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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.9 no.16 São João del Rei Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

Discussão sobre a inexorabilidade da compulsão à repetição

 

Discussion about the Inexorability of the Repetition Compulsion

 

Discussion a propos de l'inexorabilite de la compulsion de repetition

 

Discusión sobre la inexorabilidad de la compulsión a la repetición

 

 

Ana Flávia Cicero CondeI, II, III*; Paulo José da CostaIII**

ICentro Universitário UniFatecie - Brasil
IICentro Universitário Unifamma - Brasil
IIIUniversidade Estadual de Maringá - UEM - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva discutir as possíveis explicações para a inexorabilidade da compulsão à repetição por meio da análise de quatro fatores: a fragilidade do ego, a fixação no recalcamento, o nível de excessividade do estímulo causador do trauma psíquico e a relação com as pulsões. Concluiu-se que ambos os fatores podem influenciar a inexorabilidade de tal compulsão. Além disso, foi realizado uma reflexão acerca da clínica psicanalítica poder ser compreendida como uma via para lidar com esse mecanismo psíquico e com o que dele decorre.

Palavras-chave: Compulsão à repetição, Pulsão, Ego, Trauma psíquico, Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This article aims to discuss possible explanations for the inexorability of the repetition compulsion through the analysis of four factors: ego fragility, fixation in repression, excessive level of stimulus that causes psychic trauma, and the relation with the instincts. It was concluded that both factors may influence the inexorability of such compulsion. In addition, was made a reflection about the psychoanalytic clinic be understood as a way to deal with this psychic mechanism and with what derives from it.

Keywords: Repetition compulsion, Instinct, Ego, Psychic trauma, Psychoanalytic clinic.


RÉSUMÉ

Cet article discute des possibles explications concernant l'inexorabilité de la compulsion de répétition en analysant quatre facteurs: la fragilité de l'ego, la fixation dans le refoulement, le niveau de l'excessivité de la stimulation provoquant le traumatisme psychique et le rapport avec les pulsions. On a conclu que les deux facteurs peuvent influer sur l'inexorabilité de telle compulsion. En outre il a été realisée une réflexion concernant la clinique psychanalytique comme étant comprise comme une voie possible traitant ce mécanisme psychique mais aussi ce qui y découle.

Mots-clés: Compulsion de répétition, Pulsion, Ego, Traumatisme psychique, Clinique psychanalytique.


RESUMEN

Este artículo objetiva discutir las posibles explicaciones para la inexorabilidad de la compulsión a la repetición por medio del análisis de cuatro factores: la fragilidad del ego, la fijación en la represión, el nivel de excesividad del estímulo causante del trauma psíquico y la relación con las pulsiones. Se concluyó que ambos factores pueden influenciar la inexorabilidad de tal compulsión. Además, se realizó una reflexión acerca de la clínica psicoanalítica poder ser comprendida como una vía para lidiar con este mecanismo psíquico y con lo que de él deriva.

Palabras claves: Compulsión a la repetición, Pulsión, Ego, Trauma psíquico, Clínica psicoanalítica.


 

 

Introdução

O estudo apresentado neste artigo é parte de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, em nível de mestrado, na qual se discute a relação entre a compulsão à repetição e alguns elementos míticos, com o intuito de trazer clarificações para a complexidade desse conceito.

A compulsão à repetição é compreendida por Freud (1919/2010b; 1920/2010c) como algo que se assemelha ao demoníaco, devido à sua forma incontrolável de se manifestar. Ela evidencia a falta de controle do psiquismo diante de um mecanismo colocado em ação por ele próprio, assim como indica a existência de forças irresistíveis, que se fazem mestras do seu funcionamento quando se encontram atuantes.

Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é discutir as possíveis explicações para a inexorabilidade da compulsão à repetição por meio da investigação dos seguintes fatores: a fragilidade egoica, a fixação no recalcamento, o nível de excessividade do estímulo e a relação com a dualidade pulsional. Por fim, será discutido o papel da clínica psicanalítica nessa conjuntura.

