SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número17Horizontes de compreensão acerca das transexualidades: a Psicanálise entre o olhar médico e queerO que pode a Psicanálise diante do adoecimento do corpo?: considerações sobre a escuta do sujeito no hospital índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.9 no.17 São João del Rei jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

O desmentido em questão na Psicanálise contemporânea

 

The Denial in Issue in Contemporary Psychoanalysis

 

Le refus en question en Psychoanalyse contemporaine

 

La renegación en cuestión en la Psicoanálisis contemporánea

 

 

Rogerio Quintella*

IUniversidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Situo, neste artigo, a problemática do desmentido na Psicanálise contemporânea, apresentando inicialmente teorizações diversas sobre os sintomas impulsivo-compulsivos e toxicomaníacos supostamente ligados ao desmentido da castração primário e à perversão. Por meio da distinção entre castração e privação, proponho um caminho distinto, aprofundando a ideia de um desmentido da privação contemporâneo que toma a passagem do segundo ao terceiro tempo edipiano como cerne no problema. Avanço buscando demonstrar que eles são respostas ao mandado de gozar na sociedade de consumo, ligado ao desmentido da privação infantil. As mercadorias/latusas pensadas por Marx e Lacan colocam o sujeito em posição de possuidor-objeto diante dos imperativos de gozo. Os sintomas contemporâneos são formas de o sujeito dar um basta nisso, fazendo obstáculo ao gozo do Outro nessa engrenagem, bem diferente da perversão, que visa garantir o gozo do Outro.

Palavras-chave: Contemporaneidade, Desmentido da privação, Desmentido da castração, Perversão, Neurose.


ABSTRACT

In this article, I situate the matter of denial of deprivation in contemporary psychoanalysis, initially presenting various theorizations about the impulsive-compulsive and drug addiction symptoms supposedly linked to the primary denial of castration and perversion. Through the distinction between castration and deprivation, I propose a distinct path, deepening the idea of a contemporary denial of deprivation that takes the passage from the second to the third Oedipal period as the core of the matter. Advance trying to demonstrate that they are responses to the imperative of jouissance in the consumer society, linked to the denial of child deprivation. The goods/latusas thought by Marx and Lacan put the subject in the position of possessor-object before the imperatives of jouissance. Contemporary symptoms are ways for the subject to put an end to this, hindering the jouissance of the Other in this gear, quite different from the perversion that aims to guarantee the jouissance of the Other.

Keywords: Contemporary, Denial of deprivation, Denial of castration, Perversion, Neurosis.


RÉSUMÉ

Dans cet article, je situe le problème du refus dans la psychanalyse contemporaine, en présentant dans un premier temps différentes théories sur les symptômes impulsifs-compulsifs et de toxicomanie supposés liés au refus de la castration primaire et de la perversion. À travers la distinction entre castration et privation, je propose une voie différente, approfondissant l'idée d'un refus de la privation contemporaine. Le point central est la passage de la deuxième à la troisième temps œdipienne. Je continue en essayant de démontrer que elles sont des réponses au impératif de jouissance dans la société de consommation, lié au refus de la privation. Les biens de consommation/latusas pensés par Marx et Lacan mettent le sujet en position de possesseur-objet avant les impératifs de jouissance. Les symptômes contemporains sont des façon de mettre une barrière, faire obstacle la jouissance de l'Autre, différente de la perversion qui vise à assurer la jouissance de l'Autre.

Mots-clés: Contemporain, Refus de la privation, Refus de la castration, Perversion, Névrose.


RESUMEN

En este artículo, sitúo el problema de la renegación en el psicoanálisis contemporáneo, presentando en primer lugar diferentes teorías sobre los síntomas impulsivo-compulsivos y la drogadicción, supuestamente relacionadas con la renegación de la castración primaria y la perversión. A través de la distinción entre castración y privación, propongo un camino diferente, profundizando la idea de una renegación de la privación contemporánea que localiza en el pasaje del segundo al tercer período edípico como el núcleo del problema. Avanzo intentando demostrar que ellos son respuestas al imperativo del goce en la sociedad de consumo, ligados a la renegación de la privación infantil. Los bienes de consumo/latusas pensados por Marx y Lacan sitúan al sujeto en la posición de poseedor-objeto ante los imperativos del goce. Los síntomas contemporáneos son formas que tiene el sujeto de poner fin a esto, haciendo barrera a l goce del Otro en este engranaje, muy diferente a la perversión que pretende garantizar el goce del Otro.

Palabras claves: Contemporáneo, Renegación de la privación, Renegación de la castración, Perversión, Neurosis.


 

 

Introdução

Em sua célebre incursão sobre o fetichismo, Freud (1924/1996) situou o problema do desmentido como base fundamental para pensar o cerne da constituição perversa. Na perversão o sujeito recusa um fragmento de realidade pautado na percepção da falta de pênis na mãe, substituindo essa falta por um objeto simbólico que venha supri-la no corpo do outro. Esse objeto é o fetiche como substituto do falo enquanto operador simbólico da castração, que funciona como um significante articulador da dialética ter/não ter na organização sexual infantil.

Essa recusa (Verleulung), entendida pela Psicanálise como desmentido, seria o operador fundamental da dinâmica perversa, constituindo-se aí mesmo o cerne dessa estrutura. O perverso se atém ao fetiche como fundamento de seu próprio ser na fantasia, tratando-o como sustentáculo da garantia de gozo, como um objeto para o qual o sujeito se dirige de maneira fixa, inseparável e indispensável.

Alguns autores contemporâneos têm trazido à baila a questão do desmentido e da perversão para discutirem sobre o que estaria em jogo em sofrimentos psíquicos impulsivo-compulsivos como o comer em excesso, a anorexia, a toxicomania, a bulimia etc. Muitos desses autores, como Briman (1999), Glover (citado por Santiago, 1993), defendem que a toxicomania, por exemplo, seria uma manifestação da perversão, funcionando o objeto droga como um fetiche. Jamet (1993) aborda a bulimia e a anorexia como manifestações da perversão. Por outra via, autoras como Lígia Bittencourt (1993) concebem a toxicomania como um fenômeno que pode aparecer em qualquer estrutura. Numa concepção diversa, Sônia Alberti et al. (2003) tratam a experiência toxicômana como um sintoma, defendendo que, apesar da ruptura com o gozo fálico, a toxicomania é um substituto de satisfação pulsional bem característico do sintoma neurótico, com suas especificidades. Diana Rabinovich (2004), numa linha próxima, trabalha a questão das impulsões contemporâneas como a bulimia distinguindo-a da perversão.

Outros autores se pautam numa concepção mais ampla: haveria uma nova economia psíquica na experiência subjetiva atual, que toma a perversão como paradigma da aplicação pulsional e uma generalizada forma perversa de satisfação na experiência do sujeito contemporâneo. São pensadores como Charles Melman (2003) e J-Pierre Lebrun (2008).

Para Melman, haveria na cena psíquica uma nova forma de o sujeito lidar com o gozo nas experiências de excesso em que as forças que sobrepujam a castração operariam de uma forma própria da economia perversa, o que leva o autor a falar em uma perversão generalizada no contemporâneo, um gozar a qualquer preço como nova forma de economia psíquica humana. Se na época de Freud a economia psíquica girava em torno das questões da neurose, atualmente seria a perversão o eixo para se pensar essa nova economia psíquica, para Melman (2003).

