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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.9 no.16 São João del Rei Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

O sujeito lacaniano entre o desejo e o gozo

 

The Lacanian Subject between Desire and Jouissance

 

Le sujet lacanien entre le désir et la jouissance

 

El sujeto lacaniano entre el deseo y el goce

 

 

Isaias Gonçalves Ferreira*

Movimento Psicanalítico do ABC - Brasil
Fórum do Campo Lacaniano do Grande ABC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O sujeito, como categoria psicanalítica, representa no ensino lacaniano o resultado de uma intersecção entre Psicanálise e Filosofia, assim como sua teoria do desejo guarda uma característica privilegiada da incursão psicanalítica (clínico-teórica) no campo filosófico, especificamente na dialética hegeliana do reconhecimento. Nota-se, com isso, como a tradição da doutrina lacaniana sobre a conceitualização do sujeito perpassa influências filosóficas que vão de Descartes, passando por Kant e Hegel, até chegar a Heidegger, o que evidencia, de forma decisiva, que Lacan entrou no debate das luzes pela porta dos fundos. Com efeito, seu gesto subversivo consistiu em considerar que o sujeito freudiano é o sujeito cartesiano tomado pelo avesso, ou, por assim dizer, dividido e mutilado entre a cadeia dos enunciados (redutível ao sentido) e a cadeia da enunciação (aberta ao nonsense). Assim, esse sujeito dividido pela linguagem desponta como produto do simbólico - o que formata o imaginário estruturando a realidade -, mantendo, desse modo, uma relação êxtima com o gozo que incide no corpo, na medida em que pela repetição e insistência surge como uma resposta do Real.

Palavras-chave: Sujeito lacaniano, Teoria do desejo, Campo do gozo, Clínica psicanalítica, Filosofia.


ABSTRACT

The subject while an analytical category represents in Lacan's teaching the result of and intersection between psychoanalysis and philosophy, as well as his theory of desire holds a privileged characteristic in psychoanalytical incursion (clinical-theoretical) in the philosophical field, specifically in the Hegelian dialectics of recognition. One can notice, with that, how the lacanian teaching tradition about the conceptualization of the subject crosses philosophical influences, starting with Descartes, passing through Kant and Hegel and ending up in Heidegger, what highlights, decisively, that Lacan entered the discussion through the backdoor. In effect, his subversive gesture consisted of considering that the Freudian subject is the Cartesian subject taken in its reverse or, in other words, split and mutilated between the utterance chain (reducible to the sense) and the enunciation chain (open to the nonsense). Thus, the subject split by the language appears as a product of the symbolic - that formats the imaginary, structuring reality - that holds, therefore, an extimate relation with the jouissance that concerns the body, in the extent to which through repetition and insistence it appears as a response of the Real.

Keywords: Lacanian Subject, Theory of Desire, Jouissance field, Psychoanalytical Clinics, Philosophy.


RÉSUMÉ

Le sujet en tant que catégorie psychanalytique représente dans l'enseignement lacanien le résultat d'une intersection entre la psychanalyse et la philosophie. Sa théorie du désir garde une caractéristique privilégiée de l'incursion psychanalytique (clinique-théorique) dans le champ philosophique, notamment dans la dialectique hégélienne de la reconnaissance. Il est possible de constater ainsi, comment la tradition de la doctrine lacanienne sur la conceptualisation du sujet traverse les influences philosophiques, depuis Descartes, passant par Kant et Hegel et arrivant à Heidegger, cela démontre de manière décisive que Lacan est entré dans le débat des lumières para la porte du fond. En effet, son geste subversif a considéré que le sujet freudien est le sujet cartesien pris à l'envers, cela veut dire, partagé et mutilé entre la chaîne des énoncés (réductible au sens) et la chaîne de l'énonciation (ouverte au nonsense). De telle sorte que ce sujet partagé par le langage surgit comme produit du symbolique - ce qui donne une forme à l'imaginaire en structurant la réalité -, conservant ainsi, une relation extime avec la jouissance qui incide sur le corps et qui par la répétition et l'insistance, surgit comme une réponse du Réel.

Mots-clés: Sujet lacanien, Théorie du désir, Champ de la jouissance, Clinique psychanalytique, Philosophie.


RESUMEN

El sujeto como categoría psicoanalítica representa en la enseñanza lacaniana el resultado de una intersección entre psicoanálisis y filosofía, así como su teoría del deseo guarda una característica privilegiada de la incursión psicoanalítica (clínico-teórica) en el campo filosófico, específicamente en la dialéctica hegeliana del reconocimiento. Se nota, con ello, como la tradición de la doctrina lacaniana sobre la conceptualización del sujeto, atraviesa influencias filosóficas que van desde Descartes, pasando por Kant y Hegel, hasta llegar a Heidegger, lo que evidencia, de forma decisiva, que Lacan entró en el debate de las luces por la puerta de atrás. En efecto, su gesto subversivo consistió en considerar que el sujeto freudiano es el sujeto cartesiano tomado por el revés, o por así decir, dividido y mutilado entre la cadena de los enunciados (reductible al sentido) y la cadena de la enunciación (abierta al nonsense). Así, ese sujeto dividido por el lenguaje despunta como producto de lo simbólico - lo que formatea el imaginario estructurando la realidad -, manteniendo de ese modo una relación éxtima con el goce que incide en el cuerpo, en la medida en que por la repetición e insistencia surge como una respuesta del Real.

Palabras claves: Sujeto lacaniano, Teoría del deseo, Campo del goce, Clínica psicoanalítica, Filosofía.


 

 

Introdução

É possível localizar no ensino de Lacan uma bipartição datável, que configura, por um lado, os desenvolvimentos do campo da linguagem nos anos 1950, seguido de uma espécie de dobradiça nos anos 1960 com a conceitualização do objeto a. Por outro lado, com a formalização do campo do gozo no fim da década de 1960 e toda a década de 1970, nota-se que os postulados anteriores não foram excluídos, mas retrabalhados em uma outra perspectiva (Quinet, 2006). Na verdade, o que ocorre é uma inclusão impressionante, no campo do gozo, dos conceitos formulados no campo da linguagem, em uma espécie de lógica retroativa muito comum ao estilo de Lacan.

Nesse sentido, no texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", Lacan (1960[1998]) posiciona o núcleo abrangente de seu programa de retorno a Freud. E isso na medida em que é possível observar como cada conceito e noção são densamente trabalhados por Lacan, tais como: subversão, sujeito, dialética, desejo e inconsciente. Os desenvolvimentos contemporâneos a esse momento da doutrina lacaniana estavam submetidos à primazia da estrutura simbólica, que correspondia internamente à sua incompletude [S (Ⱥ)].

Com efeito, a estrutura simbólica suportava uma dialética primordial entre os efeitos da significação como mensagem invertida (efeito retroativo) e as leis internas ao sistema linguístico (sintaxe); implicava também as impossibilidades não redutíveis ao sentido, nem à apropriação singular de cada um, já que, envolviam uma relação fundamental com o tesouro dos significantes (Outro) em sua primazia sobre o significado unitário.

Por fim, nota-se, por um lado, como o campo do Outro se configurou como um sistema de trocas simbólicas que regulavam as relações sociais. Tendo em vista que em sua leitura estruturalista (lévi-straussiana) da obra de Freud, Lacan (1960[1998]) deduz o falo como o elemento que estando fora do sistema simbólico estruturava e regulava suas relações internas. Sendo que, sua coreografia colocava em evidencia o jogo de possibilidades e impossibilidades escritas no próprio simbólico, o que levou Lacan a formalizar o objeto a como uma forma de inscrever o real na própria estrutura simbólica. Por outro lado, reconhecemos que no chamado campo do gozo a articulação se desenha a partir do real como impossível. Sendo assim, o real enquanto impossível de ser suportado é o não-simbolizável que posiciona a estrutura como real (Lacan, 1968-1969[2008]).

 

O jovem Lacan e um novo conceito de personalidade

O processo de revitalização que Lacan conferiu à Psicanálise configurou-se, ao longo de um exaustivo trabalho, um verdadeiro work in progress, que teve seu início nos desenvolvimentos sobre o conceito de personalidade em 1932.

Podemos dizer que a tese de doutorado do jovem Lacan (1932[1987]) desenvolveu uma crítica pontual às tradições psiquiátricas de sua época: a francesa e a germânica. De certa forma, procurou resolver determinados impasses entre ambas, com o objetivo de articular o que se produziu com a Psicanálise.

Nesse contexto, o autor francês recorreu à paranoia1 como tipo clínico privilegiado, na medida em que esta era considerada uma entidade clínica cujo paradigma descritivo e nosológico fora fixado por Kraeplin (dementia paranoide) em seu tratado de Psiquiatria em 1856. Na verdade, o interesse de Lacan consistiu em cotejar o campo da psicose paranoica (de autopunição e de reivindicação) com o problema da personalidade. Ao longo de toda a tese, vemos Lacan criticar a falta de uma teoria da personalidade nos alemães, a falta de uma atitude descritiva mais consistente conceitualmente nos franceses e a falta de uma teoria sobre a gênese do eu na Psicanálise.

Por um lado, o empreendimento de Lacan (1932[1987]) demonstrou como a Psiquiatria francesa estava preocupada com a noção de constituição como disposição básica, já que postulava uma noção psicológica que definia as afecções e doenças mentais como uma forma de desvio, ou ainda como uma espécie de exagero do processo constitutivo. Por outro lado, identificou também que a Psiquiatria alemã estava preocupada com a noção de reação e com o processo mórbido da formação delirante. A doença mental, para os germânicos, não seria o exagero das disposições básicas do doente, mas a aparição de um elemento estranho, contra o qual reagiria defensivamente, tentando de alguma forma incluí-lo no conjunto do psiquismo.