 

A compulsão à repetição

A compulsão à repetição foi percebida por Freud (1914/2010a) na clínica psicanalítica, mais especificamente nos fenômenos de transferência dos neuróticos, revelando-se como uma forma de o paciente reviver algo que não recordou durante o tratamento. Entretanto, não ficou restrita a esse âmbito, visto que o próprio autor, em outro trabalho (Freud, 1920/2010c), traz exemplos de suas manifestações nas brincadeiras de crianças, como no conhecido jogo do fort-da; nos sonhos dos neuróticos traumáticos, que revivem os traumas sofridos em outros momentos de suas vidas por meio de sonhos; e nos casos intrigantes de repetições de destino, nos quais se observa uma constante recorrência deste, que pode ser produzida de forma ativa, mas também passiva, de maneira que o sujeito parece não influenciar o ocorrido.

Apesar da constante repetição, o sujeito não se dá conta da recorrência dos acontecimentos, que é vivenciada como algo contemporâneo, ou, pelo menos, motivada por forças atuais (Freud, 1914/2010a). Mesmo assim, pode suscitar, em alguns casos, o sentimento de estranho ou de inquietação (Freud, 1919/2010b), porque se afigura como algo desconhecido, porém familiar, que na verdade está relacionado a elementos recalcados que retornam, sendo, portanto, antigos conhecidos do psiquismo.

Para além dessa possibilidade de a compulsão à repetição estar atrelada ao retorno do recalcado, também encontramos na teorização freudiana indicações de que ela pode ser o resultado de uma reação do psiquismo diante de alguma excitação externa, ou até mesmo interna relacionada ao pulsional, que se caracteriza como excessiva e que rompe a barreira de proteção contra estímulos, provocando uma desordem que pede por organização.

A partir do rompimento, o que se tem no psiquismo, segundo Freud (1920/2010c), são constantes tentativas de ligação da energia desligada que adentrou no espaço psíquico, o que se faz coerente, porque, mesmo anteriormente, em Freud (1914/2010a, p. 30), o autor havia afirmado que "em nosso aparelho psíquico reconhecemos sobretudo um expediente para lidar com excitações que de outro modo seriam sentidas como penosas ou de efeito patogênico". Nessa conjectura, a compulsão à repetição se mostra como algo que não chega a um fim até que alguma coisa, como a ligação psíquica, aja sobre o conteúdo desligado que é repetido.

A ligação psíquica é definida por Freud (1920/2010c) como uma tarefa anterior a qualquer possibilidade de prazer, pois é somente com ela que a energia pode ser dominada e, assim, pode ganhar alguma destinação no psiquismo. De acordo com Freud (1950/1996f; 1900/1996a; 1923/2011a; 1940/1996e), a instância responsável por sua realização é o Ego, proposto na segunda tópica, ou o pré-consciente, definido na primeira, pois esta é a instância que organiza os processos psíquicos e considera a existência de não apenas um mundo interno de desejos, mas também a realidade externa e as exigências do superego.

Considerando a possível relação entre compulsão à repetição e ligação psíquica, assim como o pressuposto de que é possível o alcance da ligação, não se fazendo mais necessária a repetição compulsiva, nos questionamos sobre os casos em que essa compulsão se mostra inexorável e irrefreável. Isto é, nos perguntamos sobre as vezes em que, pelos mais variados motivos, a ligação não ocorre e a compulsão à repetição não para de se manifestar, assemelhando-se a um destino fatídico.

 

A fragilidade egoica

Entre a compulsão à repetição e a ligação, não existe uma conexão direta, uma vez que são atribuídas a instâncias diferentes e, consequentemente, a particularidades distintas. Assim, pode acontecer de que ela não venha a se concretizar, apesar de o conteúdo desligado ser reapresentado compulsivamente inúmeras vezes, ou seja, esteja dando diversas chances para que a ligação ocorra. Uma das razões para tanto pode estar atrelada, justamente, às particularidades de uma dessas instâncias, o Ego, pois ele pode se encontrar fragilizado, no sentido de não ter os recursos necessários para promover a ligação.

