SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue15Freud with Hegel: Lacan's operationThe necessary dialog: clinical and mental health author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.15 São João del Rei July./Dec. 2019

 

Abuso sexual de crianças e adolescentes: trauma e transmissão psíquica

 

Sexual abuse of children and adolescents: trauma and psychic transmission

 

L'abus sexuel des enfants et des adolescents: le traumatisme et la transmission psychique

 

Abuso sexual de niños y adolescentes: trauma y transmisión psíquica

 

 

Carolina Cardoso Colhante de SouzaI; Maíra Bonafé SeiII

IPsicóloga. Especialista em Psicanálise pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (Necpar). Funcionária pública no município de Cândido Mota, com atuação no Centro de Referência de Assistência Social (Cras). E-mail: carol.colhante@gmail.com
IIPsicóloga, Mestre, Doutora e Pós-Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e Psicanálise e Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mairabonafe@uel.br

 

 


RESUMO

Entender a vivência do abuso sexual sofrido por crianças e adolescentes e suas consequências mostra-se necessário para a prevenção de novas situações e proteção desses indivíduos. Com isso, objetivou-se discorrer e refletir, a partir de uma revisão narrativa da literatura, pautada no referencial psicanalítico, sobre as consequências do abuso sexual no campo intrapsíquico, trazendo considerações acerca do trauma, e intersubjetivo, com apontamentos relacionados à transmissão psíquica transgeracional e seus possíveis resultados nas escolhas futuras do indivíduo. Observou-se que a experiência do abuso sexual é um evento traumático, com efeitos negativos na organização psíquica das vítimas, podendo trazer prejuízos consideráveis para a subjetividade individual e para as gerações seguintes, por meio da transmissão psíquica geracional.

Palavras-chave: Abuso sexual. Psicanálise. Consequências. Trauma psíquico. Transmissão psíquica.


ABSTRACT

Understand the experience of sexual abuse of children and adolescents and its consequences is shown necessary to prevent new situations and protection of these individuals. Thus, it aimed to discuss and reflect, from a narrative review of the literature, based on psychoanalysis, on the consequences of sexual abuse in the intra-psychic field, taking into consideration the trauma, and the inter-subjective field with a focus on transgenerational psychic transmission and its possible outcomes in the future choices of the individual. It was observed that the experience of sexual abuse is a traumatic event, with negative effects on the psychic organization of victims, can bring considerable damage to the individual subjectivity and for next generations through the generational psychic transmission.

Keywords: Sexual abuse. Psychoanalysis. Consequences. Psychic trauma. Psychic transmission.


RÉSUMÉ

Comprendre l'expérience de l'abus sexuel des enfants et des et la protection et la protection et la protection est quelque chose de nécessaire pour la prévention de nouvelles situations et la protection de ces individus. Ainsi, il visait à discuter et réfléchir, à partir d'un examen narratif de la littérature, sur la base de la psychanalyse, relative aux conséquences de la violence sexuelle dans le domaine intra-psychique, apportant des considérations au sujet du traumatisme, et la protection intersubjective avec des notes liées à la transmission psychique transgénérationnelle et la protection ses résultats possibles dans les futurs choix de l'individu. Il a été observé que l'expérience de la violence sexuelle est un événement traumatique, avec des effets négatifs sur l'organisation psychique des victimes, qui peut apporter des dommages considérables à la subjectivité individuelle et pour les générations à travers la transmission psychique entre générations.

Mots-clés: L'abus sexuel. La Psychanalyse. Conséquences. Traumatisme psychique. Transmission psychique.


RESUMEN

Entender la vivencia del abuso sexual de niños y adolescentes y sus consecuencias es necesario para la prevención de nuevas situaciones y protección de estos individuos. Con ello, se objetivó discurrir y reflexionar, a partir de una revisión narrativa de la literatura, pautada en el referencial psicoanalítico, sobre las consecuencias del abuso sexual en el campo intrapsíquico, trayendo consideraciones acerca del trauma, e intersubjetivo con apuntes relacionados a la transmisión psíquica transgeneracional y sus posibles resultados en las elecciones futuras del individuo. Se observó que la experiencia del abuso sexual es un evento traumático, con efectos negativos en la organización psíquica de las víctimas, pudiendo traer perjuicios considerables para la subjetividad individual y para las generaciones siguientes, por medio de la transmisión psíquica generacional.

Palabras clave: Abuso sexual. Psicoanálisis. Consecuencias. Trauma psíquico. Transmisión psíquica.


 

 

Introdução

Entender a vivência do abuso sexual por crianças e adolescentes e suas consequências - individuais, familiares e na própria sociedade - é uma questão de extrema importância quando se tem em mente a prevenção de novas situações e a proteção desses indivíduos. O assunto é delicado e desperta os mais variados sentimentos por parte dos diversos profissionais que se deparam com a informação de que uma criança ou adolescente foi abusado sexualmente. Alguns sentem raiva, nojo, indignação, vontade de agredir o malfeitor, outros não acreditam e, ainda, há aqueles que culpam a vítima pelo que lhe aconteceu.

A verdade é que o abuso sexual é muito mais comum do que se pode imaginar e os casos noticiados pelas mídias sociais, denunciados no Disque 100 ou que chegam ao conhecimento de instituições que trabalham com as vítimas e seus familiares mostram apenas uma pequena parte da realidade. Diante da importância da compreensão de questões que permeiam esse tipo de fenômeno, este artigo tem como objetivo discorrer e refletir, a partir do referencial teórico psicanalítico, sobre as consequências do abuso sexual no campo intrapsíquico, trazendo considerações acerca do trauma, e intersubjetivo, com apontamentos relacionados à transmissão psíquica transgeracional, e seus possíveis resultados nas escolhas futuras do indivíduo.

