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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.9 no.16 São João del Rei ene./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

O segredo despido pelo brincar na clínica psicanalítica

 

The Secret Revealed by Playing in the Psychoanalytic Clinic

 

Le secret déshabillé par le jeux dans la clinique psychanalytique

 

El secreto desnudo jugando en la clínica psicoanalítica

 

 

Nathália Tavares Bellato Spagiari*; Isadora Nicastro Salvador**; Felipe de Souza Barbeiro***; Maria Elizabeth Barreto Tavares dos ReisI****

IUniversidade Estadual de Londrina - UEL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O abuso sexual infantil é uma violência contra a criança por alguém em estágio psicossexual mais avançado, podendo deixar marcas na dinâmica do psiquismo e despertar emoções inconscientes. Por não envolver somente contato físico, é difícil o reconhecimento dessa violação, podendo ser revelada por brincadeiras no setting terapêutico. Este trabalho se propôs a analisar os sinais de abuso sexual comunicados por uma paciente infantil por meio das brincadeiras em sessões de psicoterapia psicanalítica. A partir de leituras flutuantes dos relatos descritos pela psicoterapeuta que atendeu o caso e dos sentimentos e emoções despertadas nos pesquisadores, buscou-se a construção de fatos clínicos, que permitem que um fenômeno manifestado na clínica seja estudado e melhor entendido. Os resultados desta pesquisa indicam que o brincar da criança no contexto clínico comunicou à psicoterapeuta um pedido de cuidado referente aos seus segredos e sofrimentos. Isso pôde possibilitar que a criança revelasse o abuso sofrido, favorecendo a elaboração das suas emoções.

Palavras-chave: Abuso sexual infantil, Brincar, Fato clínico psicanalítico, Psicanálise, Setting psicanalítico.


ABSTRACT

Child sexual abuse is an act of violence against the child by someone in a more developed psychosexual stage, which may leave marks in the dynamics of the psyche and generate unconscious emotions. Because it does not only involve physical contact, it is difficult to recognize this violation, which can be revealed by playing in the therapeutic setting. This study aims to analyze the indication of sexual abuse reported by the playing of a child in psychoanalytic psychotherapy sessions. From evenly-suspended readings of the reports described by the psychotherapist who attended the case and the feelings and emotions aroused in researchers, we sought the construction of clinical facts, which allow a phenomenon manifested in the clinic to be studied and better understood. The results of this study indicate that the child's playing in the clinical context has communicated to the psychotherapist a request for care of her secrets and sufferings. This allowed the child to reveal the abuse suffered, favoring the work of her emotions.

Keywords: Child sexual abuse, Playing, Psychoanalytic clinical facts, Psychoanalysis, Psychoanalytic setting.


RÉSUMÉ

L'abus sexuel sur mineur est une violence contre l'enfant commis par quelqu'un dans un étage psychosexuel plus avancé, en laissant des marques dans la dynamique de le psychisme et réveillant des émotions inconscientes de l'enfant. Cette violation est difficile d'être reconnue parce qu'elle n'entoure seulement contact physique. Pourtant, elle peut être révélée par les jeux dans le setting thérapeutique. Cette travail se propose à analyser les signaux de l'abus sexuel communiqués par les jeux d'une patiente mineur dans des séances de psychothérapie psychanalytique. À partir de lectures flottantes des récits décrits par la psychothérapeute responsable par le cas e par les sentiments et émotions réveilles dans les chercheurs, il a examiné la construction des faits cliniques qui permettent qu'un phénomène manifesté dans la clinique soit étudié et bien compris. Les résultats de cette recherche indiquent que, en jouent dans le contexte clinique, l'enfant, devant ses secrets et souffrances, a communiqué une demande de soin à la psychothérapeute. Cela a possibilité à l'enfant de révéler l'abus subi, en favorisant l'élaboration de ses émotions.

Mots-clés: Abus sexuel de mineur, Jouer, Fait clinique psychanalytique, Psychanalyse, Setting psychanalytique.


RESUMEN

El abuso sexual infantil es una violencia contra el niño por alguien en una etapa psicososexual más avanzada, pudiendo dejar marcas en la dinámica de su psiquismo y despertar emociones inconscientes. Por qué no implican contacto físico solamente, es difícil el reconocimiento de esta violación y pueden ser revelado por bromas en el ambiente terapéutico. Este trabajo se propuso analizar los signos de abuso sexual comunicado por las bromas de una paciente infantil en sesiones de psicoterapia psicoanalítica. Desde las lecturas de informes descritos por psicoterapeuta que asistieron al evento y los sentimientos y emociones despierta en investigadores, buscó la construcción de hechos clínicos, que permiten que un fenómeno se manifiesta en la clínica para ser estudiado y entiende mejor. Los resultados de esta investigación indican que el juego del niño en el contexto clínico comunicó a la psicoterapeuta un pedido de cuidado frente a sus secretos y sufrimientos. Esto pudo posibilitar que el niño revelara el abuso sufrido, favoreciendo la elaboración de sus emociones.

Palabras claves: Abuso sexual infantil, Juego, Hecho de psicoanálisis clínico, Psicoanálisis, Configuración psicoanalítica.


 

 

Introdução

A infância é um período de intensas mudanças físicas e emocionais, deixando a criança em um estado de maior vulnerabilidade. Assim, vários tipos de violência podem acontecer, provocando marcas e interferindo no desenvolvimento da sua personalidade (Magni & Correa, 2016).Um dos grandes problemas encontrados na área da saúde é o abuso sexual infantil.

