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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.8 no.15 São João del Rei jul./dez. 2019

 

Os princípios da interpretação analítica freudiana no caso do Homem dos Ratos

 

The principles of analytical Freudian interpretation in the case of the Man of the Rats

 

Les principes d'interprétation analytique de Freud dans le cas de l'Homme aux Rats

 

Los principios de la interpretación analítica freudiana en el caso del Hombre de las Ratas

 

 

Cleyton AndradeI; Hudson Vieira de AndradeII

IPsicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise-Associação Mundial de Psicanálise (EBP-AMP). Professor do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Autor do livro Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma Psicanálise, 1º lugar no Prêmio Jabuti na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento, em 2016
IIMestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal)

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo investigar a estrutura e constituição da interpretação analítica freudiana no caso do Homem dos Ratos. A interpretação freudiana representa no fim do século XIX um novo modelo de inteligibilidade para os sintomas. Em seu início, ela se mobilizava na restituição daquilo que se apresentava imotivado e ininteligível ao analisante, haveria um saber por ele não sabido no qual a interpretação buscaria restituir uma relação de sentido, norteada pela Teoria do Complexo de Édipo. Contudo, um elemento heterogêneo passa a se destacar na clínica freudiana, indicando um ponto não susceptível ao deciframento interpretativo. Esse limite ao acréscimo de sentido não indicaria uma imperfeição ao saber interpretativo, ao contrário, é ele que estruturaria o próprio saber. Lacan indica uma crise na interpretação freudiana entre os anos de 1910 e 1920, haveria um descompasso entre seu material clínico e sua construção teórica. Isso levaria Freud a uma revisão de sua teoria nos anos subsequentes, concebendo um além do princípio do prazer, o que implica não apenas em uma nova concepção do aparelho psíquico, como, também, uma redefinição de sua interpretação.

Palavras-chave: Psicanálise. Interpretação. Homem dos Ratos. Freud. Lacan.


ABSTRACT

The present article aims to investigate the structure and constitution of Freudian analytical interpretation in the case of Rat Man. The Freudian interpretation represents at the end of the nineteenth century a new model of intelligibility for the symptoms. In the beginning, it was mobilized in the restitution of what was unfounded and unintelligible to the analysand, there would be an unknown knowledge in which the interpretation would seek to restore a relation of meaning, guided by the theory of the Oedipus complex. However, a heterogeneous element starts to stand out in the Freudian clinic, indicating a point not susceptible to the interpretative decipherment. This limit to the addition of meaning would not indicate an imperfection to the interpretative knowledge, on the contrary, that is what would structure the knowledge itself. Lacan indicates a crisis in the Freudian interpretation between the years 1910 and 1920, there would be a mismatch between the clinical material and the theoretical construction. This would lead Freud to a revision of his theory in subsequent years, conceiving a beyond the pleasure principle, implies not only a new conception of the psychic apparatus, but also a redefinition of interpretation.

Keywords: Psychoanalysis. Interpretation. Rat Man. Freud. Lacan.


RÉSUMÉ

Cet article vise à étudier la structure et la constitution de l'interprétation analytique freudienne dans le cas de l'Homme aux Rats. L'interprétation de Freud est à la fin du XIXe siècle, un nouveau modèle d'intelligibilité pour les symptômes. Au début, elle a mobilisé la restitution de ce qu'il était démotivé et inintelligible pour la analysand, il y aurait une merveille pourquoi il n'a pas connu où l'interprétation cherchent à rétablir une relation de sens, guidé par l'Œdipe théorie complexe. Cependant, un élément hétérogène passe de se tenir en indiquant un point clinique de Freud ne se prête pas à déchiffrage d'interprétation. Cette limite au plus grand sens pas indiqué une imperfection d'apprendre l'interprétation, au contraire, il est qu'il structurer la connaissance elle-même. Lacan indique une crise dans l'interprétation freudienne entre les années 1910 et 1920, il y aurait un décalage entre leur matériel clinique et sa construction théorique. Cela conduirait Freud à un examen de sa théorie dans les années suivantes, la conception d'un au-delà du principe de plaisir, cela implique non seulement une nouvelle conception de l'appareil psychique, mais aussi une redéfinition de son interprétation.

Mots-clés: Psychanalyse. Interprétation. Rat Homme. Freud. Lacan.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo investigar la estructura y constitución de la interpretación analítica freudiana en el caso del Hombre de las Ratas. La interpretación freudiana representa a finales del siglo XIX un nuevo modelo de inteligibilidad para los síntomas. Al principio, ella se movilizaba en la restitución de lo que se presentaba inmovilizado e ininteligible al analizante, habría un saber por él no sabido en el cual la interpretación buscaría restituir una relación de sentido, orientada por la teoría del complejo de Edipo. Sin embargo, un elemento heterogéneo pasa a destacarse en la clínica freudiana, indicando un punto no susceptible al desciframiento interpretativo. Este límite al acrecimiento de sentido no indicaría una imperfección al saber interpretativo, al contrario, es él que estructuraría el propio saber. Lacan indica una crisis en la interpretación freudiana entre los años de 1910 y 1920, habría un descompas entre su material clínico y su construcción teórica. Esto llevaría a Freud a una revisión de su teoría en los años subsiguientes, concebiendo un más allá del principio del placer, esto implica no sólo en una nueva concepción del aparato psíquico, sino también una redefinición de su interpretación.

