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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Contar histórias na Casa dos Cata-Ventos: um convite à escrita e à leitura

 

Storytelling in Casa dos Cata-Ventos: an Invitation to Writing and Reading

 

Raconter des histoires à la Casa dos Cata-Ventos: une invitation à écrire et à lire

 

Contar historias en la Casa dos Cata-Ventos: una invitación a la escritura ya la lectura

 

 

Ana Maria GageiroI, II*; Marina Gregianin Rocha**

IAssociação Psicanalítica de Porto Alegre - Appoa - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente escrito surge a partir da experiência da Casa dos Cata-Ventos. Trata-se de um projeto de pesquisa e extensão que oferece, desde 2011, uma proposta de intervenção com a infância e a adolescência apoiada na ética psicanalítica. Um lugar para brincar, conversar e contar histórias no município de Porto Alegre/RS, situado em um contexto marcado pelas desigualdades sociais e raciais. A pesquisa aborda os desdobramentos clínicos e políticos da oferta dos livros e das letras, disparada a partir da oficina de Contação de Histórias, dos empréstimos de livros e da construção de um ambiente letrado, nomeados pelas crianças como livração.

Palavras-chave: Psicanálise, Casa dos Cata-Ventos, Contação de histórias, Escrita e leitura.


ABSTRACT

The following text emerged from the experience of the Casa dos Cata-Ventos. This is a research and extension project, that offers, since 2011, an intervention proposal for childhood and adolescence, supported by psychoanalytical ethics. A space to play in, to talk and to tell stories in the municipality of Porto Alegre/RS, situated in a context of social and racial inequalities. The research addresses the clinical and political unfolding of the offering of books and letters, triggered by the storytelling workshop "Contação de Histórias"; the lending of books and the construction of a literate environment, named as livração by the children.

Keywords: Psychoanalysis, Casa dos Cata-Ventos, Storytelling, Writing and reading.


RÉSUMÉ

Le présent document émerge de l'expérience de la Casa dos Cata-Ventos. C'est un projet de recherche et de vulgarisation qui propose depuis 2011 une proposition d'intervention auprès de l'enfance et de l'adolescence basée sur l'éthique psychanalytique. Un lieu pour jouer, parler et raconter des histoires dans la ville de Porto Alegre/RS, située dans un contexte marqué par les inégalités sociales et raciales. La recherche porte sur les développements cliniques et politiques dans la fourniture de livres et de lettres, déclenchés par l'atelier "Contação de Histórias", le prêt de livres et la création d'un environnement alphabétisé, qualifié de livração par les enfants.

Mots-clés: Psychanalyse, Casa dos Cata-Ventos, Le storytelling, Ecrire et lire.


RESUMEN

El presente escrito surge a partir de la experiencia de la Casa dos Cata-Ventos. Se trata de un proyecto de investigación y extensión que ofrece desde 2011 una propuesta de intervención con la infancia y la adolescencia apoyada en la ética psicoanalítica. Un lugar para jugar, conversar y contar historias en el municipio de Porto Alegre/RS, situado en un contexto marcado por las desigualdades sociales y raciales. La investigación aborda los desdoblamientos clínicos y políticos de la oferta de los libros y de las letras, disparada desde el taller de "Contação de Historias", de los préstamos de libros y de la construcción de un ambiente letrado, nombrados por los niños como livração.

Palabras claves: Psicoanálisis, Casa dos Cata-Ventos, Cuenta de historias, Escritura y lectura.


 

 

Abertura

Este escrito aborda os desdobramentos clínicos e políticos da oferta dos livros e das letras na Casa dos Cata-Ventos. Tal proposta foi disparada a partir da oficina de Contação de Histórias, dos empréstimos de livros e da construção de um ambiente letrado, nomeados pelas crianças como livração. Esses ensaios com as letras e palavras contam sobre o lançamento de um convite à leitura e à escrita, que solicita passagem ao trabalho da Casa dos Cata-Ventos: além de brincar, conversar e contar histórias, também se pode brincar de ler e de escrever. A oferta de um trabalho com as letras, a partir das histórias infantis - neste lugar que não é uma escola, nem um contraturno escolar -, tem inaugurado para as crianças uma outra relação possível com a literatura e a escrita, o que, por sua vez, parece aproximá-las do desejo de adentrar no mundo letrado, lendo e escrevendo.

A Casa dos Cata-Ventos é um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com Instituto da Associação Psicanalítica de Porto Alegre: clínica, intervenção e pesquisa em Psicanálise (Instituto Appoa) e com a Associação de Moradores da Vila São Pedro. O projeto desenha-se como uma estratégia inovadora de atenção à infância e à adolescência e é uma proposta de escuta, apoiada na ética da Psicanálise e no contexto no qual está inserida: a cidade. Ao apostar no brincar, conversar, contar histórias, ler e escrever, sustenta a possibilidade de toda criança acessar seus direitos fundamentais (Gageiro & Torossian, 2016).