Essa violência pode ser entendida como qualquer interação sexual entre uma criança ou adolescente e alguém que esteja em um estágio do desenvolvimento psicossexual mais avançado (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005). A agressão não necessariamente envolve contato físico ou penetração. Qualquer ameaça, indução, exibicionismo, voyeurismo, seja uma relação heterossexual, seja homossexual, é reconhecida como abuso (Santos & Dell'Aglio, 2010).

Silva e Teixeira (2017) ressaltam que não é somente o corpo que sofre uma violação, mas também a dinâmica do psiquismo. A criança fica confusa ao ser utilizada como objeto de satisfação adulta e, também, de entrar em contato com sentimentos sexuais inéditos. Dessa forma, emoções inconscientes também são despertadas. Além disso, Mandelbaum, Schraiber e d'Oliveira (2016) entendem que a violência prejudica a integração da personalidade da criança, dificultando a possibilidade de lidar com as situações futuras da vida. No caso de um abuso no contexto familiar, a criança se vê em uma situação particularmente delicada: ela se encontra violentada por alguém que deveria protegê-la e, por outro lado, como a relação familiar é seu primeiro contato social, sua vivência exterior será marcada por uma frustração.

Segundo Araújo (2002), como a força física nem sempre está envolvida, o reconhecimento do abuso é dificultado, principalmente se acontece quando a criança é pequena. Além disso, a autora afirma que o assunto é complicado também para os envolvidos, incluindo os profissionais, visto que implica questões jurídicas de proteção à vítima, punição do agressor e cuidado terapêutico devido às decorrências psicológicas do caso.

A origem do que se entende por abuso sexual envolve questões culturais e de relacionamento. O incesto, a familiaridade e a dependência de poder são exemplos disso, que apontam, inclusive, para uma estrutura familiar bastante frágil (Azevedo, 2001). Pfeiffer e Salvagni (2005) retomam Freud (1913/2006) ao considerar que a primeira relação da criança é com as figuras parentais. O próprio Freud (1913/2006) ressalta que, mesmo nas culturas mais antigas, há regras fundamentais quanto ao impedimento do canibalismo e do incesto. Também na atualidade, tais regras continuam sendo transmitidas transgeracionalmente, logo, não há como alguém alegar desconhecimento (Pfeiffer & Salvagni, 2005).

As autoras resgatam também que a prática sexual está cada vez mais disseminada e a essa questão soma-se a de que sempre houve a relação de poder de domínio do mais forte pelo mais fraco. Assim, mesmo com a legislação atual, que protege a criança e o adolescente, os casos de abuso sexual infantil não deixam de existir. A maioria dos casos acontece por pessoas próximas ou que exerçam autoridade sobre a vítima. É por meio dessa relação de familiaridade e de poder que o abusador se aproxima dela, o que pode gerar na criança a ideia de que as atitudes abusivas sejam normais ou até de proteção (Pfeiffer & Salvagni, 2005); assim, inicia-se uma relação perversa, na qual um indivíduo é privado de seu desejo para ser objeto de desejo de outro (Azevedo, 2001).

A Psicanálise, como método e prática, ajuda a entender e dar sentido ao que o sujeito diz, pois todos esses novos e confusos acontecimentos podem deixar marcas traumáticas. Um trauma é um episódio externo intenso em que o sujeito se sente incapaz de reagir, originando um conflito interno que acarreta um sintoma. Partindo da concepção econômica freudiana, são excitações que excedem o que se pode tolerar e dominar, dificultando uma elaboração eficaz (Mandelbaum, Schraiber & D'Oliveira, 2016; Silva & Teixeira, 2017).

Já Winnicott (1945/2000) ressalta a importância do ambiente na questão do trauma. Quando este falha, podem ocorrer danos no desenvolvimento da criança, prejudicando seu amadurecimento. A falha perturba o progresso da vida da criança, por reações à intrusão e, quando em excesso, provocam uma "ameaça de aniquilação" (Winnicott, 1945[2000], p. 403), gerando uma ansiedade tão primitiva que o autor a situa anterior a qualquer uma relacionada à morte (Winnicott, 1956/2000). O abuso sexual, sendo uma intrusão, além da angústia de aniquilamento, pode provocar tendências antissociais, que, segundo Winnicott (1967/1999), são tentativas de conseguir tomar do ambiente os cuidados que este não ofereceu. Quando essa angústia não é compreendida, pode levar à delinquência. A psicoterapia, então, permite a compreensão quando a criança recorda o acontecimento por meio da fala, de sonhos e do brincar.

Há várias questões que dificultam ou até impedem a criança de contar que sofreu ou está sofrendo abuso sexual, sendo que o não falar é traumático, pois não possibilita a elaboração do material (Arpini, Tanure, Soares, Bertê & Forno, 2008). O abuso pode ser comunicado de duas formas: pela vítima ou por terceiros. A revelação pode ser intencional, quando a criança conta claramente, ou de formas variadas, como quando são dadas pistas, quando há estratégias técnicas que permitam a revelação, quando detectada por testemunha ou quando alguém desconfia do abuso a partir de observações (Baía, Magalhães & Veloso, 2014).