Palabras clave: Psicoanálisis. Interpretación. Hombre de las Ratas. Freud. Lacan.


 

 

A interpretação freudiana representa no fim do século XIX um novo modelo de inteligibilidade para os sintomas, buscando restituir aquilo que se apresenta como imotivado e ininteligível ao paciente. Em consonância com o termo alemão Deutung, esse modelo interpretativo refere-se ao exercício de descoberta de sentidos não evidentes e produção de novos significados, possibilitando desvelar um saber não-sabido. Se é possível encontrarmos um modelo de racionalidade interpretativa que se orienta pela decifração do sentido, tributária de uma hermenêutica edípica, isso não parece esgotar seus limites.

O que buscamos nesse artigo é pensar uma outra referência para o modelo interpretativo freudiano que, em vez de orientar-se pelo sentido, visa àquilo que na fala comporta o que há de mais destituído e ausente de sentido. Por meio de uma leitura lacaniana, torna-se possível explicitar como a interpretação freudiana, antes de se orientar pelo sentido veiculado na fala do analisando, se interessa também pela materialidade sonora e, consequentemente, pelas homofonias e equivocidades. Embora pareça paradoxal pensarmos o modelo interpretativo freudiano se valer ora do sentido, ora da perda de sentido, parece ser justamente isso que anima e estrutura sua prática. Tendo isso em vista, o mote que orienta nosso texto consiste em levantar alguns princípios da interpretação freudiana no caso do Homem dos Ratos, perguntar quais princípios orientam a prática interpretativa de Freud em curso no relato deste caso e, sobretudo, se haveria um princípio na racionalidade interpretativa freudiana não explicitamente formulado em enunciados do texto.

 

Introdução

O relato clínico representa para a Psicanálise um método de investigação e transmissão da experiência analítica. Diferentemente da construção da experiência clínica feita de Charcot a Kraepelin, os casos clínicos de Freud são estabelecidos na tensão entre a escrita científica e a linguagem literária (Dunker, 2003). Mais do que a união entre esses dois estilos, a construção do caso clínico freudiano encontra confluência com um gênero literário especifico e contemporâneo ao nascimento da Psicanálise, isto é, o romance policial. Isso representa uma aproximação estilística entre Freud e Sherlock Holmes, visto que em ambos podemos encontrar uma atividade investigativa na resolução de um conflito, a importância aos pequenos detalhes, a reconstrução de uma narrativa por meio de fragmentos aparentemente desconexos revelando o sentido oculto, tudo isso com direito a surpresas e reviravoltas.

Freud publica o relato clínico conhecido como Homem dos Ratos no ano de 1909, cujo tratamento teve início em 1° de outubro de 1907 e se estendendo nos 11 meses subsequentes. Esse caso nos conta a história de um jovem advogado de 29 anos, Ernst Länzer, a quem Freud se referia como alguém culto e bem-educado, porém supersticioso (Freud, 1909/2002). O paciente era atormentado por ideias obsessivas, agravadas nos anos que precederam o início da análise, que consistiam no medo que algo de ruim pudesse ocorrer com uma certa dama, a qual dedicava um amor idealizado; e com seu pai, na época já falecido. Além disso, tinha uma série de sintomas, tais como: compulsões, prescrições minuciosas e ordens autoimpostas, permeadas por dúvidas, hesitações e mudanças de ideia (Freud, 1909/2002).

Já em sua primeira sessão, Länzer interrompe a fala de modo abrupto e passa a comentar sobre sua vida sexual. Depois de ter sido interrompido por Freud, que perguntara sobre o que o teria levado ao tema, ele responde que aquilo tinha relação com o conhecimento obtido a respeito da teoria psicanalítica. Posteriormente, Freud descobre que ele tivera contato com seu livro Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, de 1901.

Ele relata que suas primeiras experiências sexuais ocorreram aos 4 ou 5 anos de idade. Elas consistiam em caricias trocadas com duas governantas. Essas experiências teriam despertado nele uma "curiosidade ardente e atormentadora de ver o corpo feminino" (Freud, 1909/2002, p. 14). Pouco mais adiante, diz lembrar-se que aos 6 anos de idade tinha ereções repentinas, acompanhadas do hábito de se masturbar. Ele supunha que esses fenômenos se relacionavam com seus pensamentos e curiosidade sexual, e que seu pai não lhe dispensava advertências do tipo: "você vai morrer se fizer isso" (Freud, 1909/2002, p. 93). Freud acrescenta que provavelmente o pai de Länzer teria ameaçado cortar seu pênis. Essas atividades sexuais precoces eram sentidas sob intenso prazer, o que nos permite uma primeira incursão freudiana na etiologia das neuroses.

Durante o século XIX, questões sobre a natureza da sexualidade infantil suscitavam o interesse nas discussões da seara médica. Perguntas tais como se sua natureza era normal ou patológica, se era homogênea ou heterogênea em relação à sexualidade adulta, estavam na pauta das discussões (Simanke, 2012). Freud não passou alheio a essas questões, sobretudo quando começou a esbarrar nos relatos de seus pacientes que envolviam temas sexuais relacionados à infância.