O projeto localiza-se em Porto Alegre, em uma comunidade que se encontra em condições de precariedade socioeconômica e se organiza, sobretudo, em torno da catação e reciclagem de lixo, mas também trabalha informalmente ou de forma terceirizada. O território é, pois, marcado pela escassez de recursos, e a violência apresenta-se de inúmeras maneiras: por meio da lei violenta imposta pelo tráfico de drogas, da truculência e arbitrariedade das ações policiais que ocorrem, da dificuldade ao acesso a direitos básicos, como educação, saúde e moradia. Entre tantos direitos básicos fragilizados, o espaço de convivência procura garantir um tempo no qual o brincar possa acontecer. Desde 2011, o projeto oferta, semanalmente, um lugar que permite a abertura de uma temporalidade na qual as crianças possam brincar, contar histórias e conversar.

Devido à violência ininterrupta à qual a comunidade está submetida, a Contação de Histórias - uma das intervenções oferecidas pelo projeto - é pensada como possibilidade de as crianças inventarem saídas para os seus conflitos. Assim, ao ler um conto, propomos que a violência seja narrativizada, isto é, que sobre ela passe a existir uma história em que geralmente se coloca o silêncio; narrando, recursos simbólicos podem ser produzidos, propiciando um deslizamento do silêncio para a fantasia e a significação. De acordo com Gageiro, Tavares, Almeida e Torossian (2015), a proposta de trabalho da Casa dos Cata-Ventos coloca em jogo uma temporalidade que permite a inclusão e o reconhecimento, por intermédio de um ato clínico e político, pois há uma aposta na existência de um sujeito do desejo tramado ao sujeito de direitos.

Desde o início do projeto, encontramos no brincar das crianças a trama com as histórias, com as letras, com as questões da escola e com os livros. Contudo, houve a intensificação de um brincar com as letras, que, por sua vez, provocou a invenção de novos modos de trabalhar com a literatura infantil, bem como permitiu construir outros sentidos ao que já era realizado. A esse percurso inaugurado, as crianças chamaram de livração. Esse foi um marco no trabalho da Casa dos Cata-Ventos e se trata de uma oferta que fizemos às crianças, a partir da escuta de suas brincadeiras e da singularidade do território em que vivem, isto é, permeado pelas desigualdades sociais e raciais.

 

Contar histórias: a livração e a democratização dos livros e letras

A oficina de Contação de Histórias - sustentada a partir da escuta psicanalítica como uma proposta clínica - também amplia o acesso aos livros, na medida em que a leitura das narrativas convida as crianças a uma aproximação. Além das histórias, a Casa dos Cata-Ventos está construindo uma biblioteca, na qual o empréstimo de livros já acontece. Tomamos essas relações com os livros como a oferta de um capital cultural (Souza, 2009), inacessível a muitas crianças que frequentam o projeto. Além disso, a literatura, aqui, é tomada como lugar por excelência para o jogo das letras, ou seja, um importante convite à leitura e à escrita. Segundo Lajonquière (2010), a escrita desdobra o universo do discurso, ampliando-o. Ler e escrever, para ele, entranham uma forma de experimentar o tempo, marcando permanentemente o cerne mesmo da vida psíquica. Para o autor, a escrita é uma dobra discursiva no interior do campo da palavra e da linguagem; logo, ela revela a implicação do sujeito com o seu desejo.

É na trama entre brincar, ler, escrever e contar histórias que a livração vai desenhando-se. Houve um desdobramento na escuta da equipe da Casa dos Cata-Ventos que foi ampliada para esse tema, como também para a relação que as crianças e seus familiares estabeleciam com a escola e com a linguagem escrita, bem como os desafios implicados nessa aproximação.

Então, encontramos um número considerável de crianças e adolescentes, que participam do projeto, que não aprendem a ler, nem a escrever. Crianças sujeitas ao chamado fracasso escolar, as quais abandonam a escola e/ou são abandonadas por ela. Sujeitos que estão submetidos a uma violência simbólica, que se traduz na impossibilidade de acessar direitos culturais básicos. A esse respeito, Lajonquière (2010) afirma que, se os adultos - embaixadores do mundo das letras - não esperarem pelas crianças, elas não permanecerão no ambiente escolar. Essa discussão é importante para situar a aposta da Casa dos Cata-Ventos no jogo das letras, convidado pela literatura e pelo brincar.

