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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei ene./jun. 2021

 

EDITORIAL

 

A ciência como ponte entre o trágico e o humano

 

 

Ser humano é enredar-se em memórias. Na intenção de reconstruir ou desconstuir uma realidade permeada por metáforas, constituiu-se uma separação, talvez mais linguística do que necessariamente real. Criamos o nome estória no intento de falar de contos e fatos, já história para ensejar um constructo de uma solidez e nela se esbarra a ciência. Escutar esse encontro desencontrado entre fato e memória é, de certo modo, uma proposta psicanálítica, uma vez que ela se fundamenta na verdade propagada pelo sujeito. Nesse sentido, deparamo-nos com diversas tragédias às quais foram descritas pela humanidade. Seja ela em grandes epopeias como Ilíada, Odisseia e Eneida ou em guerras reais travadas por homens de sonhos e vidas próprias das mais variadas ordens. Ademais, a humanidade se deparou com incontáveis crises de saúde e epidemias de pequeno, médio e largo espectro, epitetos reais de pragas alardiadas pela cultura da antiguidade, descritas em diversas narrativas míticas. Não sem razão, caracterizamos tais episódios pela alcunha de tragédia dado que esse nome, na Grécia antiga, berço clássico de nossa civilização ocidental, consistia nas peças teatrais que expressavam, em seu enredo, a morte e o sofrimento dos quais nenhum mortal poderia escapar, mas que, ao serem encenadas, cumpriam funções sociais que iam desde a purgação das paixões, servindo, pois, como um instrumento catártico até a transmissão pedagógica e moral, atuando como veículo de algum tipo de ensinamento.

O tempo é senhor inconfesso de um destino trágico, no qual a contingência se vê traduzida em termos de uma ciclicidade que desponta nos horizontes da humanidade, tal qual um retorno sintomático de um conflito posto em suspenso, mas que se avoluma, no interior do sujeito, mudo e gritante. Nesse viés, em meio às grandes tragédias há aproximadamente um século, ainda sob o domínio da Primeira Guerra Mundial, o trágico encontrou-se com a história, assim surge o vírus influenza que assolou a humanidade. Tratava-se da gripe espanhola, patologia que recebeu esse nome devido ao modo de se portar dos espanhóis que, diferentes de outros países, escolheram a história e não a estória para relatar os estragos causados pela doença em suas terras. Isso, pois enquanto os outros países se perdiam na narrativa da obscuridade, o povo espanhol buscava entender a doença incidindo sobre ela uma análise mais próxima da realidade. Em aproximadamente dois anos, milhares de mortes reduziram drasticamente a população mundial. Entre elas, encontrava-se Sophie, a quinta filha de Sigmund Freud, de 27 anos de idade e grávida de seu terceiro filho. Assim, mais uma vez o trágico encontrou contornos de real para o fundador da psicanálise.

Ao findar de janeiro de 1920, Freud relata o acontecimento em uma carta a seu amigo Oskar Pfister, com as seguintes palavras,

Hoje à tarde, recebemos a notícia de que a pneumonia do vírus influenza nos tirou nossa doce Sophie em Hamburgo. Ele o tirou de nós, apesar de ter uma saúde radiante e uma vida ativa e plena como boa mãe e esposa amorosa, tudo em questão de quatro ou cinco dias, como se nunca tivesse existido.

O humano é contornado pela tragédia e nem mesmo Freud escapou aos efeitos cruéis de uma pandemia. E sua presença, antecedida pelo horror da guerra, certamente deflagrou o contato direto com duas das três causas de sofrimento que, segundo o autor, no texto O mal-estar na cultura, são inevitáveis aos seres humanos - a fragilidade do corpo mediante às doenças e as relações com outros seres humanos. O diferencial para o criador da psicanálise é que, os episódios trágicos, sejam eles contados pela obscuridade, sejam encarnados pela história, sob sua pena, transformam-se em Ciência do Inconsciente. Por isso, para suportar o inevitável sofrimento, Freud menciona uma série de medidas paliativas, estando, entre elas, as satisfações substitutivas, nas quais entraria também a atividade científica. Ainda que inicialmente possa parecer que o fazer científico entraria como mera distração, tanto em suas teorias, quanto em sua própria vida, o que salta aos olhos é mais grave que isso - a ciência nos salva, inclusive de nós mesmos e de nossa paixão pela ignorância como viria a revelar Jacques Lacan posteriormente.