Lebrun parece dar outra ênfase à questão, buscando uma distinção entre o que seria da ordem de uma perversão como estrutura psíquica daquilo que ele nomeia perversão comum. Deveras situado numa linha próxima à de Melman, Lebrun propõe algo diverso na discussão sobre o desmentido na atualidade. Para o autor o desmentido ganha um destaque importante na forma como os sintomas contemporâneos se organizam, bem como a relação disso com a sociedade de consumo, que teria na sua base uma proposta de gozar sem entraves (Lebrun, 2008). Esse circuito Lebrun associa a uma crise de legitimidade da autoridade familiar que antes impunha a renúncia pulsional, a identificação e o enlaçamento social. Hoje a legitimidade dos pais se acha falida.1

Para Lebrun, isso implicaria numa retomada da primeira verleulung, do primeiro desmentido de toda criança, que precederia o desmentido propriamente perverso. Lebrun localiza isso na consideração freudiana sobre as teorias sexuais infantis acerca da questão da ausência de pênis na mãe e da angústia de castração. Num primeiro momento, as crianças (meninas e meninos) desmentem a falta e acreditam que o pênis é pequeno e um dia vai crescer. As crianças creditam essa fantasia na constatação de que há um pequeno pênis no menino e na menina, na medida em que o clitóris começa a despertar prazer como, também, um pequeno pênis, na fantasia. Comparam ao grande pênis do pai. Para ambos os sexos, independentemente da forma como cada um vai resolver essa equação infantil, o pequeno órgão de prazer é sempre insuficiente para satisfazer a mãe e dar-lhe um complemento. A lei do incesto articula isso a partir da constituição simbólica da impossibilidade de dirigir a pulsão genital à mãe - disso resulta o complexo de castração. É por isso mesmo que o falo se constitui aí, não como órgão, mas como um pênis cortado na experiência fantasística de ambos os sexos - inscrição de um significante da falta. Diante do desejo da mãe, menina e menino deparam-se com a incompletude e se veem na difícil tarefa de aceitar a castração, sua inferioridade em relação ao Pai mítico que está no cerne da geração da criança (afinal, foi de uma transa da mãe com o pai que a criança nasceu). O Pai como uma lei - não um homem - organiza o desejo da mãe e ocupa, nesses termos, uma posição simbólica de exceção: o promulgador da lei, não-castrado.

Lebrun vai chamar atenção, então, para o fato de que para toda criança há um desmentido primário: "não há falta, vai crescer". Somente diante desse impasse é que a criança inscreve a castração, recalcando o elemento faltoso que funda uma série associativa (neurose), ou desmentindo esse elemento e vivendo em função de recusar toda experiência de falta na relação ao Outro (perversão).2

Lebrun vai defender então a existência de uma "perversão comum", própria da experiência subjetiva de nosso tempo, em que o sujeito toma como referência o momento primordial da lei, em que a criança se depara com a diferença sexual: toda criança, no início, desmente, fazendo-se de falo da mãe, de objeto que falta à mãe. Na nossa leitura, isso é o que constitui precisamente o primeiro tempo do complexo de Édipo, esse momento de identificação ao falo e desmentido primário ("um dia o lulu de todo mundo vai crescer e poderá ser ofertado como complemento da mamãe").

Contudo verificamos um problema aqui, que parte do princípio de que o desmentido da castração é uma operação psíquica primária que organiza a perversão. Lebrun considera que há algo da perversão nas experiências contemporâneas, distinto da estrutura perversa. Entretanto, se há um desmentido primário da castração, é a ele que o sujeito contemporâneo (ou neossujeito) se ancora para experienciar seu "gozar sem entraves"? Se há um desmentido primário da castração e algo disso se mantém, estamos ou não estamos falando de perversão propriamente dita? Para Lebrun (2008, p. 258), "a Verleulung inicial - normal segundo Freud - vai progressivamente ceder lugar ao levar em conta a realidade". Ora, se cede à realidade, então estamos falando de neurose; se não cede à realidade, então estamos nos referindo à perversão, na qual o sujeito se estrutura a partir de um desmentido dessa percepção da falta de pênis na mãe. É nesse ponto que o perverso se fixa, não cedendo à realidade, desmentindo a castração. Sob esse ponto de vista não se pode falar numa "perversão comum" do sujeito contemporâneo diferente de uma perversão estrutural.

Lebrun (2008, p. 272) se pauta na distinção entre usar o desmentido da castração para "evitar a subjetivação" (perversão comum) e "tomá-lo como fundamento de sua existência" (estrutura perversa). Que apareça na clínica sujeitos que evitam a subjetivação, não se pode negar. Contudo consideramos que Lebrun esbarra num problema a nosso ver difícil de transpor, ao situar a chamada "perversão comum" na mesma linha de constituição do perverso, qual seja, o desmentido da castração - base de toda alienação perversa -, o que leva a uma inconsistência teórica e não resolve o problema, abrindo caminho a possíveis confusões clínicas.

Aqui ressituamos o problema do desmentido na atualidade: os diversos autores que têm abordado a questão do desmentido, bem como da redutibilidade dos casos atuais ao campo da perversão, não trabalham a distinção de Lacan entre castração, privação e frustração. Penso que resida aí, de um ponto de vista lógico, uma saída para essa problemática. É o que buscaremos demonstrar.

 

Perversão, sem disfarces

Antes de adentrarmos este caminho, proponho uma delimitação mais detida sobre a questão da perversão. A Psicanálise, na sua própria construção lógica a partir da escuta clínica, situa importantes liames entre neurose e perversão. São estruturas que se relacionam entre si e apresentam diversas linhas tênues. É nesse sentido que Maria Helena Coelho Martinho (2011), em sua tese Perversão: um fazer gozar, opera um primoroso percurso a respeito dessas linhas tênues, delineando de maneira rigorosa o que seja, por fim, a perversão propriamente dita e sua diferença em relação à neurose.

É preciso partir do ponto de vista de que na perversão há o propósito desmentir a castração: o perverso toma a Lei simbólica como ponto de referência fundamental de sua forma transgressiva de existir, sua forma de tentar garantir, de todas as maneiras, o gozo do Outro.

Retomando as nossas considerações iniciais, no fetiche perverso - que se diferencia das brincadeiras do neurótico no uso de apetrechos sexuais com outra pessoa -, é o próprio objeto o ponto de mira da satisfação sexual, não a outra pessoa. O fetiche é a garantia de um grande Outro pleno, servindo como fruição de um prazer extraído do próprio objeto (uma parte do corpo, um calçado, uma trança, um colar, uma lingerie etc.). São casos de perversão em que o objeto-fetiche é o alvo fundamental da satisfação, funcionando como um pênis na mãe, simbolizado pelo fetiche. Com efeito, o objeto-fetiche mantém uma intrínseca relação com o simbólico, marcando um ponto de enlace entre o registro simbólico e o registro imaginário.

No caso do perverso sadiano - o atormentador, molestador, etc. -, Lacan (1963/1998) afirma que ali se opera uma inversão da fantasia neurótica. A fantasia manifesta a posição do perverso como um objeto, não dividido, resultante do desmentido da castração. O perverso se faz de objeto a, não como causa de desejo, mas como causa de gozo: a ◊ $. O sujeito dividido passa a ser o parceiro sadiano - a vítima.

Contudo, não se pode reduzir a ação de um carrasco qualquer, um atormentador ou mesmo um viciado em sexo à estrutura perversa. O perverso não é apenas um carrasco ou atormentador, mas alguém que se põe em posição de objeto arbitrariamente, infligindo de forma compulsiva a dor alheia por meio de um cálculo sádico. É necessário que a vítima sofra ao nível do pudor, por meio do ato calculado de forma não consentida à fruição do prazer sexual do perverso. Trata-se de infligir sofrimento em uma vítima com sinais de castidade, pudor, inocência. Trata-se de forçar o gozo da vítima, de forma a atingir seu pudor e transgredir o limite imposto por esse pudor. Em Kant com Sade, Lacan (1963/1998, pp. 782-783) observa de maneira precisa esse funcionamento, no que concerne à dor do parceiro sadiano.

Ver-se-á melhor o que ela vale para a experiência sadiana, abordando-a pelo que haveria de desconcertante no artifício dos estóicos a seu respeito: o desprezo. [...] O que mostra que o gozo é aquilo que pelo qual se modifica a experiência sadiana. Pois ele só projeta monopolizar uma vontade ao já havê-la atravessado para se instalar no mais íntimo do sujeito que ele provoca mais além, ao atingir seu pudor. Pois o pudor é ambiceptivo das conjunturas do ser: entre dois, o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro.