Em um verbete sobre histeria publicado numa enciclopédia médica de 1888, usualmente atribuído a Freud (1888/1986), ele comentará que a racionalidade médica de seu tempo superestimou a sexualidade como elemento desencadeador de patologias. Até esse momento, seu argumento principal consistia em dizer que, se é possível encontrar crianças imaculadas com histeria, isso significa que não justificaria eleger o afloramento da sexualidade na infância como causa etiológica. Nesse sentido, não havendo sexualidade infantil, os estados patológicos eram caracterizados por um trauma sexual precoce decorrente dos contatos íntimos de um adulto com uma criança (Freud, 1888/1986). Nesse período, Freud compreendia os relatos de seus pacientes como acontecimentos reais vividos passivamente na tenra infância, essa primeira concepção teórica ficou conhecida como teoria da sedução.

Esse primeiro movimento da concepção teórica freudiana passou por alguns impasses, até que em carta a Fließ, em setembro de 1897, Freud se mostra descrente quanto à cota de credibilidade dada aos relatos de seus pacientes que envolviam cenas de abuso sexual: "Não acredito mais em minhas neuróticas" (Masson, 1986, p. 265). Porém, é apenas em 1905, no artigo Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses, que torna público esse desdobramento teórico. Nesse artigo, Freud afirma que em seu esforço para esclarecer a gênese das neuroses terminou supervalorizando as cenas de sedução, visto que naquela época não tinha uma nítida "distinção entre as ilusões de memória dos histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais" (Freud, 1905/1996, p. 171).

Esse desdobramento teórico no pensamento freudiano ficará conhecido como teoria da fantasia. Ele marca uma ruptura com o início de sua investigação, na qual os sintomas não seriam mais concebidos como decorrentes das experiências factuais infantis, mas pelo modo como as representações são construídas, arranjadas e subjetivadas pelo sujeito. Esse movimento representa uma complexificação do raciocínio freudiano, no qual o elemento determinante será a realidade psíquica (Wirklichkeit) baseada no inconsciente.

Esse movimento implica diretamente na redefinição da concepção de interpretação. A partir desse momento, ela não busca resgatar o sentido unívoco entre o acontecimento sexual traumático ocorrido na infância e seus sintomas correlatos, como ocorria na teoria da sedução. Não se trata mais de uma adequação entre verdade e referente. Com base na teoria da fantasia, o número de significações (relações de sentido) se potencializam, impossibilitando saber de antemão como o sujeito reagiu diante das suas experiências. Desfazem-se as núpcias da adequação. Juntamente com esse movimento, a própria concepção de sexualidade infantil é redefinida.

Para que a racionalidade da teoria da sedução se sustentasse, era necessário que não houvesse sexualidade infantil, ao mesmo tempo em que é apenas com o abandono dessa teoria que se torna admissível conceber uma sexualidade na infância. Simanke (2012) destaca que esse movimento não só torna cabível a hipótese da sexualidade infantil como também a torna peça indispensável no raciocínio. Para ele, na teoria da fantasia a sexualidade infantil, ocupa o lugar que era concedido ao trauma real da sedução. Ou seja, seria necessário, assim como no trauma, que algo comportasse o lugar de corpo estranho no psiquismo. Também seria necessário que uma experiência precoce e reatualizável entrassem na equação, para que pudesse emergir novamente em um momento posterior da vida. Essa experiência causadora de estranheza seguiria a um tipo de conflito que requereria o esforço defensivo do recalque. A partir desse momento, bastaria haver sexualidade para haver trauma (Simanke, 2012).

 

Länzer e a cena do suplicio

Länzer era perseguido pela lembrança de um relato contado no tempo que prestava seus serviços militares. Com isso ele se torna um dos eixos de sua história. Trata-se de uma tortura praticada no Oriente e narrada pelo capitão Nemeckzek, adepto de castigos corporais, que consistia na introdução de um rato (Ratten) vivo no ânus do torturado (Freud, 1909/2002). Na exposição da cena, o paciente hesita, interrompe a narrativa angustiado, ao que Freud lhe auxilia completando algumas passagens. Nesse momento do depoimento do suplicio, Freud o auxilia completando sua oração com a palavra ânus. Essa dificuldade na exposição da cena é interpretada por Freud como resistência e, depois de algumas explicações sobre esse conceito, pede ao paciente que prossiga em seu relato.

A superação de resistências, disse-lhe, é um imperativo do tratamento a que não podemos nos furtar. (O conceito de "resistência" eu lhe havia explicado no início da sessão, quando ele afirmou que tinha muita coisa a superar dentro de si, para relatar aquela vivência). Mas eu tudo faria, continuei, para adivinhar o sentido completo de algo que ele apenas insinuasse. (Freud, 1909/2013, p. 18)

O paciente prossegue revelando de modo indireto que as pessoas a serem afligidas pelo castigo seriam seu pai e a dama a quem admirava. A expressão dessa fantasia é seguida por uma reação de medo. Ele tenta se defender desses pensamentos e sentimentos que o tomavam dizendo que não eram seus, mas impostos de fora. "Essa é a maneira obsessiva de dar testemunho da existência do inconsciente como alteridade, e de tentar separar do amor o fundo de ódio que o sustenta" (Barros, 2015, p. 27).

O que fixa a atenção de Freud no relato contado pelo analisante não é o terror da cena, mas sua expressão facial descrita como "de horror ante um prazer seu que ele próprio desconhecia" (Freud, 1909/2013, p. 19), amostra da ambivalência afetiva entre amor e ódio e ao próprio pai. Romildo Barros (2015) destaca que Freud busca se situar numa posição em relação ao paciente que não esteja submetida aos caprichos da crueldade, no simples ato de ouvir um relato de tortura ou, tampouco, demonstrar um gesto de amor, poupando-o da exposição da cena. Ou seja, Freud não pretende ser o sucessor do capitão cruel, nem sequer busca uma atitude humanista. Não obstante, procura uma terceira posição, busca "inventar um lugar inédito, de onde poderá ouvir o relato do Homem dos Ratos e devolver-lhe em seguida, como interpretação, os efeitos de gozo da cena" (Barros, 2015, p. 29).