A tradição francesa até desenvolvia boas descrições clínicas, mas seu critério diagnóstico era moralista, pois sua noção de constituição derivava-se do Direito, portanto, redutível à moral. A teoria da degenerescência, por exemplo, partia da utilização de uma noção de hereditariedade fundada em concepções positivistas. Assim, a chamada doença mental era constituída no interior do próprio psiquismo, sendo, portanto, a amarração conceitual dos franceses, de certo modo, precária, mesmo realizando descrições clínicas excepcionais. Já para a tradição alemã, a condição mórbida seria engendrada de fora por meio de um processo de reação do psiquismo. No entanto, faltava-lhes uma teoria do sujeito, ou melhor da personalidade (Lacan, 1932[1987]).

Nota-se, assim, como a definição de personalidade, na perspectiva de Lacan (1932[1987]), representava a reunião de determinados aspectos críticos legados pela Psiquiatria do século XIX, dos quais é possível isolar a história individual, o sujeito da vontade e o eu transcendental.

Dessa forma, o programa maior da tese de Lacan consistiu em primeiro lugar: a) na superação de uma psicopatologia envelopada pelo organicismo e mentalismo; b) na integração do modelo francês com o germânico; c) na introdução de uma nova concepção da personalidade sustentada pelo arcabouço teórico-clínico da Psicanálise. Em segundo lugar, nessa construção de uma nova teoria da personalidade, Lacan identificou três critérios diagnósticos discursivos: a) a narrativização de uma história de vida, que encontra expressão no desenvolvimento biográfico (sem hiatos), amplamente submetido às relações de compreensão; b) uma forma de entendimento de si mesmo (intencionalidade) e dos ideais orientados pelo processo dialético que identifica o eu como um outro; c) uma tensão das relações sociais (entre Real e Ideal) que posiciona o mobile da responsabilidade pela participação ética (Dunker, 2015).

Nesse sentido, Lacan (1932[1987]) pretendeu elaborar um conceito de personalidade que fosse sintético às duas tradições psiquiátricas. Porém, antes de desenvolver esse novo conceito de personalidade, era necessário criticar o atual. Nesse momento, a Psicanálise forneceu os subsídios teóricos para o percurso de Lacan. Desse modo, com relação a Freud, é possível localizar, no jovem Lacan, um duplo movimento: por um lado, uma aproximação que condicionou sua investigação diagnóstica à etiologia e à reversibilidade terapêutica dos sintomas, por outro, uma diferença que consistiu em recorrer ao campo das psicoses em vez das neuroses.

Portanto, o diagnóstico inicial de Lacan também foi crítico à Psicanálise, mesmo que lhe tenha permitido escrutar uma concepção essencialmente materialista da personalidade. Nota-se, assim, como uma teoria da causalidade, psicanaliticamente orientada, posicionou simultaneamente a ordem estrutural e a ordem dialética (Dunker, 2015).

De acordo com Dunker (2015), Lacan em sua tese empreendeu uma crítica ao moralismo psiquiátrico presente em seu ambiente de formação, no qual se observava uma teoria da constituição "carregada de inatismo, hereditarismo e determinismo social. A novidade da diagnóstica lacaniana é pensar a constituição não mais baseada na essência e na abstração universal, mas na discordância e na negatividade do sujeito em relação ao seu próprio ser" (Dunker, 2015, p. 341). Lacan, com efeito, cotejou certas experiências de fracasso do tratamento relativas ao campo das psicoses, o que produziu o forçamento de uma nova base para a técnica psicanalítica, terapeuticamente dirigida. Nessa perspectiva, é possível localizar o lugar privilegiado que a dimensão do ato (ato fracassado) tomou, tanto no engendramento quanto na queda do delírio, na medida em que "o núcleo da personalidade repousa sobre o fracasso de certas experiências, sobre os hiatos biográficos, sobre os impasses de responsabilidade, sobre as indeterminações da intencionalidade" (Dunker, 2015, p. 343).

Ao passo que a noção de personalidade na Psicanálise derivava-se do conceito de narcisismo, ela também apresentava alguns problemas metodológicos. Assim, tornou-se necessário, para Lacan, isolar um conceito de eu, que não viria especificamente das neuroses, mas antes das psicoses. A gênese do eu, com efeito, seria desvelada pelo campo das psicoses (Lacan, 1932[1987]).

O eu não seria uma estrutura inata, mas surgiria como um novo ato psíquico, correlacionado ao próprio narcisismo, isto é, estaria posicionado entre o autoerotismo e a escolha de objeto (Freud, 1914[1988]). O conceito de narcisismo, portanto, permitiu a Freud desfazer determinadas problemáticas geradas pelo primeiro dualismo pulsional entre as pulsões do eu (autoconservação) e as pulsões sexuais. Tendo em vista que mediante uma espécie de reversão as pulsões sexuais retirariam libido investida nos objetos, forçando seu retorno sobre o próprio eu. Em suma, o saldo obtido seria a chamada libido narcísica investida no próprio eu.

Com efeito, Lacan (1932[1987]) observou que faltava à Psicanálise resolver o problema da formação do eu, para que fosse possível articulá-lo com a constituição de uma nova teoria da personalidade. Essa problemática da formação do eu o conduziu, de forma recorrente, ao processo dialético entre eu ideal e ideal do eu, que no psiquismo representa a tarefa de constituir uma unidade narcísica simbolicamente orientada.

Nesse itinerário, Lacan (1932[1987]) elegeu um tipo clínico específico da psicose: a paranoia de autopunição e de reivindicação (caso Aimée).2 Vale mencionar que a paranoia, freudianamente inspirada, articulava-se com a incorporação do objeto e com a inerente dimensão da libido narcísica. Sendo que a ação do supereu guardava um apanágio privilegiado no delírio persecutório, tanto no olhar penetrante quanto na crítica voraz. Aqui se desenha o nível da estrutura conceitual do delírio.

Com a noção de desencadeamento, foi possível enodar o campo da razão diagnóstica e a problemática da causalidade etiológica. Nesse momento, o desencadeamento representava "um ponto diacrítico de transformação subjetiva no tempo" (Dunker, 2015, p. 340). Sendo assim, a crise, o surto e o retorno no Real são avatares privilegiados do desencadeamento, como evento histórico, não podendo ser reduzidos a uma disposição ou aptidão geral. Com efeito, "há um antes e um depois do sintoma, há um antes e um depois do surto, há um antes e um depois do encontro com o fetiche. O desencadeamento é um ponto que faz convergir a historicidade e a a-historicidade da estrutura" (Dunker, 2015, p. 341).

No entendimento de Lacan (1932[1987]), o desenvolvimento biográfico posicionava a reconstrução das narrativas históricas (infantil, familiar e social) e sua subsequente evolução. O chamado nível individual referia-se às particularidades das moções pulsionais e representacionais, que na doutrina freudiana remetia ao aspecto teórico-clínico, já que a Psicanálise, além de um método de tratamento das afecções neuróticas (e psicóticas), consiste também em um método de investigação do inconsciente.

Por fim, o nível social, eticamente orientado, configurava o campo de atuação do supereu. Na psicose, o universo social articulava-se com a origem da participação ética (responsabilidade) na tentativa de reconciliar, pela formação delirante, a divisão subjetiva (castração) não inscrita no psiquismo, na medida em que se encontrava exposta diante de uma instância extremamente crítica (supereu) para o psicótico.

É possível observar que o empreendimento teórico-clínico de Lacan apresentava uma tensão dialética entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Portanto, se Koyré era o guia de Lacan quando se tratava de Epistemologia (Lacan, 1966a[1998]), ao se tratar de Psiquiatria, não escondeu seu apreço por Clérambault, considerando-o, assim, seu único mestre em Psiquiatria. Nas palavras de Lacan (1966b[1988], p. 69), "seu automatismo mental, com sua ideologia mecanicista de metáfora, por certo bastante criticável, parece-nos, em seus enfoques do texto subjetivo, mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa". Certamente, em seu trajeto, reconhece que seu grande mestre Clérambault anunciava em sua prática um olhar que era envolto por sua formação kraepeliniana, "em quem o talento da clínica era alçado a um plano mais elevado" (Lacan, 1966b[1998], p. 70).

O momento crucial se estabelece, Lacan é conduzido a Freud, fascinado por sua "fidelidade ao invólucro formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico" (Lacan, 1966b[1998], p. 70). Um caminho construído de constantes retomadas e remanejamentos que não teria mais volta. A Psicanálise forneceu o que era essencial para a prática clínica: a escuta e a possibilidade de fundamentação em um rigor sem precedentes. Ainda nas palavras de Lacan (1966b[1998], p. 71), "talvez se possa perceber que, ao transpor as portas da psicanálise, logo reconhecemos em sua prática preceitos de saber muito mais interessantes, por serem aqueles que devem ser reduzidos em sua escuta fundamental", bem como a certeza "que se possa ver, no que aqui se desenha de uma referência à linguagem, o fruto da única imprudência que nunca nos enganou: a de não nos fiarmos a nada senão à experiência do sujeito que é a matéria única do trabalho analítico".

Destarte, nota-se a importância do percurso trilhado por Lacan desde sua tese de doutorado até sua inserção definitiva na Psicanálise. Os desenvolvimentos sobre o crime patológico permitiram que Lacan (1932[1987]) estabelecesse o conhecimento humano como paranoico, isto é, vindo do outro. Já a formulação da teoria do estádio do espelho (Lacan, 1949[1998]), indicou que o eu (Je) se manifesta por uma matriz simbólica, sendo que o sujeito é constituído pela linguagem. Com isso, o interesse maior de Lacan estava implicado em uma espécie de causação do sujeito pela via da linguagem, na medida em que o sujeito, não sendo causa sui, é um efeito do Outro.

Como resultado, o programa de investigação da tese de doutorado abre caminho, anos depois, para um expediente que tanto mantém uma crítica ao organicismo (organogênese) quanto estabelece um distanciamento da noção de compreensão derivada de Jaspers, tendo em vista que fundamentava uma concepção psicogênica dos transtornos mentais, da qual Lacan se afastou gradualmente.

 

O jovem Lacan e o indivíduo para além do individualismo

O emblemático texto de 1938, intitulado "Os complexos familiares na formação do indivíduo", representou um avanço nas pesquisas de Lacan sobre a temática de um sujeito extraído da obra de Freud, mesmo que nesse momento ele apareça sob a rubrica da figura do indivíduo. Na verdade, o que se desenha não é redutível à noção de indivíduo, como a imagem moderna do homem determinado como pensamento consciente de si (reflexividade da consciência), pois, com uma inflexão interessante o eu será definido pelo narcisismo e o sujeito apreendido na sua divisão pelo sintoma.