Trata-se de uma revisão narrativa da literatura para a qual foram consultados livros e artigos científicos disponíveis nas bases de dados PePSIC, SciELO e Google Acadêmico a respeito do tema. Os descritores utilizados foram: abuso sexual, psicanálise, trauma psíquico, transmissão psíquica e consequências. A escolha da revisão narrativa da literatura deu-se pela característica desse tipo de revisão, na qual, de acordo com Hohendorff (2014, p. 41), objetiva-se "organizar, integrar e avaliar estudos relevantes sobre determinado tema". Além disso, entende-se que

a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem torna-se particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados muito dispersos pelo espaço. (Gil, 2002, p. 45)

 

Algumas considerações sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes

Azevedo e Guerra (2007) definem o abuso sexual como qualquer contato entre uma criança ou adolescente com alguém mais desenvolvido psicossexualmente e que as use para a própria estimulação sexual. Esse contato pode englobar desde palavras obscenas, carícias, voyeurismo, exibicionismo, apresentação de pornografia, até o sexo oral e a penetração propriamente dita, que pode acontecer inclusive com uso de violência, como acontece no estupro.

Os diversos autores que estudam a temática do abuso sexual afirmam que a situação pode acontecer fora da família, intitulado como extrafamiliar, em que o agressor é um estranho ou alguém que não pertence ao ciclo familiar, ou dentro desta, denominado como intrafamiliar, no qual o abusador é conhecido da vítima e há uma proximidade afetiva. Constatam ainda que a violência intrafamiliar é a mais comum, sendo os agressores principalmente do sexo masculino: pais, padrastos, avôs, tios, etc. (Azevedo & Guerra, 2007; Furniss, 2002; Gabel, 1997; Ferrari & Vecina, 2002; Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005; Habigzang, Corte, Hatzenberger, Stroeher & Koller, 2008; Malgarim & Benetti, 2010).

Quanto aos danos para a vítima, Ferrari (2002) pontua quão negativa é a experiência do abuso sexual para as vítimas, já que crianças e adolescentes estão em uma fase de desenvolvimento e não se encontram maduros para consentir qualquer das atividades mencionadas, o que leva a crer que o agressor consegue agir por meio de ameaças e/ou violência. Nesse sentido, Correa (2007) entende que todo tipo de violência é traumático, mas a violência intrafamiliar traz prejuízos consideráveis para a subjetividade.

Entende-se que as consequências do abuso sexual para crianças e adolescentes são muitas e afetam todos os aspectos da vida (físico, cognitivo, psicológico e social). Entre elas podemos destacar: distúrbios de sono e alimentação, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, hematomas, doenças psicossomáticas (físicos); problemas de aprendizagem, falta de atenção e concentração (cognitivos); culpa, depressão, transtorno do estresse pós-traumático, baixa autoestima, agressividade, irritabilidade, ansiedade, medo, comportamento regressivo (psicológicos); comportamento hipersexualizado, isolamento, autoagressão, prostituição, revitimização, uso/abuso de álcool e outras drogas e até suicídio (sociais) (Ferrari, 2002; Habigzang et al., 2005; Habigzang et al., 2008; Malgarim & Benetti, 2010).

Sobre o impacto do abuso sexual para a vítima, Habigzang et al. (2008) mencionam três grupos de fatores que precisam ser levados em conta: intrínsecos à vítima (vulnerabilidade e resiliência), extrínsecos (suporte social e afetivo) e aqueles que dizem respeito à própria violência (intra ou extrafamiliar, tempo, grau de violência, atitude dos mais próximos na revelação).

De acordo com pesquisa realizada por Habigzang et al. (2005) no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, as famílias nas quais ocorre o abuso sexual são permeadas de fatores que potencializam a ocorrência da situação, os fatores de risco. São eles:

pai e/ou mãe abusados ou negligenciados em suas famílias de origem; abuso de álcool e outras drogas; papéis sexuais rígidos; falta de comunicação entre os membros da família; autoritarismo; estresse; desemprego; indiferença; mãe passiva e/ou ausente; dificuldades conjugais; famílias reestruturadas (presença de padrasto ou madrasta); isolamento social; pais que sofrem de transtornos psiquiátricos; doença, morte ou separação do cônjuge; mudanças de comportamento da criança, incluindo conduta hipersexualizada, fugas do lar, diminuição no rendimento escolar, uso de drogas e conduta delinquente. (Habigzang et al., 2005, p. 342)

Os resultados da pesquisa vão ao encontro de dados informados em diversos estudos já realizados acerca do abuso sexual. Grande parte das vítimas são meninas e os abusos começam, geralmente, de forma mais sutil quando são menores e vão se intensificando conforme elas crescem. A revelação costuma demorar pelo menos um ano para acontecer, sendo que em muitas situações a vivência do abuso perdura por muitos anos (Azevedo & Guerra, 2007; Habigzang et al., 2005; Malgarim & Benetti, 2010).

Segundo Furniss (2002), a dificuldade que as vítimas têm em contar para alguém sobre as experiências de abuso deve-se à dinâmica desse tipo de violência, que envolve a Síndrome de Segredo e a Síndrome de Adição. Na primeira, já que o abuso é visto como algo terrível diante da sociedade, o agressor utiliza estratégias para que a vítima não traga a situação à tona. Ele ameaça fazer mal a ela ou a alguém importante (mãe, irmãos), afirma que se contar para alguém não acreditarão nela ou a culparão pelo que aconteceu, ou ainda que será responsabilizada pela tristeza da mãe e separação da família, oferece presentes e, dependendo da idade da criança, leva-a a entender que o que acontece entre ela e o abusador é apenas um carinho e que é o "segredo" deles.

A Síndrome de Adição caracteriza-se pela compulsão do agressor, que não consegue controlar seu impulso em relação à criança ou adolescente e torna-se dependente dos atos de abuso. Ele tem consciência de que isso prejudica a vítima, pode até tentar parar, mas não consegue, pois é a sua forma de aliviar a tensão, e o prazer gerado o leva a repetir e negar a situação.

Correa (2007) apresenta ideias semelhantes e discorre sobre o "medo e afetos contraditórios" aos quais as crianças e adolescentes ficam submetidos. Acabam caindo na armadilha do abuso tanto por fatores internos, como o medo de ser rejeitado pelo abusador ou pela família, quanto por fatores externos, como as ameaças e os jogos de sedução.