 

A interpretação freudiana e o complexo de Édipo

Em sua maioria, as advertências criadas por Länzer apresentam-se carentes de uma relação lógica, como em: "se eu casar com a dama, a meu pai ocorrerá algum infortúnio" (Freud, 1909/2002, p. 70). De fato, nada justifica que se casando com a dama algo de ruim possa ocorrer com seu pai, que inclusive já havia falecido há nove anos. Freud argumenta que existe um elemento subtraído dessa equação que carece de ser reintroduzido, sendo que esse elemento subtraído é aquele que fora recalcado na fala do paciente. Para Freud, o raciocínio completo restituindo o sentido inconsciente seria: "Se meu pai estivesse vivo, ele estaria tão furioso com minha intenção de casar-me com a dama [...] que eu teria outra explosão de raiva contra ele, desejando-lhe todo mal possível; e graças à onipotência de meus desejos esses males acabariam inevitavelmente por incidir sobre ele" (Freud, 1909/2002, p. 70).

A interpretação freudiana pretende inicialmente restituir o sentido daquilo que se mostra enigmático e imotivado ao analisante, o que equivaleria "a trazer à fala um desejo inconsciente" (Barros, 2012, p. 42). Nesse sentido, inúmeras são as tentativas de Freud de destacar, pontuar e recortar, na fala de Länzer, que o aparente amor por seu pai na verdade servia de fachada para um ódio inconsciente. O operador que Freud se vale em suas intervenções é o do "desejo de eliminar o pai, perturbador dos apetites sexuais do sujeito" (AMP, 1996, p. 68). Esse operador deriva daquilo chamado por ele, até esse momento, como "complexo nuclear da neurose" (Freud, 1909/2013, p. 80), que posteriormente receberá o nome de complexo de Édipo, evidenciando o quanto sua teoria é decisiva na interpretação do caso.

Freud (1914/2010) explica a passagem entre o investimento autoerótico infantil e o investimento objetal, introduzindo a teoria do narcisismo. Já o complexo de castração vem para demonstrar como se realiza o descolamento libidinal em relação aos primeiros objetos de investimento. Por sua vez, a teoria do complexo de Édipo vem para demarcar como se constrói as matrizes e os modelos que vão nortear as escolhas objetais na sexualidade adulta. Dessa forma, para o menino, o fim do complexo de Édipo é revertido na identificação com o pai. Freud se valeu na sua escrita não apenas do mito, mas também da poesia, da literatura e do folclore como suplemento na produção de conceitos naquilo que a linguagem científica-naturalista se mostrava precária.

 

O Homem dos Ratos nas malhas do significante Ratte

O pai de Länzer prestou serviço ao exército, assim como ele próprio, na função de suboficial. Em certa ocasião, ele dispunha de 10 florins do caixa militar para cobrir determinadas despesas, e em um jogo de cartas perdeu parte desse dinheiro. Tentando recuperá-lo, acabou perdendo tudo. Um amigo emprestou-lhe a quantia para ser restituída aos cofres do exército, contudo, quando tentou quitar sua dívida devolvendo o dinheiro ao amigo, ele não foi mais encontrado. Desse modo, passou a ser tomado como um Spielratte (rato de jogo ou jogador, no alemão coloquial), contraindo uma eterna dívida (Raten) que será reatualizada pelo paciente (Freud, 1909/2002).

Na ocasião em que Länzer ouve o relato do capitão cruel, ele perde seus óculos, tendo que solicitar ao seu oculista o envio de outro par pelos correios. Posteriormente, o próprio capitão é quem restitui o objeto que acabara de ser entregue pelos correios, dizendo que Länzer deveria reembolsar o Tenente A os encargos do envio. Mesmo sabendo que na realidade sua dívida era com uma jovem que trabalhava na agência postal, uma vez que já houvera sido informado disso por um certo oficial, Länzer acaba tomando o equívoco do capitão como verdade. Para Freud, as palavras do capitão "soaram aos seus ouvidos como uma alusão a essa dívida [Raten] não liquidada do pai" (Freud, 1909/2002, p. 57). O paciente passou por um grande dispêndio de energia tentando restituir uma dívida impossível de ser paga, cujo imperativo dominante seria "você deve pagar as 3,8 coroas ao Tenente A" (Freud, 1909/2002, p. 57).

Länzer soubera que seu pai passou por grande dificuldade financeira antes do casamento, de modo que passou a se convencer de que ele tinha se casado com sua mãe devido às vantagens materiais. Ela, por sua vez, fazia piadas em relação ao marido, contando que ele fora pretendente da filha de um açougueiro, o que deixava Länzer com uma ideia intolerável de que seu pai teria aberto mão de um amor verdadeiro a fim de assegurar seu futuro financeiro. Isso se relaciona com os impasses amorosos do próprio analisante, que teria que escolher entre se casar (heiraten) com uma jovem pobre ou com uma dama rica.

