SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número18Psicanálise e matriciamento: novos horizontes à ética do desejoDois ensaios, diferentes perspectivas: interlocuções entre "Bate-se numa criança" e "Fantasias de surra e devaneios" índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Sobre o Unheimlich: entre a Literatura e a realidade da mídia1

 

About the Unheimlich: between Literature and the Reality of the Media

 

A propos de l'Unheimlich: entre la Littérature et la réalité des médias

 

Sobre el Unheimlich: entre la Literatura y la realidad de los medios de comunicación

 

 

Juliana Bartijotto*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar o Unheimlich, um conceito sobre o retorno do recalcado proposto por Freud. Para ilustrá-lo, utilizo algumas obras literárias (O homem de areia; O estrangeiro; Bartleby, o escrivão) e o funcionamento da imagem na mídia. A foto de Aylan Kurdi, uma criança síria encontrada morta em 2015, serviu como imagem-referência para esboçar o funcionamento do Unheimlich na realidade da mídia. Essa foto viralizou, causando grande repercussão, fazendo com que ganhasse o prêmio de melhor foto do ano, eleita o símbolo da crise dos refugiados. A partir da análise das obras literárias e da imagem, extraí que o Unheimlich é um despertador de angústia que pode emergir no particular, mas, também, de modo coletivo (modo que implica o estatuto do discurso e da ideologia), uma vez que esse estranho-familiar é de ordem estrutural que emerge na relação do sujeito com o Outro. Constato, assim, que o processo de identificação e de interpelação ideológica sustenta a emergência do Unheimlich, tocando o inconsciente (recalcado) e causando angústia (inquietante estranheza), tanto na Literatura quanto em imagens de barbárie que circulam atualmente na mídia.

Palavras-chave: Mídia, Foto, Literatura, Inconsciente, Ideologia, Unheimlich.


ABSTRACT

This article aims to apprehend the Unheimlich, a concept on the return of the repressed, theorized by Freud. To support this research, we will first study the following literary works: The Sandman, Ernest Hoffman; The Stranger, Albert Camus; Bartleby, the writer, Herman Melville. Then, in a second step, we will focus on the impact of the shocking image of Aylan Kurdi, the Syrian boy found dead in 2015, in the media. The photography served as a reference image, and brought the Unheimlich to the fore in the media virtual space. This image has gone viral, spread worldwide. Voted best photograph of 2015 by journalists, it embodies the symbol of the refugee crisis. It appears, from the analysis of literary works and the image, that the Unheimlich is an awakening of anguish that can arise in the individual, but also collectively. The collective implies the status of discourse and ideology. In this case the Unheimlich is structural. It can manifest itself in the relationship of the subject to the Other. The process of ideological identification and questioning is a condition for the appearance of the Unheimlich, touching the unconscious (repressed) and causing anxiety (worrying strangeness). This is reflected in both the Literature and the images of barbarism that are currently circulating in the media.

Keywords: Media, Photography, Literature, Unconscious, Ideology, Unheimlich.


RÉSUMÉ

Cet article vise à appréhender l'Unheimlich, un concept sur le retour du refoulement, théorisé par Freud. Pour étayer cette recherche, nous étudierons, dans un premier temps, les œuvres littéraires suivantes: L'homme de sable, Ernest Hoffman ; L'étranger, Albert Camus ; Bartleby, l'écrivain, Herman Melville. Puis, dans un second temps, nous nous concentrerons sur l'impact de l'image choquante d'Aylan Kurdi, l'enfant syrien retrouvé mort en 2015, dans les médias. La photographie a servi d'image de référence, et a fait émerger l'Unheimlich dans l'espace virtuel médiatiques. Cette image est devenue virale, diffusée à l'échelle mondiale. Élue meilleure photographie de l'année 2015, par les journalistes, elle incarne alors le symbole de la crise des réfugiés. Il apparaît, d'après l'analyse des œuvres littéraires et de l'image, que l'Unheimlich est un réveil d'angoisse qui peut naître chez le particulier, mais aussi collectivement. Le collectif implique le statut du discours et de l'idéologie. Dans ce cas, l'Unheimlich est d'ordre structurel. Il peut se manifester dans la relation du sujet à l'Autre. Le processus d'identification et d'interpellation idéologique est une condition à l'apparition de l'Unheimlich, touchant l'inconscient (réfoulé) et provoquant l'angoisse (inquiétante étrangeté). Cela se retrouve à la fois dans la Littérature et dans les images de barbarie qui circulent actuellement dans les médias.