Viver em uma cultura inteiramente letrada é, em essência, estar mergulhado no universo discursivo cotidiano atrelado à linguagem escrita. A escrita aí está, já espera pela criança e a convoca para aventurar-se no escrever, no dizer de Lajonquière (2010). Conforme aponta o autor, a escrita adulta invoca a criança não alfabetizada a deixar para trás a posição de iletrada. Em princípio, para ele, uma criança pode não aprender aquilo que é ensinado e ofertado pelo mundo adulto; ela é lançada ao laço social e, nele, faz questão de entrar e participar. Cabe recordarmos a alegria das crianças ao aprender a escrita do nome, tal como o entusiasmo quando os pequenos que frequentam a Casa dos Cata-Ventos ingressam na escola. As crianças querem ocupar um outro lugar no laço social, desejam adentrar no mundo letrado.

De acordo com Petit (2013), a privação de direitos culturais é um roubo. Para a autora, os sujeitos devem ter acesso aos seus bens e direitos culturais, tais como a educação, a possibilidade de aprendizado de uma língua, a um saber e também a compartilhar narrativas diversas. A apropriação desses bens e direitos produz uma abertura para um tempo de fantasia, condição para o pensamento e a criatividade, direitos fundamentais a todo exercício da cidadania.

À medida que uma criança aprende algo, ela é apreendida pelo mundo. É no discurso que o sujeito se constitui e é a partir dele que afirma sua posição subjetiva. Se as crianças, os adolescentes e os adultos não aprendem a ler, nem a escrever, de acordo com as ideias de Petit, estão tendo seus direitos culturais usurpados. A proposta de trabalho da Casa dos Cata-Ventos é uma aposta de que, por meio do brincar e de uma escuta que o sustente, o sujeito do desejo possa advir; que, mediante a linguagem e o simbólico, possa haver um deslocamento que produza outros sentidos e outras significações para suas questões, ampliando os modos de estar no mundo, isto é, que a vida seja mais autônoma e criativa.

É nesse sentido que houve uma inquietação a respeito da dificuldade das crianças em acessar alguns de seus direitos culturais, como a literatura, a leitura e a escrita. A relação delas com os livros e as letras, bastante frágil, insistia em provocar indagações na equipe. Afinal, como o sujeito do desejo - constituído pela linguagem - ocupará um outro lugar no mundo se está impedido de lançar mão da linguagem escrita e das letras que compõem a sua língua? Como se lançará à travessia rumo à escrita se está desprovido das precondições culturais, como afirma Souza (2009), que o acompanhariam nesse percurso?

O desejo de ler e escrever das crianças propiciou a inscrição de uma marca no trabalho com os contos. Desde 2012, o projeto trama o brincar e as histórias, apostando na potência de elaboração que eles ofertam. Contudo, houve um deslocamento na forma de trabalhar com a literatura infantil, uma vez que escutamos o desejo das crianças de aproximarem-se das letras. Em 2016, a aproximação das letras e dos livros passou a dar também uma sustentação à Contação de Histórias, pois por meio d os contos lançamos um convite ao mundo letrado.

A livração não é uma intervenção concreta; trata-se de uma democratização do livro e das letras, tramada ao fazer clínico da Casa dos Cata-Ventos. O acesso a eles tem se dado com a Contação de Histórias, do ambiente letrado e da construção de uma biblioteca no espaço do projeto. Ao contar histórias, convidamos as crianças a aventurarem-se em uma narrativa. No improviso do brincar, vamos contando, e as crianças vão vivendo, vão dizendo.

Ao escrever sobre as histórias infantis, Kehl (2006, p. 16) indica que "a criança é garimpeira, está sempre buscando pepitas no meio do cascalho numeroso que lhe é servido pela vida". As crianças garimpeiras fazem uso da narrativa e entram na trama ofertada, buscando enquadrar suas questões nos conflitos disponibilizados pela história, ou se apropriando de fragmentos, os quais têm, em sua significação, algo que possibilita problematizar e também significar suas vivências.

As crianças que frequentam a Casa dos Cata-Ventos experimentam o afastamento provocado pelas condições desiguais em que vivem, dificultando seu acesso à literatura e à linguagem escrita. A oferta dos contos, entretanto, oportuniza às crianças acessarem muitos livros, inventando e brincando com os elementos que desejarem, viabilizando, por vezes, estreitar as distâncias produzidas pelas desigualdades sociais e raciais, conforme aponta Rodrigues (2017).

Em função dos movimentos das crianças rumo às letras, bem como dos desafios impostos a elas nesse processo, ampliamos a compreensão sobre a oferta dos contos: além de significações e possibilidades simbólicas, a leitura de uma história infantil permite o acesso ao livro, a uma narrativa e às letras. Trata-se de uma plataforma de lançamento ao mundo letrado, no dizer de Fröhlich (2014).

Ao longo dessas invenções, muitos pedidos para escrever começaram a surgir, como a escrita do nome, uma carta para a mãe, o título de um conto, até mesmo o texto de um livro. Esse tempo de invenção, que busca tramar as possibilidades simbólicas do conto ao acesso ao livro e ao mundo letrado, ocorreu em um momento em que as crianças começaram a encontrar as letras e sobre elas realizar perguntas, como: com qual letra o meu nome começa? E o teu? E depois, como se escreve essa letra?