Nesse período, Lacan (1938[2003]) evoca uma espécie de fenomenologia clínica, mesmo que nela não conste uma teoria estrutural nem do inconsciente, nem da prática psicanalítica. Freud é lido, nesse momento, pelo fino tecido da obra de Durkheim. Portanto, um texto pré-estruturalista da obra de Lacan, anterior às referências de Lévi-Strauss, de Saussure e de Jakobson. Todavia, pode ser lido em uma chave retroativa (aprés-coup).3 Em primeiro lugar, como uma síntese da teoria do desenvolvimento psíquico freudianamente inspirada, e em segundo lugar como uma descrição condensada da clínica freudiana sobre os chamados complexos familiares.

O texto segue por uma esteira que trata o fenômeno da geração, no que concerne à vida, e enfatiza que o núcleo abrangente da família se engendra no universo humano. Desse modo, a família isola aspectos que gravitam no entorno do seu campo conceitual: a geração e a procriação; bem como a necessidade de manutenção de um meio ambiente para o desenvolvimento geracional e procriativo. Já o social se constitui de modo diferente do estritamente familiar ou natural, sendo que

[....] a espécie humana caracteriza-se por um desenvolvimento singular das relações sociais, que sustentam capacidades excepcionais de comunicação mental, e, correlativamente, por uma economia paradoxal dos instintos que aí se mostram essencialmente suscetíveis de conversão e de inversão, não tendo mais efeito isolável senão de modo esporádico. (Lacan, 1938[2003])

Com efeito, a família representa o tema maior, sendo abordada como uma estrutura na ordem da cultura e do social. Assim, a ponderação sobre os complexos familiares pode ser considerada a primeira "teoria do desenvolvimento" de Lacan, na qual ele deduz os três tempos essenciais, que vistos pela óptica dos complexos guarda um apanágio privilegiado do psiquismo numa sequência de tripla escansão: o desmame, a intrusão e o Édipo. Esse caminho aborda respectivamente os temas da imago maternal (desmame), da imago do semelhante envelopada pelo estádio do espelho (intrusão) e da imago paterna diante da operação da castração (Édipo) (Miller, 1984[2005]).

Uma pergunta desponta nesse horizonte conceitual, que interroga se a referência sociológica de Durkheim não mascarava o alcance clínico do trabalho de Lacan. No entanto, a segunda parte do texto apresenta uma leitura extensa e rigorosa da clínica freudiana, privilegiando a função paterna como chave para a compreensão da chamada neurose contemporânea, bem como o desencadeamento da psicose pela noção de "grupo familiar descompletado" (Lacan, 1938[2003], p. 74).

A família, portanto, não se fundamenta no reino natural, nem como fato biológico redutível ao campo dos instintos, mas antes se engendra como um fato social. Com isso, Lacan (1938[2003]) quer dizer, pelo menos, duas coisas: a prevalência de uma economia paradoxal dos instintos no homem e a dimensão paradoxal camuflada por uma dependência vital. Seu balanço crítico posiciona que essa dependência vital se encontra sujeitada ao campo da cultura e do social, de certa forma figuras precursoras do Outro.

Nesse momento, Lacan ainda não dispunha das leis do significante (da metáfora e da metonímia) para postular o inconsciente estruturado como uma linguagem. Todavia, isso não o impede de excluir o puro instinto natural no homem. Sabe-se que anos mais tarde sua posição será clara em considerar a Psicanálise como uma "ciência da linguagem habitada pelo sujeito" (Lacan, 1955-56[1988], p. 276) e não como uma ciência da natureza (Naturwissenschaft). Há, assim, a valorização de uma instância constitutiva, chamada de dimensão cultural, que diz respeito ao homem em suas formas de socialização.

Portanto, antes de recorrer à obra de Lévi-Strauss, Lacan (1938[2003]) já formulava que onde quer que busquemos na espécie humana, não há natureza que não seja remanejada pela cultura (fator cultural). Dito de outra forma, antes de sua imersão no estruturalismo lévi-straussiano, já havia isolado a função paterna como o exemplo maior de uma função não dedutível da natureza. Nesse contexto, Lacan (1938[2003], p. 30) aludiu à complexidade das formas de parentesco, amplamente expressas: a) nos "modos de organização desta autoridade familiar"; b) nas "leis de sua transmissão"; c) nos "conceitos de descendência e de parentesco que lhe estão ligados"; d) nas "leis da herança e da sucessão que com ela se combinam"; e) "nas relações íntimas com as leis do casamento".

Desse modo, de acordo com Zafiropoulos (2002), é possível localizar entre 1938 e 1950 um Lacan durkheimiano, que mobilizou suas pesquisas em um eixo temático específico, isto é, o diagnóstico de que o declínio da imago paterna está ligado à contração da família ocidental. E isso quer dizer que a queda do valor social do pai da família ocidental teria determinado o declínio de seu lugar privilegiado no complexo de Édipo. Daí a identificação de que os complexos familiares eram a base para diagnosticar a grande neurose contemporânea, que estava, por assim dizer, estritamente ligada com a queda da imago paterna. Podemos com isso dizer que, nesse momento, Lacan notabilizou uma espécie de diagnóstico maior, válido para uma clínica do social, ou seja, à identificação da contração da família ocidental como correlativa do declínio sócio-histórico de seu chefe: o pai de família.

Nota-se, então, como para Durkheim a lei da contração familiar representa uma espécie de degradação que faz a família ocidental deslocar-se de um eixo de segurança e harmonia para uma forma conjugal portadora da anomia. Portanto, nossas sociedades anômicas enfrentam o avanço progressivo de uma crise da autoridade, mais frequentemente vinculada ao enfraquecimento da figura do pai no interior do seio familiar. Nesse momento, o jovem Lacan escruta as condições sociais do edipismo desse patriarcado (Zafiropoulos, 2002).

Contudo, a partir dos anos 1950, Lacan modifica radicalmente seu universo conceitual, no que diz respeito mais precisamente à análise da família, à questão do pai e às leis constitutivas do inconsciente. Agora a problemática desloca-se do registro da família para o registro das leis da fala e da linguagem. Ocorre, portanto, uma passagem de Durkheim a Lévi-Strauss: o período durkheimiano é superado de forma decisiva pelo chamado aporte lévi-straussiano sobre a função simbólica. Desenha-se uma questão determinante para a Psicanálise lacaniana sobre a problemática do pai, isto é, o pai não é um objeto real, mas sim uma função, o Nome-do-Pai é um significante de exceção (Zafiropoulos, 2006).

Zafiropoulos (2006) defende que o programa conhecido como o retorno a Freud, empreendido oficialmente por Lacan a partir de 1953, seguiu um caminho específico e bem fundamentado. O Lacan freudiano busca suas bases no estruturalismo para fazer prevalecer as leis do simbólico e da linguagem sobre as da família. Desse modo, a teoria de Lévi-Strauss permitiu que Lacan revisitasse o conjunto dos grandes casos clínicos freudianos: o caso Dora (neurose histérica); o caso do homem dos ratos (neurose obsessiva); o caso do pequeno Hans (neurose fóbica); o caso Schreber (psicose).

Nesse sentido, é como se essa agenda lacaniana do retorno a Freud, via Lévi-Strauss, representasse que o pai morto da Psicanálise (Freud) retornou pelos atalhos do estruturalismo lévi-straussiano. Dito de outro modo, a perspectiva estruturalista forneceu a Lacan as coordenadas mais cruciais do retorno a Freud, ou melhor, do que reside no âmago da teoria freudiana (Zafiropoulos, 2006).

Essa incursão lacaniana pelo estruturalismo de Lévi-Strauss posicionou certo recurso à Linguística de Saussure, pela qual se podem elencar pelo menos duas consequências diretas: em primeiro lugar, retomar a teoria do inconsciente freudiano a partir das leis da linguagem e, em segundo lugar, inverter o algoritmo saussuriano, fazendo o significante prevalecer sobre o significado. Segundo Zafiropoulos (2006), Lacan herda esse procedimento de conferir primazia ao significante sobre o significado de Lévi-Strauss. Em suma, o estruturalismo lévi-straussiano coloca em jogo a importância das leis da linguagem para pensar as leis do inconsciente. Nas palavras de Lacan (1953[1998], p. 286), "Não é patente que um Lévi-Strauss, ao sugerir a implicação das estruturas da linguagem e da parte das leis sociais que rege a aliança e o parentesco, já vai conquistando o terreno mesmo em que Freud assenta o inconsciente?"

 

O desejo na dialética do reconhecimento e na experiência analítica

No princípio de uma análise, o desejo é aquilo que é visado, mesmo diante da sombra nebulosa que o caracteriza, ou pela infinitude que o marca como impossível de se satisfazer plenamente, ou ainda pela multiplicidade quase sem limites da forma de seus objetos. O sujeito do desejo está posto no hiato entre aquilo que o causa e aquilo que ele visa.

Destarte, qual contexto permitiu que Lacan pensasse o sujeito do desejo inconsciente? Seria apenas uma leitura atenta e rigorosa da obra freudiana? O movimento para responder a essas perguntas possibilita a compreensão de uma tese central do ensino lacaniano: a solidariedade do sujeito da ciência para a Psicanálise.

Sabe-se que o sujeito em seu estatuto conceitual para a Psicanálise foi forjado por Lacan, já que essa conceituação não aparece formulada explicitamente na obra de Freud, muito menos nos pós-freudianos (Elia, 2004). Essa categoria é fundamental no corpus teórico da Psicanálise retrabalhada por Lacan, na medida em que o sujeito surge como uma categoria emergente da ciência moderna, que se estabelece como um avatar da própria modernidade4 (Lacan, 1966a[1998]).