Martinho (2011) coloca, baseada em Lacan, que a vítima sadiana não pode ser uma vítima desavergonhada, sem pudor, sequer também um idealista, ou um masoquista, tampouco ainda alguém com traços de estoicismo. Esse tipo de vítima não é atrativa para o perverso. É necessário que a "pureza" do outro na fantasia sadiana seja violada e aviltada, de forma a fazer com que o sujeito dividido - o parceiro - goze na direção de sua própria morte. É preciso que as barreiras para o gozo do parceiro sejam rompidas nesse funcionamento. Para Lacan, o perverso faz nada menos que tecer vias de garantia do gozo do Outro. Ao fazer o sujeito gozar, "o perverso remove a barra do sujeito" (Martinho, 2011, p. 150), fazendo dele não mais um sujeito dividido, mas um sujeito-objeto, visando, com isso, uma garantia do gozo do Outro na direção da dor, do sofrimento e da morte de seu parceiro.3

Com efeito, diferentemente do neurótico, que pode até vir a transgredir, mas mantém a castração do Outro como fundamento do seu desejo e do seu sintoma, o perverso vai na direção do limitecom objetivo de transgredi-lo, como uma forma de sustentar sua própria existência. Ele se referencia no limite que faz barreira ao gozo justamente para ultrapassá-lo. Portanto, é com referência à Lei simbólica que o perverso calcula seu ato, de forma a fazer com que a castração no Outro permaneça desmentida.

Portanto, se estamos situando a experiência do sujeito contemporâneo num outro registro diferente da estrutura perversa, não podemos falar em desmentido da castração. Tampouco se trata de emprestar ao sujeito contemporâneo o caráter de uma "perversão comum" referenciada no desmentido primário da castração. O que caracteriza a perversão é o próprio desmentido da castração, e enquanto estivermos situados nesse registro conceitual estaremos falando de perversão estrutural, dado que, se ali o sujeito permanece fixado, não cede à realidade. Se cede, supera o desmentido e recalca. Não é possível se referenciar numa teoria afirmando outra de maneira diversa, com o mesmo conceito - não apenas por uma questão de rigor conceitual, mas de lógica. Não há possibilidade em falar de desmentido da castração sem falar de desmentido da lei. E não é disso que se trata com respeito ao sujeito impulsivo-compulsivo ou toxicômano na atualidade, a meu ver. O sujeito em questão não desmente lei nenhuma, é apenas um desbussolado perante seus próprios ideais.

Tratemos de avançar sobre essa questão.

 

Desmentido: da castração ou da privação?

Para retomar a questão, tomemos como ponto de partida importantes considerações de autores contemporâneos que tocam na questão da eficácia simbólica na atualidade e sua relação com os ideais de eu.4

Pensadores como Zizek (2016, p. 351) evidenciam a perda de autoridade do pai em posição de ideal:

Hoje [...] a própria função simbólica do pai é que é cada vez mais minada, isto é, está perdendo sua eficácia performativa; por isso, o pai já não é mais visto como Ideal do Eu, o portador mais ou menos fracassado, inadequado da autoridade simbólica, mas, como o eu ideal, o competidor imaginário - o resultado é que os sujeitos nunca "crescem" realmente, e hoje lidamos com indivíduos de trinta e quarenta anos que, em termos de economia psíquica, permanecem adolescentes imaturos em competição com seus pais.

Numa outra passagem da mesma obra, o autor esclarece:

É disto, portanto, que se trata a eficácia simbólica: ela diz respeito a um mínimo de "reificação" em razão da qual não basta todos nós, os indivíduos em questão, sabermos um fato para que ele se torne operativo - a instituição simbólica também deve saber "registrar" esse fato para que se sucedam as consequências performativas do ato de afirmá-lo. (Zizek, 2016, p. 343).

Se caminharmos com Zizek, poderemos localizar a imprescindível distinção entre o pai como uma lei simbólica e o pai como um ideal do eu: não obstante essas duas coisas se relacionarem, são diversas. Conforme tratei de demonstrar em As Funções do pai: p ensandoa questão da autoridade na constituição do sujeito contemporâneo a partir de um estudo psicanalítico do Ideal do Eu (Quintella, 2014), é imprescindível para a Psicanálise, desde Freud até a atualidade, operar com essas distinções que, com Lacan, ficam evidentes. E ali encontramos um importante elo de concepção que nos conduz a uma saída do escolho teórico-clínico com respeito ao sujeito contemporâneo. Conforme fica patente em Lacan, a castração se acha vinculada à lei simbólica, enquanto a privação se acha vinculada ao ideal do eu. É nesse último que se localiza o problema da reificação pontuada por Zizek: inscrita a lei e a castração no simbólico, é necessário que isso ganhe um referendo ("um mínimo de reificação") para que a operação de sua eficácia nos laços sociais ganhe força.

Acrescento que isso se acha diretamente relacionado ao pai imaginário, privador. É com essa chancela que a castração simbólica ganha valor na relação do sujeito com o desejo e o próprio simbólico. Dito de outra forma, é o pai privador que dá um referendo ao valor da Ordem simbólica inscrita como lei.

Para entendermos melhor essa equação, é necessário passarmos à importante distinção de Lacan sobre as três formas de falta e os três tempos do Édipo, a fim de localizarmos a questão do desmentido contemporâneo.

Castração, privação, frustração

Para Lacan, há uma importante relação entre a privação, a castração e a frustração que eleva o debate a um nível complexo. É na distinção estrutural entre esses três nomes da perda que rumamos na direção de um encaminhamento teórico-clínico a este esse problema.

Pai real

-

Castração simbólica

-

Objeto imaginário

Mãe simbólica

-

Frustação imaginária

-

Objeto real

Pai imaginário

-

Privação real

-

Objeto simbólico

A leitura que se faz sobre essa disposição de Lacan, no Seminário IV - - A relação de objeto, deve ser fundamentada na ideia de que a falta do objeto se apresenta ao em nível dos diferentes registros da constituição do sujeito. Isso sistematiza o que dissemos, com base em Lacan:

• o pai real é o agente da castração simbólica, tendo esta como referência um objeto imaginário (o pênis);
• a mãe, proibida de tomar a criança como objeto de sua complementação, conduz esta a uma frustração imaginária, cuja referência é um objeto real - objeto da urgência infantil ou da necessidade (seio, chupeta etc.);
• o pai imaginário na relação familiar é o pai privador - priva a mãe de satisfazer a criança implicando esta na dialética simbólica em torno do significante fálico - representante da falta. Sendo assim, a privação, operada pelo pai imaginário, é privação real, referida a um objeto simbólico (o falo).

Para Lacan, não há no Outro nenhuma garantia sobre o bom encontro, dado que, fundamentalmente, o que se acha envolvido na relação com esse Outro é um encontro faltoso que marca a impossibilidade de acesso a um objeto ideal na experiência de satisfação.

Lacan aborda a castração como um conceito-chave para se pensar a constituição do desejo na cultura. Para isso, lança mão da acepção freudiana de que é em torno da significação fálica que os dois sexos dinamizam sua condição faltosa perante a diferença. O falo é um significante capaz de dar significação para a diferença sexual, mas não se reduz a isso.

Nesse jogo da diferença, o falo constitui-se como um objeto que se instaura como um terceiro elemento na relação amorosa eu-outro, mais além dela, funcionando como referência simbólica do objeto faltoso nessa relação. Com efeito, ele opera a sustentação de todo investimento da libido, que só encontra seu esteio de aplicabilidade mediante o dom, que acede ao nível do simbólico no investimento pulsional infantil, especialmente no que diz respeito à relação com a mãe.

Trata-se aí do amor como algo que se apresenta na dinâmica libidinal, em função do que não se tem, de uma "negatividade", restando ao sujeito ofertar ao outro um "nada simbólico" que se transmite mediante objetos parciais envolvidos constantemente nessa simbólica do dom. Trata-se, no amor, de dar o que não se tem, do ponto de vista simbólico. O falo é, para Lacan, o objeto dado pelo sujeito ao outro na experiência amorosa; é esse nada simbólico que só pode ser dado como dom, a partir do qual o sujeito reconhece sua própria castração, podendo dizer ao outro: "te amo, não sou completo e em você eu devo encontrar uma resposta sobre o meu próprio ser". No ato de amar, sustenta-se ali mesmo a castração e o próprio desejo. O falo é, assim, um significante cuja inscrição atualiza constantemente o objeto faltoso, a partir do qual o amor faz prevalecer a dádiva em torno desse "nada simbólico" que representa a castração e o motivo de todo investimento da libido. Nessa relação imaginária, a perspectiva do objeto em falta, na mãe, consuma-se pela inscrição da castração simbólica. A castração é, portanto, simbólica, achando-se referida a um objeto imaginário, constatado primariamente pela criança na descoberta da diferença sexual.