O brincar é a chamada de nosso trabalho. Ainda assim, as crianças convidam as letras para participar desse instante. Em um primeiro momento, escutamos os impasses e encantos que as crianças compartilhavam sobre o tempo de entrada no mundo letrado. Depois, houve uma intensificação das cenas de leitura e escrita, pedidos para ler livros e escrever, além de chegarem notícias sobre situações na escola.

Acompanhamos as crianças vibrarem ao ingressar na escola e com a possibilidade de ler e escrever. Ao longo do ano letivo, contudo, observamos o fracasso se impor ao desejo de aprender. O resultado são crianças que demoram anos para se alfabetizar. Algumas conseguem transpor a barreira do fracasso, outras jamais aprendem a ler e a escrever; repetem inúmeras vezes de ano ou acabam por desistir de estudar.

A apropriação da linguagem escrita propicia que o sujeito se posicione na linguagem, atribuindo novas significações, produzindo sentidos que o sustentam como sujeito do desejo e sujeito de direitos. Tal qual contar histórias para as crianças desta comunidade, como uma aposta na construção de novas narrativas para suas vidas e seus conflitos, não podemos prescindir da discussão sobre a dimensão política e social que impede esses sujeitos de se localizarem na sua língua, situando-os à margem do discurso social dominante, como aponta Rosa (2002).

O desdobramento livração na equipe e no trabalho com as crianças tem produzido deslizamentos em algumas interrogações clínicas. Apesar de recente, encontramos alguns efeitos dessa intervenção. Escrever livros, narrar histórias, ler livros e escrever cartas tem permitido certo deslocamento da violência - que se repete no brincar e também na transferência com a equipe, com o espaço físico e com outras crianças - para uma abertura à invenção.

 

O jogo das letras: outra forma de habitar o mundo

A escrita surge como convite a outros modos de "habitar-se o mundo, de fazer morada no campo da palavra", no dizer de Fröhlich (2014, p. 60). Sobre o processo que cada criança realiza na construção da linguagem escrita, a autora (2014) contrapõe a operação de aquisição, tão frequente em certos discursos escolares, como se pudéssemos adicionar o que falta à escrita da criança de maneira técnica e instrumental. A autora enfatiza uma operação de subtração que precisa estar em jogo nesse traslado. Subtração, situa Fröhlich (2014), como um momento lógico da estruturação do sujeito, uma perda que possibilita que o simbólico tenha um lugar, condição para uma mudança cognitiva fundamental para a leitura e a escrita que estão no horizonte.

Por intermédio do jogo do carretel - o Fort-da -, Freud (1920/1996) apresenta como, para a criança, algo se constrói a partir de uma operação de subtração, da ausência. Ele observou o neto de um ano e meio brincar com o movimento de ir e vir de um carretel. O menino jogava longe o objeto e o trazia para perto novamente. Freud compreendeu que, com esse jogo, a criança encontrou uma forma de lidar com a ausência da mãe. Preso por um fio, o menino jogava o carretel dizendo fort, que pode ser entendido como ir embora; em seguida, ele puxava o barbante e, alegre, dizia da, estar presente, aí. A criança colocava em cena, no brincar, o desaparecimento e o retorno, de modo a dar conta de sua perda. Diante da experiência de se ver sem a presença da mãe, o menino, no jogo do Fort-da, passava de uma posição passiva para uma ativa.

Esse pulo de posição inaugura um ato de linguagem, no qual som e movimento são tecidos ao redor de um sentido. A palavra, conforme encontramos em Lacan (1953/1998, p. 227), "é uma presença feita de ausência, a ausência mesma vem a se nomear em um momento original". É sobre o jogo de presença e ausência que as possibilidades de sentidos de uma língua são fabricadas, a partir do qual o universo das coisas se instala. Lacan (1953/1998) dimensiona a linguagem quando afirma que é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas. A partir disso, podemos dizer que a linguagem é estruturante das funções psíquicas, de modo que o registro das percepções não ocorre pelas percepções em si, ou seja, é pela ação da linguagem que sujeito e objeto se constituem.

Ao investigar o que faz o escritor criativo produzir, Freud (1908/1996) procura no brincar das crianças atividade semelhante. Em Escritores criativos e devaneios, afirma que "a linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética" (Freud, 1908/1996, p. 136). Para ele, o escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca: constrói um mundo próprio e, de acordo com suas vontades, o adapta a uma maneira que lhe satisfaça.

Na Casa dos Cata-Ventos, tramamos o brincar com a escrita, ou melhor, brincar de ler e escrever, que tem a literatura como suporte para o jogo das letras. Sobre o brincar, utilizamo-nos de Rodulfo (1990). Para ele, o brincar não é uma catarse, ou uma recreação; tomado nesse sentido, ele é uma prática significante. É ali que a criança produzirá coisas; por isso, tem o caráter de produção. O brincar não é um produto, assim como a escrita não pode ser reduzida à decifração do código. Dessa forma, toda atividade significativa no desenvolvimento da simbolização da criança é tramada no brincar.