Um fator que não pode ser desprezado na compreensão do abuso sexual de crianças e adolescentes é a dinâmica familiar das famílias nas quais esse fenômeno é observado, os detalhes da história de vida de seus membros, o tipo de vínculo que os envolve, os processos que permeiam suas relações.

Para Machado (2002), quando há uma revelação de abuso sexual vivenciado por um filho, instala-se uma crise e muitos pais tornam-se relutantes em aderir ao tratamento devido à culpa que sentem por não terem desempenhado seu papel tão bem quanto se esperava. Outras vezes, buscam a ajuda de um psicólogo como forma de comprovar que tudo não passa de fantasia.

Almeida Prado e Féres-Carneiro (2005) apontam ainda para o fato de nossa sociedade ser adultocêntrica, centrada no adulto, em que esses indivíduos não estão prontos para ouvir e dar credibilidade ao que uma criança diz, especialmente se o que elas tiverem para contar puder causar transtornos na vida do adulto, como prejuízos financeiros, morais ou modificar uma configuração familiar cômoda.

Quanto a algumas características da dinâmica familiar, os estudos de Benghozi (2010) e Machado (2002) apontam que a indiscriminação de papéis e lugares é algo marcante nas famílias das vítimas. Desse modo, há uma repetição de histórias e de comportamentos incestuosos, as crianças podem ter dificuldade em saber quais os limites nas relações e, em algum momento, as vítimas tornam-se agressoras direta ou indiretamente.

Oliveira e Sei (2014) mencionam estudos que revelam que todos os tipos de abuso podem trazer consequências desastrosas, entretanto, quando o agressor é alguém importante na família e a violência perpetrada acontece por muito tempo e é pesada, com penetração sexual, o risco de que esse tipo de abuso se reproduza na geração seguinte é bastante alto.

Quanto ao papel da mãe na ocorrência do abuso, Goldfeder (2000) traz uma reflexão intrigante a esse respeito. A autora afirma que o abuso sexual entre pai e filha tem início nas relações pré-genitais da criança com sua mãe. A menina pode ser oferecida ao pai pela mãe como meio de concretização do seu próprio desejo edípico. Isso indicaria que a filha estaria submetida ao desejo incestuoso do casal parental e não apenas do pai. Sendo assim,

reatualiza-se toda uma cadeia transgeracional. O desejo materno, captado inconscientemente pela criança, vai ao encontro do próprio desejo incestuoso de fusão com a mãe. Quando a mãe não pode impedir o uso do corpo da criança pelo pai, deixando de ocupar o lugar de interditor e protetor da criança, podemos, de certa forma, considerá-la "cúmplice" desse pai. (Goldfeder, 2000, p. 18)

De acordo com as pesquisas de Correa (2007), é comum encontrar no histórico familiar das pessoas abusadas situações de abandono físico e/ou psíquico por parte dos pais. A partir disso, ela indica que estamos diante de uma patologia transgeracional, tema que será abordado em outro subtítulo, mais à frente neste artigo.

Deve-se ter em mente a ideia de Silva (2002), que aponta para a importância de buscar uma visão mais abrangente a respeito do abuso sexual, já que sua causa é multifatorial, envolvendo aspectos históricos, psicológicos e sociais.

Machado (2002) faz menção à mudança de concepção da criança e adolescente que vem ocorrendo na sociedade quando menciona o fato de as situações de abuso sexual virem à tona com maior frequência pelo fato de eles passarem a ser vistos como sujeitos de direito, direito à integridade física, psíquica e social.

Além do mais, devemos ter clareza de que, conforme nos informa o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Brasil, 1990), cada membro da sociedade é responsável por proteger, com absoluta prioridade, crianças e adolescentes de toda e qualquer forma de violência e exploração. Portanto, faz-se necessário compreender o abuso sexual para identificá-lo, denunciá-lo e preveni-lo.

 

Desenvolvimento emocional e trauma psíquico

Oliveira e Sei (2014) destacam a importância que o meio social tem no desenvolvimento emocional da criança e do adolescente, tendo em vista que o desenvolvimento de um indivíduo acontece a partir de sua relação com outro indivíduo. O bebê conhece o mundo pelo olhar de sua mãe, ou de quem desempenha a função materna. É essa pessoa quem traduz as necessidades do bebê, ser totalmente dependente. De igual modo, a criança vai crescendo e fica à mercê do que o ambiente oferece, seja o cuidado e proteção, seja a ausência destes.

Winnicott (1962/1983) entende que a mãe tem papel fundamental no desenvolvimento do bebê. Ele traz o conceito de preocupação materna primária, que diz respeito ao estado em que a mãe regride e identifica-se com seu bebê, podendo compreender e atender suas necessidades. Aquela que consegue desempenhar essa função é uma mãe suficientemente boa. Assim, "a mãe suficientemente boa é aquela que é capaz de satisfazer as necessidades do nenê no início, e satisfazê-las tão bem que a criança, na sua saída da matriz do relacionamento mãe-filho, é capaz de ter uma breve experiência de onipotência" (Winnicott, 1962/1983, p. 56). São essas experiências que vão, gradativamente, levando da dependência absoluta, à dependência relativa e possibilitando a independência.

Segundo Lejarraga (2008), Winnicott teoriza que, quando o ambiente é favorável, o bebê passa pelos estágios iniciais e seu contato com o mundo externo acontece por seus gestos espontâneos, o que vai estabelecendo a "continuidade de ser". Ele desenvolve confiança no ambiente e é essa experiência de ser a base do sentimento do si-mesmo.

Por outro lado, quando há falhas na capacidade da mãe (ambiente), o bebê precisa reagir ao que o ambiente lhe impõe. A espontaneidade dá lugar à reatividade e há uma ruptura na continuidade de ser. Essa ruptura é entendida como trauma por Winnicott e vem acompanhada das agonias impensáveis que ameaçam a integridade do ser, o medo é de ser aniquilado. Com isso, o indivíduo apela para o mecanismo de defesa mais primitivo, a cisão. Essa cisão ou separação acontece entre o verdadeiro e o falso self, na tentativa de proteger o primeiro para que não seja destruído (Lejarraga, 2008).