Mots-clés: Medias, Photographie, Littérature, Inconscient, Ideologie, Unheimlich.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo abordar el Unheimlich, un concepto sobre el retorno de lo reprimido por Freud. Para ilustrarlo, utilizo algunas obras literarias (El hombre de arena, Elextranjero, Bartleby, el escribiente) y el funcionamiento de la imagen en los medios. La foto de Aylan Kurdi, imagen de un niño sirio encontrado muerto en 2015, sirvió como imagen referencia para esbozar el funcionamiento del Unheimlich según la realidad de los medios. La foto se viralizó, causando una gran repercusión, obteniendo el premio de mejor foto del año, elegida como símbolo de la crisis de los refugiados. A partir del análisis de las obras literarias y de la imagen, extraje que el Unheimlich es un despertador de angustia que puede emerger en lo particular pero también de modo colectivo (modo que implica el estatuto del discurso y de la ideología), ya que ese extraño-familiar es de orden estructural que emerge en la relación del sujeto con el Otro. Constato así, que el proceso de identificación y de interpelación ideológica sustenta la emergencia del Unheimlich, tocando el inconsciente (reprimido) y causando angustia (inquietante extrañeza), tanto en la Literatura como en imágenes de barbarie que circulan actualmente en los medios.

Palabras claves: Medios, Foto, Literatura, Inconsciente, Ideología, Unheimlich.


 

 

1 Introdução

A foto de Aylan Kurdi, uma criança síria de etnia curda de 3 anos encontrada morta numa praia da Turquia, mobilizou o mundo. Ele morreu afogado durante a tentativa de atravessar o Mediterrâneo com sua família, no intuito de fugir da guerra que assola seu país. Essa foto chocou o mundo, compartilhada e comentada nos jornais do mundo todo e nas redes sociais, e escancarou ao mundo uma das barbáries de nossos tempos.

 

 

Figura 1. G1, foto de Nilüfer Demir.

A fotógrafa que cobre a crise migratória em Bodrum, ao se deparar com a cena, ficou "petrificada": fotografar esse acontecimento seria "a única forma de expressar o grito desse corpo silencioso (G1, 2015, on-line)". Além disso, ela narra que

[...] ele estava deitado de barriga para baixo sem vida na areia, de camiseta vermelha e o seu short azul escuro. A única coisa que eu poderia fazer era tomar seu clamor ouvido. Naquele momento, eu pensei que poderia fazer isso ao acionar minha câmera e fazer sua foto [...]. Eu testemunhei muitos incidentes com imigrantes nesta região, suas mortes, seus dramas. Espero que isso agora mude. Fiquei chocada, me senti mal por eles. A melhor coisa a fazer era tornar sua tragédia conhecida. (G1, 2015, on-line).

Por que tamanha comoção diante da imagem de uma criança morta? Foi a viralização da foto que causou enigma ou a própria foto? Como essa imagem pode tocar algo de mim e ainda me causar uma inquietante estranheza?

A partir das questões suscitadas, o presente artigo tem como objetivo abordar o Unheimlich, um conceito sobre o retorno do recalcado proposto por Freud. Para ilustrá-lo, utilizo algumas obras literárias (O homem de areia; O estrangeiro; Bartleby, o escrivão) e uma foto que teve grande repercussão na mídia. A foto de Aylan Kurdi serviu como imagem-referência para esboçar o funcionamento do Unheimlich na realidade da mídia contemporânea. Escolho essa foto porque, além de ter afetado espectadores do mundo todo, carrega uma inquietação: uma ambivalência ao retratar o trágico de nossos tempos (o refúgio no século XXI) e, ao mesmo tempo, revelar algo familiar (imagem de uma criança) que toca algo de ordem inconsciente.

