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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

O gozo, a substância lacaniana e o corpo incorpóreo

 

What is Jouissance?: or about the Lacanian Substance and the Incorporeal Body

 

Qu'est-ce que la jouissance?: ou sur la substance lacanienne et le corps incorporel

 

¿Qué es el goce?: o sobre la sustancia lacaniana y el cuerpo incorpóreo

 

 

Allan Martins Mohr*

Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UFTPR - Brasil
FAE Centro Universitário - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da pergunta sobre o gozo, este artigo tenciona elaborar um percurso de estudo para compreender o referido conceito no ensino lacaniano, mais propriamente em dois momentos de sua construção, a saber: o ano letivo de 1966-1967 e o ano letivo de 1972-1973. Com essa proposta em mente, o objetivo deste trabalho é apreender o conceito de gozo em sua relação íntima com as noções de substância e de corpo incorpóreo. Além disso, percorrer brevemente uma tentativa de entendimento acerca do gozo do Outro e do gozo fálico. Ao final, pode-se afirmar que o conceito de gozo não pode ser reduzido à pulsão freudiana, pois tem características tais quais a ousia aristotélica, pode ser lido a partir da luta do mestre e escravo hegeliana, pode ser vinculado à ideia do gozo de Deus e sua substância se distingue das substâncias cartesianas - coisa pensante, coisa extensa e coisa divina.

Palavras-chave: Psicanálise, Gozo, Corpo, Substância gozante.


ABSTRACT

Based on the question about jouissance, this article intends to elaborate a study path to understand the referred concept in Lacanian teaching, more precisely in two moments of its construction, namely: the academic year of 1966-1967 and the academic year of 1972-1973. With this proposal in mind, the objective of this work is to apprehend the concept of jouissance in its intimate relationship with the notions of substance and incorporeal body. In addition, briefly go through an attempt to understand the jouissance of the Other and the phallic jouissance. In the end, it can be said that the concept of jouissance cannot be reduced to the Freudian drive, it has characteristics such as Aristotelian ousia, can be read from the struggle of the Hegelian master and slave, can be linked to the idea of God's jouissance and its substance is distinguished from Cartesian substances - thinking thing, extensive thing and divine thing.

Keywords: Psychoanalysis, Jouissance, Body, Jouissante substance.


RÉSUMÉ

Partant de la question de la jouissance, cet article entend élaborer un parcours d'étude pour comprendre le concept référencé dans l'enseignement lacanien, plus précisément à deux moments de sa construction, à savoir: l'année académique 1966-1967 et l'année académique 1972-1973. Avec cette proposition en tête, l'objectif de ce travail est d'appréhender le concept de jouissance dans son rapport intime avec les notions de substance et de corps incorporel. De plus, tentez brièvement de comprendre la jouissance de l'Autre et la jouissance phallique. En fin de compte, on peut dire que le concept de jouissance ne se réduit pas à la pulsion freudienne, il a des caractéristiques comme l'ousia aristotélicienne, il peut être lu dans la lutte du maître et de l'esclave hégélien, il peut être lié à l'idée de la jouissance de Dieu et sa substance se distingue des substances cartésiennes - chose pensante, chose étendue et chose divine.

Mots-clés: Psychanalyse, Jouissance, Corps, Substance jouissante.


RESUMEN

A partir de la pregunta sobre el goce, este artículo pretende elaborar un camino de estudio para comprender el concepto referido en la enseñanza lacaniana, más precisamente en dos momentos de su construcción, a saber: el año académico 1966-1967 y el año académico 1972-1973. Con esta propuesta en mente, el objetivo de este trabajo es aprehender el concepto de goce en su íntima relación con las nociones de sustancia y cuerpo incorpóreo. Además, repase brevemente un intento de comprender el goce del Otro y el goce fálico. Al final, se puede decir que el concepto de goce no se puede reducir a la pulsión freudiana, tiene características como la ousia aristotélica, se puede leer de la lucha del amo y el esclavo hegeliano, se puede vincular a la idea del goce de Dios y su sustancia se distingue de las sustancias cartesianas - cosa pensante, cosa extensa y cosa divina.

Palabras claves: Psicoanálisis, Goce, Cuerpo, Sustancia gozante.


 

 

Introdução

Que é o gozo? Ou melhor: que é o gozo, desde uma perspectiva de Jacques Lacan?

É a partir dessa pergunta que intenciono elaborar um percurso de estudo para compreender o conceito de gozo, Jouissance, no ensino lacaniano, mais propriamente em dois momentos de sua construção, a saber: o ano letivo de 1966-1967 e o ano letivo de 1972-1973. Com essa proposta em mente, o objetivo principal deste trabalho é apreender o conceito de gozo em sua relação íntima com as noções de substância - de Aristóteles a Descartes - e de corpo incorpóreo - conforme construído por Lacan considerando as formulações estoicas. Além disso, percorrer brevemente uma tentativa de entendimento acerca do gozo do Outro, JA, e do gozo fálico, .