O jogo de presença e ausência - o Fort-da - é fundamental para a constituição do sujeito, que lança a criança na linguagem, nas representações. Segundo Lacan (1964/2008, p. 66), "é com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformando em poço e que começa a encantação". O jogo do salto introduz a criança em uma ciranda de outras possibilidades, tal como propõe Fröhlich (2014). A linguagem, instalada a partir do jogo do carretel, produz a separação entre o sujeito e o objeto, permitindo a edificação de um corpo e a diferenciação eu e não-eu. Segundo Milmann (2014, p. 115), "o sujeito habita o seu corpo, na medida em que é habitado pela linguagem"; é preciso ser inscrito psiquicamente. Para que a criança rabisque, desenhe, escreva, será preciso passar por essa operação. É essa passagem que possibilita que o sujeito tome o espaçamento de uma superfície em branco e crie hipóteses sobre a escrita, ou seja, para escrever, é necessário ter referências simbólicas do corpo no tempo-espaço.

Ter um corpo, uma experiência primordial do espaço, é o que funda a forma e o conteúdo da representação. É essa construção de corpo que permite o recorte de formas e estabelece relações, construindo um sentido. É a partir da noção de construção de corpo que Rodulfo (1990) desenvolve sua tese. Para ele, há funções do brincar mais arcaicas e primordiais, anteriores ao jogo do carretel: fazer superfícies, espaço das distâncias abolidas e desaparição simbolizada.

É a partir do brincar que a criança fabrica um corpo. No primeiro tempo, de fazer superfícies, no qual a criança está construindo seu corpo, inicia uma atividade extrativa e perfurante, na qual utiliza os materiais do corpo do outro para fabricar o seu próprio. Nesse tempo, a superfície corporal do bebê é um continuum do corpo da mãe, assim como os objetos são percebidos como um espaço continuado, sem volume. Arrancadora e perfuradora nata, no dizer de Rodulfo (1990), a criança produz coisinhas, resíduos, esburaca e faz superfícies. Com o brincar, nesse período inicial, a primeira construção é uma fita contínua, e não um interior, um volume.

Antes de funcionar na qualidade de volumes, a criança precisa se autoinscrever na forma de uma superfície, condição para passar a valer operações do tipo dentro e fora. É pelas rotinas armadas pela função materna que se inicia a fabricação de superfície em continuidade com o dentro e o fora. Na estruturação primordial do corpo, o que está em jogo é o traçado e a inscrição de uma superfície sem volume, em uma bidimensionalidade, superfície sem buracos. Aqui, o corpo e o espaço são um só.

Essa continuidade começa a falhar quando o segundo momento passa a valer: o espaço das distâncias abolidas. Nesse tempo intermediário, a espacialidade não delineou uma polaridade. Sobre as teses do brincar, Fröhlich (2014) refere que a bidimensionalidade começa a oscilar, sugerindo uma passagem ao tridimensional. A ideia de volume se constrói em uma corda bamba: assim como surge, desaparece. Os jogos que as crianças experimentam nesse momento colocam em evidência que o dentro e o fora ainda estão em plena continuidade. Rodulfo (1990) comenta dos jogos continente/conteúdo, nos quais tirar e botar coisas que estão dentro de uma caixa, um volume, é uma verdadeira exploração do espaço. É um tirar e botar que ensaia uma reversibilidade. Quando uma descontinuidade provoca uma torção na superfície, dá lugar a um terceiro momento relativo ao brincar.

Fröhlich (2014) destaca que essa oscilação, nesse momento de descolar-se do Outro, esburacando a superfície contínua, gera confusões nas escolas, devido à pressa que esse outro tempo demanda, atropelando tanto as crianças, em seu espaço-tempo em construção, como os professores, que acabam por valorizar o que aparece, o código, a materialidade da letra. Desse modo, não se escutam as outras produções, como propõe o jogo das letras, no qual as crianças inscrevem, marcam, esburacam, traçam. Esse tempo de construção de volume é importante para a construção da escrita e da leitura na criança. Por isso, é fundamental que esse tempo de inscrições primeiras, que vão abrindo espaço para a construção do tridimensional - para a simbolização -, não seja forçado. Os jogos de corpo, que vão marcando uma borda, os primeiros rabiscos e as marcas deixadas nos objetos são experiências que passam pelo corpo e que são, nas palavras de Fröhlich (2014, p. 130), "verdadeiras plataformas de lançamento para habitar o mundo da leitura e escrita".