Segundo Freud (1940/1996e, p. 185), "a pré-condição necessária aos estados patológicos [...] só pode ser um enfraquecimento relativo ou absoluto do ego, que torna impossível a realização de suas tarefas". Dessa forma, podemos compreender que as situações vigentes do Ego são variáveis; ademais, pode ocorrer de ele se encontrar mais enfraquecido e, consequentemente, suscetível, o que dificulta a sua organização e a manutenção das suas atividades.

As condições subjetivas e objetivas dos sujeitos são determinantes para a constituição psíquica. Fragilidades no âmbito objetivo podem dificultar uma constituição subjetiva consistente, havendo a falta de recursos que ajudem no enfrentamento das realidades que a eles se impõe. Assim como uma pessoa sem recursos e oportunidades pode sofrer restrições no âmbito social, cultural, educacional, ter diminuída suas oportunidades de trabalho, entre outros fatores, uma pessoa com um psiquismo mais fragilizado pode ter dificuldades de criar novas possibilidades de subjetivação, pois não tem os recursos egoicos necessários para lidar com aquilo que se encontra desligado ou não simbolizado, deparando-se com dificuldades, por exemplo, em metabolizar traumas psíquicos que tenha sofrido.

O tema da fragilidade egoica pode ser associado à fragilidade do bebê, que ainda se encontra em um momento de construção de seu psiquismo e que, por isso, não tem os meios e recursos necessários para fazer o manejo de todas as excitações que o atingem, assim como das exigências concorrentes advindas do Id e da realidade.

Pensando nessa ausência de um Ego forte, capaz de controlar e gerenciar as excitações que chegam até o bebê, podemos nos aproximar também da experiência de desamparo, que está relacionada, na teoria psicanalítica freudiana, à debilidade do bebê em lidar com o excesso de estímulos. Segundo Laplanche e Pontalis (1982/2001, p. 112), o desamparo, ou o estado de desamparo, corresponde a um "[...] estado do lactente que, dependendo inteiramente de outrem para a satisfação das suas necessidades (sede, fome), é impotente para realizar a ação específica adequada para pôr fim à tensão interna". Para o adulto, esse estado de desamparo corresponderia, de acordo com Laplanche e Pontalis (1982/2001, p. 112), ao "[...] protótipo da situação traumática geradora de angústia", também por causa do aumento de tensão e da dificuldade de lidar com elas.

Por esses motivos, podem ser criados caminhos insuficientes e mancos para suportar o que a vida impõe, pois, apesar de serem insuficientes, permitem que se continue a viver minimamente. Um desses caminhos mancos que o psiquismo pode encontrar para lidar com aquilo que ele não suporta é a repetição compulsiva, porque ela é acionada diante da presença de conteúdos desligados ou reprimidos excessivos que não podem ser metabolizados de outra forma mais sofisticada ou saudável pelo psiquismo.

Assim, a compulsão à repetição que insiste em ocorrer pode ser entendida como uma maneira mais precária de se lidar com esse conteúdo, que inclusive tem chances de ser prejudicial, dado que pode reiterar um desprazer, causando sofrimento. Diante disso, faz-se necessário algum trabalho, no sentido de desenvolver os elementos que esse Ego precisa (Andrade, 2017), fortalecendo-o, para depois cogitar a realização da ligação.

 

A fixação no recalcamento

Continuando a discutir as possibilidades de a inexorabilidade da compulsão à repetição estar relacionada às vicissitudes do Ego, nos remetemos à discussão realizada em Freud (1926/1996b) acerca das vezes em que, mesmo depois de o perigo advindo de algum elemento pulsional não se fazer mais presente, o Ego não conseguir desfazer os recalcamentos que ele mesmo colocou e, por isso, mantém a continuidade ao gasto de energia contra o pulsional, com o objetivo de não dar chances para que esse conteúdo se exponha, já que esses impulsos são contínuos e sempre alimentados.