Hershkowitz, Lanes e Lamb (2007) afirmam que a maioria das crianças que sofreu abuso levou até um mês para revelar, mas outras levaram mais de um ano, sendo que a maioria dos perpetradores era conhecida, o que corrobora o adiamento da revelação. Habigzang, Ramos e Koller (2011) chamam atenção para o apoio à criança, a fim de aumentar a possibilidade de ela confidenciar o abuso e se sentir protegida, diminuindo os danos decorrentes. Se o adulto não acredita na informação da criança e não toma as devidas providências, ela pode se sentir novamente vitimizada e culpada pelo abuso.

Quando o acontecimento não é dito de alguma forma, a psicoterapia psicanalítica pode auxiliar na recordação e elaboração do abuso, fazendo, assim, pensar o que não conseguiu ser pensado. Mandelbaum et al. (2016) salientam que o trauma ocasiona a busca por proteção e, assim, visa à repetição, sendo essencial sua elaboração a fim de que a violência não se perpetue nas gerações seguintes. Freud (1896/2006) descreve que a recordação ocorre devido à ausência da reação ao acontecimento, portanto, a memória dele é acompanhada de afeto, mesmo que as cadeias associativas estejam esquecidas . Peron (2004) explica que a elaboração transforma os conteúdos esquecidos em representações manifestadas no setting, dependendo da interpretação do terapeuta para dar sentido às cadeias associativas. Por conseguinte, Winnicott (1964/1994) entende o setting como um equivalente do ambiente, que não deve ser rígido, a fim de propiciar segurança ao paciente, oferecendo confiabilidade para a regressão ao acontecimento traumático. Almeida e Costa (2016) esclarecem que, brincando, a criança pode exteriorizar seus medos internos, uma vez que o brincar permite a repetição do conteúdo excessivo para seu ego frágil; assim, ela pode elaborar seu sofrimento, equilibrando sua saúde emocional.

A brincadeira é a forma de comunicação da criança. Melanie Klein (1932/1997), uma das precursoras da Psicanálise Infantil, prioriza a brincadeira como forma de acesso ao inconsciente. Oliveira (2007) explica que a atividade lúdica permite a revelação simbólica dos sentimentos dos pequenos pacientes, possibilitando, segundo Fulgencio (2008), à criança a expressão de suas fantasias inconscientes, e a interpretação diz respeito ao mundo interno infantil.

Para Almeida e Costa (2016), partindo da ideia de um inconsciente atemporal, Klein depreende que os conceitos básicos da Psicanálise são os mesmos para as crianças e para os adultos. Pinheiro e Matos (2016) explicam que o que muda é a técnica: o brinquedo representa a associação livre do adulto. Klein (1932/1997) afirma que um brinquedo possibilita vários significados quando utilizado pela criança e, para suas interpretações, o entendimento necessita conhecer as relações que a criança faz mais seu processo analítico como um todo, pois, enquanto ela brinca, ela faz associações.

Winnicott (1975) também é reconhecido pela Psicanálise com crianças. Para Franco (2003), enquanto Klein centra a análise no uso da brincadeira como substantivo, Winnicott prioriza o brincar como verbo, então, é por meio do brincar amparado pelo manejo do psicoterapeuta que a criança vai se expressar e comunicar o trauma causado pelo abuso sexual.

Franco (2003) compreende que não se deve entender o brincar winnicottiano ingenuamente, pois os elementos do mundo interno e do mundo externo do paciente emergem durante o brincar na sessão analítica. O corpo é indissociável no brincar em sessão, podendo envolver tanto excitação quanto angústia, que devem ser manejados em grau que não se perca a liberdade do brincar. O tratamento demanda, na transferência, a interpretação das fantasias inconscientes. O brincar permite um encontro consigo mesmo, da comunicação e da consonância entre as realidades internas e externas, numa área em que ele "cria o mundo em que vive, ao mesmo tempo em que se adapta ao mundo objetivamente dado" (Fulgencio, 2008, p. 133).

Assim, a criança que sofreu algum tipo de violência pode manifestar sua agressividade por meio do seu momento criativo, seja no setting ou nas suas relações pessoais. Azevedo (2001) recomenda ao profissional estar disposto em casos como esse, pois estará em contato com material que pode interferir em seu psiquismo, como adotar o lado de pena pela vítima ou ódio pelo abusador, dificultando o processo da análise.

Logo, o brincar se desenrola na psicoterapia infantil como instrumento de comunicação da criança com o psicoterapeuta (Oliveira, 2007), sendo assim, os conteúdos que emergem nas brincadeiras da criança em psicoterapia podem abordar eventos traumáticos, como o abuso sexual (Silva & Teixeira, 2017) . O abuso sexual infantil - entendido neste trabalho como qualquer ação que envolva conotação sexual para além da compreensão da criança, como apontado anteriormente - tem efeitos no psiquismo infantil e pode ser revelado pela criança que se encontra em tratamento psicoterápico; desse modo, como ressaltam Arpini, Hermann, Forno e Soares (2010), compreender o abuso sexual infantil é um tema complexo e merece cuidado para não haver vulgarização do tema.

Tendo em vista a atualidade do tema e a necessidade de refletir sobre as possibilidades de amparo psicológico às crianças vítimas de abuso sexual, o presente trabalho tem por objetivo analisar os indícios de abuso sexual a partir das brincadeiras realizadas por uma criança durante as sessões de psicoterapia psicanalítica.