Winnicott (1962/1983) afirma que, quando há falhas no ambiente, a criança não consegue iniciar a maturação do ego, ou até o faz, mas de forma distorcida. Para ele, um ambiente seguro leva ao desenvolvimento do verdadeiro self, ou seja, quando há uma integração saudável do ego do indivíduo e este vai adquirindo a capacidade de simbolizar. Quando tal segurança não é oferecida, essa capacidade é impedida total ou parcialmente e um falso self desenvolve-se como um mecanismo de defesa. O indivíduo reage ao ambiente com esse falso self e torna-se submisso, amolda-se ao ambiente.

Num cenário de abuso sexual, o ambiente não foi seguro, protetor, já que permitiu vivências inadequadas da sexualidade. Desse modo, o indivíduo pode ter dificuldades na maturação de seu ego, no desenvolvimento de suas relações objetais, ansiedades psicóticas, perda da espontaneidade, empobrecimento da capacidade simbólica (Oliveira & Sei, 2014).

Freud defendia que a pulsão sexual já existe desde a infância, entretanto, não se manifesta como no adulto. A sexualidade infantil é indiferenciada, não há um local específico de excitação. É ao longo do desenvolvimento psicossexual que acontece a escolha de um objeto sexual. Porém, a criança pode ser exposta a uma excitação genital precoce e é isso o que ocorre nos casos de abuso sexual (Oliveira & Sei, 2014).

A situação de abuso sexual é um evento traumático, considerando que o trauma é uma estimulação excessiva, uma experiência vivida pelo indivíduo que seu psiquismo não consegue processar naquele momento (Freud, 1939/1996; Laplanche & Pontalis, 1998). Esse trauma tem efeitos negativos na organização psíquica. É o que acontece quando uma criança ou adolescente é vítima de abuso sexual, haja vista que ela não consegue dar sentido ao que está acontecendo (Arpini, Siqueira & Savegnago, 2012).

Ferenczi (1933/2011) entende que, nas situações de abuso sexual, a criança é exposta a uma sexualidade adulta que extrapola os interesses do seu mundo infantil. Sua necessidade nesse período é a ternura, o cuidado, entretanto, outra coisa lhe é oferecida.

Tem-se o que se chama de confusão de língua entre adultos e crianças, já que não há uma sintonia entre o que a criança espera e precisa e o que o adulto oferece. O problema é que a criança já não pode mais confiar, foi enganada, não teve suas necessidades respeitadas (Lejarraga, 2008).

Para Ferenczi (1933/2011), não é apenas a violência do adulto contra a criança que fará o trauma patológico, mas o fato de não poder dar sentido ao vivido, ou seja, o desmentido. Se quando busca entender o que aconteceu a criança não encontra um acolhimento para seu sofrimento, apenas silêncio ou a negação dos fatos, ela não consegue dar um significado para o que viveu, pois ainda não tem recursos psíquicos necessários (Lejarraga, 2008).

Mendes e França (2012) trazem a compreensão de Ferenczi sobre o que pode acontecer no psiquismo diante dessa não significação. A criança sofre uma dor intensa e não pode conviver com ela, desse modo, precisa encontrar um meio de esconder o trauma, de fazê-lo desaparecer. Assim, o que lhe resta é a clivagem psíquica ou desorientação psíquica.

Nas palavras de Ferenczi (1933/2011, p. 117), "as crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, sua personalidade é ainda frágil demais para poder protestar, mesmo em pensamento, contra a força e a autoridade esmagadora dos adultos que as emudecem, podendo até fazê-las perder a consciência". O resultado disso é que nenhum traço mnêmico subsistirá dessas impressões, mesmo no inconsciente, de modo que as origens da intensa emoção são inacessíveis pela memória.

O que resta depois disso é identificar-se com o agressor, ou seja, o medo da criança diante do poder e autoridade do agressor é tamanho que há uma perda de consciência que traz consigo a impossibilidade de resistir ao desprazer e a criança torna-se submissa, obediente às demandas do agressor. Isso significa que, na tentativa de diminuir a angústia causada pelo trauma, o psiquismo tenta fazer um ajuste para separar esse conteúdo psíquico dos demais, mas as consequências dessa manobra podem ser a submissão de si e ainda as perversões, por meio da repetição dos abusos vividos (Mendes & França, 2012).

Lejarraga (2008) também faz a mesma leitura. A criança, por não poder romper, traz o agressor para dentro de si e identifica-se com a culpa.

Arpini et al. (2012) coloca que a criança vai descobrindo seu corpo e tem curiosidades e desejos sobre a sexualidade. Quando sofre o abuso sexual, se estabelece uma confusão, ficando difícil para a criança distinguir se é vítima da situação ou se foi ela quem a causou.

É o que Mendes e França (2012, p. 124) também apontam em seus estudos.

como as fantasias edípicas da criança podem preparar o caminho para o adulto perverso ao facilitar sua aproximação, pois a criança quer mesmo seduzir - sentar no colo, acariciar, beijar - mas espera que tudo isso retorne na mesma moeda, na linguagem da ternura; contudo, quando a sexualidade genital adulta impõe uma excitação excessiva ao seu pequeno corpo, as fantasias inconscientes de sedução em relação ao adulto tendem a se confundir com a realidade, provocando a emergência de um forte sentimento de culpa na criança vítima de violência: sua onipotência faz com que acredite que, se foi capaz de provocar o desejo do adulto, então deve merecer sofrer as consequências de seu próprio desejo.

Junto com a identificação com o agressor vem o que Ferenczi denominou prematuração ou progressão traumática, na qual há um desenvolvimento precoce de capacidades intelectuais e emocionais de um adulto. Essa criança cuida de todos às custas da renúncia de si mesma (Lejarraga, 2008; Mendes & França, 2012).

Simplificando o que foi exposto, a criança que sofreu o abuso sexual e não pôde dar significado a isso destrói uma parte de si para conseguir sobreviver, e a outra parte é tomada pela culpa do agressor. Por isso, passa a ser madura e sábia, entretanto, de uma forma artificial, já que se molda ao que vem do exterior, daí a submissão e obediência (Lejarraga, 2008).