Corpo, substância e gozo são construções teóricas que se intercruzam de uma maneira assaz ímpar e cuja relação não pode, conforme entendo, ser dispensada para a compreensão do conceito de Jouissance no ensino de Lacan. Para pensar o gozo, é importante que se entenda o que Lacan está propondo por corpo e por substância para além da comum relação corpo-organismo e substância-matéria, o que por vezes se soa fazer. De imediato, proponho sustentar que o corpo com o qual trabalha Lacan para pensar o gozo não é o corpo orgânico, tal qual Freud outrora trabalhou para pensar suas pulsões, tampouco o corpo imaginário, construído especularmente. Sugiro também pensar substância à diferença da matéria concreta que se dispõe a conhecer pelos sentidos e que por ora poderíamos chamar de extensa.

No entanto, antes de rumarmos ao estudo proposto, entendo interessante levantarmos uma perspectiva crítica do lugar de onde leremos a obra e o conceito lacaniano.

 

De Freud a Lacan

Ao sugerir pensar o corpo distanciado do organismo e dizer que essa perspectiva é, se não contrária, ao menos distinta daquela apresentada por Freud para pensar suas pulsões, coloco-me nesta pesquisa perpassado pela premissa de que o ensino lacaniano difere sobremaneira do pensamento freudiano, em especial no que se trata do conceito de homem para a Psicanálise - cabendo apontar as distinções entre indivíduo, sujeito e falasser. Nesse sentido, concordo com o apresentado por Eidelsztein (2017b) em seu livro Otro Lacan e, em especial, em seu Las estructuras clínicas a partir de Lacan (2017a), ao afirmar a diferença, de Freud a Lacan, no que concerne ao indivíduo-sujeito, o aparelho psíquico e o corpo. Consoante o autor, em Freud encontramos a perspectiva de um corpo tridimensional e biológico que, vale lembrar, é fonte das pulsões e que se diferencia do sujeito lacaniano, o qual deve ser pensado desde uma perspectiva bidimensional, topológica.

O problema da pulsão é importantíssimo para pensarmos a questão do gozo, mas não por sua aproximação, ao contrário, por distanciamento extremamente significante. No entanto, existe certa perspectiva teórica que vincula ambos os conceitos. Para Eidelsztein, e julgo correta sua afirmação, essa leitura implica uma intrincada relação entre duas propostas mui diferentes, a freudiana com seu corpo orgânico e a lacaniana com seu corpo Outro - falaremos disso adiante. Mas, por ora, se for possível retomar o texto de Freud sobre As pulsões e seus destinos, leremos sobre o arco reflexo, o estímulo e a Nervensubstanz, a substância nervosa ou, em outras palavras, o tecido orgânico e vivo (Freud, 2014a). Sem esquecer, finalmente, que a natureza mesma da pulsão é ter sua causa "em fontes estimuladoras no interior do organismo" (Freud, 2014a, p. 21). O problema, então, segundo Eidelsztein, é que em algum momento da história da Psicanálise se somou a pulsão ao gozo ou, conforme proponho, se igualou ou, ainda, menos drasticamente, associou-se a Nervensubstanz, a substância nervosa, à substância gozante. E isso desconsiderando, por assim dizer, o que vai explicar Lacan (1972-1973/inédito, p. 34, tradução do autor) ao propor no Seminário Encore que é o significante que se "situa no nível da substância gozante", não o sistema nervoso. Nas palavras de Eidelsztein (2017b, p. 400, tradução do autor), lemos a seguinte crítica: "em Psicanálise, salvo Lacan, supõe-se a substância (o corpo biológico) e o gozo (sua energia) efetivamente somados [...]. Quero dizer: para os mais destacados autores do lacanismo, a ideia de substância implica a de gozo e vice-versa".

Bem, os corpos de Freud e de Lacan não são os mesmos. Freud trabalha desde uma perspectiva médica e moderna, segundo a qual o corpo é formado de átomos, células, neurônios e coisas similares; o que permite ao pai da Psicanálise pensar em um indivíduo racional cujo aparelho psíquico é tridimensional e representacionista. Mais, autoriza-o a pensar uma proposta clínica que visaria ao Eu, instância racional e construída do contato do Isso com o mundo externo, que pudesse se apropriar cada vez de mais espaço onde outrora havia a instância inconsciente, o Isso (Freud, 2014b). Com Lacan, a ideia é distinta. No seminário de 1966-1967, que se convencionou chamar de Seminário 14: a lógica do fantasma, Lacan nos fala sobre o corpo e, na lição de 10 de maio de 1967, diz que o corpo é da ordem do Outro, ou melhor: "o Outro [...] é o corpo!" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 170, tradução do autor). Ainda afirma que nesse campo do Outro, que para nós é tão comum relacionar ao campo da linguagem, é onde encontramos o corpo; o corpo se encontra no nível do campo da linguagem, do Outro. Ali é onde se encontra o corpo e, mais: é do corpo materno como encarnadura que se trata na origem.