No contexto atual, mais um momento cíclico abala os alicerces da humanidade. A tragédia vestiu outra roupagem atendendo pela alcunha de Covid-19. Desse modo, novamente há um desencontro entre o que de fato é ciência e o que é narrativa obscurantista. Não se pode negar a semelhança com o momento em que Freud vivia e o assombro da humanidade com tamanho discurso de negação e de ódio. Para tanto, Antônio Quinet nos chama a atenção para o fato de que a paixão pela ignorância se apresenta como ódio ao saber, imposição de um pensamento único e orgulho de ser burro.

Como herdeiros do pensamento científico, apoiados pela herança de força de grandes personagens do passado que não esmoreceram diante das tragédias ainda que elas o tenham afetado profundamente, como fora com Freud, somos levados a pensar qual o papel da Ciência e seus produtores no contexto hodierno. É preciso ser luz, ainda que seja uma luzinha, como diz Lacan, em períodos de penumbra na humanidade. Mesmo que nos sintamos afetados pelo sofrimento humano e que a estória enquanto narrativa se distancie drasticamente da história enquanto atitude científica, nosso dever ético é o combate a essa cultura de ódio e de ignorância.

Nesse sentido, observamos um dos papéis da psicanálise, dos psicanalistas e dos pesquisadores em psicanálise que é convergir posições entre as mais diversas narrativas e construir Ciência. Assim, esta Revista científica se faz e refaz diante desse marco histórico, uma vez que pontes são necessárias. Por isso, vemo-nos como passagem em que os pesquisadores, que tanto se esforçam para a divulgação científica, tenham o apoio necessário na tarefa de se construir uma nova realidade. Outrossim, afirmamos que nosso compromisso com a pesquisa tem uma vertente variada de posições e não se permite ser fundamentalista, o que justifica o rigor na seleção de tantos trabalhos de excelência que vão contribuir decisivamente para o crescimento de uma comunidade tão combalida pelos constantes ataques das mais diversas fontes.

Assim, convidamos vocês para lerem o volume 10 de número 18 da Analytica: Revista de Psicanálise que conta com textos de variadas temáticas as quais encontram na psicanálise um campo privilegiado de interlocução. Entre eles, o artigo A clínica e a "peste psicanalítica" na contemporaneidade no qual os autores analisam o estatuto criativo da clínica psicanalítica por meio de um resgate da discussão da dimensão crítica da "peste psicanalítica". Em seguida, as autoras do texto Contar histórias na Casa dos Cata-Ventos: um convite à escrita e à leitura apresentam um projeto de pesquisa e extensão que realiza intervenções com crianças e adolescentes por meio da contação de histórias desde 2011. Ainda no contexto da infância, Detecção de risco com a primeira infância: regra, Lei e impossível versa sobre a detecção de risco de sofrimento psíquico em bebês proposta pela Psicanálise. Temos também Marx, Freud, Lacan e a política: da Teoria Crítica à Escola Eslovena de Psicanálise, em que o autor propõe um resgate de alguns dos principais teóricos críticos ligados à Escola de Frankfurt e a sua relação com a Psicanálise e o marxismo na primeira metade do Século XX. Já no artigo Novas nuances da maternidade: a busca de um novo equilíbrio, as autoras tentam compreender como, no contexto sociocultural atual, especialmente nas classes médias, o estabelecimento do estado materno primário ocorre.

Adentrando no conceito de gozo em Lacan, o texto O gozo, a substância lacaniana e o corpo incorpóreo tenciona elaborar um percurso de estudo para compreender o referido conceito no ensino lacaniano em dois momentos de sua construção: 1966-1967 e 1972-1973. Outro artigo, Psicanálise e matriciamento: novos horizontes à ética do desejo, promove o encontro entre psicanálise e saúde pública a fim de analisar as potencialidades da ética da Psicanálise, combinada ao apoio matricial em saúde pública. No último artigo, intitulado Sobre o Unheimlich: entre a Literatura e a realidade da mídia, a autora aborda o Unheimlich a partir de algumas obras literárias e do funcionamento da imagem na mídia.

Encerramos nossas discussões com uma belíssima resenha, intitulada Dois ensaios, diferentes perspectivas: interlocuções entre "Bate-se numa criança" e "Fantasias de surra e devaneios , sobre o mais novo volume da coleção Freud e seus Interlocutores que apresenta dois ensaios que parecem independentes à primeira vista: "Bate-se numa criança: contribuições ao conhecimento da origem das perversões sexuais", publicado por Freud, em 1919, e "Fantasias de surra e devaneios", publicado por Anna Freud, três anos depois.

Acreditamos que é nessas tramas do fazer científico que, mesmo durante uma pandemia, a vida pode ser refeita. A nosso ver, somente o cotidiano, prenhe de criatividade, é capaz de suportar o mundo nas costas.

Boa leitura!

Elizabeth Teodoro

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