 

Método

O fato clínico tem sido utilizado pela Medicina como forma de melhor conhecer ou elucidar aspectos específicos de determinadas enfermidades (Quinodoz, 1994). O estudo a partir de fatos clínicos possibilita que o fenômeno seja estudado e divulgado para a comunidade científica, preservando as características dos pacientes e, logo, o anonimato. Por essa via, "evidencia-se o cuidado ético e teórico exigidos para produzir os fatos clínicos, enfocados no fenômeno a ser investigado, e não na história e descrição do caso clínico de um analisando" (Silva & Macedo, 2016, p. 525).

Alguns autores têm utilizado a análise dos fatos clínicos presentes nos processos terapêuticos como método de pesquisa, que culmina com a elaboração de fato clínico-psicanalítico. Compreende-se o fato clínico psicanalítico por "uma construção realizada por analista e analisando no âmbito do campo psicanalítico, partindo da relação decorrente da comunicação dos fatos ocorridos dentro e fora da sessão, dos sonhos, dos estados afetivos e do agir do analisando" (Silva & Macedo 2016, p. 524), sendo gerados em contexto transferencial e contratransferencial (Quinodoz, 1994). Por intermédio dos fatos clínicos, possibilita-se a captação de alguns componentes viáveis de sua comunicação, o que oportuniza seu uso como método psicanalítico de pesquisa (Quinodoz, 1994; Silva & Macedo, 2016).

A construção por meio desse método pressupõe a fragmentação de um caso clínico devido à seleção de eventos que acarretam a reflexão sobre uma problemática manifestada no setting psicanalítico (Moore, 1994). Como abordam Silva e Macedo (2016), os elementos extraídos arbitrariamente são apontados pela subjetividade dos pesquisadores, sendo essa característica essencial para este método investigativo. E, como forma de elaboração dos conteúdos suscitados pelas leituras dos relatos, busca-se construir um fato clínico, pois ele possibilita "problematizar o processo e de fomentar novas vias interpretativas, permitindo, assim, a construção posterior de novas intervenções frente à escuta de uma demanda analítica" (Silva & Macedo, 2016, p. 525).

O presente estudo integra um projeto de pesquisa maior desenvolvido no serviço-escola de uma universidade pública do estado do Paraná, aprovado pelo Comitê de Ética da instituição. Neste trabalho, foi utilizado o relatório de atendimento em psicoterapia psicanalítica de uma criança, cronologicamente situada na fase fálica (Freud, 1905/1996), que já havia sido finalizado. Contudo, a seleção e a construção do fato clínico foram elaboradas pelos pesquisadores, e não pelo psicoterapeuta. O psicoterapeuta e um responsável pela criança assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A leitura do relato, realizada com atenção flutuante, suscitou sentimentos de incômodo nos pesquisadores, especialmente em algumas situações lúdicas, as quais foram selecionadas como fatos clínicos. A seguir, procedeu-se à análise do brincar, nas diversas situações em que aquele fato clínico foi constatado, fundamentada nas concepções da Psicanálise, o que possibilitou a construção de um fato clínico psicanalítico (Quinodoz, 1994).

 

Resultados e discussão

A leitura dos relatórios das sessões de atendimento psicoterápico gerou desconforto, revolta e sentimento de impotência, entre outras emoções, nos pesquisadores. De certa forma, podem-se caracterizar essas reações emocionais equivalentes às decorrentes dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais no setting terapêutico. As situações clínicas que motivaram tais emoções e sentimentos nos pesquisadores foram consideradas como fatos clínicos (Quinodoz, 1994; Moore, 1994; Silva & Macedo, 2016) e serão analisadas a seguir.

A primeira leitura dos relatos clínicos foi realizada em conjunto - mesmo local e horário - por três pesquisadores. Em tal situação, todos se sentiram muito incomodados e com sensação de desconfiança, principalmente quando dois deles leram o seguinte trecho: "Quando a menina começou a morar com ele, o pai relatou que as vacinas estavam todas atrasadas, e que a mãe não se preocupava em dar limites", trocando a palavra "morar" por "namorar". Entende-se que se trata de um ato falho, pois a troca de palavras se relaciona a um sentido singular, fazendo parte de uma intencionalidade inconsciente, na medida em que "como formação do inconsciente, o ato falho permite um modo de acesso aos conteúdos que são recusados pela consciência" (Aires, 2017, p. 29). A percepção do fato ocorrido fomentou debates sobre a possibilidade de relação com questões da sexualidade presentes no caso analisado.

Durante as sessões realizadas unicamente com a criança, ela se mostrou muito comunicativa e confiante com a terapeuta. Isso pode ser notado por a criança dizer com naturalidade sobre conteúdos de difícil acesso, surgidos nas brincadeiras nas sessões. Logo, por meio dessas brincadeiras foram identificados os fatos clínicos para análise.

Já na primeira sessão, a menina pede para que ora a terapeuta faça o telhado da casa que ela está montando, ora a "parede para deixar a TV em pé [sic]". Em outro momento, pede para a terapeuta pintar o teto da casa, mostrando-se surpresa com o quanto ele é bonito quando feito pelas mãos da terapeuta. Essa atitude sugere um pedido de ajuda por alguém que dê uma estruturação na sua condição psíquica e de sua família, que os mantenha "em pé", que saiba dar continência, cuidado e proteção a ela e a sua família. Portanto, como menciona Winnicott (1964/1994; 1956/2000), o setting psicoterapêutico permite o desenvolvimento de confiança e segurança na relação paciente-terapeuta, propiciando o aparecimento de conteúdos pela criança, como exposto anteriormente.