De Freud a Lacan, o corpo se modifica, por assim dizer. O tema do corpo será mais bem trabalhado a seguir e, portanto, após essa breve distinção, proponho seguirmos com o percurso elencado, iniciando nossas discussões com uma passagem por lições selecionadas do Seminário 14.

 

Gozo, Ousia e corpo

Aspiro percorrer principalmente duas lições do Seminário mencionado, a saber, as aulas de 31 de maio e 7 de junho do ano de 1967, para pensarmos o início de nossa discussão acerca do gozo, mas não sem antes citar uma elaboração a partir da aula de 26 de abril. Nela, escutamos de Lacan (1966-1967/inédito, p. 161, tradução do autor) que esse corpo, lugar do Outro, é o "lugar onde se inscreve o discurso da verdade [...] aquela sorte de lugar que os estoicos denominaram incorporal. Terei de dizer o que é, a saber precisamente: que isso é o corpo". Numa tentativa de entender tudo isso, cabe considerar que o corpo, para Lacan do Seminário 14 e que vai ser relacionado ao gozo, é da ordem do Outro e é incorporal. De imediato, se é incorporal, não é substância viva, tal qual propõe Freud; o corpo para Lacan não é uma substância orgânica, nervosa. Mas o que é o incorporal?

A Filosofia estoica dividia a realidade, as coisas, ti, entre coisas corporais, somata, e incorporais, ou incorpóreos, asōmata, descrevendo então quatro elementos incorporais, a saber: vazio, tempo, espaço e exprimível. Nesse sentido, segundo Sellars (2006, p. 164, tradução do autor), incorporal é uma "entidade não-corporal que é real, porém não existe". Uma coisa qualquer que, apesar de não existir, é real. É nessa ordem, lembremos, que Lacan inscreve seu corpo. Por sua vez, Matos (2010, p. 174) nos diz que os incorpóreos "são 'algo' (tò tí), ou seja, 'quase-seres' que expressam o movimento da natureza". Cabe, ainda, ressaltar esse algo que, para os estoicos, estaria acima do ser e que o incorporaria. Esse algo compreende tanto os elementos corpóreos quanto os incorpóreos, muito embora esses últimos não existam, apesar de serem reais. Para os estoicos, o algo, como categoria ontológica, está acima e antes do ser. Guardemos esse algo, essa alguma coisa, que será importante para Lacan ao desenvolver o problema do gozo.

Retomando a citação lacaniana, entendo que o Outro como lugar da linguagem, lugar no qual a verdade se inscreve, é o corpo; e que esse Outro sendo o corpo é um lugar da ordem de alguma coisa incorporal. Esse é o corpo que Lacan circunscreve ao gozo: o corpo incorporal; algo prévio ao ser.

Pois bem, seguindo nossa leitura do Seminário, na lição de 10 de maio de 1967, Lacan diz que o sujeito cartesiano, justamente aquele que se descreve como uma coisa pensante, cuja base ou essência está na alma e na coisa divina (Descartes, 1999), é incompatível com a extensão, res extensa, com o corpo corpóreo, material. No entanto, continua Lacan, isso não nos autoriza a relacionar ou identificar o corpo do sujeito com a extensão. O corpo não é material, orgânico, corpóreo ou extenso. Em outras palavras, apesar da coisa pensante, o sujeito cartesiano propriamente dito, que tem como fundamento a coisa divina, apesar dessa res cogitans ser incompatível com o corpo, res extensa, isso não implica entender o corpo como extensão (Lacan, 1966-1967/inédito). Ou seja, como material. O corpo do qual fala Lacan não é orgânico, material, extenso. O corpo é de outra ordem. O corpo é incorpóreo.

Em 31 de maio do mesmo ano, Lacan (1966-1967/inédito, p. 180, tradução do autor) começa sua aula designando "o lugar do Outro no corpo", corpo incorpóreo, vale lembrar. E diz, ainda, que o corpo, em sua origem, é o lugar do Outro, porque é no corpo que se inscreve uma marca como significante; significante, claro, proveniente de A. Em seguida, começa a falar do gozo propriamente dito ao retomar a problemática do senhor e do escravo hegeliano, e nos diz que o termo gozo, conforme apresentado pelo filósofo, é introduzido a partir da "luta à morte do mestre e do escravo" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 181, tradução do autor), na qual um deles se dá por vencido e cai como servo do outro. Importante ressaltar que para haver rendição a Lei já deveria estar presente antes da luta, e isso não é sem consequência para o entendimento do ensino lacaniano. A Lei da rendição necessariamente já estava posta, ou seja, o simbólico, o lugar do Outro já estava lá. Sem isso, não poderia haver pedido de rendição. Eis outra distinção dos sistemas freudianos e lacanianos. Para Freud, no mito totêmico, primeiro vem o ato e depois a Lei fraterna; em Lacan, primeiro é o Verbo. Enfim, "o gozo intervém aí: o gozo - depois desta 'luta até a morte por puro prestígio', dizem-nos! - será privilégio do senhor, e para o escravo o caminho traçado a partir de então, será o do trabalho" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 181, tradução do autor). Do mestre é a prerrogativa de gozar do corpo, de uma parte do corpo do escravo, mas não absolutamente. E isso porque do que o mestre goza é, de certa forma, do ócio; do corpo do outro à sua disposição.

