivência traumática? Ou seria efetivada por uma vontade desconhecida pela paciente? (Freud, 1895/1986).

Além disso, o tratamento catártico desenvolvido por Breuer e Freud contava com a hipnose como instrumento necessário tanto à recordação da cena traumática quanto à eliminação do sintoma, na medida em que o médico, quando o paciente acessava a recordação, promovia uma sugestão direta ao paciente, indicando que o sintoma não seria mais necessário. No entanto, tal procedimento se deparou com algumas dificuldades. Por um lado, Freud se questiona a respeito do poder que o médico, por meio da sugestão, exerce sobre seu paciente, tornando-o prisioneiro de sua vontade. Uma questão ética importante que rondará toda a construção da Psicanálise, mesmo depois do abandono da hipnose como instrumento clínico, posto que, no âmbito da transferência, o poder sugestivo persiste (Freud, 1921/1986).

Por outro lado, nem todos os pacientes eram hipnotizáveis. Alguns, diante da insistência de Freud, se mantinham conscientes e se recusavam a serem hipnotizados. Freud (1895/1986) se questiona: seria ele um péssimo hipnotizador? Ou essa habilidade depende da vontade do paciente em ser hipnotizado? O paciente teria que aceitar, inconscientemente, ser hipnotizado? Era ele que dotava o médico de poder?

O abandono da hipnose permitiu avanços teóricos na solução desses impasses, pois, ao solicitar que as pacientes discorressem sobre seus sintomas no estado normal de consciência, permitiu a Freud (re)organizar seu edifício teórico. Em primeiro lugar, ele percebe que a solicitação feita ao paciente de livre-associar acarreta algumas consequências. Por mais que o paciente concorde com a indicação, logo uma resistência ao avanço à recordação da cena traumática se apresenta. Freud (1895/1986) levanta a hipótese: se há resistência à recordação é porque há a ocorrência de forças opostas no mesmo paciente. Por um lado, há a vontade deliberada de recordar para se livrar de seu padecimento; por outro, e em sentido contrário, há uma força que se opõe à recordação. Novo impasse clínico que necessita de uma resposta teórica. Que forças são essas? Por que elas se opõem?

Freud prossegue em sua escuta e percebe que cada cena recuperada pela paciente dizia respeito a uma vivência que havia suscitado enorme sofrimento. Levanta a hipótese, então, de que a resistência estaria representando um processo defensivo efetuado pelo paciente ao se deparar, anteriormente, com vivências causadoras de dor psíquica. A divisão da consciência seria o resultado de um processo defensivo efetuado pelo paciente para não ter que lidar com uma vivência desprazerosa. E mais, Freud (1895/1986) percebe, por sua escuta, que essas cenas são todas relacionadas com o tema da sexualidade.

 

Formalizações conceituais

Diante dessas questões que surgiram ao longo dos processos clínicos, Freud não se furta em promover uma (re)estruturação conceitual que lhe forneça recursos teóricos em vistas a compreender os dois eixos de tematização abertos: as forças psíquicas e a sexualidade. Não à toa, assistimos os esforços do autor no sentido de construir a primeira teoria pulsional (Freud, 1905/1986; 1915/1986). Por outro lado, a sexualidade é definida, em termos teóricos, pelo prisma da Psicanálise, no qual a própria organização psíquica se funda sob seu primado. Por fim, pulsão e sexualidade precisam ser relacionadas com a divisão da consciência e os modos por meio dos quais as representações e os afetos, concernentes a cada um desses estratos psíquicos constituídos como resultante da própria divisão psíquica, são organizados. Nesse sentido, percebemos que o estudo dos processos oníricos auxiliam Freud (1900/1986) a responder, em termos teóricos, essas questões, posto que o autor constrói um edifício teórico excepcional que o permite formalizar, em termos conceituais, as leis que regem o inconsciente e o consciente, assim como os mecanismos que permitem que as relações entre um e outro sejam efetivadas.

Esses são os pontos principais destacados, pelo autor, na edificação daquilo que ficou conhecido como a primeira tópica freudiana em torno da estruturação de uma metapsicologia que se propunha a entender, formalmente, as dimensões econômica, dinâmica e tópica de cada um dos fenômenos psíquicos. Ou seja, ele se afasta da condução clínica para construir teoria. Uma teoria que poderia melhor sustentar o direcionamento a ser proposto na clínica. Um direcionamento, que como sabemos, não cessa em apresentar novos questionamentos que demandam novas reorganizações e construções no campo teórico, uma vez que Freud (1914b/1986) logo percebe que, no âmbito da transferência, há um resto pulsional que não cessa de se repetir, a despeito dos esforços clínicos em transformá-lo. Uma repetição que traz à tona um desprazer fundamental que sustenta alguns mecanismos psíquicos difíceis de serem compreendidos em termos teóricos. Qual a natureza dessa repetição? Por que o paciente insiste em não abrir mão de seu sofrimento? Por que, em alguns momentos, o próprio efeito terapêutico alcançado, pela clínica, é considerado como ameaça, tal como o revela a reação terapêutica negativa? Tentando sanar essas (e outras) questões, Freud (1920/1986; 1923/1986) abre novas configurações teóricas que se concentram, sobretudo, sobre a teoria pulsional assim como sobre a estrutura mental. A segunda tópica freudiana indica tais reformulações conceituais.

 

Considerações finais

Ao apresentarmos de forma sucinta o percurso freudiano na construção de seu monumental edifício teórico, nossa intenção foi a de demonstrarmos como seu modo característico de construí-lo pode ser tomado como modelo para o desenvolvimento de pesquisas, em Psicanálise, no âmbito dos programas de pós-graduação.