Diante da perspectiva do trauma, é relevante lembrar que seus efeitos estão diretamente ligados à história de vida do indivíduo, sua constituição psíquica, à reação do meio à revelação do abuso sexual, à capacidade e possibilidade de simbolizar o vivido (Almeida Prado & Féres-Carneiro, 2005).

 

A violência sexual e a transmissão psíquica

Após discorrer sobre o trauma psíquico causado pela vivência de abuso sexual, faz-se necessário voltar o olhar para a intersubjetividade e tecer considerações sobre o fenômeno do abuso no âmbito familiar, uma vez que suas consequências ultrapassam o viés individual. Para tanto, será abordado o conceito de transmissão psíquica entre gerações, tendo em vista sua relevância percebida pelos diversos estudos que trabalham suas correlações com a ocorrência do abuso sexual (Abdala, Neves & Paravidini, 2013; Lima, 2011; Almeida Prado & Féres-Carneiro, 2005; Abdala, 2013; Santeiro, Rossato, Juiz & Gobbetti, 2014; Ramos, 2010; Silva, 2003).

Lima (2011) traz uma reflexão sobre como é natural, quando se pensa nas causas do abuso sexual, que a ênfase recaia sobre uma patologia do agressor e se esqueça do importante dado de que os casos de abuso sexual com uso de violência física são em número bastante reduzido, indicando a presença marcante da sedução para concretizar objetivos e de que o adulto não agressor também está envolvido na situação. Com isso, as dinâmicas das relações entre todos os atores envolvidos acabam colocadas de lado e, dessa forma, a oportunidade de trazer à luz e compreender questões extremamente valiosas.

Abdala, Neves e Paravidini (2013), no mesmo sentido, apontam que todos os membros da família estão envolvidos na questão do incesto, porque mesmo que não tenham ligação direta com os fatos, são testemunhas do que deve ser mantido em segredo para manter a dinâmica familiar.

A teoria psicanalítica traz que elementos do mundo psíquico das gerações anteriores são transmitidos às gerações subsequentes, sendo que o sujeito carrega não apenas sua história pessoal, mas a de outros que podem, inclusive, terem vivido em outro tempo. Essa bagagem é transmitida, em sua maioria, pela via inconsciente, invalidando a ideia de que a transmissão de conteúdos de geração para geração se dê apenas pela via direta, ou seja, pela palavra (Lima, 2011).

Para compreender onde a ideia de transmissão psíquica começa na teoria psicanalítica, serão abordados brevemente apontamentos de Freud nos textos Totem e Tabu (1912-1913), Psicologia de grupo e análise do ego (1921) e Moisés e o monoteísmo (1939). Lembra-se, contudo, que Freud lançou luz a postulados que foram sendo utilizados por outros autores e atualmente embasam o que se denomina transmissão psíquica, e não que foi ele o criador do conceito.

Em Totem e Tabu (1912-1913/1996), Freud trabalha a fim de, entre outras coisas, traçar conexões entre a psicologia social e individual, e o faz a partir de estudos sobre o sistema de convívio de aborígenes australianos, que viviam em tribos que se dividiam em clãs, cada qual identificado por seu próprio totem, geralmente um animal, e que era considerado como guardião e protetor do clã, por ser entendido como um ancestral. Dessa forma, havia regras que todos os membros deveriam respeitar, a de não destruir o totem e nem se alimentar dele. Também entre os integrantes do mesmo clã existia a proibição de relações sexuais com punição de morte para aqueles que a desrespeitassem, daí Freud depreendeu a origem da exogamia.

Freud (1912-1913/1996) abordou ainda a questão do tabu no sistema totêmico, que eram as proibições quanto a não matar nem comer o totem e não se relacionar sexualmente com os membros, como forma encontrada para aliviar a culpa, já que, ao retomar o mito da horda primeva, que seria o mito da origem das civilizações, percebeu que o pai era poderoso e podia se relacionar com todas as mulheres do grupo, os filhos, desejando ocupar esse lugar, uniram-se contra o pai, matando-o e, possivelmente, comendo sua carne em seguida para incorporar seu poder. Isso trouxe culpa pela perda de alguém importante e admirado e, a partir de então, não poderia mais acontecer. Assim sendo, elegeu-se o totem como guardião do clã, símbolo do poder do pai, e não se pode matá-lo, nem comê-lo ou mesmo manter relações sexuais entre os membros. Os castigos para aqueles que desobedecessem as regras serviam para afastar qualquer possibilidade de se aproximar dos desejos humanos, segundo Freud, mais antigos e poderosos. Nesse texto de Freud, o sujeito é herdeiro de um crime, o assassinato, e da culpa pelo ato cometido por um ancestral. E aquele que transgride o tabu torna-se tabu.

Lima (2011) correlaciona essas postulações de Freud sobre o tabu com situações observadas em seus atendimentos com vítimas de abuso sexual e com dados de outros estudos que mencionam a vivência de intensa vergonha nas falas de pessoas abusadas e menções de que, após a situação, tudo mudou, a sociedade passou a tratá-las de maneira diferente, isolando-as, colocando-as de lado. Segundo a autora, o fato de o indivíduo

sentir-se, muitas vezes, impuro e indigno de aproximação de seus semelhantes remete-nos à transmissibilidade do tabu [...]. Assim, parece-nos viável afirmar que, como nos povos primitivos e na neurose obsessiva, também nas situações de abuso sexual e/ou incesto o poder de transmissão do tabu se faz presente. O modo como esses sujeitos se posicionam diante da sociedade após terem sofrido a violência parece, portanto, corresponder a uma idéia de que eles próprios tornaram-se "tabu" - representam sua transgressão - o que os torna perigosos ao contato. (Lima, 2011, pp. 94-95)

Freud (1912-1913/1996) apontou para a existência de uma mente coletiva e supôs que a culpa por algo cometido nos tempos mais remotos perpetuou-se pelas gerações e atinge aqueles que sequer sabem a que diz respeito. Na tentativa de explicar como se dá essa transmissão, ele recorreu ao fenômeno da repressão, já que o recalque nunca é perfeito e o que escapa permite a formação das conexões entre gerações.