Em sequência, ao fazer a cama de sua casa, relata que "ele quer que a cama fique maior [sic]". Diz que a cama era de duas pessoas e pergunta: "e eu? [sic]", como se perguntasse onde era seu lugar naquela relação familiar. Além disso, disse que "queria ser o tapete, mas não estava conseguindo achar uma porta para a casa". Isso pode remeter ao lugar dessa criança, que fica assemelhado a um tapete, em que as pessoas podem pisar a qualquer momento. Essa característica de deixar-se seduzir, permitir-se ser induzida a situações sexuais e perversas, pode ser compreendida a partir da disposição perversa polimorfa da criança, como conceituado por Freud (1905[2006], p. 180).

É instrutivo que a criança, sob a influência da sedução, possa tornar-se perversa polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mostra que traz em sua disposição a aptidão para elas; por isso sua execução encontra pouca resistência, já que, conforme a idade da criança, os diques anímicos contra os excessos sexuais - a vergonha, o asco e a moral - ainda não foram erigidos ou estão em processo de construção. [...] Em condições usuais, ela pode permanecer sexualmente normal, mas, guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual.

Nessa falta da construção da vergonha, asco e moral da criança, faltava uma porta para essa casa, um limite, algo que pudesse indicar o que entraria ou não ali. Uma barreira funcionando como uma fronteira entre o que acontece dentro e fora daquela casa, pois se percebe que esses ambientes de dentro e fora se mantêm misturados, denunciando uma provável confusão entre o que se passa no mundo interno e externo da criança.

A leitura desse fato suscita sentimentos maternais nos pesquisadores, como se a menina estivesse fazendo um apelo ao cuidado, o que ressoa nos autores de modo a sentir pena da paciente, pela necessidade de amparo que ela expõe. Essa busca por cuidado faz pensar no conceito winnicottiano de holding, que Januário e Tafuri (2011) descrevem para explicar o processo analítico: assim como na relação mãe-bebê, ele é entendido como uma sustentação, a fim de proporcionar um ambiente que possibilite a integração egoica da paciente. Neto (2008) lembra que a relação paciente-terapeuta é similar à relação mãe-bebê, assim, a maneira como a criança se comunica em sessão produz sentimentos no terapeuta, que tal qual a mãe do bebê procura meios de compreender, analisar e comunicar verbalmente à paciente o que percebe em sua realidade psíquica.

Se o manejo realizado pelo psicoterapeuta, nomeado por Winnicott (1956/2000) como contexto, for suficientemente bom, adaptado às necessidades do paciente, estimula a esperança de que a experiência de viver é válida. Dessa forma, dá-se a possibilidade de desenvolvimento do ego, permitindo à criança a recordação das falhas anteriores e ao terapeuta a possibilidade de interpretação das defesas contra a ansiedade.

Em várias sessões, a paciente pede para que a terapeuta adivinhe do que ela está brincando, o que está desenhando, o que está fazendo, denotando-se como portadora de segredos, os quais deveriam ser adivinhados e esclarecidos pela terapeuta. Numa sessão, a terapeuta pontua que a paciente gosta de brincar de adivinhar e pergunta o que ela quer que a terapeuta adivinhe; então ela relata que era para adivinhar um segredo. Esse é o momento da leitura em que os autores sentiram-se intrigados, querendo descobrir o mistério. Segundo Melo, Magalhães e Féres-Carneiro (2014, p. 165), "Muitas vezes, os segredos funcionam como fetiche que organiza a família e o analista. Com base nesse efeito de fascinação, o analista pode sentir-se curioso e impulsionado a realizar uma espécie de investigação policial". Nessa via, esse parece ser um ponto que nos incita a continuar de forma mais rápida e efetiva a leitura para que os segredos sejam encontrados. Ainda de acordo com Melo, Magalhães e Féres-Carneiro (2014, p. 167),

Nos atendimentos de famílias que se veem às voltas com segredos, dadas as dificuldades de pensar e colocar em palavras certas experiências vividas e consideradas traumáticas e vergonhosas, a contratransferência é uma preciosa aliada não apenas para a compreensão do que se passa durante as sessões, como também para as intervenções que possam vir a ser feitas.

A paciente também brinca no corredor de se esconder das câmeras e diz: "A câmera não pode pegar a gente [sic]." Faz uma nuvem e quando a terapeuta pergunta o que essa nuvem está fazendo ela responde:

Ah, ela tá no céu. Mas o transparente está bravo, porque ele não quer que o azul fique junto. Mas ele tem que aprender que o azul também faz parte do céu. Eles têm que ficar juntos. Sem brigar, transparente. Senão, vai ficar de castigo. Vou fazer outro. Não vou usar mais essa cola. Ela só me fez passar vergonha.

Isso mostra o quanto era difícil para ela que seus conteúdos ficassem transparentes e sem interferências, o que dificulta uma elaboração completa deles, como supracitado por Mandelbaum, Schraiber e D'Oliveira (2016) e Silva e Teixeira (2017). Nesse mesmo entendimento, diz que estava fazendo uma espada que guardava um mistério e que tinha superpoderes: era de gelo, mas se caísse no chão, quebraria; entretanto, no sol não derreteria: "Olha o que eu fiz: Uma espada. Nossa, tá parecendo um J. Ela tem um mistério. Ela tem superpoderes. [...] Ela é de gelo... se ela cai no chão, ela quebra, mas se ela fica no sol, ela não derrete" [sic].