Para além do problema hegeliano, Lacan nos diz que o gozo, desde uma perspectiva psicanalítica, deve ser pensado a partir de um paradigma específico, a saber, aquilo que é da ordem da substância aristotélica, conforme descrito na obra Categorias. Ou seja, consoante nos diz o psicanalista francês, o gozo é da ordem de uma substância, ousia, que tem por característica não ser e tampouco ser atribuível a um sujeito. O gozo seria alguma coisa, quelque chose, impossível de ser e algo que, a não ser atribuível, não pode ser susceptível de quantificação, de algo mais, menos ou igual. Nesse sentido, o gozo não teria qualidades comparativas (Lacan, 1966-1967/inédito).

Se pudermos retomar aquilo que escreve Aristóteles em sua Categorias para, em seguida, associarmos ao que Lacan tenta descrever como o gozo, faz-se importante entender que a substância, ousia, é aquilo que se pode dizer de alguma coisa em seu "sentido mais fundamental, primeiro e absoluto [mas] que não é dita de nenhum sujeito, nem está em algum sujeito" (Aristóteles, 2019, p. 113), ou seja, a ousia de alguma coisa é aquilo que de mais essencial ela é, mas que não pode ser predicada a um sujeito determinado, nem pode ser encontrada em um sujeito particular, não obstante os sujeitos possam ser pensados nela. De suas características, entendo necessário recortar que: a) a substância não pode ser predicado de um sujeito; b) as substâncias não podem ser comparadas quantitativamente; c) a substância é algo de um absoluto fundamental; d) a substância absoluta, primeira, "nem é dita de um sujeito nem está em um sujeito" (Aristóteles, 2019, p. 119); e) as coisas que pertencem a um sujeito não podem ser consideradas substâncias; f) não há o contrário de uma substância, porque ela é algo de absoluto e fundamental; g) "a substância não recebe o mais e o menos [...] porque uma substância não é mais substância do que outra" (Aristóteles, 2019, p. 125); e h) a substância é paradoxal, pois acumula os contrários, não podendo haver o contrário de uma substância.

Lendo tais características a partir daquilo que Lacan propõe acerca do gozo nesse momento de sua obra, poderíamos construir que: a) o gozo não pode ser predicado de um sujeito, no sentido de que não pode estar vinculado a um sujeito; b) o gozo não pode ser comparado quantitativamente, ou seja, não existe um gozo mais que outro; c) o gozo é algo de fundamental e absoluto, talvez por isso a vinculação com os deuses - falaremos disso adiante; d) o gozo não é dito de um sujeito nem está em um determinado sujeito, quiçá o gozo nem diga respeito a um sujeito, até porque e) aquilo que pertence a um sujeito não pode ser considerado um gozo; f) por ser absoluto, não existe o contrário do gozo; g) um gozo não é mais gozo do que outro gozo, tampouco menos; e h) o gozo é paradoxal, no sentido de que, sendo absoluto, acumula todos os contrários - discutiremos esse aspecto adiante, ao pensarmos no Deus de Agostinho.

Retomando Lacan, e pensando sobre o gozo como quelque chose, não nos esqueçamos dos incorpóreos como , algo, alguma coisa. E não nos esqueçamos porque em seguida da explicação acerca de Aristóteles, Lacan (1966-1967/inédito, p. 183, tradução do autor) nos diz que "não existe gozo senão do corpo". Mas, vale ratificar, corpo numa dimensão outra que não a do materialismo ou organicismo, um corpo que é originalmente d'Outro lugar e que, como discutimos anteriormente, remete necessariamente aos incorpóreos estoicos. Até porque essa matéria pode ser pensada como composta por significantes, ou seja, não é de res extensa que trata Lacan.

Retornando a Hegel, Lacan (1966-1967/inédito, p. 184, tradução do autor) acrescenta ao problema do gozo o conceito de alienação ao dizer que "só há gozo do corpo [...] porque o efeito da introdução do sujeito, ele mesmo efeito de significância, é colocar o corpo e o gozo nessa relação que defini pela função da alienação". E continua: "o gozo é, nesse fundamento primordial da subjetivação do corpo, o que cai sob a dependência dessa subjetivação e desaparece" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 184, tradução do autor). Uma maneira de ler essa construção lacaniana é se apoiando no entendimento da alienação, enquanto fundamento radical do sujeito e por consequência do corpo enquanto causado pelos significantes, enfim, se apoiar na leitura da alienação a partir da ideia de união entre conjuntos [a parte de baixo do losango no matema do fantasma, ($ a)], mais especificamente a relação entre S1 - S2. Ou seja, se o sujeito é aquilo que aparece entre significantes, o próprio desenrolar da cadeia faz necessariamente desaparecer o sujeito, o corpo e o gozo. Como nos explica Eidelsztein ( 2019, p. 308, tradução do autor), a alienação é efeito do par significante "que causa o desaparecimento do sujeito como ser (dado por S1), ou como sentido (dado por S2). Esse desvanecimento do sujeito é equivalente à emergência do sujeito do intervalo, mas ainda preso pelo efeito letal da dupla significante". A separação, enquanto intersecção, a entrada do desejo do Outro na jogada, é o que salva o sujeito, por assim dizer, do efeito letal dessa dupla de significantes. Então, o gozo e o corpo são colocados na jogada pela instalação do sujeito enquanto criado, causado n'Outro lugar (A) por meio dos significantes e que desvanece pela própria lógica da alienação.