Mesmo a mais implacável repressão tem de deixar um lugar para impulsos substitutos deformados e para as reações de que deles resultem. Se assim for, portanto, podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. (Freud, 1912-1913/1996, p. 160)

Freud (1921/1996), em Psicologia de grupo e análise do ego, ao colocar que as raízes dos atos conscientes estão no inconsciente e, neste último, encontram-se causas mais secretas e características que são passadas de uma geração para outra, confirmou a existência da transmissibilidade.

No texto Moisés e o monoteísmo (1939/1996), ao analisar a história de Moisés, líder dos judeus, Freud procurou mostrar que existem contradições e lacunas que indicam segredos na origem do herói, o que pode ter sido feito com a intenção de alcançar o povo de Israel. Tais argumentações vão confirmando, para ele, a hipótese de que as mensagens são transmitidas de uma geração a outra via inconsciente. Isso porque Freud não acreditava que a religião criada por Moisés, abandonada depois de sua morte por séculos, teria retornado com tamanha força e se fundido com a de outro povo que adorava Javé, apenas pela tradição, por meio da palavra, de famílias contando as histórias sobre um tempo passado. Para Freud, alguns traços se mantiveram e exerceram grande influência na vida psíquica de um grupo.

Mas a religião mosaica não desvaneceu sem deixar traço, algum tipo de lembrança dela manteve-se viva: uma tradição possivelmente obscurecida e deformada. E foi essa tradição de um grande passado que continuou a operar (do fundo da cena, por assim dizer), que gradativamente adquiriu cada vez mais poder sobre as mentes das pessoas [...]. Que uma tradição assim mergulhada no olvido exercesse efeito tão poderoso sobre a vida mental de um povo constitui uma ideia pouco familiar para nós. (Freud, 1939/1996, p. 84)

Freud (1939/1996, p. 108) concluiu sua compreensão do fenômeno da transmissão com o entendimento de que tanto do ponto de vista individual quanto grupal "uma impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes". Ele propôs a ideia de uma herança arcaica, na qual a vida psíquica do indivíduo conteria tanto experiências próprias quanto elementos inatos, entre eles as impressões do passado. Para explicar como algumas impressões fazem parte da herança e outras não, Freud pontuou que o acontecimento conectado à lembrança deveria ser muito importante e/ou ter ocorrido repetidas vezes. Assim, ao vivenciar uma situação real e recente semelhante, a lembrança seria ativada e chegaria à consciência. Por exemplo, o assassinato de Moisés pelo povo, suposição feita por Freud, reeditaria a lembrança do assassinato do pai da horda primeva e teria levado o povo a tê-lo como um herói e seguir a religião por ele criada, mesmo depois de tanto tempo esquecida.

Ao longo do tempo, diversos autores foram se apropriando dessas concepções de Freud e desenvolvendo estudos mais detalhados acerca do que seria e como aconteceria a transmissão psíquica entre gerações.

Correa (2007) entende que a transmissão psíquica está relacionada a questões de interdição, recalque dos desejos edípicos e sentimento de culpa, e vai além das gerações. Desse modo, o que não pode ser lembrado, contido no psiquismo dos pais, vai colar-se no psiquismo da criança. Nas famílias consideradas "tóxicas", como aquelas em que ocorre violência familiar, a base é a tal configuração traumática da transmissão psíquica geracional. "A falta de elaboração do traumatismo poderá atravessar diversas gerações, possibilitando a repetição inconsciente, pela incapacidade de metabolizar e simbolizar a experiência" (Correa, 2007, p. 54).

A autora reitera que nos casos de violência intrafamiliar, geralmente, a história de vida dos pais traz abandonos, castigos e abusos. Assim sendo, a transmissão se dá pelo negativo, e é como se uma cápsula que contém tudo o que não pôde ser elaborado por meio do luto passasse a fazer parte do psiquismo infantil.

Em seus estudos, Ramos (2010) indica que a transgeracionalidade se refere àquilo que perpassa gerações, processos inconscientes que são transmitidos e se mantêm presentes nas gerações da família. O indivíduo, quando chega numa família, entra em uma história que já existia, e a partir dela se define o lugar que passará a ocupar. A força das transmissões transgeracionais é vivida com maior intensidade nos momentos de crise.

As vivências traumáticas na pré-história do indivíduo, quando não elaboradas, podem desencadear as transmissões psíquicas defeituosas, "inaugurando uma cadeia traumática transgeracional, dominada pela repetição, em detrimento da memória e da historização do sujeito" (Ramos, 2010, p. 76). O indizível, os segredos, o impensável, se perpetuarão nas gerações.

Abdala et al. (2013) discorrem sobre o fenômeno da transmissão psíquica como sendo essencial na constituição da subjetividade do indivíduo, tendo em vista que é por meio dele que parte das questões culturais, leis que regem a vida em comunidade e linguagem passam a compor o psiquismo, bem como os conteúdos transgeracionais originados de culpa, recalcamentos, lutos não elaborados e que não são representados constituem o psiquismo familiar e individual.

Os conteúdos transgeracionais são

[...] um material psíquico inconsciente que atravessa diversas gerações sem ter podido ser transformado e simbolizado, promovendo lacunas e vazios na transmissão, impedindo uma integração psíquica. Portanto, uma herança transgeracional é constituída de elementos brutos, transmitidos tal qual, marcados por vivências traumáticas, não ditos, lutos não elaborados. (Silva, 2003, p. 30)

Benghozi (2010) afirma também que as situações de violência intrafamiliar, sejam situações de maus-tratos, seja abuso sexual, nos colocam diante do que ele denomina patologias dos continentes genealógicos familiares. O que significa que a "violência que se repete de geração em geração, traduz a transmissão inter e transgeracional de um inconfessável, inominável, indizível não elaborado, que não foi simbolizado pelas gerações anteriores, mas que elas não puderam deixar de transmitir" (Benghozi, 2010, p. 153).