A escrita é um traço que se ordena em um espaço bidimensional, mas que pede passagem pela tridimensionalidade, na constituição do corpo da criança. De acordo com Milmann (2014), mesmo que a escrita se faça no plano bidimensional, só assumirá um caráter de escritura depois de diversos jogos que se ensaiam na tridimensionalidade do corpo. Antes de ter seu valor linguístico textual, a escrita implica o enlace do corpo ao registro simbólico.

Nessa perspectiva, conforme Milmann (2014), a experiência de escrever estabelece uma relação direta com o inconsciente. Atestar uma estrutura comum ao psíquico e à escrita ultrapassa a perspectiva instrumental dessa escrita como uma representação cognitiva da oralidade. A autora sustenta que, no circuito em direção ao mundo das letras, a estruturação do sujeito, para a Psicanálise, está diretamente relacionada à constituição do sujeito letrado. Segundo Milmann (2014), a fala e a escrita devem ser tomadas em termos significantes e, por isso, como produções do sujeito.

 

Um convite à linguagem escrita

Em consonância com essas reflexões, que tomam a leitura e a escrita como desdobramentos da linguagem, avançamos nesta análise de nosso trabalho com a literatura infantil com as crianças na Casa dos Cata-Ventos. A ampliação do trabalho de Contação de Histórias, paralelamente com os empréstimos dos livros e uma abertura da equipe em tomar a questão das letras no projeto, disparou muitos pedidos de escrita e leitura em todos os turnos que ofertamos. Houve uma intensificação do jogo com as letras a partir da relação das crianças com a literatura e a escrita, transversalizadas pelo brincar.

A literatura coloca em cena o funcionamento da linguagem escrita. A literatura não é um amontoado de obras, nem uma área do comércio ou do ensino, pronuncia Barthes (1989). É o traçado de uma prática, diz ele, a prática de escrever. Barthes auxilia na discussão sobre a literatura infantil na Casa dos Cata-Ventos. Para ele, na escrita, é o texto que entra essencialmente em questão, o tecido dos significantes que constitui a obra. O texto é o despontar da língua, chama ele, servindo de palco para o jogo das palavras. Por isso, literatura, escritura ou texto podem ser tomados indiferentemente.

Para acessar o texto, é preciso lê-lo, ou ouvir um outro que o faça. A leitura, conforme Fröhlich (2014), é um movimento constante no mundo das letras e das palavras; a escrita é uma dobra desse operar com a língua. Borges (2006) defende a importância dos textos para o processo das crianças que estão aprendendo a escrever. Para ela, a escrita tem força de subjetivação porque não exprime nem é expressão de categorias fixas; há um jogo de relações entre as unidades: polissemia, deslizamentos, mudança de estatuto.

Encontramos, nas produções de Borges (2006), considerações a respeito do texto que amparam algumas interrogações acerca da intensificação da leitura e escrita na Casa dos Cata-Ventos. As unidades linguísticas de qualquer natureza ou extensão - como o texto e o funcionamento da língua - são arquitetadas no funcionamento linguístico-discursivo, que é orientado pelo jogo do significante. Dito isso, é possível pensar que o ensaio com as letras na livração, que as crianças produzem depois de ouvir um conto, para exemplificar uma de nossas aproximações com o texto, pode ser interpretado, de acordo com Borges (2006), como efeito do funcionamento da linguagem, ou seja, da linguagem sobre a linguagem: ao contar uma história, há uma profusão de pedidos para ler, escrever, desenhar e brincar com as letras.

Desse modo, seguindo com Borges (2006), a produção de cada criança é diversificada, na medida em que cada uma dispõe de seus significantes e, por meio dos discursos orais e escritos; isto é, a partir da relação com o Outro, encadeiam-se novas relações entre as unidades linguísticas. O acesso à escrita pela criança é promovido pela troca simbólica com os discursos do Outro, ou seja, a significação e a ressignificação não compreendem apenas a grafia; trata-se de significação e ressignificação simbólicas. É importante retomar que muitas crianças na Casa dos Cata-Ventos ainda não sabem ler nem escrever; contudo, entram no jogo das letras, ensaiando-se na escrita, rabiscando na folha, desenhando. Por vezes, as crianças traçam com o lápis por cima do risco das letras já escritas em uma folha, ou recortam de revistas letras e montam uma colagem. Sua dedicação em produzir tantas invenções depois da escuta da história permite-nos afirmar que cada uma dessas crianças, em diferentes pontos, já é letrada, ainda que não esteja alfabetizada.

Nesse sentido, observamos que os desdobramentos da livração - como o trabalho com as letras do nome no uso do crachá, as palavras que compõem o texto das histórias infantis, bem como as letras disponibilizadas pelo espaço físico da casa - operam como significantes que nós ofertamos às crianças. São significantes que marcam o acesso delas à escrita. Logo, de acordo com as ideias de Lemos (1994), entendemos que o processo de aprendizagem da escrita é guiado pelas possibilidades de a criança se identificar nas posições abertas pelo discurso do outro.