O resultado disso é uma fixação no recalcamento, independendo de o perigo não estar mais presente, o que provoca uma reação do Id frente a esse funcionamento egoico, que se caracterizaria como compulsão à repetição. Dessa maneira, a compulsão à repetição se mostra implacável por se tratar de uma reação do Id perante as defesas impostas pelo Ego. Ela continuará em ação enquanto os recalcamentos persistirem.

Ademais, ao mesmo tempo em que se impede o acesso do conteúdo pulsional perigoso à consciência, na dinâmica do recalcamento, segrega-se o conteúdo do campo de controle do Ego, o que faz com que ele fique sob as regras do inconsciente (Freud, 1926/1996b). Isso permite que o pulsional reaja de acordo com as leis do inconsciente contra as defesas impostas pelo Ego. Seria como se ele se recusasse a ficar impedido de fazer seu curso original e se rebelasse contra as defesas do Ego por meio de uma repetição compulsiva.

Remetendo essa manifestação da compulsão à repetição ao contexto do tratamento psicanalítico, Freud (1926/1996b, p. 157) chama esse tipo de repetição de uma "resistência do inconsciente", fazendo uma aproximação com a noção de resistência do Ego. Esse paralelo se faz possível porque ambas as resistências se mostram como obstáculos para o trabalho do analista, sendo que a resistência do inconsciente dificulta o trabalho da análise ao mobilizar o pulsional para a repetição compulsiva deste.

Para que se consiga colocar um fim a essa compulsão à repetição, que ganha sua força da "[...] atração exercida pelos protótipos inconscientes sobre o processo instintual reprimido" (Freud, 1926/1996b, p. 157), faz-se necessário, de acordo com o autor, o processo de elaboração, que consiste no período em que o Ego se esforça em baixar e abandonar os recalcamentos por ele impostos, esperando que não seja mais necessária uma reação do Id. Mas, mesmo assim, ainda pode haver dificuldades em parar a compulsão à repetição.

Segundo Mezan (1982, p. 254), o paciente repete justamente por causa das resistências do Ego, porque "[...] elas bloqueiam o acesso à linguagem, e, portanto, à consciência do material reprimido". Com isso, a única opção restante para o material recalcado, que sempre busca a descarga, é repetir-se compulsivamente, ignorando o princípio do prazer. Mezan (1982) ainda acrescenta que a repetição pode ganhar seu caráter compulsivo porque o próprio Ego fez com que ela fosse necessária, por intermédio de suas defesas e estratégias. Por essa razão, para o autor, não existe defesa contra a compulsão à repetição; ou seja, quanto mais o Ego se defende e tenta impedir a volta do conteúdo recalcado desprazeroso, mais ele se expressará por meio dessa compulsão.

 

A excessividade dos estímulos

É possível que a intensidade ou a quantidade do excesso que toma conta do psiquismo, como no modelo do trauma, possa determinar o nível de dificuldade de se superar a compulsão à repetição. Essa hipótese se valida porque, a partir do que foi proposto por Freud (1920/2010c), podemos compreender que, uma vez que o excesso toma conta do psiquismo em um momento em que ele se encontra despreparado, a compulsão à repetição entra em ação, como numa reação espontânea. Além disso, pensando em quantidades, podemos dizer que quanto maior o nível de excessividade do estímulo que atravessou o escudo protetor, maior será o trabalho egoico requerido para que se consiga vincular toda a energia livre dispersa.

Uma intensidade excessiva da pulsão pode agir de forma semelhante a estímulos externos excessivos, pois ambos causam uma inundação do aparelho psíquico, provocando o trauma. De acordo com Freud (1940/1996e, p. 211), eles destroem a organização dinâmica característica do ego, a ponto de o transformarem “novamente, numa parte do id”.