Nessa dimensão, a privação na mãe é o que vem lembrar à criança de que há algo sempre além dela mesma que não se acha acessível na relação imaginária, inscrevendo-se como um "nada simbólico" para o qual a mãe dirige seu desejo. Esse objeto do desejo da mãe é aquilo que, ao mesmo tempo, sustenta paradoxalmente seu investimento amoroso sobre a criança, já com a marca da falta ali inscrita e representada por um terceiro elemento nessa relação eu-outro: o significante fálico.

Sendo assim, a castração é simbólica, porque revela o significante da falta mais-além da imagem que se constata na diferença sexual - diga-se de passagem, uma constatação nada fácil de resolver psiquicamente para o pequeno sujeito em vias de formação. E a privação, sendo real porque solapa o sujeito diante da falta, acha-se vinculada diretamente ao próprio objeto simbólico. Por esse motivo mesmo, Lacan enunciava a privação como sendo real e referida a um objeto simbólico. Dito de outra forma, a privação não é simbólica, dado que se trata de uma incidência real para o sujeito a respeito do objeto em falta no Outro, como um terceiro elemento na relação dual que possibilita a dialética na experiência do desejo: "ser ou não ser?", "ter ou não ter?" A questão do ser e do ter, em torno da dialética desejante que engendra a falta-a-ser, traduz-se por um conflito permanente em torno do qual o ideal do eu vai girar.

Do ponto de vista da frustração, esta é uma das formas como o sujeito vai experienciar a falta na relação com o desejo. Com efeito, Lacan reverbera que é com base na frustração de amor que a pulsão produz suas ressonâncias em torno do chamado "objeto real". A frustração é imaginária, evanescente e não estrutural. Ela é contingente na relação imaginária eu-outro, referindo-se, substancialmente, a esse objeto real. Lacan percorre as trilhas da relação entre a pulsão e a necessidade, tratada como urgência (Dringlichkeit), para começar a dar corpo à sua concepção da falta de objeto sob o traçado da teoria pulsional freudiana.

Diz Lacan (1957-1958/1999, p. 178):

Cada vez que há uma frustração de amor, esta é compensada pela satisfação da necessidade. [...] Um objeto real [seio, chupeta] assume sua função como parte do objeto de amor, e a pulsão se dirige ao objeto real como parte do objeto simbólico, este se torna, como objeto real, uma parte do objeto simbólico.

O pensador situa a distinção entre a necessidade e o desejo a partir da relação entre o objeto real, visado pela pulsão, e sua possibilidade de substituição com base no significante da falta. Trata-se aqui de uma espécie de "interseção" entre objeto simbólico e objeto real que condiciona a própria pulsão a uma mediação na experiência de satisfação sustentada pelo significante. Dito de outra forma, não há satisfação direta, apenas satisfações parciais marcadas pela relação entre o sujeito e o significante. Essa chancela do significante implica as três formas de falta - castração, privação frustração - na dialética desejante, que se constitui fundamentalmente pela travessia edipiana.

Caminhemos, assim, com os três tempos lógicos do Édipo e sua relação com essas três formas de falta, de maneira a avançarmos na argumentação.

 

Os três tempos do Édipo5

Em Lacan, a relação entre Édipo e ideal do eu está presente desde o momento em que o autor efetua sua releitura da obra freudiana. A lógica objetal é intrínseca ao encontro com o Outro na dinâmica edipiana e para a Psicanálise o psíquico organiza-se a partir desse encontro, cuja matriz fundamental é o complexo de Édipo.

Num primeiro tempo, trata-se da relação da criança com a lei. Vemos aqui a entrada no complexo de Édipo, em que Lacan afirma que não há Édipo sem pai. Há algo aí que perpassa desde então a própria mácula do significante, constituindo-se a fundação do sujeito como suporte da cadeia significante, determinado ao mesmo tempo pelo próprio significante. Dito de outra forma, esse primeiro tempo é o da inscrição do sujeito numa lei do significante. Trata-se aqui da relação com a frustração, em que a mãe situa sua referência ao falo. Com seu amor, a mãe frustra a criança: suas idas e vindas fazem mover as pulsões em direção ao objeto real. A lei, já se achando inscrita na mãe, inaugura para a criança a primeira triangulação, qual seja, falo-mãe-criança, que faz do falo o ponto de sustentação da identificação. Fazendo-se de falo para a mãe, o pequeno sujeito, já dividido pelo significante, dispõe da lei como traço de sua própria impossibilidade de complementar a mãe nesse jogo especular. Aqui a relação ao pai simbólico instaurou-se, fazendo evocar um pai morto, como puro traço, como significante fundador - um pai simbólico, mais poderoso do que seria se estivesse vivo.

O segundo tempo não supera o primeiro, mas, ao contrário, sela a onipotência do pai pela via da privação. O pai imaginário, no segundo tempo, não vem destruir a lei, mas cumpri-la, de modo que a mãe reconheça nele seu lugar de exceção, conferindo o peso de sua palavra. É o momento em que a privação real assume seu caráter pungente, empurrando o sujeito para a idealização do Outro I(A). Localiza-se aqui a privação como o motor do ideal do eu, de modo que a criança se dirija ao declínio do Édipo, propiciando sua destruição e entrada no período de latência. A privação é, portanto, a mola que leva a criança à instauração do ideal do eu, conferindo eficácia ao processo de simbolização. Lacan (1957-1958/1999, p. 191) salienta que "[...] toda privação real exige simbolização".

Diante da privação, a criança é então empurrada ao terceiro tempo do Édipo, em que, para não perder o pequeno lulu, "vira as costas ao complexo de Édipo" (Freud, 1925, p. 67). Trata-se aí da passagem do pai onipotente - enquanto figura imaginária da providência divina - para o pai potente, aquele que detém o falo e castra - "grande fodedor", como dizia Lacan (1959-1960/1997). Aqui o pai passa de portador do falo à condição sumária da sustentação do ideal do eu.

Assim, é importante salientar com Lacan que o pai como um ideal do eu se constitui na passagem do segundo para o terceiro tempo e o que sustenta a eficácia simbólica, cuja condição fundamental é a lei inscrita no primeiro tempo. Dito de outra forma, é na passagem do segundo para o terceiro tempo que o ideal do eu confere valor à ordem simbólica fundadora do primeiro tempo, produzindo sua reificação, como aponta Zizek (2016).

Mas nem sempre é assim que o Édipo se dinamiza: podemos observar que na atualidade essa passagem do segundo para o terceiro tempo - do pai privador ao ideal do eu - se acha rasurada. A queda da instauração do pai como ideal na sociedade de consumo define aí o ponto mesmo em que a privação se acha colocada em xeque.

Aqui situo a privação como ponto do problema em relação a esses sujeitos. Em 2016, propus a teoria de que há um desmentido contemporâneo, não da castração, e sim da privação (Quintella, 2016).6 Para pensar essa questão, frisei que em muitos casos da clínica atual o sujeito não forja para si um ideal do eu constituído pela figura "assimétrica" do pai. Há uma fugacidade na identificação secundária edipiana que não faz do pai ancoramento da identificação ao ideal do eu. Trata-se hoje de um desnorteamento do sujeito no que concerne à satisfação pulsional. Os modelos ideais, que antes norteavam o sujeito na relação com a satisfação pulsional, perdem lugar, desvanecem, ou não assumem valor.