Retornando à questão hegeliana, podemos também pensar o gozo como uso e posse, usufruto, que depende da lógica da subjetivação dos corpos, dessa criação fundamental desde Outro lugar que se dá por meio e através dos significantes; mas que, em seguida, esse jogo do gozo, já desaparece. E desaparece, podemos pensar, porque a posição privilegiada do mestre é justamente a possibilidade de renunciar ao gozo; possibilidade de usar ou não os corpos. É isso que faz do mestre um mestre. No final das contas, o mestre é aquele que pode não gozar do corpo.

Pois bem, se ao mestre é dada a possibilidade de usufruir ou não dos corpos, ao escravo cabe o imperativo do gozo (tal qual a invocação superegoica), muito embora e paradoxalmente, a questão da possibilidade de gozo nele se cristalize. Se a Lei simbólica que se instala também advinda do lugar do Outro, Lei que remete ao senhor absoluto hegeliano como sancionador da morte, e se o sujeito como efeito do significante se instala marcadamente desde uma separação entre corpo do Outro e questão sobre o gozo, cabe questionar se o sujeito no lugar do corpo incorpóreo pode manejar algo de um gozo. Lacan responde a isso discorrendo sobre o ato sexual. Não obstante, importa pensar justamente que quem goza é o Outro, apesar do problema do ato sexual como questão do gozo, masculino ou fálico. Outrossim, Lacan nos diz que o escravo foi privado de seu corpo após perder a batalha, portanto seu corpo pertence ao mestre para dele gozar, ou não.

Então, diante da realidade da possibilidade do mestre de gozar, ou não, ao escravo fica a impressão de um gozo suposto por parte do Outro, ou seja, não é certo que o Outro goza. E, por isso, a questão que Lacan (1966-1967/inédito, p. 186, tradução do autor) diz importar é "disso que se goza, goza?"; em outras palavras, o escravo, essa coisa-corpo da qual o mestre pode, ou não, gozar, o escravo goza? Talvez no ato sexual? Mas do que ele gozaria? Voltaremos nesse ponto.

Seja como for, Lacan diz que é do lugar dos objetos, pequenos a, à margem da possibilidade de gozar como um mestre, que se pode justamente questionar o gozo do escravo. Juntamente com essa questão, diz o psicanalista que é a partir daí que o perverso interroga: "é desse ponto, do lugar do pequeno a que o perverso interroga - interroga! - o que é da função do gozo" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 186, tradução do autor).

Entendo interessante fazermos um desvio neste momento para pensarmos a questão do perverso e da função do gozo questionado desde esse lugar do pequeno a. Eidelsztein, em seu Las estructuras clínicas, diz que aquele falasser que se encontra estruturalmente no lugar da perversão caminha na fórmula do fantasma no sentido inverso, ou seja, de a a $. Nesse sentido, o perverso é "tomado como objeto com caráter de falo, ou seja, φ, que obtura a falta do Outro e, no limite, de A" (Eidelsztein, 2017a, p. 206, tradução do autor). É essa falta do Outro que o perverso do lugar do pequeno a tenta obturar, essa falta que está vinculada à função do gozo, no sentido de que o mestre não possui de fato o corpo do escravo, muito embora possa dele gozar, ou não. O que Eidelsztein nos lembra é de que essa posição traz um duplo engano a confirmar que, primeiramente, o perverso não goza, uma vez que ele é escravo do Outro na tentativa de particularizar a falta, ou seja, o perverso é aquele que tenta tamponar a falta no Outro encenando cada vez uma falta única, protegendo, por assim dizer, a falta estrutural. E, segundo, o falasser na posição de perverso, apesar de se acreditar causa, "não é mais do que instrumento posto a serviço do Outro e, no limite, de A" (Eidelsztein, 2017a, p. 213, tradução do autor). O perverso, nesses termos, é colocado a serviço do gozo do Outro para tamponar, obturar sua falta estrutural e, com isso, a posição perversa pode ser relacionada como a posição religiosa, daquele que defende Deus, tal qual Cristo o fez, preenchendo a falta estrutural pela encenação de faltas contingenciais. Então, "se o fantasma perverso [...] se caracteriza por ser vontade de gozo, com isso não devemos entender que se produzam gozadores, senão voluntários e sacrificados servidores. O grito dos cruzados era: [...] 'É a vontade de Deus!'" (Eidelsztein, 2017a, p. 222, tradução do autor). O perverso salva, por assim dizer, o gozo do mestre ao mesmo tempo em que coloca em questão a sua própria possibilidade de gozar. Os cruzados, não eram eles que gozavam ao realizarem seus atos, era sempre a "vontade de gozo de Deus" que estava em jogo.