Em nossas argumentações, destacamos que Freud inicia seu trabalho sustentado por uma teoria sobre o adoecimento histérico compartilhada com colegas médicos que o antecederam, entre os quais figura Breuer. A teoria do trauma era o arcabouço teórico que sustentava a proposta clínica dos autores de eliminação dos sintomas por meio da catarse. Com isso, desejamos frisar que Freud inicia seu trabalho contando com alguns recursos teóricos os quais vão sendo minados pelo próprio desenrolar clínico. A teoria, percebe Freud, apresenta pontos de fragilidade, de inconsistência e o autor se vê obrigado a promover um esforço de formalização em prol do alcance de uma teoria mais sólida. Um patamar teórico que, sem sessar, é submetido a questionamentos pelo desenrolar clínico.

Em nossa opinião, podemos adotar esse movimento que norteia Freud ao longo de seu trabalho como norte para o desenvolvimento de pesquisas em Psicanálise, nas universidades. Isso porque aqueles que procuram os cursos de pós-graduação iniciaram suas clínicas contando com um arcabouço teórico inicial alcançado em seus cursos de graduação. Posteriormente, o desenrolar da clínica introduz questões que recaem sobre o próprio edifício teórico que a sustenta, posto que é na teoria que se encontra as diretrizes para o manejo clínico. O próximo passo dado, então, será o de retorno à teoria em prol de uma formalização conceitual mais rigorosa que dê sustentação à clínica.

Acreditamos que seja esse o circuito que remete à busca por uma pesquisa no âmbito universitário, pois uma questão que tem sua origem no desenrolar clínico insere uma dúvida no campo teórico que necessita ser solucionada, uma vez que dessa solução dependerá a direção da clínica. A solução do problema teórico se torna possível por meio do desenvolvimento de uma pesquisa nas universidades. Nelas, os alunos encontrarão as condições necessárias ao processo de formalização conceitual de suas dúvidas teóricas. E em um momento posterior tal formalização os sustentarão em suas clínicas. Clínica que, sem cessar, produzirá novas indagações.

Neste ponto, vale perguntar: em que consiste isso que chamamos de retorno à teoria? Admitir que a teoria é nosso guia na escuta clínica não entra em choque com o postulado segundo o qual, na Psicanálise, a prática não é uma aplicação da teoria? De forma alguma, já que a teoria é necessária como matriz que nos orienta em nossa atividade. Sem a rede conceitual da teoria, qualquer escuta seria impossível; é ingênuo supor que o analista deveria atuar como simples tabula rasa, que se limitaria a registrar de forma passiva o que é dito. O que se defende aqui é que a teoria é a condição que torna possível a escuta; porém, como toda condição, não está imune à necessidade de revisão, uma vez que esse próprio quadro teórico pode revelar-se limitado frente à experiência clínica.

Diante de uma dificuldade clínica, há duas possibilidades a serem investigadas do lado do analista. Uma é que a relação do analista aos princípios que balizam sua prática tenha sido perturbada pela sua própria subjetividade, por aquilo que suas fantasias ou sintomas funcionam como obstáculo à escuta. A outra, a qual este ensaio se dedicou de forma mais pormenorizada, é a de que o próprio princípio tenha sido questionado pelo caso clínico, exigindo por essa razão uma revisão da teoria. Isso é o que nomeamos como impasse; algo que não encontrou resolução num quadro de referência estabelecido, sem que se tenha ainda achado um quadro novo que possa integrar tal elemento.

Neste ponto, poderia ser levantada uma interessante objeção. Não seria essa distinção proposta um tanto artificial, a saber, a distinção entre uma questão subjetiva do analista que estorva seu entendimento da teoria e uma dificuldade puramente teórica? Existem dificuldades puramente teóricas na análise, ou será que a dificuldade se deve sempre a uma resistência por parte do analista, o que significa evidentemente a subsistência de um ponto cego mal-analisado em sua escuta?

Parece inegável que qualquer teoria em Psicanálise sofre também a incidência da análise - ou das limitações da análise - do próprio analista. Nesse sentido, sim, não existe teoria separada de um certo entendimento sobre a clínica, o que implica tanto a posição do analista quanto as suas intervenções. A fim de entender melhor esse problema, analisemos o seguinte exemplo: um praticante da Psicanálise pode perfeitamente se surpreender ao descobrir pela primeira vez, em sua análise pessoal, a subsistência em si do Complexo de Édipo. Esse é sem dúvida um avanço considerável em seu tratamento, que pode levá-lo a uma compreensão mais profunda da teoria. Porém, trata-se aqui de seu avanço particular dentro da teoria psicanalítica, não de um avanço da própria teoria. Ao passo que, quando Winnicott propõe novos conceitos para pensar os processos primitivos da constituição subjetiva, ou quando Lacan se propõe a formalizar um além do Édipo, tais autores estão propondo reformulações da própria Psicanálise (por menos que concordemos com eles, pouco importa aqui).

Porém, não se trata aqui de desconsiderar o primeiro tipo de pesquisa como irrelevante. Afinal de contas, a Psicanálise precisa de uma comunidade de analistas que possa sustentar seu discurso e sua prática na civilização. Sem analistas não há Psicanálise, portanto, a formação de cada um depende de se refazer em alguma medida o percurso freudiano. Mas o ponto principal a ser destacado é que, em qualquer dos casos acima citados - seja o impasse motivado por uma limitação da análise pessoal do analista, seja motivado por uma limitação da teoria -, entendemos que a pesquisa freudiana continua a ser modelar por mostrar a indissociabilidade entre investigação e tratamento.

 

Referências

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