Parece demonstrar que era como se quisessem isso dela: ser uma criança com superpoderes, com função de tapete, em que pode aguentar tudo sem derreter, desmoronar. Os pesquisadores sentem-se como se estivessem assistindo a um desenho animado quando leem o relato e imaginam a brincadeira em que a menina parecia realmente se estabelecer no lugar de "menina superpoderosa", que possui tais objetos "de outro mundo" em suas mãos. Como dito anteriormente, Almeida e Costa (2016) relacionam o brincar com a possibilidade de elaborar o ego frágil da criança, mostrando uma relação contraditória: mostrar-se uma "menina superpoderosa"; mas, em contrapartida, há a exposição de um ego frágil dela.

Nessa vertente de objetos "de outro mundo", mas que dizem apenas do seu mundo, parecendo tão distantes e com um caráter desconhecido por ela mesma, a menina começa a mostrar brincadeiras de cunho sexual. Pega a massinha, faz bolinhas e coloca uma em cima da outra, dizendo que são pares. Pega dois galos e os coloca para se beijarem, fazendo barulho de beijo com a boca. Ao ser perguntada o que eles eram, ela diz serem namorados, e quando procura os pares de outros brinquedos, como o rinoceronte e o dinossauro, e não acha um par, desiste da brincadeira.

A menina pegou alguns animaizinhos e começou a brincar. Enquanto brincava, ela ia falando com os bichinhos. Nesse momento, ela colocou um par de cada um. Ficou faltando o rinoceronte, e a menina dizia: "Ele tá sozinho. Não tem par" [sic]. Nisso, ela pegou um monte de animaizinhos e colocou embaixo da cama. Nesse momento ela disse: "Eles estão embaixo da cama de castigo. Fica aí. Não pode fazer isso." [sic] Ao ser perguntada sobre o que eles fizeram, a criança responde: "Arte" [sic]. A psicoterapeuta pergunta então que tipo de arte era. A paciente responde: "Eles fizeram bagunça. Eles estão de castigo em cima da cama. Não pode fazer bagunça. Senão vai apanhar" [sic]. Assim, a menina pegou dois pares de galos e começou a colocar um beijando o outro, fazendo barulho de beijo com a boca. Ela olhou para a psicoterapeuta e riu. A terapeuta pergunta então o que eles eram, o que estavam fazendo. A paciente diz: "São namorados" [sic]. Nesse momento, a menina procurou o rinoceronte e não achou o par. Ela procurou e achou um animal e disse: Ah, o rinoceronte tem par. Depois, ela viu que era um dinossauro e disse que ele não tinha par [sic].

Parece que se não for para eles namorarem, ela não quer brincar. Precisa dos casais para poder continuar a brincadeira; mesmo existindo o fato de os bichos namorarem ser considerado "arte" para ela, como se fizessem coisa errada. Há aí uma controvérsia em relação ao fato de namorarem, problemática inconsciente presente como uma díade para essa criança.

Em relação à possibilidade de essa criança ter sofrido um abuso sexual, entende-se tal paradigma identificado na brincadeira infantil. Segundo Calvi (1999, p. 69),

No caso do abuso sexual, a vítima, aqueles que presenciam o abuso e aqueles que escutam e não acreditam naquele que o denuncia recorrem ao desmentido. Diferentemente do que ocorre na repressão, no desmentido, a percepção dada por inexistente provém da realidade externa: algo que existe não existe. Logo, o próprio eu fica danificado, uma vez que é atacada sua capacidade de reconhecer uma percepção, de aceitar algo como existente, de discriminar como própria uma sensação corporal.

Entende-se, então, que essa polaridade entre a necessidade de, para existir uma brincadeira, colocar os casais para namorar e, ao mesmo tempo, isso ser considerado uma "arte", com caráter proibido, errado, coloca essa criança a se deparar com o desmentido dessa possibilidade de abuso sexual.

Nessa mesma sessão, após desenhar um menino, diz que ele está surpreso porque tem um mistério, pois encontrou um diamante de ouro. Todavia, está com medo de a mãe brigar com ele, pois ela vai achar que "ele roubou da professora, que tem um igualzinho [sic]". Quando questionada se ele roubou ou não, ela diz que ele achou esse diamante. Mostra que esse mistério que ela possui não é algo que ela fez por si própria, mas achou. Denota um caráter involuntário de possuir tal mistério, não sendo ela quem o roubou, mas "caiu em suas mãos". Isso faz ressoar sentimentos de injustiça nos pesquisadores.

Em outra sessão, faz uma minhoca de massinha e diz: "Olha, ela está acidentada. Ela tá morta. Eu não vi o que aconteceu, mas eu sou médica e tô tentando ressuscitar ela [sic]". Com isso, começou a bater na minhoca. A minhoca, no seu formato e representação do senso comum, costuma ser relacionada ao pênis, órgão genital masculino. Quando tenta ressuscitar a minhoca e depois começa a bater nela, a paciente mostra uma posição dual, ora ajudar a minhoca a se reerguer, ora a agride, o que faz pensar no abuso sexual em si, já que, como supracitado, a criança pode considerar que o abuso é uma ação normal e até protetiva. Ao ler esse trecho do relato, os pesquisadores se sentem incomodados quando relacionam minhoca e pênis. Ficam com a sensação de ser algo asqueroso, imundo, desagradável, causando nojo, repulsa.