Certa vez, a mãe de Länzer havia comentado com parentes ricos sobre o futuro de seu filho e um deles concordou em oferecer uma de suas filhas para casamento depois que ele concluísse seus estudos, o que lhe garantiria um futuro profissional estável. Vale destacar que ele passa 9 anos para concluir o curso de Direito. Freud interpreta que:

Esse plano familiar desencadeou nele um conflito relacionado a saber se permaneceria fiel à sua amada, a despeito de sua pobreza, ou se seguiria os passos de se pai e casaria [heiraten] com a linda, rica e bem relacionada jovem que lhe haviam predestinado. E resolveu esse conflito, que na verdade dizia respeito ao confronto entre seu amor e a persistente influência dos desejos de seu pai, ficando doente; ou melhor, o fato de ficar doente evitara a tarefa de resolvê-la na vida real. (Freud, 1909/2002, p. 47)

Lévi-Strauss cunhou a noção de mito individual, que foi adotada por Lacan (1953/2008) para circunscrever a estrutura intersubjetiva básica que confere à neurose sua matriz de identificação. Na conferência O mito individual do neurótico, Lacan aborda o caso clínico do Homem dos Ratos apontando como os conflitos e impasses das gerações anteriores são reatualizados e transformados pelo sujeito em sua obsessão fantasmática.

A constelação [...] original que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino e quase diria à sua pré-história, a saber, as relações familiares que estruturam a união de seus pais, mostra ter uma relação muito precisa, e talvez definível por uma fórmula de transformação, o mais fantasístico, o mais paradoxalmente mórbido de seu caso, a saber, o último estado de desenvolvimento de seu grande apreensão obsedante, roteiro imaginário a que chega como se fosse à solução da angústia ligada ao desencadeamento da crise. (Lacan, 1953/2008, p. 19)

Lacan destaca que, apesar dos fragmentos referentes à constelação familiar do Homem dos Ratos terem sido narrados por ele sessão por sessão, ele mesmo não conseguia relacioná-los com o que lhe vinha acontecendo. Costumava dizer que não sabia o porquê daquilo, visto que não tinham nenhuma relação com ele. Mas é no momento em que o paciente nega que possa haver relação entre sua trama familiar e o estado de sua neurose que Freud estabelece o vínculo aludindo à verdade do sujeito. "Faz-se necessária toda a intuição de Freud para entender que esses são elementos essenciais para o desencadeamento da neurose obsessiva" (Lacan, 1953/2008, p. 21).

Podemos acrescentar com Lacan que não se trata de mera intuição por parte de Freud no manejo desse caso clínico. Mas, se valendo da transferência, de ter percebido, que aquilo que orientava o caso, estava situado em torno da dimensão da materialidade sonora das palavras trazidas pelo Homem dos Ratos. Dito de outro modo, o contorno do caso não se limita ao exercício hermenêutico de acréscimo de sentido; mas sim pela equivocidade presente na palavra Ratten (rato) e em seus sucessivos deslizamentos possibilitados pela homofonia com Raten (dívida/prestação), Spielratte (rato de jogo), ou ainda heiraten (casar), que Freud faz suas intervenções. Não é do sentido que restituiria a transparência de um pensamento consciente de si que a interpretação retiraria seu valor, mas sim das virtudes da equivocidade próprias a um significante. A interpretação não é a prática de uma disciplina da teoria do conhecimento nem um capítulo restituído ao entendimento humano. Ela se assenta sobre o caráter errático das palavras.

A emergência da Psicanálise marca uma ruptura em relação à clínica clássica, cuja interpretação é centrada no olhar (Foucault, 1977). Diferentemente dela, o dispositivo analítico se estabelece por meio da escuta, ou seja, de outro método, outro dispositivo e consequentemente de um novo objeto. A peculiaridade semântica do termo alemão Deutung, adotado por Freud em referência à interpretação analítica, contrasta com interpretieren, cujo sentido se aproximaria de tradução no português (Hanns, 1996). Dessa forma, o termo Deutung "se refere a uma atividade interpretativa centrada na descoberta dos sentidos não evidentes, dos significados adicionais" (Hanns, 1996, p. 285). O exercício interpretativo consiste sim no resgate de sentido, porém isso equivale, em termos freudianos, na suspensão do recalque, restituindo o conteúdo latente. Esse é um modo de interpretar que não visa apenas reduzir ambiguidades, fixar o sentido ou restabelecer um texto - como na hermenêutica bíblica ou do direito -, mas, também, intervir e transformar o sujeito a quem se dirige (Dunker, 2003).

Freud estabelece uma ligação entre sonho e sintoma enquanto submetidos aos mesmos mecanismos de distorção do inconsciente, sobretudo pela condensação e deslocamento. Ele destaca que há uma característica especial no dialeto da neurose obsessiva, que é "[...] fazer a mais plena utilização possível do mecanismo do deslocamento" (Freud, 1909/2002, p. 82). Trata-se da forma pela qual as palavras do paciente vão criando relações umas com as outras, de maneira que o "[...] sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões entre as palavras" (Barros, 2012, p. 46). Aquilo que posteriormente Lacan chamará de metonímia, a partir da linguística estrutural. Essa ligação entre sonho e sintoma, regulada por metonímias e metáforas, destaca que a interpretação aponta mais para o significante do que para a recuperação de um sentido oculto. O sentido das equivocidades próprias ao Ratten diz de vetores que indicam direções tomadas pela deriva do significante.