As consequências disso são um recolhimento narcísico, no sentido de um movimento regressivo que busca uma recomposição desse Ego e uma retirada “[...] de cena a sexualidade, ficando em primeiro plano a retirada do investimento dos objetos e a volta sobre o Eu” (Carvalho, 2012, p. 493), porque a instância egoica precisa dessa energia para poder investir no desligado, tentando ligá-lo.

O trauma causa, segundo Cidade e Zorning (2016), decorrências dolorosas e dessubjetivantes, pois a vivência traumática não tem um sentido em si. Ela desestabiliza momentaneamente as construções psíquicas e pode até mesmo causar, de acordo com os autores supracitados (2016, p. 30), “[...] um efeito paralisante dos processos de simbolização, impedindo mudanças na vida do sujeito”.

 

A dinâmica entre a dualidade pulsional

Na dualidade pulsional, temos a pulsão de vida, que promove ligação, representa a sexualidade, serve para prolongar a vida e facilitar a reprodução, evitando o fim das espécies; e a pulsão de morte, que pode ser entendida como a força que promove o desligamento, a destrutividade, que separa e leva "[...] o que está vivo de volta a um estado inorgânico" (Freud, 1933/1996c, p. 116).

De acordo com Freud (1937/1996d), ambas as pulsões exercem constante influência sobre qualquer fenômeno psíquico por intermédio de suas interações. Nas palavras do autor (1937/1996d, pp. 256-257), "somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta dos dois instintos primevos - Eros e o instinto de morte -, e nunca por um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida".

As interações entre essas duas pulsões podem ser averiguadas pelo nível de fusão ou desfusão entre elas, o que interfere na inclinação para a ligação ou para o desligamento. Mesmo que se possa pensar numa total desfusão, que se caracterizaria, num grau máximo, na ação individual das pulsões, essa forma extrema não é encontrada nos fenômenos da vida. Apenas se pode pensar em níveis de fusão e desfusão, que podem ser sempre alterados, como nos casos das regressões, que são percebidas na clínica psicanalítica, ou no predomínio da agressividade, visto que estas são situações nas quais se tem um menor enlaçamento da pulsão de morte pela de vida, caracterizando maior predomínio da primeira.

No caso da compulsão à repetição, como o conteúdo repetido é o que se encontra em estado desligado, trata-se daquilo que tem predomínio da pulsão de morte, e que por seu caráter conservador se repete, visando retornar a um estado anterior. Mas o próprio movimento de repetição compulsiva reapresenta o conteúdo desligado inúmeras vezes, dando chances para que outros mecanismos psíquicos atuem sobre esses conteúdos; por exemplo, que o Ego faça a ligação, tendência essa que é atribuída à pulsão de vida, visto que leva a uma melhor organização e desenvolvimento do psiquismo.

Nesse sentido, a inexorabilidade da compulsão à repetição pode acontecer devido à predominância da pulsão de morte e de um consequente maior nível de desfusão pulsional. Isso faz com que a destrutividade dessa pulsão possa se apresentar e favorecer o desligamento, impedindo que as energias livres sejam organizadas e ganhem alguma destinação que não a repetição insistente e compulsiva.

 

A clínica psicanalítica

Diante da inexorabilidade da compulsão à repetição e do potencial sofrimento oriundo da sua atuação, cabe discutir as possibilidades da clínica psicanalítica se colocar como uma via de se lidar com esse mecanismo e com o que dele decorre. Considerando o seu método e o conhecimento teórico acumulado, a clínica psicanalítica se mostra como uma das eventuais maneiras de se abordar a história de vida do sujeito, mudando sua significação ou, simplesmente, descobrindo o seu passado e resgatando-o por intermédio do seu intuito de promover a transformação daquilo que se encontra inconsciente e desconhecido.