Dessa forma, Lacan encaminhou as articulações para a abordagem de um sujeito pensado como negatividade, bloqueio e impasse de síntese, ou seja, como divisão. Portanto, a insuficiência do conceito de personalidade, como operador para entender a relação com o objeto, o conduz a construir uma teoria do sujeito. Nesse contexto, o sujeito não pode, apenas, ser pensado pela sua apreensão do objeto, torna-se necessário uma passagem do "sujeito do conhecimento" para o "sujeito do reconhecimento". Esse deslocamento promove a transformação do "problema do conhecimento na personalidade" para a "problemática do reconhecimento na teoria do sujeito". Em suma, o sujeito pensado na teoria do reconhecimento, diante do giro que é efetuado, vai do "conhecimento do objeto ao reconhecimento do sujeito", e do "reconhecimento do sujeito ao reconhecimento do desejo" (Safatle, 2006).

Com isso, em seu programa de retorno a Freud, Lacan se depara com uma lógica intersubjetiva no interior da práxis analítica. Assim, a adoção do paradigma da intersubjetividade lhe permite reestruturar o núcleo da experiência analítica pelo achado de uma dialética do reconhecimento do desejo, inspirada na Filosofia hegeliana (Safatle, 2003).

O emblemático aforismo "o desejo do homem é o desejo do Outro", inicialmente, representa o ponto nevrálgico do desenvolvimento da teoria do desejo pela Psicanálise lacaniana. A concepção hegeliana do desejo chega a Lacan via Kojève,5 no aspecto estritamente ligado ao reconhecimento pelo outro na dialética do senhor e do escravo.6 Todo desejo humano é, para Hegel, desejo de reconhecimento, aquilo que permite o advento da luta mortal em busca de reconhecimento. O desejo animal expresso no desejo da coisa confere para a relação com o objeto o sentimento de si. O desejo humano, porém, ultrapassa a realidade dada e o imediatismo da coisa, pois incide sobre outro desejo como seu objeto (Kojève, 1947[2002]).

De acordo com esse postulado, a luta pelo puro prestígio apresenta algo além do reducionismo do desejo animal, que permanece enclausurado na conservação da vida. Pelo contrário, o desejo humano introduz na dialética da constituição do sujeito (da consciência-de-si) a dissimetria entre o senhor e o escravo. O senhor é aquele que, diferentemente do escravo, arriscou sua vida para se tornar senhor. Indubitavelmente, esse apólogo hegeliano ilustra como o homem se constitui, definido pela consciência que tem de si mesmo. O desejo humano está implicado no desejo de reconhecimento. Por isso, "o desejo que incide de forma imediata sobre um objeto natural só se torna humano quando é mediatizado pelo desejo do outro" (Quinet, 2000[2008], p. 92).

Em sua Fenomenologia do espírito, no capítulo IV, subtitulado "Independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão", Hegel diz que "[Das selbstbewusstsein] A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" (Hegel, 1807[2012], p. 142, grifos do autor). O desejo de reconhecimento em Hegel toma certos contornos que são imprescindíveis para se pensar a constituição do sujeito consciente-de-si. Ainda nas palavras de Hegel (1807[2012], p. 144), "consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, a duplicação da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta para a consciência-de-si".

Em seu Seminário livro 2, "O Eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise", Lacan (1954-55[1995]) desenvolve a função do reconhecimento ligada ao desejo. O desejo é tomado nesse momento do ensino lacaniano como desejo de nada, desejo de nada nomeável. Por trás daquilo que se pode nomear do desejo encontra-se o que há de mais inominável: a morte. Isso quer dizer que a particularidade do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação, ou seja, ele é sem objeto (empírico). As elaborações freudianas sobre o desejo são concluídas por Lacan (1954-55[1995], p. 265), sendo que, "apesar de Freud ir seguindo as mil formas empíricas que este desejo pode tomar, não há sequer uma análise que vá dar na formulação de um desejo. O desejo no final das contas, nunca está aí desvelado". E, portanto, o desejo como objeto se configura em um nada revelado. Aqui, certamente, nota-se a inspiração kojèviana na teorização do desejo empreendida por Lacan. Em Kojève, a "verdade do desejo" apresenta-se na "revelação de um vazio", isto é, "pura negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal" (Safatle, 2003, p. 192).

O desejo entendido como falta, esse importante operador no início da teoria lacaniana, apresenta nessa reflexão uma concepção subsidiária da "ontologia negativa" de Kojève em sua acepção hegeliana. Ou seja, a ideia de falta, de perda, de corte, que constitui a existência como tensão permanente, como luta infinita pela recuperação de um gozo definitivamente perdido. Certamente, a conceituação de Lacan não é a mesma de Kojève, pois enquanto em Kojève o conceito de desejo está vinculado a uma descrição da História como luta entre o Senhor e o Escravo, e o movimento social em sua totalidade apontando para um fim inexorável, em Lacan não há indicação de "final", nem se pretende descrever a "história", mas o "sujeito". O ser falante é pautado pelo desejo do desejo do Outro (Almeida, 2006). O esforço de Lacan, portanto, converge em ir além da apresentação kojèviana da concepção hegeliana do desejo.

Assim, essa referência lacaniana ao campo da intersubjetividade no interior da racionalidade analítica sofre um esgotamento exaustivo e uma ruptura considerável, que levará Lacan a redefinir as bases da experiência da clínica psicanalítica (Safatle, 2003). Dessa forma, "o paradigma da intersubjetividade será usado por Lacan até o início dos anos 1960. Seu abandono só virá em 1961, quando do reconhecimento intersubjetivo advir uma armadilha narcísica capaz de impedir o desenvolvimento da análise" (Safatle, 2006, p. 47).

Ao considerar a teoria do desejo, qual seria então a distinção entre Hegel e Lacan? Em termos filosóficos, porque Hegel é filósofo, o desejo do homem é o desejo do outro, o que encontra sua incidência no registro imaginário,7 o outro é aquele que me vê e contra quem eu luto para me constituir como sujeito consciente de si. Todavia, para Lacan, o Outro se apresenta como inconsistência e inconsciência, sendo, portanto, o inconsciente o discurso do Outro.

Em Hegel, o Outro é aquele que me vê, e é isso que, por si só, faz travar-se a luta, segundo as bases com que Hegel inaugura a Fenomenologia do espírito, no plano do que ele denomina de puro prestígio, e é nesse plano que meu desejo está implicado. Para Lacan, porque Lacan é analista, o Outro existe como inconsciência constituída como tal. O Outro concerne a meu desejo na medida do que lhe falta e de que ele não sabe. É no nível do que lhe falta e do qual ele não sabe que sou implicado da maneira mais pregnante, porque, para mim, não há outro desvio para descobrir o que me falta como objeto de meu desejo. (Lacan, 1962-1963[2005], pp. 32-33)

O desejo do homem é o desejo do Outro enquanto barrado. Em seu seminário sobre a angústia, Lacan (1962-1963[2005]) delineia determinados pontos de divergência sobre o pensamento hegeliano do desejo, sendo que, ao apresentar o esquema da divisão, refere-se à importância do significante da falta no Outro para a constituição do sujeito dividido. As configurações do registro imaginário aparecem em Hegel radicalmente na luta do puro prestígio, na qual a mediação possível para o desejo do outro (semelhante) é a da violência, do ímpeto de destruir o outro, ou seja, sua negação, o que é próprio da dimensão do imaginário, no qual o outro é ao mesmo tempo igual e rival.

Está indicado em Hegel, da maneira mais articulada, que o sujeito dele necessita para que o Outro o reconheça, para receber dele o reconhecimento. Isso quer dizer o quê? Que o Outro instituirá alguma coisa, designada por a, que é aquilo de que se trata no nível daquele que deseja. É nisso que está o impasse. Ao exigir ser reconhecido ali onde sou reconhecido, sou reconhecido apenas como objeto [...]. Não consigo suportar-me nesse modo, no único modo de reconhecimento que posso obter [...]. Já não há outra mediação senão a da violência. Esse é o destino do desejo em Hegel. (Lacan, 1962-1963[2005], p. 33)

Assim, surge o desejo de reconhecimento pelo outro, sendo que, na dialética do senhor e do escravo, torna-se evidente a dimensão mortífera, a ambição de imposição e dominação sobre o outro. Nesse jogo especular, o outro surge duplicado: como rival e como a imagem que é suporte do desejo, ou seja, tanto encobre quanto contém o objeto causa do desejo. O aspecto especular do desejo, em sua troca, entre o eu e o outro, amplamente manifestado no estádio do espelho, é representativo do plano imaginário. Porém, Lacan (1962-1963[2005]) não deixa de explicitar que o Outro (linguagem) "precede" o sujeito, e que o desejo é determinado pelo simbólico e causado pelo real do objeto a. O desejo está para-além da função de reconhecimento, nisso podemos dar um passo fundamental para entender Hegel por Lacan.8

Em seu seminário interrompido, do qual se produziu apenas uma aula, intitulada "Introdução aos nomes-do-pai", Lacan (1963[2005]) afirma que se inserir em uma dialética de orientação negativa permitiu-lhe combater as falsas promessas de um horizonte de positividade.

Isto é para fazê-los perceber sentir que os primeiros passos do meu ensino caminhavam nas vias da dialética hegeliana. Era uma etapa necessária para investir contra o mundo dito da positividade (...). Toda a dialética hegeliana é feita para preencher essa falha9 e mostrar, numa prestigiosa transmutação, como o universal pode chegar a se particularizar pela via da escansão aufhebung. (Lacan, 1963[2005], pp. 62-63)

Porém, não podemos desconsiderar que no Seminário livro 10, intitulado "A angústia", Lacan (1962-1963[2005]) esclarece que apenas aceitou uma dialética que não apresentasse uma síntese. Em suas palavras: "A diferença que há entre o pensamento dialético e nossa experiência é que não acreditamos na síntese" (Lacan, 1962-1963[2005], p. 295).