No primeiro momento desse artigo, retorno ao texto de Freud (1919/1996) Das Unheimlich e prossigo nesse conceito com Lacan (1963-64/2005), entre outros autores. Na sequência, ilustro o Unheimlich nas obras literárias: O homem de areia (Hoffmann); O estrangeiro (Albert Camus); Bartleby, o escrivão (Herman Melville). Além disso, retomo o processo de identificação para a Psicanálise e, a partir do conceito de ideologia - conforme Althusser (1993) e Pêcheux, (1988) -, sinalizo a identificação em massa que operou no caso da foto da criança morta.

 

2 Unheimlich: o estranho-familiar

Freud (1919/1996) faz uma análise linguística do significante Unheimlich na tentativa de extrair uma noção teórica desse fenômeno. Cabe ressaltar que na versão brasileira, publicada pela editora Imago, essa palavra foi traduzida como O estranho; na tradução da Companhia das Letras, como O inquietante; como L'Inquiétante étrangeté, na tradução francesa; The uncanny, na versão inglesa; Lo siniestro, na versão espanhola, entre outras. Unheimlich não se trata do estranho ou do estrangeiro, embora a primeira tradução para o português possa causar certa confusão, mas sim algo que causa estranheza ao sujeito que olha.

Un (modo de negar) + heimlich (familiar), quer dizer, na língua alemã, negação daquilo que é familiar - lembrando que no inconsciente não há negação, essa função é do eu, uma das instâncias psíquicas proposta por Freud (1923/1996).

Na recente publicação bilíngue (português e alemão), a tradução é a invenção da palavra infamiliar, de Ernani Chaves e Pedro Eliodoro Tavares, da Editora Autêntica. Com esse neologismo, os autores apontam, também, para a complicação das traduções.

O infamiliar mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas também que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento. O infamiliar não é, nesse sentido, resultado da fidelidade à língua de partida, mas o vir à tona da infidelidade que tornou possível a transposição do hiato entre as línguas. É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita. Assim, não deixa de ser também uma intradução que, em vez de esconder o problema da inevitável equivocidade da tradução, o faz vir à tona. (Iannini & Tavares, 2019, p. 9).

Trata-se da invenção de um significante, uma palavra que delimita, em certa medida, um conceito que, por sinal, segue-se intraduzível, na medida em que são produzidas as mais variadas traduções, causando, muitas vezes, confusões e equívocos quanto à proposta desse conceito. Digo intraduzível no sentido de algo que não cessa de produzir diferentes traduções.

O Unheimlich está relacionado com o que é assustador, com o que provoca medo e horror, entretanto é aquilo que foi um dia familiar. Nessa perspectiva, "[...] o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é muito conhecido, ao bastante familiar" (Freud, 1919/2010, p. 331). O inquietante é aquilo que nos deixa desarvorados e não existe, em muitas línguas, uma palavra que tenha o sentido de inquietante e familiar ao mesmo tempo.

Nem sempre podemos equivaler o estranho ao não familiar. Para demonstrar essa não equivalência, Freud (1919/1996, p. 241) faz uma rebuscada análise do Unheimlich contrapondo com o heimlich no discurso. O autor evoca alguns enunciados para explicitar: "os proprietários de terra protestante não se sentem [...] heimlich entre os seus subordinados católicos"; "não se sentia absolutamente heimlich quanto a isso"; "parece bastante Unheimlich e fantástico"; "Unheimlich é o nome de tudo o que deveria ter permanecido... secreto e oculto, mas veio à luz", etc. A palavra heimlich não deixa de ser ambígua, visto que pertence a dois conjuntos de ideias que são diferentes, sendo que, por um lado, pode significar o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora de vista. Portanto, "heimlich é uma palavra que desenvolve seu significado na direção da ambiguidade, até afinal coincidir com o seu oposto" (Freud 1919/2010, p. 340).