Esse é um importante recurso que aparece em várias passagens no relato de Länzer. Por exemplo, no deslizamento de Ratten (rato) para Raten (dívida/prestação), em seguida para Spielratte (rato de jogo) e ainda para heiraten (casar), aparecendo finalmente no próprio paciente, como Freud destaca: "ele próprio, porém, tinha sido um sujeitinho asqueroso e sujo, sempre pronto a morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-lo feito. É bem verdade que ele podia ver no rato [Ratten] 'uma imagem viva de si mesmo'" (Freud, 1909/2002, pp. 61-62). Ao longo das sessões, o que adquire destaque no caso do Homem dos Ratos é como as sucessivas significações se relacionam não por meio do sentido das palavras do paciente, mas por meio de traços comuns em torno da sonoridade da palavra Ratten (rato), evidenciando com isso o uso que ele fazia da linguagem em sua fala particular.

Länzer passou por um período de ardente devoção religiosa em sua adolescência, contudo, havia nele um constante desejo masturbatório. Ele temia que ao fazer isso algo de ruim pudesse ocorrer com a dama de quem gostava, de modo que compôs uma fórmula protetora contra esses desejos: Glejisamen. Freud analisa que, por meio dessa pequena oração, o analisante conseguia unir-se com o nome de sua amada Gisela (anagrama de sua amada + amen), contudo com samen (sêmen) unia-se ao seu corpo, "ou seja, para expressar-se de forma mais direta, que se masturbou com a imagem dela" (Freud, 1909/2002, p. 109).

Se por um lado podemos observar vários exemplos nos quais a interpretação freudiana se estabelece como doadora de sentido, orientando-se pela teoria do complexo de Édipo, contudo isso não parece esgotá-la. Também estaria presente nela um modelo que se valeria da equivocidade produzida pela materialidade sonora das palavras, como podemos observar no caso clínico do Homem dos Ratos e o jogo de homofonias em torno do termo alemão Ratten (rato). Com isso, encontramos uma tensão estabelecida na noção de interpretação analítica.

 

Resistência: um obstáculo no caminho de Freud

No Congresso de Roma, Lacan (1966/1998) inicia um movimento de revisão da interpretação analítica no que diz respeito a sua forma e eficácia, além da própria função do analista. Nessa ocasião, seu argumento era que os analistas pós-freudianos mostraram desconhecimento dos efeitos e princípios que regem a linguagem, ao insistirem na relação imaginária com o Eu do analisante.

Nesse momento, o que lhe interessa é a emergência da verdade do sujeito frente ao seu desejo. A noção de verdade não se estabelece por meio da operação cognitiva que coordena a adequação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, ou pela consistência interna dos enunciados em determinado discurso, mas ela se aproxima ao sentido de alethéia, como desvelamento do ser. Nesse sentido, Lacan opõe a fala vazia, como aquela ligada às identificações imaginárias do Eu que impossibilita a revelação da verdade, à fala plena, como linguagem própria do desejo do sujeito.1

Miller (2005) argumenta que para Lacan, nesse período inicial, a referência é antes situar a fala em relação à verdade do sintoma que nela é veiculada do que a satisfação que nela comporta, o que receberá maior destaque num momento posterior de seu ensino. A verdade estaria confinada no significante recalcado da fala, no qual o sintoma seria uma forma de veicular sua mensagem, mesmo que por meios tortuosos.

Ainda segundo Miller (2005), o ponto de partida do ensino de Lacan é marcado pela concepção de inconsciente como aquilo que quer antes de tudo dizer, e pelo sintoma como mensagem cuja interpretação liberaria sua verdade. Contudo, haveria um segundo momento, cujo traço marcante do inconsciente é sua satisfação, seu valor de gozo, "E assim se opõe o valor de verdade e o valor de gozo, criando o problema de sua conciliação" (Miller, 2005, p. 52). Pouco mais adiante, o comentador dirá que acredita existir um movimento semelhante no trabalho de Freud.

Para Freud (1917), o sintoma se apresenta como uma solução diante de um conflito psíquico, conciliando posições antagônicas, diferentemente da classificação nosológica clássica e de suas categorias estabelecidas segundo o modo com o qual o indivíduo é afetado. O sintoma é concebido pela Psicanálise como uma estratégia da organização psíquica do sujeito, diante do encontro com algo da ordem do impossível de ser nomeado, o sintoma emergiria como suplência para aquilo que vacila, permitindo que o sujeito se estruture de alguma forma. Isso corresponde ao exercício próprio do inconsciente. Se por um lado existem sintomas que submetem o sujeito ao sofrimento, por outro, não deixam de existir aqueles que trazem satisfação.

Desde 1895, no texto/carta Projeto para uma Psicologia Científica, Freud explicava, por meio da linguagem fisicalista do período inicial de sua obra (Assoun, 1983), que o organismo estaria exposto a quantidades de energia em movimento. Por um lado, havia aquelas advindas do meio externo, as quais o organismo se encontraria protegido pelos órgãos dos sentidos; e por outro, aquelas que nasciam no próprio corpo, relacionadas às necessidades básicas, destacando a sexualidade como um desses elementos. A estas o organismo estaria exposto sem proteção. Essas quantidades internas se somam no organismo até atingir certo limiar. Quando feito, elas passam a gerar desprazer, requerendo uma descarga no meio externo. Dessa forma, o aumento de tensão estaria relacionado ao desprazer, enquanto sua diminuição se relacionaria ao prazer. Nisso "reside a mola pulsional [Triebfeder] do mecanismo psíquico" (Freud, 1895/2003, p. 30). É um movimento que se inicia no corpo e se apazígua (Befriedigung) nos elementos que a cultura oferece.