Portanto, esse Outro aparece marcado pela inscrição da falta, que no matema lacaniano é representado pelo significante da falta no Outro, S(Ⱥ). "É justamente por haver uma falta inscrita no Outro que o Outro diz respeito ao desejo do sujeito, pois é ao nível do que falta no Outro que sou levado a buscar aquilo que me falta - o que me falta como objeto do meu desejo" (Quinet, 2000[2008], p. 93). Aparentemente, o Outro em Hegel se apresentaria em sua totalidade, como possibilidade radical do Saber Absoluto, que a astúcia da razão levaria a cabo por meio da síntese final do processo dialético. Nesses termos, o Outro, aparentemente, não seria castrado, mas sim o resultado final da história. E a proposta lacaniana, assim, converge em subverter esse idealismo hegeliano, quando expõe o Outro representado como faltante e barrado.

Essa intricada relação (Hegel e Lacan) por vezes se reduz ao início do percurso de Lacan, entre o fim da década 1940, passando pela década de 1950 e desembocando num afastamento declarado no início de 1960. Sendo que

Lacan tentou articular o processo psicanalítico nos termos próprios da lógica intersubjetiva do reconhecimento do desejo e/ou do desejo de reconhecimento. Já nesse momento, Lacan teve o cuidado de tomar distância em relação ao fechamento do sistema hegeliano no tocante ao saber absoluto, que ele assimilava ao ideal inacessível de um discurso perfeitamente homogêneo, consumado e fechado em si mesmo. Mais tarde, a introdução da lógica do não-todo e do conceito do Outro barrado tornaria caduca essa referência inicial a Hegel. (Žižek, 1988[1991], p. 14)

Desse modo, se desenharia o contorno dramático dessa oposição, por assim dizer, incompatível, que encontramos entre o saber absoluto hegeliano ("círculo dos círculos" fechado) e o Outro barrado lacaniano (saber irredutivelmente furado). Surgiria, portanto, um Lacan anti-hegeliano, por excelência?

Todavia, a leitura de Žižek (1988[1991]) complexifica a questão, apresentando uma estratégia renovada no interior do programa filosófico hegeliano. Isto é, a ideia de que o processo dialético histórico, tal como Hegel o constrói, seria partidário de uma matriz negativa, na medida em que o monstruoso saber absoluto desponta na totalidade de seu percurso como um vazio estrutural (Outro furado). Assim, quando consideramos "a problemática lacaniana da falta no Outro, do vazio traumático em torno do qual se articula o processo significante" (1988[1991], p. 14), constatamos que a designação do "passe" em Lacan é uma outra forma de nomear o saber absoluto em Hegel, tendo em vista que o fim de uma análise se depara com "a experiência da falta no Outro" (1988[1991], p. 14).

Nesse sentido, fica delineado que Žižek (1988[1991]) pretende utilizar a fórmula lacaniana, Kant com Sade, para pensar a relação entre Hegel e Lacan: Hegel com Lacan. Ou seja, se Sade fornece a verdade de Kant, Lacan fornece a verdade de Hegel. A construção zizekiana procura não tornar o par Hegel e Lacan uma relação binômica, mas configurar um caráter inédito. Nesse contexto, o gênio de Žižek insere no interior dessa articulação uma torção, um avesso, uma retroação: Lacan não sabia o quão realmente era hegeliano.

A nosso ver, Lacan é essencialmente hegeliano, mas sem o saber; certamente não o é onde se espera, ou seja, em suas referências explícitas a Hegel, mas precisamente na última etapa de seus ensinamentos, na lógica do não-todo, na ênfase colocada no real, na falta no Outro. E inversamente, a leitura de Hegel à luz de Lacan fornece uma imagem de Hegel radicalmente diferente da que é comumente aceita, do Hegel "panlogicista". Ela faz surgir um Hegel da lógica significante, de um processo auto-referencial articulado como a positivação repetitiva de um vazio central. (Žižek, 1988[1991], p. 15)

Ainda nessa esteira de argumentação, Safatle (2006, p. 25) lembra como é importante não confundir "partilha de diagnóstico" com a "aceitação do sistema", ou seja, para Lacan, o recurso a Hegel configura uma espécie de trajetória que reconhece os inúmeros impasses da tradição crítica do racionalismo moderno aberta pela dialética hegeliana. Com efeito, a incursão lacaniana na Fenomenologia do espírito posiciona uma concordância com determinados aspectos do diagnóstico hegeliano, dos quais se destacam: a) a "centralidade da negação na estruturação do pensamento"; b) a "irredutibilidade ontológica de um conceito não substancial de sujeito"; c) a "possibilidade em pensar um regime de identificação entre o sujeito e o objeto não baseado na assimilação simples do segundo pelo primeiro"; d) um encaminhamento que privilegia uma forma subjetiva de "alcançar uma experiência do Real que não se submeteria mais ao regime de verdade como adequação". Todavia, Lacan soube tomar "distância dos dispositivos de totalização sistêmica presentes em Hegel. Tal estratégia lhe teria permitido demonstrar a existência de um gênero de dialética negativa como pano de fundo da práxis analítica" (Safatle, 2006, p.25). Em suma, recusou aceitar o sistema filosófico hegeliano como norteador de sua leitura da Fenomenologia do espírito.

 

O sujeito lacaniano é um efeito do significante e uma resposta do real

Depois de tal exposição, passemos agora para a consideração sobre a afirmação lacaniana de que o sujeito sobre o qual a Psicanálise opera é o da ciência, na medida em que é a partir do cogito cartesiano que a Psicanálise inaugura o sujeito reduzido ao significante.

Entretanto, afirmar que o sujeito da Psicanálise é o sujeito cartesiano (da ciência) necessita de certo aprofundamento. O que Lacan destaca, na verdade, é uma espécie de inflexão que consiste em evidenciar tanto uma similitude quanto uma dissimetria entre Freud e Descartes (Soler, 1995[1997]).

Com isso, cabe perguntar como o sujeito do cogito (cogito ergo sum), isto é, do "Penso, logo sou", que é o sujeito do pensamento, pode apresentar uma relação com o sujeito da psicanálise. Essa problemática atinge, podemos dizer, níveis consideráveis quando se reconhece que esse sujeito do pensamento é um sujeito da certeza, já que a dúvida metódica cartesiana produz a certeza subjetiva. Portanto, a certeza do cogito aponta que o sujeito só pode estar certo de que pensa, pois mesmo que duvide disso ainda continuará pensando. O pensar é aquilo que resiste à dúvida hiperbólica.

Contudo, para Lacan, esse sujeito visa a sua existência, ou melhor, a seu ser como presença real. O sujeito cartesiano, ou sujeito do cogito, ou ainda sujeito da certeza, realiza uma disjunção com a verdade. O que importa, portanto, não é a verdade, mas o pensamento, que define o ser (Soler, 1995[1997]).

Tendo em vista esse raciocínio, é possível afirmar que o "sujeito" freudiano é o sujeito cartesiano, no entanto, como sujeito do pensamento subvertido, isto é, o sujeito do pensamento inconsciente. Portanto, ocorre uma passagem do "sujeito como coisa pensante" ao "sujeito dividido pela linguagem".

O que fica delineado é que o cogito inaugura a possibilidade de tratar os objetos pelo simbólico, por meio da linguagem, implicando que o "penso, logo sou" é, por um lado, o conteúdo do pensamento e, por outro, uma fala. Com isso, o que funda o ser é o dizer. O ser só é fundado pelo pensamento porque ali se vincula à fala. Só existe sujeito de um dizer e, portanto, não há ser fora da possibilidade de dizer "logo sou", que afirma a existência por meio da linguagem. O pensamento depende da fala para se fazer valer no dito, daí o sentido fundamental do aforismo "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Dessa forma, privilegiando o simbólico, o cogito faz existir o sujeito como objeto do pensamento (Alberti & Erlich, 2008).

Soler (1995[1997]) dirá que o sujeito da Psicanálise, na verdade, é o sujeito do sofrimento, ou se quiserem do pathos, e sua máxima deve ser "Eu sofro, logo sou". Portanto, não é o sujeito da verdade, mas o sujeito do afeto. Desse modo, o sujeito da Psicanálise é alguém que, em vez da certeza, é marcado pela dúvida, mas que não é alheio à verdade, pois busca estabelecê-la, isto é, deseja saber a verdade do seu sofrimento.

O sujeito não é o homem e tampouco é a mente suscetível de estar doente ou saudável. Ele não é o objeto da saúde mental nem da doença mental. O sujeito é patológico por definição, sujeito ao pathos, afetado pela estrutura que obedece a uma lógica: os significantes que o determinam e o gozo do sexo que o divide, fazendo-o advir como desejo... o sujeito é desejo. A existência do sujeito é correlativa à insistência da cadeia significante do inconsciente, porém como exterior a ela: é uma ex-sistência. Desejo logo ex-sisto. (Quinet, 2000[2008], p. 16)

Mas vale lembrar que também existem similitudes entre o sujeito cartesiano e o sujeito freudiano. Freud, pela técnica da associação livre, acolhe o sujeito de sofrimento, convocando, assim, o sujeito de pensamento (inconsciente). O analista, portanto, lança o paciente em uma situação em que seja produtor de pensamento, que Lacan, seguindo a inspiração freudiana, estabelecerá pela via do significante. O paciente ao duvidar de seus pensamentos apresenta uma similaridade com a dúvida hiperbólica cartesiana. No entanto, nesse processo, o sujeito da certeza é destituído de seu lugar proeminente, já que o discurso se sustenta pelo que manca, isto é, só existe causa do que manca (Lacan, 1964[2008]). Com isso, na claudicação e nos equívocos emerge o sujeito como pensamento inconsciente marcado pelo significante. A hipótese freudiana guarda a especificidade de sustentar a dúvida do pensamento inconsciente que surge na fala do sujeito. O eu penso do sujeito freudiano no nível inconsciente mantém uma relação irruptiva como eu sou (Soler, 1995[1997]).

Desse modo, fica evidente a diferença que Lacan estabelece desde o início de seu ensino entre o nível da enunciação e do enunciado. O enunciado "é o que se diz", já a enunciação "é o que se quer dizer com o que se diz". Nota-se, contudo, como a enunciação fica abolida no discurso científico, na medida em que, para esse discurso, não há a questão do que se quer dizer, mas apenas a questão do que se diz (Iannini, 2013).