Ora, o Édipo declina com a formação do ideal do eu: ali o sujeito conjuga modelos identificatórios intrínsecos à organização de uma posição erógena na cultura. Note-se que, segundo Lacan, o ideal do eu é movido pela privação edipiana. Isso não é uma articulação desprezível, ao contrário, deve ser evidenciada para uma reflexão mais rigorosa sobre a subjetividade atual. Cabe pontuar aqui uma condição subjugada ao fracasso do pai privador - aquele que abriria caminho para o ideal do eu. Esse fracasso, ou essa dificuldade de introjeção simbólica de um ideal do eu - I(A) -, está intrinsecamente implicado na defesa contemporânea que toma a privação como elo da articulação sintomática. Por esse viés, deve-se pensar que a defesa opera desmentindo toda e qualquer privação, o que empurra o sujeito a buscar mais e mais satisfação pulsional. Nessa medida, o desmentido da privação é uma defesa contemporânea, uma forma de se desviar da castração e não um desmentido da castração propriamente dito. Como todo neurótico, o sujeito nega a castração com o sintoma.

É importante, contudo, fazer uma diferenciação entre recalque primário e secundário. Enquanto o primeiro se acha ligado à lei simbólica que funda a neurose, o segundo se acha ligado ao ideal do eu que organiza o sujeito num modo mais ou menos definido de satisfação pulsional. Se o mal-estar é na cultura, o desmentido da privação rechaça o pai como ideal do eu, fazendo desse mal-estar o principal alvo de erradicação por parte do sujeito. Não obstante o sujeito estar inscrito na lei e organizado pelo recalque primário, trata-se de um novo destino da pulsão que, via de regra, conduz o sujeito a saídas sintomáticas diferentes daquelas engendradas pela relação entre recalque secundário e ideal do eu.

Freud (1914/1996) assinalou que o recalque secundário se dá em função da instauração de um ideal. Cabe acrescentar a isso, com fundamento na leitura profunda do pensamento de Freud e Lacan, que as forças para o deslocamento e para a condensação tomam como referência primária a lei simbólica e a metáfora paterna inscritas no primeiro tempo do Édipo; mas se ancoram no ideal do eu de modo a garantir sua eficácia. Isso se dá por meio de representantes psíquicos que substituam o investimento recalcado e satisfaçam o ideal do eu, sendo por ele aceitos.

Dito de outra forma, o deslocamento e a condensação se dão à medida que um representante pulsional recalcado encontra um substituto simbólico que satisfaça minimamente as exigências valorativas do ideal do eu, ou seja, que esteja coadunado a valores e crenças sustentados pelo ideal. O sintoma de conversão, a fobia, o sonho, o ato falho etc., são manifestações possíveis à consciência em função do ideal do eu. À medida que esses valores são mais rígidos ou bem delineados, o desejo recalcado se fia em representantes que fixam a pulsão e promovem o deslocamento. Com efeito, o ideal do eu respalda o deslocamento e a condensação, propiciando um modo de substituição que simboliza o recalcado como efeito da ancoragem do ideal.

Na experiência contemporânea há recalque, há deslocamentos e condensações, contudo, esses últimos são muito mais fugazes e evanescentes; ali o recalcado encontra menos esteio em representantes ancorados no ideal do eu, dado o declínio desse último e a diminuição da força da metáfora na atualidade, não obstante sua inscrição primária. Nessas patologias do ato, o recalcado, encontrando maior dificuldade de simbolização ancorada no ideal, leva o sujeito à busca por satisfações diretas, não metaforizadas. O desejo não tem para onde deslocar: se esvai. O eufemismo passa a tomar conta da vida psíquica, como bem observou Elton Azevedo (2019) numa de nossas reuniões do núcleo de pesquisa da UFF.7 O eufemismo faz dos sintomas contemporâneos - impulsivo-compulsivos - e do vício algo trivial, como um sinal de que a privação foi desmentida: "só mais uma satisfação, não tem nada demais, não estou viciado". É o que aparece no discurso de inúmeros desses sujeitos.

Nessa direção, utilizo-me do termo impulsões ou sintomas impulsivo-compulsivos da atualidade (impulsões aos alimentos, às drogas, às mercadorias, ao sexo, ao jogo, à internet - guardadas suas peculiaridades e distinções) para diferenciá-los das compulsões obsessivas vinculadas ao ideal do eu, profundamente trabalhadas por Freud. Nessas últimas, o sujeito se dirige ao ideal do eu como forma de acatar as suas exigências internas, compulsivamente. Nas impulsões refiro-me a patologias do ato (Rabinovich, 2004) que se acham mais próximas da compulsão à repetição e não se ancoram no ideal do eu paterno, nem situam um sentido metafórico-metonímico, tal como acontece nos sintomas obsessivos.

Esses sintomas do ato são resultado de uma mudança na forma como o sujeito se apoia no ideal do eu. Com Lacan, esse último é o que dá força à metáfora paterna, é o que atesta sua eficácia na experiência neurótica, com um mínimo de reificação (Zizek, 2016). Dado que o ideal do eu evanesce na contemporaneidade, a metáfora perde força e o sujeito visa caminhos mais "diretos" de satisfação pulsional, fracassando sempre, como abordarei adiante.

Isso não quer dizer que não haja metáfora na dinâmica psíquica desses sujeitos; contudo, o desmentido da privação, que coloca o ideal do eu sob rasura, leva a um imperativo de satisfação direta, muito mais pungente hoje, do ponto de vista pulsional. Esse fenômeno pode até fazer parecer uma perversão, mas percebe-se que não se trata disso.

Com efeito, não se trata de desmentir a lei, mas desmentir o pai como privador (motor do ideal do eu).

É importante registrar ainda que o fracasso do pai privador (contingente e variável) não é redutível à falha no simbólico (estrutural). A eficácia simbólica é que perde força, mas pode operar. Nos casos de impulsão e toxicomania, o inconsciente vai encontrar vias específicas de se manifestar, especialmente pelo desmentido da privação e pelo eufemismo.

Portanto, sendo a falha no simbólico estrutural e constitutiva do sujeito, o que muda não é a estrutura do simbólico, mas a forma como se lida com a falha. Na modernidade era a instauração do ideal com seus alvos de contestação, sobrevindo o sintoma como metáfora do desejo; na contemporaneidade a falência da autoridade dos pais, sobrevindo a fugacidade do ideal na relação com o gozo.

As consequências dessa lógica na esfera pulsional não são poucas e trata-se de avançar sobre a questão do desmentido contemporâneo, no que cabe ao conceito de pulsão e sua implicação na sociedade de consumo atual, conforme coloco adiante.

 

Um sim fracassado à pulsão

Em Freud, os destinos da pulsão se acham entrelaçados à sua condição de satisfação. Se o recalque é um "não" à pulsão, a satisfação direta, caso fosse possível, seria uma forma de dizer "sim" à pulsão. Na medida em que se trata do Trieb e não do instinto, o próprio Lacan sinaliza a impossibilidade de a pulsão atingir seu alvo por completo, mantendo sempre uma cota de tensão no princípio do prazer.

No caso da sublimação, Lacan (data, p. 140) aponta que "A sublimação é o que revela a natureza do Trieb, uma vez que ela tem relação com a Coisa, dado que esta é distinta do objeto". A sublimação carrega algo de um "sim", ainda que indireto, na medida em que a pulsão muda de alvo a partir de uma mediação da cultura (Coutinho Jorge, 2020). Trata-se de uma satisfação pulsional não sexual na sublimação, permitida pela cultura, cujo resultado é coletivamente compartilhado.

A sublimação se coloca entre a pulsão e o ato (Coutinho Jorge, 2020). No ato de criação ou de produção cultural, há algo do objeto de satisfação que se conduz a uma elevação de valor na cultura. A isso Lacan denomina "dignidade da Coisa". Não se trata mais do alvo sexual, mas da Coisa (das Ding) como desde sempre distinta do sexual, da economia libidinal: distinta do objeto da pulsão sexual. Zizek (2015, p. 49) evidencia que Lacan vai a fundo: "sublimação e pulsão de morte são estritamente correlatas: a pulsão de morte esvazia o Lugar (sagrado), cria a Clareira, o Vazio, a Moldura, que é então preenchido pelo objeto 'elevado à dignidade da Coisa'". Esse Lugar sublime é sustentado na arte pelo objeto, por algo que produz o Vazio - como aparece na tela de Kasimir Malevich - Quadrado preto sobre fundo branco. Ali ele expressa a forma mais elementar do movimento artístico, qual seja, o de fazer do Vazio um Lugar sublime.