Ora, até o momento se discorreu sobre o gozo a partir da questão do corpo e da luta de morte entre o senhor e o escravo, o que nos trouxe a compreender que é do Outro a prerrogativa de gozar, ou não, do corpo incorpóreo que tem por origem o próprio lugar do Outro. E, com isso, chegamos à aula de 7 de junho de 1967, na qual encontramos a ideia de que o corpo do qual se goza é metáfora do gozo daquele que goza: "seu corpo se torna a metáfora do meu gozo" (Lacan, 1966-1967/inédito, p. 191, tradução do autor). Assim, há, segundo Lacan, um deslocamento do gozo do mestre, no sentido de que o mestre goza do corpo do outro, ou seja, uma metáfora do escravo; e, no caso do escravo, seu gozo está perdido, à deriva, extraviado. Agora, se o corpo, a função do corpo, é o lugar do Outro, é desse e nesse lugar que o Outro goza, deixando esse corpo, escravo, a questionar se ele também pode gozar. Se o gozo do escravo está à deriva e em questão, a possibilidade do gozo do Outro é certa.

Esse outro gozo, à deriva, faz Lacan questionar o que podemos chamar de gozo masculino, que se relaciona ao falo e é da ordem da crença. Acredita-se que se pode pegar o diminuto órgão o qual faria gozar. O falo, ou phallus, é a parte negativada do corpo, perdida, desejada e da qual se pode gozar como metáfora. E é por isso que no nó borromeu o gozo fálico, , está fora do corpo imaginário, porque justamente o phallus é a parte do corpo que não está aí - falaremos disso adiante. Uma parte negativada do corpo com a qual eu, como escravo, poderia gozar. À diferença do escravo, que não possui o falo, os deuses, ou as deusas, segundo Lacan, são gozo. Tal qual Isis, a eterna enlutada, que percorreu a Terra à procura das partes de Osíris para não encontrar seu pênis e construir um substituto de ouro, o phallus. Isis, a deusa, é puro gozo, pura posse e uso das partes do corpo de Osíris às expensas do pênis. Um gozo do Outro, JA, todavia, fora do corpo simbólico, justamente porque aos deuses não importa o corpo mortal. Mas, diz ainda Lacan, apesar de serem gozo, o gozo não importa aos deuses, eles não se questionam sobre o gozo. A questão, o questionar, isso é prerrogativa dos escravos.

Com isso, Lacan distingue o que poderá ser descrito como gozo do Outro, JA, e gozo fálico, , o primeiro fora do simbólico e o segundo fora do imaginário. O primeiro destinado aos deuses/mestres que gozam de seus servos/escravos quando querem, enquanto os escravos são destinados a questionarem se de fato gozam e como o fazem a partir dessa troca de objetos vinculada à problemática do falo, metáfora por excelência.

 

Substância gozante

Pois bem, meia década depois, no Seminário 20, intitulado Encore, Lacan, já na primeira aula, a de 21 de novembro de 1972, nos convida a diferenciar o gozo do Outro, que então ele vai associar ao ser, e o gozo sexual, que podemos associar ao gozo fálico. Na ocasião, disse que "o ser é o gozo do corpo como tal, quer dizer [...] como (a)ssexuado" (Lacan, 1972-1973/inédito, p. 7, tradução do autor). Cabe, contudo, lembrar que o ser de Lacan, pelo menos desde 1955, é o não-ser da oitava ou nona hipótese do Parmênides de Platão (Mohr, 2020); ou seja, o ser como A, como Outro radical é não-ser porque não pleno. Esse A, e por consequência o Outro enquanto não-ser, não-um, é, tal qual Isis e os deuses, o gozo do corpo, incorpóreo, como assexuado. O gozo sexuado, por sua vez, está "marcado pela impossibilidade de estabelecer como tal [...] esse Um que nos interessa: o Um da relação sexual" (Lacan, 1972-1973/inédito, p. 7, tradução do autor).