Para o autor, o continente genealógico grupal familiar nas situações de abuso sexual está esburacado, rompido, e não consegue exercer sua função. E o espaço terapêutico possibilita uma oportunidade de mudança nesse cenário, já que se apresenta como um novo continente, no qual se pode reorganizar vínculos e trabalhar de forma a (re)construir algo saudável para o psiquismo.

Benghozi (2010) considera o trabalho psicoterapêutico fundamental para evitar a repetição das falhas, dos buracos, no continente genealógico familiar. E aponta para o enorme valor deste para as vítimas atuais do abuso sexual, mas também na prevenção da saúde psíquica das crianças que virão, os não nascidos.

É necessário tomar a família como um todo, analisá-la de maneira integrada, considerando não apenas cada membro em separado, mas refletindo sobre suas relações e não se esquecendo do contexto social. Quando o bebê nasce, vive uma relação simbiótica com a mãe, que vai dando significado à sua vida, às suas sensações e há um processo de erotização do filho, mas que se faz necessário para seu desenvolvimento emocional. Entretanto, há um limite para essa relação, caso contrário também se torna abusiva e pode trazer danos ao desenvolvimento, sendo fundamental que, nesse momento, um terceiro, o pai, coloque limites (Santeiro et al., 2014).

Com a chegada de um filho, o casal precisa adaptar-se à nova configuração familiar e o sucesso desse processo está bastante ligado às experiências vividas por eles na infância. Se não puderam viver psiquicamente um relacionamento a três, as dificuldades para abandonar a vida a dois e experimentar a relação triangular serão maiores (Santeiro et al., 2014).

Santeiro et al. (2014) apontam para a importância de que o casal parental sinta-se incluído no processo de chegada de um filho, na medida em que é de acordo com as relações estabelecidas que a estrutura familiar é construída. Quando os cônjuges conseguem refletir e compartilhar sobre suas vivências como filhos e pais, estão dando passos importantes para um desenvolvimento mais saudável da família, no sentido de evitar que os segredos familiares se mantenham e perpassem gerações até resultarem no adoecimento familiar pela ausência de elaboração.

Quando o adoecimento está instalado, no caso de famílias assombradas pelo abuso sexual,

A criança, diante da impossibilidade de compreender o que se passa na relação abusiva estabelecida com um adulto, se identifica com o agressor, introjetando inclusive o sentimento de culpa decorrente desta agressão. O assujeitamento silencioso diante dessas situações persiste nas vítimas de abuso, imprimindo a marca da compulsão à repetição em seus relacionamentos amorosos e em sua vida sexual na idade adulta. (Ramos, 2010, p. 84)

Almeida Prado e Féres-Carneiro (2005) descrevem como consequências das relações com adultos abusadores a possibilidade de rupturas e distorções do ego, visto que há uma quebra da confiança naqueles. É comum acontecer, quando adolescentes, que algumas vítimas se tornem promíscuas, pela necessidade do toque e do afeto, ou por terem o sexo como moeda de troca, forma de pagar ou agradecer por algo; é um meio de se relacionar com o mundo. Outras pessoas podem ter dificuldades para se relacionar, ficando mais isoladas e até depressivas. As autoras apontam para a possibilidade da reprodução de relações utilitaristas, como a escolha amorosa de parceiros que buscam interesses próprios.

 

Considerações finais

O tema do abuso sexual de crianças e adolescentes tem sido cada vez mais pesquisado, tendo em vista a relevância de se conhecer e compreender melhor os diversos aspectos que o envolvem para identificar situações, reconhecer os aspectos envolvidos e oferecer um trabalho adequado para superação do trauma.

Como pôde ser analisado por meio deste trabalho, a experiência do abuso sexual é um evento traumático, que tem efeitos negativos na organização psíquica das vítimas, podendo trazer prejuízos consideráveis para a subjetividade, pois crianças e adolescentes estão se desenvolvendo física e psiquicamente e, de repente, são expostos a algo que não podem processar e para o qual não se encontram maduros para consentir. Desse modo, ao vivenciarem tal tipo de situação, podem ser afetados em todos os aspectos da vida - físico, cognitivo, psicológico e social.

Os estudos revelaram que todos os tipos de abuso podem trazer consequências desastrosas. Além disso, quando o agressor é uma figura importante na família e a violência perpetrada acontece por muito tempo e envolve penetração sexual, o risco de que esse tipo de abuso se reproduza na geração seguinte é bastante alto.

Quando se avalia o impacto do abuso sexual para a vítima, é necessário considerar alguns fatores, como a vulnerabilidade e a resiliência da criança/adolescente, se há suporte social e afetivo, qual o tipo de violência, sua duração, como foi revelada e a reação de quem recebeu a notícia, já que não se pode esquecer que os efeitos estão diretamente ligados à história de vida do indivíduo, à sua constituição psíquica, à reação do meio diante da revelação do abuso sexual, à capacidade e à possibilidade de simbolizar o vivido.

A pesquisa apontou para a importância de se contemplar a intersubjetividade e refletir sobre o fenômeno no interior das famílias, tendo como certo que as consequências do abuso sexual estão para além do indivíduo. Não se pode desprezar a dinâmica familiar, os detalhes da história de vida dos integrantes, o tipo de vínculo que os envolvem e os processos que permeiam suas relações.

É certo que elementos do mundo psíquico das gerações anteriores são transmitidos às gerações subsequentes, e essa bagagem é transmitida, em sua maioria, pela via inconsciente. É a transmissão psíquica transgeracional, que diz respeito a questões de interdição, recalque dos desejos edípicos, sentimento de culpa, aquilo que não pode ser dito, ou pensado, ou elaborado, um material bruto que não foi simbolizado e é perpetuado, via inconsciente, entre gerações. O trauma cola-se ao psiquismo da geração seguinte trazendo repetição pela falta de sentido.

Enfim, tomando por base o conceito de abuso sexual e sua causalidade multifatorial, envolvendo aspectos históricos, sociais e psicológicos, com ênfase nas consequências intrapsíquicas e intersubjetivas, faz-se extremamente necessário que os profissionais busquem ampliar a visão e aprofundar as pesquisas acerca do assunto, a fim de trabalhar com um suporte teórico adequado, consciência e respeito às vítimas e suas famílias.