 

Figura 1. Quadrado preto sobre fundo branco

 

 

Fonte: Wikipédia

Zizek aponta que hoje a mercadorização progressiva da estética diminui a eficácia da sublimação, de fazer com que um objeto sustente o Vazio da Coisa. O pensador aponta que

em outras palavras são os artistas atuais que exibem objetos excrementosos como objetos de arte que, longe de minar a lógica da sublimação, estão lutando desesperadamente para salvá-la. E as consequências do colapso do elemento Vazio do próprio Lugar são potencialmente catastróficas: sem a lacuna mínima entre o elemento e seu Lugar, simplesmente não há ordem simbólica. (Zizek, 2015, p. 50).

Zizek está chamando atenção para o fato de que:

a) a estética se torna cada vez mais uma mercadoria na sociedade atual. Isso implica numa certa dificuldade da sublimação se sustentar;
b) para habitar a ordem simbólica e referenciar-se em sua eficácia, é preciso que cada presença apareça como uma espécie de pano de fundo de sua possível ausência. É esta a mesma lógica do significante: o falo como significante da falta permite que a ordem simbólica se dinamize em sua relação com o desejo do Outro. Não há o Vazio sem o significante que com sua própria presença constitui e evoca sua própria ausência ou falta possível.

Nisso, a sublimação está implicada, na medida em que, mesmo sendo contingente em relação à produção artística ou cultural, é um efeito da relação intrínseca entre o significante e o esburacamento na ordem simbólica que ele mesmo produz: não se pode dizer tudo, o objeto como resto pode ser colocado como elemento no Lugar-Moldura-Vazio que instaura ali mesmo uma produção artística. É isso que Malevich sustenta com sua tela Quadrado preto sobre fundo branco. Podemos caminhar seguindo com a ideia de que, na sublimação, há um "sim" na cultura permitido à pulsão, mesmo que de maneira indireta (mediada pela cultura). Por outro lado, a sociedade de consumo engendra a promessa de que, desmentindo a privação, a pulsão possa encontrar um caminho direto de satisfação sem mediação simbólica ou cultural: sem mediação no Outro e também sem sublimação. Trata-se, a nosso ver, da promessa de um "sim" da satisfação direta, diferente do "sim" da sublimação cuja satisfação é indireta. Essa promessa atinge o nível do imperativo, mas fracassa na sua efetivação final, dado que há algo que sempre insistirá fazendo barreira à satisfação irrestrita que acarretaria a barbárie e a pura destruição. Desdobremos essa discussão.

Em Freud, tal barreira é uma condição para a sustentação da vida, nem que seja pela via do masoquismo: "[...] a libido tem a missão de tronar inócua a pulsão destruidora [...]. Uma parte permanece dentro do organismo e, com o auxílio da excitação sexual, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que temos que identificar o masoquismo primário, erógeno" (Freud, 1924, p. 180). Dito de outra forma, é justamente porque há pulsão de morte que a experiência do masoquismo permite um fusionamento da pulsão de morte às funções sexuais ou libido (pulsão de vida), propiciando a ligação e a própria sustentação da vida. Sem masoquismo erógeno, portanto, não há vida, mas puro desligamento: a satisfação direta da pulsão poderia ser pensada, sob esse viés, como satisfação da pulsão de morte.

O masoquismo é uma saída necessária, mas não é apenas ele que está no jogo da vida e da morte. Eros é o "comandante" aqui, implicando o sujeito numa relação dialética de sustentação da vida: trata-se do amor como um "fator de civilização" (Freud, 1933). Amor e morte assumem nesse ponto uma relação intrínseca desde A transitoriedade, em que Freud (1917) enumera os motivos para pensar que não há vida sem finitude e morte: o valor da experiência amorosa sustenta a vida na medida mesma de sua negatividade. A morte, a transitoriedade, a escassez do tempo - a privação real - potencializam o valor da vida. Pode-se observar, com efeito, que o desmentido da privação desimplica a simbólica do dom na experiência subjetiva, dificultando a sustentação do amor e levando o sujeito a uma mera fruição do objeto real como tentativa fracassada de satisfação direta diante de uma frustração.

Nessa linha, podemos destacar o pensamento de Han (2017), que em seu Agonia do Eros confere à negatividade e à alteridade as condições de possibilidade de viver efetivamente a experiência amorosa, que tende a ser colocada "em suspenso" na sociedade de consumo.

Para esse pensador, vivemos hoje um "inferno do igual", em que o atopos do amor,8 tal como Sócrates o concebia, a exterioridade radical do outro que fascina no amor, fica sem-lugar (Han, 2017). O autor considera que

A cultura atual da comparação não admite a negatividade do atopos. Estamos constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual. A negatividade do outro atópico se retrai frente ao consumismo. [...]. Hoje a negatividade está desaparecendo por todo lado. Tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo. (Han, 2017, pp. 8-9).

Adiante, o mesmo autor afirma contundentemente: "A sociedade do desempenho, onde tudo é possível, onde tudo é iniciativa e projeto, não tem acesso ao amor enquanto vulneração e paixão" (Han, 2017, p. 29).

Han entende então que a negatividade, o atopos no sentido de uma alteridade, implica uma tensão, como em toda aproximação em relação ao outro. "A falta de distanciamento, ao contrário, é uma positividade. Hoje em dia, o amor é positivado numa forma de fruição" (Han, 2017, pp. 28-29).

Com Freud (1933/1996), constatamos que o amor é resultado de uma dessexualização, ou seja, é um fator de cultura que, articulado ao ideal do eu, faz suportar o tempo de espera. A pulsão no amor passa por vias indiretas de satisfação, metafórico-metonímicas e sintomáticas, ou mesmo sublimatórias (poéticas/artísticas/culturais).

O que o sujeito contemporâneo vive hoje, a meu ver, é um conflito entre a sustentação do amor e o desmentido da privação - não uma perversão (ainda que "comum"). Trata-se aqui de uma relação conflitante entre o excesso de amar (que implica não apenas o prazer, mas também a dor) e o excesso de gozar (idem). Duas formas de excesso: o amor e o gozo, sendo o primeiro a forma com que o segundo se torna condescendente à castração e ao desejo. A evanescência do amor e dos ideais na atualidade coadunam uma experiência de encontro sexual positivada no sentido de Han, um "sim" que visa abolir toda negatividade e toda alteridade: visa fazer desaparecer o atopos do amor. Nesse ponto, Han (2017, p. 55) situa a pornografia como exato contraposto de eros, pois "Ela aniquila a sexualidade". Essa evidenciação segue a de Baudrillard (apud Han, p. 55) de que "A sexualidade não se desvanece na sublimação, na repressão e na moral, mas muito provavelmente naquilo que é mais sexual que o sexual: na pornografia". Nessa via, Han afirma uma pornografização do mundo, uma tentativa de extirpar a atopia e se desviar do próprio jogo da sexualidade inerente a ela, como fenômeno resultante da sociedade de consumo.

Psicanaliticamente é a figura do supereu que se faz valer dessa "pornografização" - lembrando que o supereu não se reduz a uma moral nem ao ideal do eu. Trata-se aqui da figura obscena e feroz do supereu que empurra o sujeito para o consumo nesse processo de abolição da sexualidade e do desejo.

As fontes desse empuxo na sociedade de consumo são denominadas por Lacan como latusas, objetos-mercadoria, "petita", que ao mesmo tempo em que causam desejo aparecem como fonte primária do supereu guloso e devorador. Apoiado em Marx, Lacan recupera a ideia de que a mercadoria produzida pela tecno-ciência constitui um objeto insubstancial, que nos leva a esquecer de que nós mesmos somos objetos na determinação do discurso. Trata-se de pensar, por exemplo, a produção de uma mesa: Marx (1867/1992) demonstra que, na produção da mesa, a modificação da forma da madeira transmuta-se em algo "sensorialmente suprassensível" (insubstancial no sentido de Lacan). Mesmo continuando a ser madeira, ela entra no mercado de bens como mercadoria escapando ao sensível, como um objeto metafísico, encantador, fascinante, sedutor. Para Marx, a mercadoria é um objeto endemoniado, metafísico e até teológico.9 Baseado em Marx, Alomo (2014, p. 104) destaca que "Esses objetos 'objetalizam' aqueles que se creem ser seus possuidores [...]. Somos possuidores-objeto dessas produções". Lacan enfatiza que a mercadoria é cada vez mais tomada como criação da tecno-ciência: somos objetos desse discurso, mais do que possuidores. "Esse sujeito passivizado, convertido em a minúsculo, não descobre em absoluto sua verdade" (Alomo, 2014, p. 106).