Hanns (1996, p. 233) elenca sete conotações do Unheimlich a partir de sua leitura do texto freudiano:

a) A sensação de estar diante do das Unheimlich deixa o sujeito indefeso, pois é "o estranho" naquilo que possui de mais indefinível, imprevisível; b) É algo insidioso, sorrateiro, não se sabe quando se será atingido;
c) Não se sabe de onde provém o das Unheimlich, pois é justamente algo indefinível e sorrateiro;
d) O das Unheimlich se arma em torno do sujeito e é grandioso;
e) O das Unheimlich, ao se armar em torno do sujeito, está ou em breve estará próximo e poderá atingi-lo;
f) Seremos em algum momento subitamente atingidos pelo das Unheimlich;
g) Há um conteúdo fantasmagórico que torna o das Unheimlich inapreensível e inefável e o dota de certa "irrealidade" ou de um "realismo fantástico".

Desse ponto de vista, o Unheimlich é um elemento (ou um traço de identificação) do aparelho psíquico que se localiza numa fronteira invisível entre o sujeito e o Outro. Esse elemento que possa parecer estranho à primeira vista é, na realidade, um elemento constitutivo e familiar do sujeito que foi recalcado, ou seja, está mais próximo da intimidade do sujeito e causa perturbação. Da mesma maneira, o Unheimlich se remete em última instância a uma cena traumática que, por sua vez, remete à castração, algo que causa angústia e mal-estar.

O recalque é exatamente aquilo que está na superfície, mas não se vê, podendo retornar ao eu na condição de que seja negado, diz Freud (1925/1996). Sob esse viés, negar algo é, no fundo, manter algo que não se aceita na obscuridade; uma vez que no inconsciente não existe pares de contrários, a negação ocorre no nível do eu-consciente: "[...] o juízo negativo é o substituto intelectual do recalque" (Freud, 1925/1996, p. 266).

Em suma, o Unheimlich é o retorno do recalcado, que pode vir sob a forma de negação - não é familiar - ou com a imposição de sentidos fornecidos pelo outro ou, ainda, pela interpelação ideológica (Pêcheux, 1988). Pode retornar também como ameaça à consistência subjetiva, momento em que o sujeito se depara com a seguinte formulação: ou eu ou ele, não há lugar para nós dois.

Nesse sentido, o Unheimlich está diretamente ligado ao processo de identificação (ou contraidentificação) do sujeito ao Outro/outro, pois esse elemento afeta o sujeito que olha numa espécie de projeção, na medida em que é interpelado pela ideologia. Observo, assim, que houve uma identificação coletiva à foto de Aylan morto. Retomamos esse processo segundo a proposta psicanalítica.

 

3 Os modos de identificação

A foto de Aylan traz um traço: a imagem de uma criança morta e sem identidade, por meio da qual o sujeito (leitores e espectadores) se identifica de modo imaginário: poderia ter sido eu, meu filho, meu irmão etc. A veiculação e a "viralização" da foto provocaram no leitor uma proximidade virtual, uma identificação em massa com essa imagem.

A declaração do pai de Aylan coloca o leitor na posição de pais que perderam seus filhos, uma perda incomensurável: "Os meus filhos eram as crianças mais bonitas do mundo. Há alguém no mundo que não considere os seus filhos a coisa mais preciosa da vida? ‘Eu perdi tudo'" ( Mantovani, 2015, on-line).

Na tentativa de articular a identificação, o sujeito do inconsciente e o poder da mídia, recorro às três formas de identificação propostas por Freud (1921/1996) em Psicologia das massas e análise do eu. No âmbito do autor, a identificação é a expressão de um laço afetivo entre duas pessoas e tem um papel fundamental na história do complexo de Édipo, na constituição subjetiva e na história da civilização.

O primeiro modo de identificação se dá em relação ao Pai: "Um menino mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal" (Freud, 1921/1996, p. 115). No entanto, o menino nota que o pai é um obstáculo para atingir a mãe como objeto amoroso, assim, sua identificação assume também uma hostilidade em relação ao pai, que o percebe como um rival, ou seja, uma ambivalência.