É essencial refletir a respeito dos possíveis bons resultados que um trabalho sério e coerente propicia ao indivíduo, à sua família e às suas relações atuais e futuras. Todos aqueles que se deparam com a revelação de abuso sexual, sejam eles parentes, vizinhos, professores, profissionais da saúde, outros profissionais, conhecidos, sejam, especificamente, psicólogos, podem contribuir para a saúde mental da vítima se forem bem informados, acolhedores e não curiosos.

Para finalizar, é preciso considerar que o espaço terapêutico possibilita uma oportunidade de mudança no cenário psíquico daqueles que sofreram abuso sexual, uma vez que se apresenta como um novo continente, no qual se pode reorganizar vínculos e trabalhar de forma a (re)construir algo saudável para o psiquismo. E ainda, como posto por Benghozi (2010), trata-se de uma possibilidade para evitar a repetição das falhas no continente genealógico familiar, apontando para o enorme valor para as vítimas atuais do abuso sexual, mas também na prevenção da saúde psíquica das crianças que virão, os não nascidos.

 

Referências

Abdala, A. T. C. P. (2013). Os processos de transmissão psíquica e a violência sexual incestuosa: uma análise do filme "Volver". Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais,         [ Links ].

Abdala, A. T. C. P., Neves, A. S., & Paravidini, J. L. L. (2013). O fenômeno da transmissão psíquica e o incesto: possíveis articulações. Psicologia em Revista, 19(1), 43-58.         [ Links ]

Almeida Prado, M. C. C., & Féres-Carneiro, T. (2005). Abuso sexual e traumatismo psíquico. Interações, 10(20), 11-34.         [ Links ]

Arpini, M. D., Siqueira, A. C., & Savegnago, S. D. O. (2012). Trauma psíquico e abuso sexual: o olhar de meninas em situação de vulnerabilidade. Psicologia: teoria e prática, 14(2), 88-101.         [ Links ]

Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (2007). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu.         [ Links ]

Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação. Psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Correa, O. B. R. (2007). O transgeracional na violência intrafamiliar. In O. B. R. Correa (Org.). Grupo familiar e Psicanálise: ressonâncias clínicas (pp. 53-67). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Ferenczi, S. (2011). Confusão de língua entre os adultos e a criança: a linguagem da ternura e da paixão. In S. Ferenczi. Obras Completas Psicanálise (pp. 111-121). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1933).         [ Links ]

Ferrari, D. C. A. (2002). Definição de abuso na infância e na adolescência. In D. C. A. Ferrari & T. C. C. Vecina, (Orgs.). O fim do silêncio na violência familiar: teoria e prática (pp. 81-94). São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Ferrari, D. C. A., & Vecina, T. C. C. (2002). O fim do silêncio na violência familiar: teoria e prática. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Totem e Tabu. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912-1913).         [ Links ]

Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1921).         [ Links ]

Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo - três ensaios. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1938).         [ Links ]

Furniss, T. (2002). Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Gabel, M. (1997). Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus.         [ Links ]

Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Goldfeder, M. F. F. (2000). A relação esquecida: a mãe nos bastidores do abuso sexual entre pai e filha. Pulsional Revista de Psicanálise, XIII(138), 16-23.         [ Links ]

Habigzang, L. F., Corte, F. D., Hatzenberger, R., Stroeher, F., & Koller, S. H. (2008) Avaliação psicológica em casos de abuso sexual na infância e adolescência. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(2), 338-344.         [ Links ]

Habigzang, L. F., Koller, S. H., Azevedo, G. A., & Machado, P. X. (2005). Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 341-348.         [ Links ]

Hohendorff, J. V. (2014). Como escrever um artigo de revisão de literatura. In S. H. Koller, M. C. P. P. Couto & J. V. Hohendorffm (Orgs.). Manual de produção científica (pp. 39-54). Porto Alegre: Penso.         [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1998). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 1990. Recuperado em 27 julho, 2015, de http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm.         [ Links ]

Lejarraga, A. L. (2008). Clínica do trauma em Ferenczi e Winnicott. Natureza Humana, 10(2), 115-148.         [ Links ]

Lima, P. S. L. P. (2011). O abuso sexual infantil à luz da transmissão psíquico-geracional. Dissertação de mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina.         [ Links ]

Machado, A. (2002). Novas configurações familiares, abuso sexual e indiscriminação de papéis na família. In M. L. Agostinho & T. M. Sanchez (Orgs.). Família: conflitos, reflexões e intervenções (pp. 83-90). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Malgarim, B. G., & Benetti, S. P. C. (2010). O abuso sexual no contexto psicanalítico: das fantasias edípicas do incesto. Aletheia, 33, 123-137.         [ Links ]

Mendes, A. P. N., & França, C. P. (2012). Contribuições de Sándor Ferenczi para a compreensão dos efeitos psíquicos da violência sexual. Psicologia em Estudo, 17(1), 121-130.         [ Links ]

Oliveira, M. D., & Sei, M. B. (2014). Abuso sexual e as contribuições da Psicologia no âmbito judiciário. Barbarói, 41(2), 4-22.         [ Links ]

Ramos, M. C. R. (2010). Mães de meninas vítimas de abuso sexual: aquilo que não se pode dizer. Dissertação de mestrado, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco.         [ Links ]

Santeiro, T. V., Rossato, L., Juiz, A. P. M., & Gobbetti, G. J. (2014). Psicodinâmica das relações incestuosas: assassinato e renascimento da alma em Preciosa. Psicologia em Estudo, 19(1), 93-102.         [ Links ]

Silva, M. A. S. (2002). Violência contra crianças - quebrando o pacto do silêncio. In D. C. A. Ferrari & T. C. C. Vecina (Orgs.). O fim do silêncio na violência familiar: teoria e prática (pp. 73-80). São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Silva, M. C. P. (2003). A herança psíquica na Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In D. W. Winnicott. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 55-61). Porto Alegre: Artmed. (Original publicado em 1962).         [ Links ]

Creative Commons License