Em Lacan, com efeito, podemos afirmar que qualquer enunciado não tem outra garantia a não ser sua própria enunciação. O sujeito da enunciação não se resume a uma mera categoria de análise linguística, pois expressa um ato que está além de todo o cálculo simbólico que direciona as coordenadas do sentido, sendo, portanto, a própria impossibilidade, digamos real, de determinar os efeitos de sentido do dizer. Com isso, não se deve eliminar a enunciação em proveito da estabilidade do enunciado, um procedimento metalinguístico que coincide com o afastamento do sujeito em relação aos efeitos de seu dizer (Iannini, 2013).

A Psicanálise, dessa forma, se situa como um "discurso sem fala", e a própria essência do discurso analítico implica a irredutibilidade da enunciação ao enunciado, do dizer ao dito. Dessa forma, o real que orienta a práxis clínica se manifesta como o impossível no plano do discurso analítico. O real é, portanto, refratário ao conceito totalizador, manifestando, assim, um impasse à formalização conceitual. No entanto, é ele (o real) que sustenta o caráter ficcional da verdade. A verdade não se manifesta apenas na pura negatividade do indizível, mas, ao contrário, surge estreitamente conectada à superfície do dizer, ou precisamente, em sua estrutura não-toda que se expressa no semidizer (Iannini, 2013).

Freud, portanto, é cartesiano apenas na inspiração, porque, no entender de Lacan, ao abrir o caminho da descoberta do pensamento inconsciente, realizou uma subversão no sujeito de Descartes. O sujeito do pensamento inconsciente não ocupa o lugar da mestria e da certeza subjetiva, mas, ao contrário, é assujeitado ao efeito da linguagem, ocupando o lugar do escravo trabalhador na produção de gozo. É um sujeito subvertido pelo significante. Assim, o sujeito freudiano (sujeito da Psicanálise) surge como o sujeito cartesiano subvertido. O sujeito de que trata a Psicanálise não é nada, sendo, portanto, sem qualidades, ele é suposto na cadeia significante. Ou seja, é um efeito da linguagem, já que se constitui no campo do Outro - o lugar do significante e da fala (Soler, 1995[1997]).

Certamente, fica evidente que o sujeito não é causa sui, mas efeito do significante, isto é, da linguagem. Portanto, o Outro é a primeira causa do sujeito. E dessa forma, o sujeito não é uma substância, mas aquilo que "um significante representa para outro significante". Logo, antes do significante não há sujeito, pois pode existir um ser vivo, uma intenção mítica, um pedaço de carne, que se constituirá em sujeito ao ser perpassado, ou cortado pelo significante. O significante, então, representa o sujeito no campo do Outro. Antes do surgimento do significante o que temos é a nadificação do sujeito (Soler, 1995[1997]), ou seja, "por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em significante" (Lacan, 1964[2008], p. 188).

Nesse sentido, se esclarece minimamente a afirmação de que a Psicanálise surge a partir do discurso científico. Dito de outro modo, que é a partir do sujeito da ciência que ela encontrara seu campo epistemológico, permitindo-lhe, assim, postular seu próprio sujeito. Todavia, se ela parte do sujeito da ciência, é para realizar sua subversão.

Dessa forma, torna-se necessário indagar como o cogito inaugurado por Descartes revela-se o correlato imediato do momento historicamente definido, que permitiu a categorização do sujeito da Psicanálise. Isto é, pensar no sujeito da ciência a partir do cogito significa reconhecer o esforço de Lacan em recuperar essa tese no interior de uma tradição filosófica que percorreu de Hegel a Heidegger. Já que, no entender de Hegel, por exemplo, Descartes marcava o início dos tempos modernos. E o próprio Heidegger indicava certa homogeneidade entre a ciência e a moderna metafísica postulada por Descartes, resultando, assim, no esquecimento do ser. Com esse raciocínio, Lacan estava nos limites de uma tese bem desenvolvida no campo da Filosofia. É como se, para Heidegger, algo que Lacan parecia concordar, a Filosofia da consciência de Hegel fosse um prolongamento exaustivo de Descartes.

Nessa mesma esteira, Žižek (1999[2016]) realiza uma leitura reflexiva de cotejamento entre Lacan e Heidegger. Com isso, observa uma ambivalência impressionante no referenciamento lacaniano a Heidegger, que convoca constantes pontos de convergência interpenetrados por pontos de divergência. Para tanto, é preciso dizer que Lacan concordava inexoravelmente, tanto com a noção heideggeriana de Filosofia moderna quanto com sua crítica da metafisica como esquecimento do ser. Todavia, Žižek constata um fato interessante no seminário sobre "A Lógica do Fantasma", proferido entre os anos de 1966-1967, no qual Lacan realiza um movimento inesperado, tendo em vista que uma suposta exaustão da Filosofia heideggeriana o levaria de volta para Descartes.

Žižek (1999[2016]) apresenta o diagnóstico heideggeriano do cogito cartesiano, contudo, inflexionado pela leitura lacaniana, na medida em que seu postulado inclui a contradição. Assim,

[...] o cogito cartesiano, que fundamenta a ciência moderna e seu universo matematizado, anuncia o esquecimento máximo do Ser; mas, para Lacan, o Real da jouissance é precisamente externo ao Ser, de modo que o que para Heidegger é o argumento contra o cogito para Lacan é o argumento a favor do cogito - Real da jouissance só pode ser abordado quando saímos do domínio do ser. É por isso que, para Lacan, não se trata apenas de o cogito não poder ser reduzido à autotransparência do pensamento puro, mas, paradoxalmente, é o cogito ser o sujeito do inconsciente - a lacuna/corte na ordem do Ser na qual irrompe o Real da jouissance. (Žižek, 1999[2016], p. 18)

O sujeito lacaniano pela inscrição de um furo no simbólico (castração), de uma fratura intervalar (divisão do sujeito pelo sintoma), posiciona-se como uma resposta do real. A castração é, portanto, o pivô da divisão do sujeito que a lógica do fantasma impõe como resposta sintomática. Até o seminário sobre "A Lógica do Fantasma", o que estava em jogo eram as variações da "subversão" do sujeito, que colocava em seu centro gravitacional, a verdade do cogito ergo sum para além da res cogitans, da substância pensante, sendo que encontrava-se imbricada entre o ser e o logos. O cogito cartesiano estava posto no eixo da subversão freudiana, que o deduzia como mutilado pelo inconsciente estruturado como uma linguagem, portanto, suposto entre a cadeia do enunciado e a cadeia da enunciação, como ser descentrado do pensamento: "não sou onde penso". Isso evocava que "o núcleo do ser ("Kern unseres Wesens") não está em minha (auto)consciência" (Žižek, 1999[2016], p. 18).

No entanto, Lacan estava em vias de superar um suposto irracionalismo erigido no mais obscuro hiato entre pensamento e linguagem, um contrapeso incômodo com a tese central que defendia uma espécie de superfície na lógica do significante, em sua definição invariável de que o inconsciente freudiano se estruturava discursivamente como uma linguagem. Isto é, no ponto exato de que o inconsciente é o discurso do Outro. Nada mais racional do que esse posicionamento lacaniano que pensava uma instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.

O balanço final de toda essa epopeia em torno do cogito cartesiano justifica-se pelo fato de que o caminho preciso e o horizonte almejado estavam postos na articulação disjunta entre pensamento inconsciente e ser, no qual "penso onde não sou", o que

[...] descentra o pensamento em relação a meu Ser, a percepção da minha total presença: o Inconsciente é um Outro Lugar puramente virtual (in-existente, insistente) que escapa a meu ser. Há uma pontuação diferente aqui: "Penso: 'logo sou'" - meu Ser reduzido a uma ilusão gerada pelo meu pensamento etc. O que todas essas versões têm em comum é a ênfase na lacuna que separa cogito do sum, pensamento de ser - o objetivo de Lacan era solapar a ilusão da justaposição, apontando a fissura na aparente homogeneidade de pensamento-ser. Foi apenas mais para o fim de seu ensino que Lacan insistiu nessa justaposição - negativa, é claro. Ou seja, Lacan finalmente apreende o ponto zero mais radical do cogito cartesiano como o ponto da interseção negativa entre ser e pensar: o ponto de fuga no qual não penso e não sou. Não sou: não sou uma substância, uma coisa, um ente, estou reduzido a um vazio na ordem do ser, uma lacuna, a uma béance. [...] Não penso: aqui, mais uma vez, Lacan paradoxalmente aceita a tese de Heidegger de que a ciência (moderna, matematizada) "não pensa" - mas, para ele, isso significa precisamente que ela rompe com o quadro da ontologia, do pensamento como logos correlativo ao Ser. Como puro cogito, eu não penso, sou reduzido à "puro(a) (forma de) pensamento", que coincide com seu oposto, isto é, não tem conteúdo e, como tal, é não-pensar. (Žižek, 1999[2016], pp.18-19)

Esse reviramento do cogito cartesiano situa uma divisão não redutível ao significante. Em "A Lógica do Fantasma", Lacan (1966-67[2008]) conduz suas reflexões sobre o ser do sujeito equivalente ao objeto a: causa dessa divisão primordial e consistência lógica para a fenda aberta pelo significante. Lacan estava interessado em situar uma articulação fundamental entre uma lógica do fantasma e uma lógica do significante que posiciona o sujeito, respectivamente, em fading pelo objeto e em clivagem pelo significante.

Na verdade, o que se produz no interior dessa dupla divisão é uma conjunção disjunta do inconsciente estruturado como uma linguagem e do campo pulsional como centro dos paradoxos da satisfação (real do gozo). O sujeito, portanto, desponta como produto da linguagem, o que não deixa de implicar os efeitos de perda. Justamente nesse ponto em que as sessões do objeto a colocam sob a rubrica das quedas do gozo o lugar no qual o ser do sujeito se sustenta. Assim, o objeto a diz respeito ao ser do sujeito (Dasein) neurótico, na medida em que sutura sua falta-a-ser, e isso por intermédio de sua extração corporal, que coloca o gozo significantizado pelo falo. A operação de alienação do sujeito pelo significante encontra seu ponto de esteio na operação de separação, justamente o que permite, pela via do objeto cedido, o enquadramento do gozo (Cottet, 1987[1989]).