O segundo modo de identificação se dá em relação ao traço do outro. Freud (1921/1996) utiliza o exemplo de Dora, que copia o penoso sintoma da mãe: uma tosse atormentadora. Nesse caso, a identificação aparece no lugar da escolha de objeto. Trata-se de uma identificação que é parcial, tomando emprestado apenas um traço isolado do outro.

Existe um terceiro caso, o da identificação sintomática, que não se trata de uma relação de objeto com o outro copiado. Freud, a fim de exemplificar, utiliza-se do caso hipotético de uma moça que morava em um internato. Ela recebeu de seu amante uma carta que lhe despertou ciúmes e, assim, reage com uma "crise histérica". Grande parte das outras moças passa a ter o mesmo ato de crise, por assim dizer, por intermédio de uma "infecção mental". O mecanismo é o da identificação baseada na possibilidade ou desejo de colocar-se na mesma situação. A identificação por meio do sintoma é o sinal de um ponto de coincidência entre os dois eus, sinal que precisa ser conservado recalcado para que o sujeito se mantenha estabilizado com relação ao seu sintoma.

Lacan (1961-62/2011) propõe que as identificações giram em torno dos significantes, afirmando que estes não se manifestam senão na presença da diferença de um para outro. E, assim, a relação do signo com a coisa é apagada, permanecendo um traço, denominado de unário. Nesse sentido, a identificação não é tornar-se igual ao outro, mas, pelo contrário, é um processo que possibilita o sujeito se diferenciar dos outros.

O terceiro modo de identificação é considerado um fenômeno de grupo, o laço mútuo existente entre os membros de um grupo, baseado numa importante qualidade afetiva comum (amor ou ódio). É o que aconteceu com a repercussão da imagem do menino sírio, em que o mundo, pela mídia, torna-se afetado por essa problemática. Essa foto foi capaz de produzir uma identificação em massa, produzindo, assim, compaixão também em massa. Freud (1921/1996) constata que a identificação ocorrida por meio da pulsão do amor ou do ódio produz vínculos sociais, mas trata-se de investimentos objetais narcísicos (imagem especular), e não ao outro enquanto uma alteridade.

O processo de identificação é a constituição do eu como unidade que tem relação com a constituição do sujeito entre significantes. A partir das noções propostas por Freud (1914/1996) de eu ideal e ideal do eu, relidas por Lacan (1955-56/1998), sustento a ideia de que a alteridade é anterior (anterioridade lógica, e não cronológica) à constituição do eu e à constituição do sujeito do inconsciente. A alteridade é o Outro pré-histórico ao sujeito, pois este já nasce num mundo banhado de linguagem e de simbólico, mas o sujeito só percebe que existe o Outro quando se depara com esse lugar na circularidade de sua própria constituição. A alteridade se desdobra em duas funções distintas e concomitantes: a de fazer o sujeito obter uma consistência imaginária e o lugar simbólico onde o sujeito inscreve a falta constitutiva.

Segundo Freud (1921/1996), as formações grupais (ou sociais) aparecem de duas formas: criação de laços horizontais (entre sujeitos) e os laços verticais (laço com algum líder). Os dois tipos de laços são fundamentais para a civilização, pois, sem esses, não haveria grupos, culturas, povos etc. A identificação é o que configura uma sociedade, seja identificação imaginária, seja simbólica.

A identificação entre os semelhantes é definida como imaginária, pois se trata da identificação do estádio do espelho (conforme Lacan 1949/1998). A identificação simbólica ou a identificação ao traço unário, segundo Éric Laurent (1995), serve para designar o lugar original do sujeito a partir do qual se pode conservar. Trata-se do para além das identificações imaginárias, como ponto radical; ponto em que se supõe a origem do inconsciente, ponto em que o sujeito recalca, foraclui ou denega (três formas de negação, castração) em sua constituição subjetiva.

Para Lacan (1966/1998), a identificação simbólica é quando um objeto é colocado numa função de denominador comum, precipitando a identificação ao ideal de eu. Esse ideal do eu é o Outro que o sujeito supõe um saber sobre o enigma do seu ser. Assim, ao que me parece, a alteridade ligada à identificação pode emergir sob três formas: a identificação ao eu ideal - outro, grafado como i(a) -; a identificação ao ideal de eu - Outro grafado como I(A) -; e a identificação ao traço unário.