Destarte, entendemos a importância da materialidade do texto para o processo de escrita da criança, conforme indica Borges (2006). A autora, todavia, sugere que, quando as crianças encontram aberturas nos discursos do Outro e repetem os significantes que lhes ofertam na escrita, esse trabalho é da letra, como sua condição significante. Sobre esse processo, Borges (2006, p. 147) afirma:

Não se poderia apontar um momento mais elementar e mais externo, no qual, lá de fora, os textos fornecessem imagens ou estímulos que, em seguida, seriam reconstruídos ou simbolizados em um "dentro". A "repetição" quando se trata da linguagem - processo simbólico -, é sempre original. Por isso, pode-se dizer que as combinatórias presentes em seus textos são, de certa forma, acontecimentos. Há sujeitos nestas estruturas.

Encontramos, nas produções das crianças, um jogo com as letras, disparado a partir da oferta dos discursos orais e escritos do Outro, representado pelas histórias, cartas e livros. As garatujas, os rabiscos, as letras aglomeradas e até mesmo o desejo de ingressar no mundo letrado - para as que ainda não se aventuram no traço na folha de papel - podem ser entendidos, nesse sentido, como o registro de jogo significante, que é singular, contudo, comprometido na mesma trajetória, rumo ao mundo letrado.

A livração aposta na leitura e na escrita como fonte de significantes para essas crianças. A condição das desigualdades sociais e raciais, por um lado, e práticas escolares interessadas em ensinar o código - sem levar em conta a travessia que cada criança precisa trilhar -, por outro lado, empobrecem as inúmeras relações e aberturas que elas poderiam realizar, exaurindo suas significações e ressignificações do processo de escrita, de linguagem. O cotidiano do projeto nos coloca à frente de uma grande quantidade de crianças que não sabem escrever o próprio nome, não aprendem a ler e a escrever, tampouco estão em conformidade com as etapas estabelecidas no ano letivo.

A potente oferta da literatura infantil, que tem servido de suporte para brincar de ler e escrever na Casa dos Cata-Ventos, tem produzido uma abertura a novas significações, como um menino que, depois de ouvir o conto, escreve o seu nome em seu desenho, inscrevendo algo a mais e, então, consegue construir um encaminhamento ao seu incômodo. Ele fabrica o seu apaziguamento com palavras, e não com o ato de uma agressão ao corpo do outro ou ao seu, permitindo-se experimentar outra posição na linguagem.

Escrever não é simplesmente aprender a decifrar os códigos. Adentrar ao mundo da escrita implica ocupar outra posição na linguagem. Para Lajonquière (2010), a escrita é uma dobra discursiva no interior da linguagem e, em função disso, manifesta a implicação do sujeito no desejo. O convite que as crianças fizeram às letras para o brincar e contar histórias dá sustentação ao desejo de ingressar no mundo letrado, de ocupar outro lugar no laço social. Esse deslocamento de posição na linguagem, que implica o sujeito no desejo, abre possibilidades de outras formas de habitar-se no mundo, ou seja, na medida em que há um sujeito, há modos de resistir, escolher e se movimentar.

Escutar a história pela voz do outro desencadeia um jogo com as letras e com as palavras. O laboratório do Hulk, no qual ocorreu o acidente com a Bomba G, representado pelas palavras no chão, escritas com giz, convidou todos os pequenos a significarem a fúria verde do personagem em letras no piso e no papel, em um dos turnos de Contação de histórias. Alguns escreviam palavras que estavam na história, outros arriscavam deixar a sua marca, o seu nome escrito no chão. Os primeiros rabiscos de crianças menores também aconteceram. Um menino pequeno, de aproximadamente três anos, desenha/escreve no chão, da esquerda para a direita, em formas circulares.

Na esteira das reflexões de Borges (2006), podemos entender as produções das crianças, o jogo das letras que acontece depois da escuta da história, como efeito da inscrição do discurso do Outro, representado pela narrativa. Conforme encontramos nas contribuições de Lemos (1994), parte dos significantes oferecidos pelo Outro discurso, oral ou em forma de texto, coloca significantes da escrita da criança em novas relações. Ainda que as letras se confundam com os desenhos, ou que a escrita ainda não forme palavras ou frases que possam ser lidas por um outro, elas adquirem um valor e um lugar estrutural. Ou seja, é preciso, então, escutar essas produções escritas, pois não se trata de uma reprodução dos conteúdos do texto, e sim de uma produção singular das relações simbólicas que as crianças significam.

Esse outro, atento às produções das crianças, segundo Fröhlich (2014), ensaia-se como bússola, criando as possibilidades de abertura a um tempo a ser vivido por elas; situando-se no lugar de quem transmite as letras, assim como quem convida a criança ao jogo com elas. Nesse tempo, entra em cena uma espera, na qual suspende a pressa de que a criança escreva no tempo previsto pela lógica tecnicista, despontando o desejo de que o outro faça sua travessia no campo da fala e da linguagem, no seu ritmo e passo.