A reinterpretação do cogito cartesiano pela lógica do fantasma evidencia a antinomia que situa o ser do sujeito (objeto a) disjunto do pensamento (inconsciente). Nesse sentido, ambos são articulados logicamente pela experiência analítica que posiciona o gozo como aquilo que não pode ser inteiramente subjetivável. A dedução lógica extraída do fantasma ($◊a) tenta recobrir um impossível por meio do dispositivo da escuta analítica sobre as leis do significante. No entanto, é fora das coordenadas do pensamento que se situa o ser do sujeito. Desse modo, surge uma escolha forçada: ou "eu penso, logo não sou" ou "eu sou, logo não penso". Assim, é nessa não proporcionalidade entre o ser e o pensar que no plano lógico se traduz um redobramento (pulsional e linguageiro) de uma impotência por um impossível (Cottet, 1987[1989]).

O objeto a esteio do ser será representado por um vazio. Com isso, declinam-se duas direções disjuntas. Em primeiro lugar, o "não penso" coloca o sujeito diante do gozo do ser, em segundo lugar, o inconsciente suspenso do gozo do ser encontra seu lugar na queixa neurótica, que pelo "não sou", posiciona o pensamento em seu falso ser (Cottet, 1987[1989]).

O saldo obtido desse raciocínio lacaniano coloca que o sujeito dividido (entre o ser e o pensar) é animado por uma escolha forçada. Por um lado, o que fica delineado é a ausência que invoca uma presença, na medida em que "não se pode não escolher", ou seja, o que se ganha de um lado se perde do outro (Cottet, 1987[1989]). Essas são figuras que aparecem repetidamente no ensino de Lacan: "o ser ou o sentido" (1960[1998]), "a bolsa ou a vida" (1964[2008]), "o ser ou o pensar" (1966-67[2008]), "ou não sou, ou não penso" (1967-68). Por outro lado, não importa o que se escolha, sempre se perde alguma coisa. A escolha do "pensamento inconsciente" exclui o "ser do gozo", já a escolha do "ser" é "não pensar".

Esse raciocínio deduz que o cogito cartesiano antecipa o sujeito suposto do saber em virtude de uma antinomia entre ser e pensamento. O eu é lançado em uma encruzilhada, sendo, assim, torturado pelo binário do "eu penso", "logo (eu) sou". Nessa via, o cogito é reinterpretado pelas leis da lógica (De Morgan) e pela estrutura do grupo de Klein. Portanto, encontra-se mutilado pelas coordenadas da escolha forçada: "ou eu não penso", "ou eu não sou" (Lacan, 1967-1968).

Não obstante, o percurso analítico não conduz o sujeito a uma resignação do desejo como falta, na qual a castração (-φ) é o símbolo impotente, muito menos se propõe a completar sua hiância subjetiva, ou ainda reforçar sua alienação estrutural a uma suposta alienação aos ideais do analista como Outro continente. Antes, sua função de objeto a (causa de desejo) conduz o tratamento analítico para uma destituição subjetiva, uma travessia dos envelopes imaginários do fantasma. Diante desse movimento, o sujeito se separa dos significantes da sua falta-a-ser. Fazendo isso, nessa separação, o tratamento analítico acentua a densidade do ser, tendo em vista que o Dasein só pode posicionar o sujeito e deslocar sua falta situando-o como a no nível do desejo do Outro. Nesse ponto de vista, a separação diz da divisão do sujeito, na medida em que o percurso analítico tende a privilegiar um sentido da falta sobre o Outro, S(Ⱥ) (Cottet, 1987[1989]).

Esse caminho produz uma reflexão sobre o lugar que o sujeito ocupa no ensino de Lacan. O sujeito não é uma substância evanescente resignado à intricada rede da linguagem, que funciona com uma trilha infinita para atingir o seu ser. Ele é, na verdade, uma resposta do real (Cottet, 1987[1989]). Da grande pergunta cartesiana "quem sou?", entabulou-se uma resposta, também cartesiana, "sou uma res cogitans (coisa pensante)". No entanto, Lacan suscitou outra pergunta "quem sou no desejo do Outro?", ao que elaborou uma resposta do Real: "sou o objeto a, ser de gozo".

Portanto, a afirmação lacaniana de que o sujeito sobre o qual a Psicanálise opera é o da ciência também indica que "o sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto" (Lacan, 1966a[1998], p. 875). Dessa forma, se pela via do sujeito a Psicanálise se aproxima da ciência, pela via do objeto (Real do gozo) se afasta definitivamente, assim, "no tocante ao objeto, observa-se, ao contrário, um ponto de disjunção essencial" (Santiago, 2001, p. 147), já que "esse resto da libido não-assimilável à decifração leva Lacan a isolar, sob forma de conceito, o ponto de disjunção radical entre a ciência e a psicanálise, ou seja, o gozo" (Santiago, 2001, p. 147), tendo em vista que o gozo traduz o conceito de objeto em Psicanálise. Com efeito, é na não representação que a vertente real do gozo pode comparecer, já que, ao ser incluído no simbólico pela operação significante, algo fica de fora: o objeto a em sua dimensão de extração corporal e consistência lógica.

O tratamento analítico, portanto, constata esse furo no simbólico como uma impossibilidade do ser falante, revelando o real em jogo, do qual se encarrega a ética da Psicanálise, e assim a práxis analítica é fundamentada na dimensão ética da experiência real do sujeito, daquilo que direciona tanto a escuta analítica quanto a própria condução do tratamento (Alberti & Erlich, 2008).

A Psicanálise, desse modo, pretende-se incompleta, fundada na dimensão ética do desejo e do bem-dizer: o sintoma. E enquanto discurso do singular, abre espaço para questionar aquelas formas que se pretendem fechadas numa totalização normativa. No entanto, isso não quer dizer que a Psicanálise está solta no deserto do real, pois diante de sua exterioridade radical (Real), o simbólico é o esteio que formata o imaginário, estruturando assim a realidade. O sujeito, portanto, está posto em uma rede simbólica envolvida pelo desejo do Outro. Esse Outro, ao barrar o objeto a, confere uma função de estruturação da realidade para o sujeito. Assim, o campo da realidade se sustenta e recebe seu enquadramento pela extração do objeto a (objeto real da pulsão).

O sujeito, inicialmente, "é definido como equivalente à falta de um significante que diga o que ele é: o sujeito é um significante pulado da cadeia, falta-a-ser" (Quinet, 2006, p. 25). Aqui fica evidente a emblemática elaboração lacaniana que posiciona o sujeito representado pelo significante (Lacan, 1960[1998]). Nesse sentido, Lacan recorre às leis da linguagem para definir a constituição do sujeito do inconsciente - "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1964[2008], p. 27). O sujeito é suposto na cadeia significante, sendo, portanto, representado no intervalo dessa cadeia, S1 e S2. Dito de outra maneira: o significante-mestre (S1) representa o traço unário, marca da identificação simbólica do sujeito ao campo do Outro (S2), isto é, o significante binário para o qual o sujeito está representado.

Todavia, o conceito de sujeito em Lacan força uma passagem do campo da linguagem para o campo do gozo.10 Seguindo a inspiração lacaniana, nota-se como a formalização da teoria dos discursos (modos de aparelhar o gozo), produz certa escansão na conceitualização do sujeito. O sujeito não se reduz a ser definido e abordado pela divisão (Spaltung), na medida em que desponta como efeito do objeto, a saber, "efeito do gozo da repetição significante que aparece como falasser. O sujeito, no campo do gozo, participa do real" (Quinet, 2006, p. 28).

Se no campo da linguagem evidencia-se o jogo de possibilidades e impossibilidades inscritas no próprio simbólico, por outro lado, no campo do gozo, a articulação se desenha a partir do real como impossível, isto é, o impossível de ser suportado que marca o não simbolizável.11

Lacan (1969-70[1992]), com sua teoria dos discursos, evoca os três impossíveis abordados por Freud (o governar, o educar e o analisar) e lhe acrescenta um quarto, a saber, o fazer desejar. Com isso, aborda os impossíveis que estruturam o ordenamento do gozo pela via dos laços sociais, expressos nas formas estruturais dos discursos: do mestre, do universitário, do analista e da histérica. Dessa forma, no campo do gozo, "o mal-estar é representado, nos discursos, por esse elemento heterogêneo, o objeto a, que significa a parte excluída da linguagem e aquilo a que a civilização exige do homem renunciar, ou seja, a pulsão, redefinida neste campo como a deriva do gozo" (Quinet, 2006, p. 28).

Destarte, o sujeito ($) abordado no campo do gozo ainda guarda a especificidade de ser definido como irrepresentável, isto é, o significante evanescente, barrado, riscado, pulado na cadeia. Ou seja, ele ex-siste em relação à cadeia que se coloca, isso quer dizer que é ex-cêntrico à rede significante. Dito de outro modo, "o sujeito no campo do gozo é aquele que é produzido retroativamente pela insistência da cadeia de significantes como repetição. O sujeito é uma resposta do real da repetição significante do gozo"12 (Quinet, 2006, p. 32).

O real que escapa às teorizações, sistematizações e formalizações aponta para o próprio limite do discurso da ciência, que em sua démarche segregativa caminha a passos largos para tentar colonizar o real pelo simbólico (formalismo significante). Na verdade, a ciência tentar foracluir do real o gozo, para determinar um saber que seja estritamente conceituável. Já a Psicanálise pretende ocupar-se do real do gozo, isto é, do impossível da totalização conceitual. Com efeito, se a ciência exclui o sujeito por ela inaugurado, a Psicanálise, por outro lado, o inclui em seu campo operatório, pela subversão que o reconhece como sujeito do inconsciente (Alberti & Erlich, 2008).

Nesse contexto, consideramos que a ciência faz um recorte ali onde o simbólico nomeia os fenômenos, na dimensão das representações, deixando de fora de seu campo o que não pode ser nomeado. No entanto, o sujeito busca análise quando, pela emergência do real, seu recurso simbólico falha. Para a Psicanálise, se o simbólico serve ao sujeito para nomear, ele também falha, permitindo que o furo real da estrutura psíquica apareça (Alberti & Erlich, 2008).