Essas gradações do eu são constitutivas e não cessam de se repetir no social. Freud (1914/1996) afirma que no narcisismo infantil o eu era seu próprio ideal e se atribuía a uma perfeição imaginária. Porém, quando a criança se depara com a falta, isto é, com as "admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico", a imagem perfeita se desfaz, o que causa uma "ferida narcísica". E, muitas vezes, devido a esse rompimento, pode emergir a agressividade dirigida ao próprio eu ou ao outro. Isso faz com que a criança inicie uma busca pela imagem perdida, mas, agora, sob a forma do ideal do eu. E a foto de Aylan rompe com essa unidade imaginária. Essas identificações às gradações do eu ocorrem, também, devido à interpelação ideológica (poder sobre um coletivo), que tem um funcionamento análogo ao inconsciente, isto é, está na superfície, mas não a vemos claramente (Althusser, 1993).

A respeito da interpelação ideológica, Pêcheux (1988, p. 159) afirma que ao dizer "eu sou x" (meu nome, minha profissão, minhas ideias etc.), "há um processo de interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio". Esse "x" emerge das mais variadas formas, as quais dependerão das imposições das relações de poder. A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina. Essa identificação se apoia nos elementos do interdiscurso, uma espécie de alteridade (Outro) que existe anterior à constituição do sujeito. Assim, o sujeito está sujeitado a essa alteridade, mas essa submissão é velada de modo inconsciente ao próprio sujeito.

A ideologia opera na cultura como um dispositivo de reconhecimento de uns aos outros; atua, portanto, como suporte especular para que o sujeito se reconheça como alguém pertencente a uma civilização. Desse ponto de vista, não existem nem sujeitos nem indivíduos fora das relações sociais. Esses mesmos sujeitos são produtores de discursos: existe a ideologia enquanto estrutura que é a-histórica e há as ideologias que se materializam nos discursos e possuem história e forma (Althusser, 1993).

A partir das considerações sobre a identificação e sobre a ideologia, suponho que a mídia é um dispositivo que possibilita os modos de identificação na era contemporânea e exerce grande poder com relação à interpelação ideológica. Desse modo, imagens, fotos e notícias que circulam podem revelar e/ou evitar o confronto com a castração. A seguir ilustramos o funcionamento do Unheimlich em obras literárias buscando analisar como essa presença nos causa angústia. As obras literárias são importantes porque se tratam de elementos culturais e, muitas vezes, antecipam, além de ilustrarem as teorias, como é o caso do complexo de Édipo.

 

4 Unheimlich na Literatura

A interlocução das obras literárias com a Psicanálise é uma constante na escrita de Freud (1914/1996), a partir da qual ele se refere à conexão de estrutura entre esses dois discursos que servem para ilustrar e validar o funcionamento psíquico. Nesse sentido, a ficção é uma materialização discursiva do funcionamento do inconsciente, oferecendo um reservatório de simbolizações (palavras, imagens, figuras de linguagens) que auxiliam na construção da teoria. Assim, para explicar o funcionamento do Unheimlich, o autor recorre ao "Homem de Areia" de Hoffman, que conta a história de Nathaniel.

Nathaniel teve um susto quando um homem (Copolla) bateu à sua porta e, ao vê-lo, veio-lhe uma lembrança infantil que remeteu ao Homem de Areia.2 Quando criança, Nathaniel, escondido no escritório do pai, vê um estranho (Coppelius) e seu pai realizando um experimento, mas é descoberto e ameaçado de ter os olhos arrancados. No episódio do espanto, o jovem reconhece Coppelius em Copolla e identifica-o com o temido "Homem de Areia". O jovem compra um binóculo dele e, por meio deste, descobre Olímpia, por quem se apaixona; porém, ela é uma boneca montada pelo seu vizinho, o professor Spalanzini. Olímpia é bela e enigmaticamente silenciosa, mas é um autômato que o professor montou e no qual Copolla inseriu olhos. Desde então, o jovem enlouquece.