A verdade pode ser desprazerosa, terrível e traumática. Lembremo-nos de Édipo, o qual descobriu que matou o pai e desposou a própria mãe. Entretanto, é o seu desnudamento, ou seja, é a descoberta da origem do sofrimento do sujeito, o que permite que se lide com ele, que admite que ligações psíquicas sejam feitas. Nesse sentido, o conhecimento da causa do sofrimento, melhor dizendo, do conteúdo que é repetido compulsivamente, se mostra como uma solução, ao passo que o desconhecimento se apresenta como uma das razões do constante retorno e da inexorabilidade.

Um dos elementos que podem colaborar com a identificação da compulsão à repetição é o próprio sofrimento do paciente, que por ser algo de ordem alteritária envolve o outro, seja por intermédio do apelo ou do endereçamento de demandas (Birman, 2012). Assim, ele se torna percebido pelo outro e pode ser relatado para o sujeito. Quando o terapeuta se encontra nessa posição do outro, transforma-se numa ferramenta de transferência e contratransferência, que permite a manifestação da compulsão à repetição num ambiente controlado, onde poderá ser identificada, relatada e manejada. Assim, abrem-se possibilidades para que se coloque um fim à paralisia causada pela compulsão à repetição, que represa o sujeito em si mesmo.

A descoberta na análise de que uma repetição compulsiva está ocorrendo auxilia até mesmo no fortalecimento egoico, porque, de acordo com Freud (1940/1996e), a diminuição da ignorância do paciente acerca de si mesmo permite que o Ego domine aquilo que se encontrava fora de sua alçada, favorecendo que ele aja sobre os conteúdos desligados. Nessa perspectiva, "a missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego" (Freud, 1937/1996d, p. 263).

Podemos considerar que as construções feitas em análises pelos psicanalistas - que se destinam à realização de reconstituições daquilo que ainda se encontra ininteligível para o paciente - e a interpretação, como ferramentas de trabalho disponíveis, podem ser utilizadas para revelar ao sujeito a existência de repetições compulsivas de um mesmo padrão ou conteúdo. Entretanto, o efetivo sucesso dessas ferramentas depende da maneira como são aplicadas na prática do consultório.

A interpretação não pode ser feita de maneira selvagem, pelo contrário, seu conteúdo precisa já estar fazendo parte do imaginário do sujeito, sendo de algum modo trabalhada por ele. Destarte, faz-se necessário um trabalho minucioso do psicanalista, no sentido de não se apressar ou despejar mais informações do que o suportável e metabolizável pelo sujeito num determinado momento. Freud (1940/1996e) salienta que é importante fazer uma distinção entre o nosso conhecimento, como psicanalista, e o conhecimento do paciente, de maneira que o autor aconselha que se evite

[...] dizer-lhe imediatamente coisas que muitas vezes descobrimos num primeiro estágio, e evitamos dizer-lhe a totalidade do que achamos que descobrimos. Refletirmos cuidadosamente a respeito de quando lhe comunicaremos o conhecimento de uma de nossas construções e esperamos pelo que nos pareça ser o momento apropriado - o que nem sempre é fácil de decidir. Via de regra, adiamos falar-lhe de uma construção ou explicação até que ele próprio tenha chegado tão perto dela que só reste um único passo a ser dado, embora esse passo seja, de fato, a síntese decisiva. Se procedemos doutra maneira e o esmagamos com nossas interpretações antes que esteja preparado para elas, nossa informação ou não produziria efeito algum ou, então, provocaria uma violenta irrupção da resistência que tornaria o avanço de nosso trabalho mais difícil ou poderia mesmo ameaçar interrompê-lo por completo. (Freud, 1940/1996e, pp. 189-190, grifo do autor)

Apenas depois desse longo e cuidadoso processo o conhecimento acerca do paciente pode ser compartilhado. Entretanto, mesmo com o auxílio da análise, ou da psicoterapia psicanalítica, a ligação total, que corresponderia à ligação de todo o material desligado e excessivo presente no psiquismo - o que garantiria a ausência de necessidade de se repetir compulsivamente - se mostra como algo impossível. As causas disso estão atreladas tanto às intempéries do próprio tratamento psicanalítico quanto à constante chegada ao psiquismo de novos conteúdos desligados, advindos de seu interior ou do exterior.