Aqui nos referimos à castração que incide sobre o Outro e o gozo sexual que dela decorre. Justamente o gozo fálico "traz a marca de um significante faltoso e fora do sistema, que é o significante fálico" (Santiago, 2001, p. 180). A operação desse significante coloca um limite ao gozo do Outro, conferindo uma possibilidade de apaziguamento, que Lacan traduz como as chamadas relações diplomáticas com o gozo (Lacan, 1968-69[2008]). E isso está posto sob a rubrica de um efeito discursivo, que exige a presença desse semblante princeps do falo. Dito de outra maneira, "essa exigência recai sobre a necessidade da presença do falo como resposta à efetiva inscrição da castração no campo do Outro" (Santiago, 2001, p. 180).

Vale lembrar que o psicótico, sendo o fora-de-discurso, não deixa de ser um mestre da linguagem, isto é, seu gozo não está ordenado pela significação fálica (Die Bedeutung des Phallus). Considera-se, portanto, que o psicótico mais do que habitar a linguagem é habitado por ela. Se por um lado a especificidade do gozo sexual na neurose, enquanto fálico, está ancorado e determinado na linguagem, ou seja, é tributário do significante fálico, por outro lado, a exclusão dessa significação fálica do sistema simbólico do sujeito psicótico faz surgir o real do gozo sexual como algo que não é simbolizado e nem simbolizável (Santiago, 2001).

 

 

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Endereço para correspondência
Isaias Gonçalves Ferreira
E-mail: ferreira.is@hotmail.com

 

 

*Mestre em Psicologia Social pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicólogo e Psicanalista. Membro do Movimento Psicanalítico do ABC - São Paulo. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Grande ABC - São Paulo (Fórum em formação).
1De acordo com Dunker (2015) a escolha da paranoia como paradigma clínico da tese de doutorado de Lacan se justifica, pelo menos, por três motivos: a) a hipótese da reversibilidade, que aspirava um processo terapêutico de cura para certos casos de paranoia; b) o entendimento de que o sofrimento psíquico da paranoia estava imbricado com elementos articuladores do laço social, por exemplo, as formas de controle e de vigilância como modalidades de estruturação da socialização, sendo que, uma "vida cada vez mais administrada é também uma vida cada vez mais paranoica" (p. 339); c) a própria conceituação da paranoia, que despontava como um protótipo exemplar na psicopatologia psiquiátrica, tendo em vista que, à exceção da desorganização do pensamento, observava-se clinicamente a preservação de quase todas as funções psíquicas.
2Para uma visão pormenorizada sobre esse assunto, recomendamos o monumental livro de Jean Allouch (1997/2005), que de forma seminal produziu uma reconstrução rigorosa e exaustiva sobre o caso Aimée, ou como preferiu nomear a "Aimée de Lacan".
3Com efeito, pode ser entendido com um escrito precursor do ensino de Lacan, sendo que esse texto só não foi inserido nos Écrits por iniciativa de seu editor (François Wahl), devido sua extensão (Miller, 1984/2005). Na minha opinião, o que se produziu, ou seja, seu saldo final não pode ser reduzido a apenas um artigo de enciclopédia, que fora solicitado a um jovem psiquiatra por um renomado professor de Psicologia, tendo em vista que esse texto foi solicitado a Lacan por Henri Wallon, com o objetivo de inclui-lo na secção sobre "a família" no contexto de uma "vida mental", numa série que ainda contava com textos de outros autores sobre a "escola" e a "profissão". Portanto, faz parte do Tomo VII da Encyclopédie Française, que foi publicado originalmente em março de 1938. O texto intitulado Les complexes familiaux dans la formation de l'individu foi objeto de uma publicação avulsa em 1984 pela Navarin, e posteriormente em 2001 foi inserido em Autres Écrits pela Seuil (pp. 23-84). Já a versão brasileira, "Os complexos familiares na formação do indivíduo", encontra-se inserida nos Outros Escritos (pp. 29-90) pela Zahar em 2003.
4Vale lembrar que esse apontamento deve ser considerado levando em consideração o entendimento de que para a Psicanálise lacaniana o ser falante é constituído pelo perpassar da linguagem, portanto, anterior à categorização do sujeito como produto da modernidade. A renúncia ao gozo, nesse sentido, sempre esteve presente na história do ser falante - ver, por exemplo, o apólogo platônico-hegeliano do senhor e do escravo, expresso na renúncia ao gozo como condição da luta pela vida -, o que ocorreu de novo foi que o discurso da ciência moderna (Descartes), aliada ao capitalismo emergente, fez do saber um meio de gozo, isto é, engendrou um discurso que promove a produção pela via da renúncia ao gozo. Dito de outra maneira, utilizou-se da renúncia (ao gozo) para produzir os objetos de recuperação de fragmentos do gozo (Rabinovich, 1989/1992).
5A influência do pensamento hegeliano no ensino de Lacan é inegável, já que Hegel desenvolveu ao longo de sua Filosofia uma importante teoria do desejo (Safatle, 2006). Porém é necessário lembrar que Lacan apresenta uma autonomia de reflexão, no que se refere à teoria do desejo, ou seja, faz um movimento de ir além das apropriações da Filosofia hegeliana, obtidas em sua participação no seminário de leitura da Fenomenologia do Espírito organizado por Kojève.
6Uma indagação torna-se necessária: o enquadre teórico de Kojève permitiria, apenas, reflexões sobre o registro imaginário na dialética do reconhecimento ou é possível identificar, por meio das dimensões do trabalho, do desejo e da linguagem o registro simbólico presente na construção de sua teoria do desejo? (Safatle, 2006).
7Safatle (2006) defende que Lacan não reconheceu em Hegel uma preocupação especificamente com o Simbólico. Com isso, não percebeu que na Filosofia hegeliana a irredutibilidade da interioridade está expressa em sua exteriorização, nas dimensões da linguagem, do trabalho e do desejo. Isto é, o que representa o tecido social na teoria hegeliana do desejo. Com efeito: "Eis o resultado de reduzir a Filosofia hegeliana ao motivo do conflito presente na Dialética do Senhor e do Escravo em sua versão kojèviana. Se Lacan levasse realmente em conta o papel do trabalho, ele perceberia que o reconhecimento das consciências pressupõe necessariamente uma passagem à dimensão simbólico-social que nada tem de imaginário no sentido lacaniano. O trabalho pressupõe a mediação do sujeito por um objeto que não é apenas reconhecido por outra consciência, mas pelo Outro simbólico como, por exemplo, sistema de necessidades que expõe o vínculo social. É claro, este Outro hegeliano não é totalmente simétrico ao Outro lacaniano, mas ele não se confunde com a dimensão da pura relação ao outro" (Safatle, 2006, p. 93).
8Nas palavras de Lacan, podemos entender a autonomia de seu pensamento no que se refere à teoria do desejo: "Se eu disse que o inconsciente é o discurso do Outro com maiúscula, foi para apontar o para-além em que se ata o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento" (Lacan, 1957[1998], p. 529). Em outro lugar Lacan (1962-1963[2005], p. 358) complementa esse raciocínio postulando que "[...] a estrutura da relação do desejo como desejo do Outro, no sentido que lhes ensino, opõe-se à estrutura em que ela se articula, define-se ou até se algebriza na dialética hegeliana".
9A falha a que Lacan se refere é o deficit intrínseco da lógica da predicação, que denuncia as torções entre o universal e o particular. Pode-se notar essa problemática que Lacan evoca nas palavras do próprio Hegel (1807[2012], p.70): "Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto mais insignificante; [época] em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima".
10Nessa perspectiva, Pacheco Filho (2012) propõe um enfoque sobre as relações entre sujeito e sociedade, que sustenta a ocorrência de mudanças nas discursividades (transformações discursivas) - em vez de apressar-se em análises que pretendem abordar mudanças na estrutura do sujeito -, já que o estatuto do sujeito lacaniano faz coexistir simbioticamente em seu bojo o psíquico e o social (teoria dos discursos). Essa consideração converge para a reflexão de que a conceituação do sujeito, segundo a Psicanálise lacaniana, deve ser pautada por um rigor teórico imprescindível, mas também pela efetividade das considerações clínicas. Assim, é preciso ter sempre em vista que a Psicanálise se constituiu em uma dialética entre prática clínica e escopo teórico. Portanto, no limiar desse contexto epistemológico, tornou-se possível à Psicanálise abordar a conceituação do seu sujeito, bem como o desenvolvimento de sua teoria do desejo - o sujeito do desejo inconsciente - articulada ao ordenamento discursivo do gozo (campo do gozo).
11Assim, se por um lado "o real se inscreve na estrutura simbólica" como aquilo que sempre retorna ao mesmo lugar, por outro, "a própria estrutura é o real", sendo que o campo do Outro é em forma do objeto a. Dito de outra maneira, diante dessa conjugação do intimo com a exterioridade radical (a extimidade do objeto a), posiciona-se o significante-mestre (S1) como aquilo que representa o sujeito ($) (resposta do real) para outro significante (S2). Nesse sentido, o sujeito, por assim dizer, em um estado entrópico, recupera fragmentos do gozo e, com isso, reitera a sua perda (Lacan, 1968-1969[2008]).
12Soler (2012) localiza uma passagem decisiva referente à definição de sujeito em Lacan. Ora, se por um lado o sujeito como resposta do simbólico surge como efeito de significação, por outro, em O aturdito, ele será identificado como resposta do real. Isto é, Lacan procurou formalizar a estrutura do sujeito aturdido diante do "significante da falta do Outro". E a própria lógica matemática e o recurso a topologia situam a impossibilidade mesma de dizer a verdade do real, da qual a Psicanálise fundamenta seu campo como um discurso sem palavras, naquilo que constitui a estrutura do não-todo da significação. Assim, o simbólico não se confunde com o real, no sentido exato de que a estrutura sendo o próprio real posiciona o impossível que subsiste como ex-sistência do dizer.

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