Com o intuito de tentar clarear a distinção entre o gozo do Outro, o gozo dos deuses, o gozo do Um daquilo que podemos chamar de gozo fálico ou gozo sexual, proponho certa digressão e regressão, ao menos temporal. Agostinho Aurélio, o Bispo de Hipona, tem em suas Confissões uma interessante passagem acerca do gozo, na qual afirma: "Longe, Senhor, longe do coração do teu servo que confessa a ti, longe, me julgar feliz por qualquer gozo que porventura eu goze" (Agostinho, 2017, p. 277). A citação é maior, mas por enquanto esse início nos lembra de três aspectos assaz interessantes: a) que há um servo e um gozo referente a esse servo; b) que o servo é distinto do mestre e Senhor; e c) que o gozo do servo é indigno de trazer a felicidade. Do que vimos até aqui acerca do gozo, parece que esses três aspectos se sustentam, no sentido de que há um gozo do Outro, dos deuses, do Um, que é distinto do gozo fálico, sexual, relativo ao escravo e que deve ser pensado como uma questão; além disso, é da ordem do gozo do Outro o que podemos pensar como felicidade como bem supremo (Aristóteles, 2009), porque, muito embora não obrigatoriamente, esse mestre e Senhor pode do outro usufruir quando bem desejar. Ao escravo é deixada uma questão sobre o gozo, relativo ao sexual e ao falo, a uma parte do corpo do outro como negativada. O gozo do escravo está à deriva, tal qual o phallus de Osíris.

Continua Agostinho (2017, pp. 277-278): "há um gozo, com efeito, que não é concedido aos ímpios, mas àqueles que te cultuam [Senhor] desinteressadamente, cujo gozo tu mesmo és. Essa é a vida feliz: regozijar-se em ti, de ti, por causa de ti". Vale lembrar que o Deus de Agostinho, nas Confissões, tem um caráter paradoxal na parte biográfica da obra - livros I a IX -, sendo aquele que é "imóvel e inapreensível; imutável, que tudo muda; nunca novo, nunca velho; [...] que procura, sem que nada lhe falte. [...] amas e não ardes; és ciumento, mas sem receios; arrependes-te, e não sofres; enfureces-te, e permanece calmo" (Agostinho, 2017, p. 39); mas que é descrito como ser pleno e atemporal a partir dos livros X e XI, principalmente. Nesse sentido, o gozo que é Deus é da ordem desse Ser que cria e que, apenas a partir de sua criação, as coisas, servos de Deus em Deus, podem existir - o tempo, inclusive. Diferença marcante entre mestre e escravo, Senhor e servo, gozo do Outro e gozo fálico - Outro, aliás, que pode ou não usufruir de seu escravo, enquanto o gozo fálico, sexual, do servo permanece na ordem de uma questão. Retornando a Lacan (1972-1973/inédito, p. 7, tradução do autor), ele diz que "o gozo fálico é o obstáculo por conta do qual o homem não chega [...] a gozar do corpo da mulher precisamente porque o daquilo que ele goza é o gozo do órgão", órgão negativado.

Na lição datada de 19 de dezembro de 1972, Lacan nos apresenta uma costura interessante entre o gozo, o significante, o corpo e a substância - agora não mais associada diretamente à ousia aristotélica, senão à proposta cartesiana. Dessa relação, lembra-nos de que o Outro simboliza o corpo, esse Outro que é o corpo e que, simbolizando-o, instala e instaura uma nova substância, aquela que o psicanalista vai denominar substância gozante. A substância gozante, substância do corpo incorpóreo, é definida por Lacan como alguma coisa da qual se goza. Ou seja, o Outro ao criar o corpo por meio do significante cria-o como uma substância, substância do corpo, nomeada substância gozante, até porque o significante é a causa material do corpo incorpóreo (Lacan, 1972-1973/inédito). A substância gozante, então, é a substância, absoluta, de um corpo incorpóreo criado por meio dos significantes que advieram de A e, por conseguinte, do Outro. E, se o Outro é também o corpo que por ele foi criado, o gozo é essa relação de uso, ou não uso, do corpo gozante por parte do Outro. No final das contas, ratifica o autor: "é o Outro que goza" (Lacan, 1972-1973/inédito, p. 34, tradução do autor), e goza do corpo do Outro como substância gozante.

Essa nova proposta, a de uma substância gozante, Lacan a emprega, parece-me, para divergir da tríade cartesiana, res cogitans, extensão e Deus. A substância gozante nos diz que o corpo não é extenso, tampouco que a relação de Deus e a alma - pensante - enquanto causa do sujeito deva ser usada para sustentar uma materialidade do corpo. O corpo não é material, nervoso, orgânico. O corpo do gozo é Outro, é da ordem dos deuses, é substância, e uma nova, gozante. Ademais, "o inconsciente não nos disse absolutamente nada acerca do sistema nervoso" (Lacan, 1972-1973/inédito, p. 103, tradução do autor). O inconsciente, lembremos, discurso do Outro (A).