Dessa forma, podemos afirmar que o Ego faz um constante trabalho paliativo e interminável, assim como parece haver limites para a ligação. Com isso, as implicações geradas são as de ela não poder trazer para o domínio do Ego e do ordenamento tudo aquilo que atinge o psiquismo, assim como parece haver um constante embate entre a possibilidade e a impossibilidade de ligação.

O conhecimento sobre si e sobre aquilo que nos aflige desponta como essencial, mesmo quando se trata de algo destrutivo, como é o caso da compulsão à repetição. Ele permite mudanças e transformações de cada um consigo mesmo ou em relação a seus conteúdos mentais, no sentido de que o sujeito não ficará mais à mercê do desconhecido e enigmático que pode irromper por meio de repetições compulsivas e se manter em repetição por um tempo indefinido.

 

Considerações finais

No decorrer deste artigo, visualizamos que algumas das possíveis razões para que a compulsão à repetição se apresente de forma inexorável são: a) a fragilidade egoica; b) a fixação no recalcamento; c) a excessividade do estímulo; e d) a dinâmica presente entre a dualidade pulsional. Entretanto, precisamos ressalvar que, quando isoladas, essas variáveis não têm relações diretamente proporcionais com a inexorabilidade da compulsão à repetição; isso apenas se apresenta quando se considera a interação entre elas, pois no psiquismo não existem mecanismos isolados, pelo contrário, as interações são constantes.

Ponderando essas hipóteses, encontramos nelas a presença tanto de aspectos quantitativos quanto qualitativos. Os primeiros ficam claros ao apreciarmos a dinâmica entre a pulsão de vida e a de morte, assim como o nível de excessividade, sendo que a necessidade de considerar o aspecto quantitativo, quando se investiga o funcionamento psíquico, é confirmada por Freud (1937/1996d; 1940/1996e) ao ressaltar a relação desse fator com a causa das doenças e com o fracasso de gerenciamento do Ego. Assim, evidencia-se que "[...] o resultado final depende sempre da força relativa dos agentes psíquicos que estão lutando entre si" (Freud, 1937/1996d, p. 242), mesmo quando se tem a intervenção analítica.

Já o aspecto qualitativo diz respeito à existência de características distintivas, particulares e inatas em cada Ego, o que considera que "[...] cada ego está dotado, desde o início, com disposições e tendências individuais, embora seja verdade que não podemos especificar sua natureza ou o que as determine" (Freud, 1937/1996d, p. 254). Essas características individuais, que podem ser herdadas ou adquiridas, são advindas de experiências acidentais que vão se agregando com o passar dos anos e aos poucos diferenciam cada pessoa, tornando específicas suas formas de lidar com aquilo que a arrebata.

No fim, é a interação entre esses dois aspectos que dirão como se dará o lidar com o excessivo e porque a compulsão à repetição surge de forma inexorável em alguns casos. Nas palavras de Freud (1940/1996e, p. 195) "[...] as impressões e experiências externas [e internas] podem fazer exigências de intensidade diferentes a pessoas diferentes e aquilo que é passível de ser manejado pela constituição de uma pessoa pode ser uma tarefa impossível para a de outra". Diante disso, é relevante que consideremos todas as especificidades de cada psiquismo, sejam elas econômicas, tópicas, sejam dinâmicas.

 

 

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Endereço para correspondência
Ana Flávia Cicero Conde
E-mail: anaflaviaconde@outlook.com
Paulo José da Costa
E-mail: pjcosta@uem.br

 

 

*Professora de Psicologia do Centro Universitário UniFatecie e do Cetro Universitário Unifamma. Doutoranda e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Especialista em Gestão de Pessoas e Psicologia Organizacional pelo Centro Universitário Cidade Verde.
**Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano (CNPq - UEM).

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