Em O Avesso da Psicanálise, Lacan (1992) denomina o resultado dessa operação científico-tecnológica como latusa, objetos pequenos a produtos dessa operação científico-tecnológica à qual estamos hoje mergulhados e determinados. Lacan pontua que o que se encontra ali é apenas o vento, e não substâncias: o vento da voz humana que manda gozar dos objetos, no sentido mesmo do imperativo superegoico.

A latusia ou latusa em Lacan traz consigo a ideia grega de ousia, uma imprecisão na língua grega sobre a ideia de ser, ou uma imprecisão sobre a ideia de substância/essência. A latusa pensada por Lacan não é bem um ser, ela é insubstancial; está entre o Outro e o ente, mas não é nenhum dos dois, e sim o "pouco de ser" característico do objeto a. As latusas levam os sujeitos a esquecerem-se e ignorarem de que são objetos da operação científica: os sujeitos se esquecem disso como se fossem os agentes da operação. São na verdade "possuidores-objeto" na experiência, ou seja, os possuidores são os próprios objetos gozados pelo Outro. Esses objetos são mercadorias que, por trás das vitrines, carregam em si o imperativo de gozar. "É a ciência que os governa", dirá Lacan (1970/1992, p. 153).

Do ponto de vista da problemática levantada neste ensaio, trata-se de dizer um sim à pulsão, desmentindo a privação de forma imperativa, como se fosse possível a satisfação direta com seu objeto derradeiro, esquecendo-se de que na verdade o possuidor é que é um objeto. Para sempre perdido, o objeto a mais-de-gozar, na sua vertente invocante e na sua vertente oral, força a ordem superegoica na direção do devoramento desses objetos, de forma que o sujeito articule uma tentativa de recuperação do gozo perdido. A latusa é "um artefato na mão do sujeito para que ele não se encontre com a castração [...], a latusa está a serviço do não querer saber sobre a castração" (Alomo, 2014, p. 107).

Com efeito, em vez de o supereu massacrar o eu em função de seu próprio ideal, - na medida em que o ideal do eu hoje é fugaz e evanescente (a imago paterna declina), tal massacre se atualiza hoje na forma de um imperativo de consumir: é um novo modo neurótico de "não querer saber da castração" - não se trata de um "desmentido da castração" perverso. Aqui o sadismo é do supereu, alimentado pela engrenagem da sociedade de consumo.

É necessário então situar o problema no rol das questões que envolvem o "possuidor-objeto" na sociedade de consumo e a relação disso com as patologias do ato aqui trabalhadas. Sem simplificar a questão, na atualidade aparecem formas sintomáticas de resposta a tal imperativo: os objetos da impulsão não são propriamente as latusas, mas aparecem como objetos da urgência, como se fossem objetos da necessidade, denominados por Lacan desde o Seminário IV como "objetos reais".10 A experiência impulsivo-compulsiva não deve ser concebida como um simples consumo de mercadorias, mas como uma resposta do sujeito a essa engrenagem imperativa da sociedade de consumo e do "vento da voz humana" (superegoica). Trata-se então, nas impulsões e na toxicomania, não de um "consumismo", mas de uma resposta sintomática ao imperativo de gozar via consumo. Há um sujeito ali visando a um basta, na tentativa de obstaculizar o gozo do Outro fazendo frente à angústia na engrenagem da produção científico-tecnológica. Não trabalhar, consumir drogas, alimentos etc., impulsivamente, é uma forma de responder à angústia no encontro com o Outro, e de fazer obstáculo à própria condição imperativa de gozar de objetos-mercadoria, latusas, na sociedade de consumo. Esse obstáculo se dá ali onde o ato impulsivo visa dar um fim ao imperativo tentando uma satisfação derradeira, conforme já apontara Zizek (2001).

Nesse ponto, é importante frisar, então, que o movimento impulsivo-compulsivo contemporâneo (drogas, alimentos, jogo, internet etc.) não é um simples consumo de latusas, mas um consumo de objetos da urgência infantil na tentativa de obstaculizar a força superegoica hoje implicada nas latusas. Consumir objetos "da necessidade" é então uma resposta a tal imperativo na tentativa de embarreirar o gozo do Outro.

A boa notícia dada pela Psicanálise é que, se por um lado, quanto mais o sujeito devora objetos da urgência, mais o supereu os exige, ganhando força, por outro lado, trata-se de um sim fracassado: o desejo pode fazer barreira ao empuxo superegoico, posto que a castração não deixa de estar lá, ela é estruturante da neurose. O supereu é o próprio avesso do desejo (Ambertín, 2009) que não encontra em parte alguma o objeto derradeiro da sua satisfação, permanecendo ali como paradoxo do mal-estar para o qual o sujeito é constantemente convocado a dar um destino. Situo neste ponto a visada ética que permite à Psicanálise contemporânea trabalhar esse desmentido atual em âmbito clínico.

Do ponto de vista da clínica contemporânea, a experiência impulsivo-compulsiva desancorada do ideal do eu tomaria, a meu ver, o cerne da insistência pulsional numa lógica sintomática que resiste à não implicada na metáfora, cuja especificidade exige aprofundamento investigativo sobre a relação do ser humano com a linguagem. Aqui nos aproximamos da concepção de Sônia Alberti de que a toxicomania pode ser tomada como um equivalente do sintoma neurótico. Como pontua Lacan (1998), o "invólucro formal" da histeria se modificou com o tempo e hoje não vemos as conversões tal como apareciam no século XIX. Apesar de os sintomas impulsivo-compulsivos apresentarem pouca força para a simbolização, não comportarem a dimensão da metáfora em sua organização, estão localizados no campo da neurose como substitutos de satisfação.

Do ponto de vista das pontuações deste ensaio, é importante então lembrar que a relação entre objeto real e objeto simbólico abre caminho para a dimensão ética, do ponto de vista de uma construção teórico-clínica possível. Segundo Lacan (1956-1957/1999, p. 178), "o objeto real (seio, chupeta) é uma parte do objeto simbólico (falo)", que abre caminho para a simbólica do dom no amor objetal propriamente dito. Não estaria o sintoma da impulsão nesse ponto de interseção como um substituto de satisfação na neurose? Se sim, a função fálica poderia então intervir aí novamente como âncora simbólica para o deslizamento do sujeito na cadeia associativa, do ponto de vista de uma aposta clínica. Não caberia evocar aqui a afirmação de Lacan (1956-1957/1999, p. 178) de que "um objeto real assume sua função como parte do objeto de amor"? Não seria o caso de refletirmos sobre a função da transferência nessa condição clínica? Já que o objeto real assume sua significação como parte do objeto simbólico numa dialética inscrita na simbólica do dom, então "dar o que não se tem", sob a égide do amor de transferência, não implica fazer perder o que o supereu constantemente exige?

Com efeito, esse "sim" ofertado à pulsão pelo consumismo imposto pela tecno-ciência é fracassado. Não obstante a insistência no desmentido da privação, as forças da lei do desejo que embarreiram o caminho para o gozo não deixam de existir, e o sujeito pode retomar a via do gozo fálico, antes rompido.

Se o sujeito está no regime do recalque, a associação livre permite fazer com que aquilo que vem como força mortífera no sintoma impulsivo sucumba à ligação ou aquiescência pulsional na dialética do desejo, fazendo da perda de gozo um caminho de esvaziamento dos imperativos superegoicos. A fala propicia essa ligação no decurso de uma análise, fazendo cair os ditos do Outro. Pensar a relação disso com a linguagem e os efeitos da escuta nesses casos, aqui logicamente na neurose, eis um dos principais desafios da Psicanálise contemporânea frente ao desmentido da privação.