Dessa forma, houve uma intensa mobilização de emoções dos pesquisadores ao efetuarem a leitura dos relatos dos atendimentos, provavelmente vivenciadas pela própria psicoterapeuta da criança, decorrentes de possíveis sentimentos contratransferenciais dessa magnitude em relação ao caso. Tais considerações vão de encontro às colocações de Silva e Vagostello (2017, p. 195) sobre o preparo dos profissionais que atuam na clínica psicanalítica: "A mobilização contratransferencial de fantasias, conflitos e angústias nas profissionais requer investimentos permanentes na qualificação profissional e no autocuidado das participantes (psicoterapia pessoal)."

Quando a paciente, em determinada sessão, pede para que a terapeuta a ajude a fazer um bolo de massinha e a terapeuta pergunta o que é para fazer, ela diz: "Não é só pra olhar. Você tem que me ajudar [sic]", mostrando na urgência do verbo "ter" que essa ajuda é necessária. Essa solicitação apresenta de novo uma característica apelativa, como se suplicasse por ajuda, para que alguém a olhe, a enxergue e elabore com ela o seu sofrimento.

Em outra sessão, a paciente relata que os tios fizeram uma coisa de que ela não gostou e nem a avó paterna, algo que ela acha errado. Entretanto, não consegue falar do que se trata para a terapeuta. Fica envergonhada, dá muita risada e cai da cadeira em que estava sentada. Parece que a menina se desestabiliza com a possibilidade de outra pessoa, fora do seu núcleo familiar, saber de seu segredo.

A terapeuta relata que aquilo que a criança não conseguiu declarar remetia a algo de caráter sexual, pensando de imediato no abuso sexual. De acordo com Pechberty (2001, p. 20), "A transferência infantil serve como câmara de eco aos conflitos identificatórios que levaram ao sintoma". Dessa forma, com essa função de eco, a contratransferência da psicoterapeuta, com a transmissão inconsciente produzida no setting, capta tais conteúdos relacionados ao abuso sexual sofrido pela paciente.

Mais uma vez, em outra sessão, diz que a parte azul do bolo que estava fazendo de massinha tinha um segredo. Quando questionada sobre qual segredo seria, a paciente levanta e começa a bater em um banco presente no setting. Diz: "Eu sou magrinha, mas sou forte. Esse banquinho é mau, eu sou mau. Eu sou um monstro. Ah, ele é mau. Ah (ela levantou o banquinho, colocou ele no chão, socou ele. Depois, ela deitou no chão e começou a rir) [sic]". Isso faz ressoar nos pesquisadores uma confusão, parece estar confusa, traz um sentimento de amor/ódio por alguém, parece não conseguir identificar o que sente, não consegue fazer essa delimitação. Segundo Salvador, Zanetti e Sei (2017, p. 167),

Na família incestuosa, a falta de delimitação psíquica entre um e o outro promove a invasão entre os corpos, um funcionamento psicótico da dinâmica: vivências de indiferenciação entre seus membros, dificuldade de afastamento, a liberação dos impulsos sexuais, porque as regras da lei e da sociedade não são levadas em consideração por este núcleo.

Ao fazer novamente uma brincadeira que sempre repete, a de fazer bolos com massinhas, diz que precisava de ajuda com o bolo e que a psicoterapeuta teria um "trabalhão" [sic], dizendo que estava difícil para ela, não estava fácil. Diz que fazia vários tipos de bolo, principalmente bolo de noiva, o bolo de casamento. Parece que romantiza suas questões de cunho sexual, levando para o lado do casamento, de ser noiva, algo que é bonito, que é valorizado pelos pares. Entretanto, ao mesmo tempo, aglutina tudo em uma coisa só: faz disso tudo um bolo, denotando provavelmente a confusão de emoções que vivencia.

Entra novamente na brincadeira de super-heróis e relata que gostava mais do Hulk verde do que do Hulk vermelho, já que o verde era maior que o vermelho e sempre ganhava as brigas. Mostra que o Hulk verde era um super-herói mais forte, maior, o que denota uma posição mais masculina, impositiva, paterna. O vermelho, apesar de continuar sendo um super-herói, era pequeno, fraco, indefeso, vulnerável, lembrando o lugar de uma criança abusada sexualmente.

Em uma sessão na qual estão presentes a criança e o pai, ela desenha uma casa gigante. O pai expõe que pelo tamanho da casa até a terapeuta poderia morar com eles, deixando a terapeuta constrangida com esse apontamento. Faz pensar que para realmente ajudá-los, ela precisaria estar dentro da casa, vivenciando com eles a dinâmica da família, acompanhando de perto o que acontecia ali. Nesse momento, para os leitores, tem-se uma sensação desconfortável, como se ele tivesse sendo um intruso, tentando ingerir a terapeuta em um lugar que não lhe dizia respeito.