Seguindo nessa trilha, entendemos que, na Casa dos Cata-Ventos, esse papel é encenado pela equipe na relação com as crianças, na medida em que o que disparou o jogo das letras no projeto, desdobrando-se em diversas frentes de trabalho - a livração -, foi a escuta realizada a respeito de suas escritas e de seu desejo de habitar um outro lugar na linguagem. Houve o reconhecimento de uma escrita em suas produções e garatujas e, ainda, uma leitura de suas letras, ainda que seus escritos não estivessem alfabéticos, segundo as condições gramaticais convencionais.

A pergunta que é endereçada às crianças na Casa dos Cata-Ventos sobre os seus traços - o que tu desenhaste aqui? - oferece uma leitura daquela produção como um escrito, que confere à criança a possibilidade de escutar os seus rabiscos, perpassada pelo olhar do outro; uma nomeação que atribui sentido ao jogo das letras. O que entra em cena não é um olhar sobre o processo de escrita somente, mas uma escuta daquela experiência com as letras que a criança está tendo. Esse processo de significação e ressignificação - desdobrados pelo funcionamento da linguagem - de acordo com Borges (2006), situa-se, portanto, no campo da transferência, ou seja, o efeito da linguagem sobre a própria linguagem. Tomando o processo de entrada no mundo letrado por esse caminho, podemos realizar uma leitura a respeito das garatujas, rabiscos, desenhos, entre outros traços, como uma condição simbólica da escrita.

Borges (2006) explica que é justamente em função das tentativas de a criança lançar mão desses significantes ofertados pelo Outro que há a possibilidade de novas passagens, mudanças de lugar, novas significações. A repetição do saber do outro, que produz aberturas ao simbólico, suscita, na relação imaginária com a escrita, uma relação simbólica. É o outro que significa os primeiros rabiscos da criança. Para Milmann (2014), trata-se de uma antecipação do sentido à garatuja, uma operação significante, que inscreve o sujeito na escrita. Esses traços, antes de a criança estabelecer uma relação entre a grafia da letra e o seu som, são marcas; significantes que se ordenarão em uma rede de significantes e constituirão a linguagem escrita.

O tecido de rabiscos, tramados a partir da construção da noção de corpo, dará vida às letras do alfabeto. As crianças são capturadas pela linguagem escrita nesse momento, uma experiência que a Casa dos Cata-Ventos promoveu. Uma abertura que inaugura um outro lugar. Um outro modo de experimentar o tempo é propiciado pela escrita e pela leitura. O aprendizado das letras e dos números parece ser algo resistente ao tempo, segundo Lajonquière (2010). Para ele, o ensino das letras produz uma marca indelével no centro mesmo da vida psíquica. Apesar de as crianças terem suas experiências com as letras perpassadas pelas desigualdades sociais e raciais, e pelas violências reais e simbólicas, a escrita instala uma possibilidade de se habitar mundos diversos, posto que implica o sujeito no desejo, ampliando as formas de se relacionar consigo e com os outros.

 

Considerações finais

 

É lendo o mundo e brincando de inventar novos sentidos que as crianças da Casa dos Cata-Ventos constroem suposições sobre a linguagem escrita, sobre ler e escrever. O acesso aos direitos culturais básicos ainda não foi profundamente democratizado. Segundo Petit (2008), a proximidade com os livros é uma história de encontros. Para a criança dar o salto ao mundo das letras, um outro precisa esperá-la, legitimar suas produções, convidar ao lançamento.

Essa tem sido a aposta da livração no trabalho da Casa dos Cata-Ventos, a qual vem indagando sobre como cuidar para que as experiências com a linguagem escrita tenham um lugar. Com a oferta de um tempo no qual o brincar possa acontecer, abre-se também um tempo que aguarda a criança nessa travessia rumo às letras, isto é, um outro que legitima o seu desejo. A livração aposta na escrita, pois ela amplia as possibilidades de habitar mundos diversos, na medida em que implica outra relação do sujeito consigo mesmo e com os outros, tal como propõe Lajonquière (2010).

A Casa dos Cata-Ventos não é uma escola e não está no território para suprir esse papel. O trabalho com a infância aposta no poder brincar, o qual é condição para o poder brincar com as letras. E ainda, circular na sua língua, dobrá-la, revirá-la, como faz o poeta, que, ao ler e escrever, estica os horizontes e abre espaço para outros sentidos e realidades serem produzidos.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Maria Gageiro
E-mail: ag3465@gmail.com
Marina Gregianin Rocha
E-mail: marinagregianin@gmail.com

 

 

*Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
**Psicóloga. Mestre em Psicanálise Clínica e Cultura e Especialista em Saúde Mental Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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