Contudo, o princípio de realidade acaba por impor sucessivos obstáculos à vontade acéfala das pulsões e seu imperativo dominante em ser apaziguada. Em virtude disso, ela encontraria outras vias na realização de seu objetivo. Essas outras vias são derivadas das formações do inconsciente, representadas nos sintomas, nos sonhos, nos chistes, etc. Isto é, elas constroem um compromisso entre o desejo recalcado e a realidade, todavia, esse mecanismo que traz o apaziguamento da pulsão acaba por solicitar um excessivo comprometimento da energia psíquica do sujeito.

Na análise do Homem dos Ratos, Freud insistia em destacar para o analisante que sua doença era uma resposta à hostilidade inconsciente contra seu pai. Porém, em sua consciência, não reconhecia no pai morto o objeto perturbador, recusando-se a acreditar que na "sua infância tivesse sido tomado de fúria (que, a seguir, se tornara latente) contra o pai, a quem amava tanto" (Freud, 1909/2002, p. 54). Freud comenta: "Ele concede que tudo isto soa bem plausível, mas naturalmente não dá mostra de estar convencido" (Freud, 1909/2013, p. 29). De fato, Länzer mostrava-se cético diante das interpretações de Freud, não as aceitando. Ele insistia no caráter de inadequação das intervenções.

Nesse período, a análise passou por seu momento mais severo, com o analisante se dirigindo de maneira violenta e hostil, negando as interpretações. Freud o faz observar que esse comportamento era resultado de sua resistência, acrescentando que: "somente pela dolorosa via da transferência que ele chegou a convencer-se de que sua relação com o pai exigia aquele complemento inconsciente" (Freud, 1909/2013, p. 48). É com o auxílio da transferência que Freud busca fazer ressoar suas interpretações. Freud se depara com os limites da interpretação tal como a concebia e conceituava. Além disso, a cada impasse, se via perpassado pelos efeitos de uma concepção mais formal do que conceitual, e consequentemente mais estilística do que seu espírito científico poderia esperar e almejar.

O analisante admitia que por meio de seus pensamentos insultava Freud. Certa vez, ao fazer uma confissão como essa, levantou-se do divã e circulou pelo consultório, explicando que isso devia-se ao medo de ser espancado por ele, visto que não podia permanecer ali deitado enquanto lhe dirigia aquelas palavras. Em seguida, Länzer recorda que "seu pai tivera um temperamento passional e, às vezes, em seu caráter violento, não soubera quando parar" (Freud, 1909/2002, p. 56). Freud interpreta que o analisante acabara de estabelecer uma identificação entre ele e seu pai, mediante aquilo chamado no relato do caso como "fantasia de transferência". Isto é, os traços de identificação atribuídos tanto ao pai de Länzer quanto ao próprio Freud tornaram possível que esse material emergisse na análise, servindo de engrenagem no tratamento.

Como acréscimo ao episódio comentado, é destacado outro no qual Länzer menciona que se ganhasse na loteria casaria com a dama que admirava e cuspiria no rosto de Freud, que interpreta que isso acabara por revelar o desejo do analisante em tê-lo como sogro. Pouco antes desse período, Länzer passara em frente ao edifício no qual Freud morava e tinha se deparado com uma jovem na sacada, que acreditava ser sua filha. Desse encontro resultou um sonho, no qual vê essa jovem com dois pedaços de esterco nos olhos. Freud interpreta que o interesse do analisante por sua filha não era em virtude de seus belos olhos, mas do dinheiro que lhe supunha ter. Por meio da transferência, Länzer deslocava o amor que sentia pela dama para a filha de Freud, na qual imaginava representar um partido rico e respeitável, reatualizando novamente sua trama familiar.

Freud atribui os fenômenos de aversão ao tratamento como resistência do analisante. Com isso, observamos um espectro de como sua interpretação se situa ao longo do caso Homem dos Ratos. Há uma passagem dos elogios conferidos por Freud ao analisante quando ele cooperava no andamento do tratamento, do tipo: "aproveitei para lhe dizer uma ou duas palavras sobre a boa opinião que eu formara sobre ele, e isto lhe causou visível prazer" (Freud, 1909/2002, p. 29); até o modo reativo, com o qual o analisante recebia suas palavras como injuria: "eu não ligo a mínima pelo elogio", ou ainda, "estou cagando para isso" (Freud, 1909/2002, p. 139).

 

Dois paradigmas da interpretação freudiana

Ondina Machado (2003) nos oferece algumas indicações do desafio enfrentado por Freud em sua clínica nesse período, servindo-se da neurose obsessiva como modelo. No quadro histérico, o princípio da interpretação visava a uma relação de sentido entre sintoma e realização de desejo. Contudo, sobretudo no quadro da neurose obsessiva, um fenômeno heterogêneo se apresenta na clínica freudiana, naquilo concebido por ele como resistência.

Conforme a comentadora (2003, p. 3), "para o obsessivo não é o desejo (histeria), mas a pulsão que se satisfaz no sintoma. O sintoma é uma satisfação em si mesmo. A satisfação se infiltra no sintoma, driblando a barreira do recalque (êxito parcial)". Esse elemento evidencia que o sintoma não se constituí apenas como realização de desejo, mas que também há uma satisfação pulsional mobilizada. Percebemos quão difícil é desvencilhar o obsessivo de seus sintomas justamente porque é ali que sua pulsão é apaziguada.