Uma brincadeira importante que acontece no setting terapêutico é a brincadeira de médico. A paciente diz que vai cuidar da terapeuta, já que ela está com gripe, com problema na garganta, mas o coração está bem. A garganta é o lugar físico que é necessário para que a fala se efetive, para que saiam os conteúdos dali, e é ela que está com problemas. Quando as duas invertem os papéis, ficando a terapeuta como médica, a paciente diz: "Agora é com você!", como se a médica tivesse um trabalho árduo pela frente. A psicoterapeuta pergunta como estava o coração da paciente e ela diz que estava bem, só que tinha um furinho, dizendo que ela (a médica) o consertaria. Depois da "consulta", com as massinhas que se esfarelaram ali, a paciente diz que não precisava mais daquilo, que não serviam mais para ela, como os resíduos, lixos, restos dela que havia deixado ali no setting, não precisaria carregá-los novamente para casa.

Em outra sessão, a paciente pergunta para a psicoterapeuta: "Olha, sabia que tem uma parte do corpo que chama chuta? [sic]", dando muita risada nesse momento. Ao ser questionada sobre o porquê do riso e onde ficava esse lugar, a paciente responde que era engraçado, que ficava no braço e que sem a "chuta" não era possível se movimentar. A terapeuta, então, tem a impressão de que a palavra que a criança queria usar era "xota", palavra utilizada no senso comum para se referir à vagina, órgão genital feminino. Depois disso, diz: "glíter, grita, grito, grita, grite".

Parece que a menina queria gritar algo, mas não podia, tanto quanto falar "chuta" em vez de "xota", porque com a palavra que proferiu seria aceita socialmente. Então, identifica-se que esse conteúdo que a paciente queria gritar estava relacionado à "xota", já que houve uma associação livre: essa parte do corpo de que ela precisava para se movimentar ao grito mostrava algo necessário, preciso de ser dito, porque sem isso não era possível andar, movimentar-se, seguir. Era preciso falar e elaborar o abuso que sofreu para poder continuar a sua vida.

Tal suspeita de abuso, gerada pelo atendimento com a criança, já havia sido levantada no início das sessões, quando o pai relata que a família foi alertada pela escola da menina, pela identificação de uma introspecção da criança. Entende-se aí já uma menção à possibilidade de a menina estar vivenciando abuso sexual e do receio do pai diante desse assunto, já que é algo que, de uma forma inconsciente, é declarado no setting na primeira sessão realizada, em que a criança ainda não está presente. Assim, denota que, mesmo o trabalho terapêutico com a menina ainda não ter sido iniciado, essas questões já estavam sendo formuladas pela família, como um aviso à terapeuta.

 

Considerações finais

No decurso deste trabalho, foi possível perceber a complexidade do assunto, ainda mais sendo a vítima uma criança. Como não se configura apenas uma violência contra o corpo, o abuso pode causar traumas psíquicos e perturbar o desenvolvimento saudável da criança.

A construção do fato clínico psicanalítico elaborado neste estudo desdobrou-se depois da finalização de um caso atendido numa clínica-escola. Partindo da leitura das sessões, sobressaiu um ato falho dos pesquisadores gerado pelos incômodos suscitados no contato com o caso. As emoções e sentimentos acarretados foram utilizados como disparadores para a seleção e construção do fato clínico. Esse método de pesquisa propiciou a elucidação teórica da prática clínica, ou seja, permitiu o aprofundamento do desvelar de um abuso sexual infantil por meio do brincar.

O setting psicanalítico proporcionou o comunicar de um evento de difícil compreensão por uma criança; a notícia do abuso sexual foi transmitida pelo recurso lúdico do brincar. Ao partir dele, a criança passou à psicoterapeuta seus segredos, revelou o que até então não conseguia verbalizar. Comunicando o que já se suspeitava no ambiente escolar ao psicoterapeuta, a criança pôde verbalizar aquilo que viveu, portanto, o brincar foi utilizado na psicoterapia psicanalítica infantil como veículo de comunicação desenvolvida em transferência.

Entende-se que este estudo pode contribuir para o conhecimento científico, ampliando a aplicabilidade da Psicanálise, além de ressaltar a importância do acompanhamento psicoterapêutico para a elaboração de conteúdos inconscientes e atenção à criança vítima de abuso sexual.

 

 

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Endereço para correspondência
Nathália Tavares Bellato Spagiari
E-mail: nspagiari@gmail.com
Isadora Nicastro Salvador
E-mail: isadoranicastro94@gmail.com
Felipe de Souza Barbeiro
E-mail: felipebarbeiro@hotmail.com
Maria Elizabeth Barreto Tavares dos Reis
E-mail: bethtavaresreis@gmail.com

 

 

*Mestra em Psicologia pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Saúde da Mulher pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher pela UEL. Especialista em Clínica Psicanalítica pela UEL. Especialista em Teoria da Psicanálise - Curso Fundamental de Freud a Lacan (2018-2019). Aperfeiçoamento em Fundamentos da Clínica Psicanalítica de Freud a Lacan: o que é clinicar? pela Faculdade Positivo. Graduada em Formação de Psicólogo (2014), bacharelado e licenciatura em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina. Psicóloga clínica no Centro de Saúde Aequilibrium.
**Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), área de concentração: Avaliação Psicológica e Processos Clínicos. Especialista em Teoria da Psicanálise - Curso Fundamental de Freud a Lacan. Graduada pela UEL. Psicóloga clínica, atuando com base na Psicanálise Lacaniana em Londrina. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicanálise de linha francesa.
***Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduado em Psicologia pela Uel. Psicoterapeuta clínico de base psicanalítica.
****Doutora em Psicologia Clínica. Mestra em Psicologia Clínica. Especialista em Clínica Psicanalítica. Professora do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UEL.

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