 

Considerações finais

Concluo buscando evidenciar que, se há um desmentido contemporâneo, e se a privação é motor do ideal do eu evanescente na atualidade, esse desmentido só pode ser da privação. Isso só faz evidenciar a estreita relação que Freud estabeleceu desde o início entre a neurose, os traços de perversão na fantasia neurótica com suas formações reativas, o sadismo do supereu, a pulsão perverso-polimorfa etc. etc. E se ao sujeito é ofertado um assentimento consumista da positividade eufemizante, no sentido dado por Han, ou da satisfação direta impossível, no sentido freudiano, há algo que obstaculiza isso: o próprio ato sintomático de devorar o objeto visa em última instância dar um basta e fazer obstáculo ao imperativo superegoico. Aqui situamos finalmente a diferença fundamental entre essas patologias do ato e a estrutura perversa: enquanto na perversão o sujeito visa à lei para transgredi-la e garantir o gozo do Outro, o neurótico contemporâneo, ao contrário do perverso, conduz-se ao objeto para obstaculizar o gozo do Outro. Trata-se nessa última de evocar a castração no Outro, assim como o próprio amor (numa posição conflitante) como vias de fusão da libido com a pulsão de morte.

Localiza-se, portanto, nessas patologias do ato, um "sim" fracassado à pulsão, uma privaçãodesmentida que faz do sujeito contemporâneo um objeto no "inferno do igual", mas permanentemente apto a retomar a metonímia do desejo e o valor atópico do amor.

 

 

Referências

Alberti, S., Inem, C., & Rangel, F. (2003). Fenômeno, estrutura, sintoma e clínica: a droga. Revista latinoamericana de Psicopatologia fundamental, VI(3).         [ Links ]

Alomo, M. (2014). Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de "latusa" e sua relevância clínica. Stylus Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, 29, 99-111.         [ Links ]

Ambertín, M. G. (2009). As vozes do supereu. Rio de Janeiro: Cia de Freud.         [ Links ]

Azevedo, E. (2019). Discussão em reunião de pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo. Campos dos Goytacazes, Nepesc/UFF.         [ Links ]

Birman, J. (1999). Mal-estar na atualidade: a Psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Bittencourt, L. (1993). Algumas considerações sobre a neurose e a psicose nas toxicomanias. In C. L. Inem & G. Acselrad (Orgs.). Drogas: uma visão contemporânea. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Coutinho Jorge, M. (2020). Pulsão de morte: paradigma da Psicanálise. X Encontro Nacional do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. Rio de Janeiro: CFEP.         [ Links ]

Freud, S. (1914/1996). Introdução ao narcisismo. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1917/1996). Sobre a transitoriedade. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1924/1996). O problema econômico do masoquismo. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1930/1996). O Fetichismo. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1933/1996). O Mal-estar na civilização. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Han, B. C. (2017). Agonia de Eros. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Jammet, P. (1993) L'approche psychanalytique des troubles des condiotes alimentaires. Neuropsychiatrie de l'enfance, Paris, 41(56), 235-44.         [ Links ]

Lacan, J. (1956-1957/ 1999). O seminário livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. ( 1957-1958/1999). O Seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1959/1997). O Seminário livro 7: a Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1963/1998). Kant com Sade. In J. Lacan. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1970/1992). O Seminário, livro 17: o Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1971/2009). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). De nossos antecedentes. In J. Lacan. Escritos (pp. 69-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lebrun, J. P. (2008). A perversão comum: viver junto sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Marx, C. (1867/1992). El Capital (Tomo I). Buenos Aires: Siglo XXI.         [ Links ]

Martinho, M. H. C. (2011). Perversão: um fazer gozar. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Melman, C. (2003). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Rabinovich, D. (2004). Clínica das pulsões: as impulsões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Quintella, R. (2014). As funções do pai: pensando a questão da autoridade na constituição do sujeito contemporâneo a partir de um estudo psicanalítico do ideal do eu. Rev. Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, 14(2), 284-296.         [ Links ]

Quintella, R. (2016). O desmentido da privação na atualidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro, 19(1), 115-130.         [ Links ]

Zizek, S. Violência emancipadora. Folha de S. Paulo. São Paulo, Caderno Mais, 19 de agosto de 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1908200113.htm>. Acesso em: 10 maio 2015.         [ Links ]

Zizek, S. (2015). O absoluto frágil: por que vale a pena lutar pelo legado cristão?. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Zizek, S. (2016). Édipo: para onde? In S. Zizek. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Rogerio Quintella
E-mail: rrquintella@hotmail.com

 

 

*Psicanalista. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (PUCG). Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (Nepesc/UFF). Editor da Revista Ecos - Estudos Contemporâneos da Subjetividade. Autor do livro O supereu Canibal.
1Voltarei a esse ponto sobre a legitimidade fracassada dos pais na atualidade.
2A não inscrição da castração (psicose) seria a abolição/foraclusão do elemento-lei que articula o estatuto do desejo na constituição do sujeito.
3É importante fazer aqui uma referência à questão do gozo do Outro. Lacan aborda o grande Outro de diferentes maneiras: o Outro da linguagem, o Outro do desejo e da demanda, o Outro barrado - que será o pontapé para Lacan falar em 1973 de um "gozo Outro", o feminino. Em 1963, 10 anos antes, quando aborda a fantasia sadiana, Lacan aborda o "gozo do Outro" relacionando à lógica que engendra a posição do perverso. O gozo do Outro na perversão caracterizado em 1963 faz referência ao parceiro na fantasia sadiana, à vítima, ao sujeito - não ao gozo suplementar, feminino, relacionado a ao significante da barra no Outro S(A), pensado por Lacan em 1972-1973/2010.
4É importante desde já fazer uma distinção entre ideal do eu e supereu, de acordo com os avanços de Freud e Lacan. O ideal do eu é um norteador da relação entre o sujeito e o objeto de satisfação, ponto de identificação a partir do qual o eu define uma forma de ser diante do desejo inconsciente. O supereu é uma força imperativa que massacra o eu em função do ideal. Para uma apreensão mais detida sobre essa distinção, ver Quintella, R. (2018). O supereu canibal. Curitiba: Appris. Ali introduzo alguns pontos sobre os quais viso avançar com o presente artigo.
5Não podemos atribuir essa distribuição lógica a uma temporalidade cronológica. Ou seja, Lacan fala de três tempos lógicos: na prática vem tudo a reboque na relação intrínseca do sujeito com o significante, com a imagem do outro e com o inominável (simbólico, imaginário, real).
6Trata-se no artigo atual de um aprofundamento e um avanço sobre essa questão, conforme veremos à frente.
7Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo da Universidade Federal Fluminense (Nepesc/UFF).
8Referência do autor a Sócrates, que, como amante, chama essa exterioridade do outro de atopos.
9Aqui é importante fazer referência ao fetichismo da mercadoria entendido por Marx. Este se distingue do fetiche entendido pela Psicanálise como desvio do interesse sexual para uma parte do corpo do parceiro na perversão. Em Marx (1967/1992), diferentemente, o fetichismo da mercadoria é tratado, antes, como formas de relação econômica entre o capital e as commodities transformadas em objetos com valor de uso e de troca extraídas de sua condição material primária, e desatrelada das relações entre as pessoas. O fetiche na história da religião judaico-cristã é também uma transformação de um elemento da natureza em objeto-deus, como ocorre com o bezerro de ouro da Bíblia.
10A partir das considerações anteriores, pode-se afirmar que o "objeto real" se distingue do objeto a na teoria de Lacan, dado que o primeiro se refere a uma urgência em agarrar o seio para materializar a satisfação diante da frustração do amor. O objeto a, por outro lado, refere-se a uma extração, efeito do deslizamento significante no Outro. Produz-se como perda e causa de desejo na estrutura do fantasma. Apesar de haver relação entre eles no âmbito do real e do supereu, objeto real e objetoa não se confundem.

Creative Commons License