Em 8 de maio de 1973, ainda no Seminário 20, Lacan aprofunda essas questões, ao dizer que o inconsciente, porquanto é o discurso do Outro, deve nos remeter não ao pensamento, no sentido da coisa pensante de Descartes, mas ao ser que, falando, goza. Ser que, cabe lembrar, não se encontra do lado do sujeito, senão dos deuses e do Outro. Da parte do homem, do falasser, a ele cabe, sendo nada mais que um objeto, servir a uma história. Causado eficientemente e finalmente pela morte (Mohr, 2020), ao homem cabe apenas viver enquanto a aguarda. O gozo é de Deus, em Deus e para Deus. Nesse sentido, se em 1967 Lacan disse que o Outro é o lugar onde se assenta a verdade, agora em 1973 ele complementa lembrando que essa verdade é o lugar do dito. Aliás, vem do Outro os significantes; é d'Ele a prerrogativa do gozo e, portanto, se recordarmos das qualidades da ousia, um sujeito não pode ter ou ser um gozo; logo, se goza, mas ninguém pode gozar. O gozo é o lugar do corpo incorpóreo, lugar do Outro, no falasser. Quem goza, então?

 

Breve leitura do gozo no nó borromeu

Rumando para o final dessas construções, ainda entendo interessante percorrermos mais um momento do ensino lacaniano, desta vez do ano de 1974 e que se denomina La troisième, A terceira; uma conferência proferida por Lacan em Roma na data de 1º de novembro de 1974. Nessa conferência, o psicanalista constrói um entendimento do gozo - especificamente o gozo fálico, jouissance phallique,, e o gozo do Outro, jouissance de l'Autre, JA - a partir do nó borromeu, assim desenhado:

 

 

Figura 1. Nó borromeu
Fonte: Lacan (1974/inédito, pp. 17-18).

A partir da representação do nó borromeu, entende-se que o gozo do Outro é fora da linguagem, fora do corpo do Outro propriamente falando, corpo esse enquanto causado pelo significante e tendo como substância a nova proposta lacaniana de uma substância gozante. Por sua vez, o gozo fálico é fora do corpo imaginário, aquele corpo que se refere ao semelhante. Entre os dois há o objeto a e ambos estão fora daquilo que é da ordem do sentido. Nesse momento, Lacan (1974/inédito, p. 11) vai nomear o gozo do Outro também como gozo do corpo - do Outro, bem entendido - e vai dizer que esse é gozo da vida. Ouso dizer que assim o é porque, apesar de o gozo fálico também pertencer ao nó Real, esse último está intrinsicamente vinculado com a morte, enquanto o gozo do Outro, fora da morte, fora do simbólico, se relaciona com isso que é da ordem do impossível. Do impossível da existência de uma vida a partir de um objeto inorgânico. Contudo, cabe ressaltar, que o JA também se insere no Imaginário e com isso no corpo imaginário, especular; afinal, o corpo incorpóreo "se introduz na economia do gozo [...] pela imagem do corpo" (Lacan, 1974/inédito, p. 12).

Pois bem, sobre o objeto a, ao centro da figura, e que nesse momento Lacan vai nomear mais-de-gozar, plus-de-jouir, cabe dizer que ele é o que separa os gozos. Contudo é também o lugar onde esses gozos se encontram, se ligam. Percebam que há um conjunto JA-a e outro Jφ-a, como se o objeto a fosse algo de um complemento a ambos os gozos, mas um complemento que cada gozo não tem, de fato. Resta um mais-de-gozar, um ainda-a-gozar que nunca se obtém, tal qual se engana o mito de Eros. De minha parte, ouso conjecturar que esse mais-de-gozar do gozo fálico parece se vincular ao phallus em si como objeto negativado, enquanto o mais-de-gozar do gozo do Outro parece estar na possibilidade mesma de não gozar do mestre e do gozo do escravo sempre enquanto questão - mas isso são apenas especulações.

 

Considerações finais

Objetivei neste artigo estudar o conceito de gozo conforme proposto por Lacan em dois momentos de sua obra, a lembrar no Seminário de 1966-1967 e no de 1972-1973, esmiuçando os temas que o autor utiliza para descrever sua proposta conceitual, em especial as ideias de substância e de incorporal. Com esse foco em mente, foi percorrido o estudo proposto e ainda se aprofundou o problema da substância em Aristóteles e Descartes, os incorpóreos estoicos, uma certa distinção conceitual entre Freud e Lacan para, finalmente, desembocarmos em um rápido estudo do gozo na conferência intitulada A terceira.

Claro está que não pude contemplar toda a profundidade e extensão - para usar uma palavra cara ao assunto - do conceito de gozo no ensino de Lacan, muito embora entendo que o objetivo proposto por ora foi alcançado e isso torna possível sustentar, ao menos, que: a) o conceito de gozo, conforme propõe Lacan, não pode ser reduzido à pulsão freudiana; b) tem características tais quais a ousia aristotélica; c) pode ser lido a partir da luta do mestre e escravo hegeliana; d) pode ser vinculado à ideia do gozo de Deus; e e) sua substância se distingue das substâncias cartesianas - coisa pensante, coisa extensa e coisa divina.

Nada obstante, finalizo apontando que há outros aspectos que podem e devem ser observados e esmiuçados no tocante ao gozo, cabendo, com certeza, tantos outros e novos estudos.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Allan Martins Mohr
E-mail: allan.mohr@gmail.com

 

 

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Psicólogo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPR), Câmpus Curitiba. Docente do curso de Psicologia da FAE Centro Universitário.

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