Nesse caso, a pergunta, por mais paradoxal que pareça, seria: como desvincular o analisante do seu sintoma se é ele que o faz sofrer, mas que simultaneamente também lhe traz satisfação? Desse modo, é colocado um impasse diante da interpretação. Se de um lado ela consegue atribuir sentido e decifrar o desejo inconsciente presente no sintoma, no sonho, no ato falho, por outro, notamos que existe uma fração do sintoma que resiste à decifração, ao sentido. Dessa maneira, há uma parte do sintoma que se apresenta configurado como perda de sentido.

Outra maneira de pensar o fenômeno clínico descrito por Freud nesse período como resistência é por meio do conceito de gozo (jouissance) formalizado por Lacan. Esse conceito vem para destacar o excedente pulsional em jogo na clínica, situada entre os oximoros da satisfação/insatisfatória, do prazer/desprazeroso ou da aversão/desejante, ele marca a relação do sujeito perante seu sofrimento. "Freud estabeleceu que, subjacente ao que se distingue na experiência do prazer e do sofrimento, há algo que invariavelmente se satisfaz e do qual não se sabe. Lacan deu-lhe o nome francês de jouissance" (Miller, 2005, p. 13).

O conceito de gozo é resultado da indiferenciação entre a experiência de prazer e de dor que cabe ao sofrimento. No movimento de satisfação pulsional, existe um resíduo que sobra na forma de frustração (Versagung), uma satisfação que foi privada do sujeito e que por meio da repetição busca ser recuperada. O gozo (Genuss) remeteria para a dimensão que estaria além do princípio do prazer, um "a mais" interditado ao sujeito, impossível de ser reconciliado.

Lacan (1966/1998) retoma o caso clínico do Homem dos Ratos, em seu relatório de Roma, argumentando que não se tratava de doutrinação por parte de Freud - se referindo às pequenas notas sobre teoria psicanalítica com que ele servia Länzer -, tampouco de deficiência por parte dele em lidar com a resistência do analisante - como fora acusado pelos analistas da IPA -, mas em situar o lugar preciso da interpretação. Interpretação que consiste antes em fazer vibrar a ressonância da fala, produzindo efeitos transformativos, do que se perde nos caminhos tortuosos do gozo.

A palavra alemã Unbewusste, traduzida para o português como inconsciente, carrega consigo uma peculiaridade semântica. O radical Bewusste (consciência) deriva da palavra Wissen, que significa saber, sendo que o prefixo Un indicaria sua negação. Dito isso, o inconsciente freudiano se apresentaria como um não-saber de natureza simbólica, que pode vir a se saber. O sentido desse saber seria decorrente da formulação presente no complexo de Édipo, ela indicaria a verdade sobre o saber em jogo na experiência analítica. Nesse primeiro momento da obra freudiana, até os anos de 1920, a interpretação da Psicanálise se apresentaria, eminentemente, como uma arte decifratória de sentido presente no discurso inconsciente. Contudo, um elemento heterogêneo começa a surgir na clínica freudiana, representando um obstáculo ao modelo até então concebido, Freud o nomeia de resistência. O que emerge e passa a se destacar é um descompasso entre sua teoria e a clínica, advindo da dificuldade de produção de sentido. Dessa forma, o que adquire contorno é a ausência ou perda de sentido. Nos anos de 1920, Freud inicia um movimento de revisão de sua teoria, formulando um além do princípio do prazer. Isso implica não apenas em uma nova concepção de aparelho psíquico, como também em uma redefinição de sua interpretação e consequentemente novos contornos na clínica. Lacan sugere como tradução para o francês do termo freudiano Unbewusste não o inconsciente, que guardaria consigo uma relação de sentido em relação ao alemão, mas prefere usar l'une-bévue, apostando com isso, de maneira poética, para a dimensão do equívoco (bévue) e da homofonia presentes no inconsciente.

No caso clínico do Homem dos Ratos, é possível encontrar um modelo interpretativo de restituição de sentido, contudo isso não significa que sua racionalidade se esgote em um mero exercício hermenêutico; ao longo das sessões, o que adquire cada vez mais destaque na escuta freudiana é como as sucessivas significações se relacionam por meio de um traço comum relativo ao significante. Dito de forma mais clara, se valendo da transferência, Freud é orientado, por meio do significante Ratten (rato), não por aquilo que ele porta de sentido, mas por sua materialidade sonora. Há um deslizamento para Raten (dívida/prestação), em seguida para Spielratte (rato de jogo) e ainda para heiraten (casar). Dessa forma, o exercício interpretativo na clínica freudiana ganharia contornos próximos daqueles utilizados na poética, quando aquele que presta esse oficio se vale antes da sonoridade material das palavras e os efeitos derivados dela e menos daquilo que elas comportam de sentido. Não custaria lembrar que Freud sempre conferiu destaque para atenção flutuante como método fundamental na escuta analítica, pois se trataria menos do sentido veiculado na fala e mais da ressonância produzida por ela.

Embora possamos encontrar dois paradigmas na interpretação analítica freudiana, um orientado pelo exercício de descoberta de sentidos não evidentes e produção de novos significados e outro que se vale da equivocidade em torno da materialidade das palavras, essa incoerência interna, longe de representar uma deficiência, é justamente o que anima e estrutura sua atividade.

 

Referências

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1 Distinção semelhante àquela feita por Heidegger entre Gerede (falatório) e Rede (discurso).

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