Delírios, alucinações e passagens ao ato eclodem: o estudante vê os dois mestres discutindo sobre Olímpia. Spalanzini pega os olhos da boneca no chão e joga no peito de Nathaniel e diz que Copolla os roubara. Com essa cena surgem, no jovem, reminiscências da morte do pai. Em seu estado delirante diz: "Opa! Opa! Círculo de fogo! Círculo de fogo! Rode, círculo de fogo! Alegre! Alegre! Opa, bonequinha de madeira, bonequinha de madeira, rode!". Certo dia, num momento de delírio e alucinação, ele tenta jogar sua namorada da Torre, achando que era Olímpia (a boneca), até que grita: "ótimos olhos", e ele mesmo se joga da Torre, momento em que o "Homem de Areia" desaparece na multidão (Hoffman, 1817/2010; Freud, 1919/2010).

Para Freud (1919/1996), o sentimento de estranheza está ligado diretamente à figura do "Homem de Areia", e a ideia dos olhos roubados por ele é a causa de tanta angústia. O estudo dos sintomas, dos sonhos, das fantasias e dos mitos revela que a angústia em relação aos próprios olhos é um substituto do temor da castração, ligado diretamente ao complexo de Édipo (função paterna).

Na história da infância, o pai e Coppellius representam dois opostos em que a ambivalência dividiu a imago paterna; uma ameaça com a cegueira (a castração), enquanto o outro, o pai bom, intercede pelos olhos do filho. A parte do complexo mais atingida pelo recalque, o desejo de morte dirigido ao pai ruim, acha representação na morte do pai bom, atribuída a Coppelius. A essa dupla de pais corresponderá, no período em que é estudante, o professor Spalanzini e o ótico Copolla sendo percebido como idêntico ao advogado Coppellius. [...]. Essa boneca autômata não pode ser outra coisa que a materialização da postura feminina de Nathaniel ante seu pai na primeira infância. Os pais dela - Spalanzini e Coppola - são apenas novas edições, reencarnações da dupla de pais de Nathaniel; a frase de Spalanzini, incompreensível de outro modo, segundo a qual os olhos de Nathaniel haviam sidos roubados pelo ótico, para serem colocados na boneca, adquire significado, como prova da identidade entre Olímpia e Nathaniel (Freud, 1919/2010, pp. 438-349).

No conto de Hoffmann, a angústia, associada à perda dos olhos, indica o medo da castração representada pela figura do "Homem de Areia", que, por sua vez, está identificado ao Pai, uma reedição da imago paterna, a qual marcaria no psiquismo a ambivalência de sentimento de amor, ódio e terror. Como se trata de elementos que foram excluídos ou recalcados do sujeito, tem-se a sensação inquietante de estranheza. A série da figura paterna era representada nos personagens: Homem de Areia, pai de Nathaniel, Coppelius, Copolla, Spalanzini; a série do duplo de Nathaniel está representada pela figura de sua noiva, da boneca Olímpia e dele mesmo. Do lado do pai o temor de ter os olhos arrancados, e do lado dele os "ótimos olhos".

A ideia de um duplo, quando o sujeito não se reconhece na sua própria identificação, gera estranheza e angústia. O que Nathaniel olhava era o seu duplo, sua imagem invertida, mas não se reconhecia. Para Freud (1919/1996), um elemento que amedronta - o Unheimlich - pode revelar algo do retorno do recalcado, pois este não é nada novo ou alheio, mas algo familiar, que se apagou pelo processo do recalque, sendo, portanto, estranho por ser algo que deveria permanecer oculto, mas que veio à luz. O recalque é um mecanismo que o sujeito (ou uma sociedade) coloca como condição necessária para estabelecer uma ordem.

Ao continuar o caminho percorrido por Freud de que é possível realizar uma conexão entre a estrutura psíquica e as obras literárias, utilizo, para ilustrar o Unheimlich e o processo de identificação, o romance O estrangeiro, de Albert Camus (1942).

O Estrangeiro conta o drama do francês Meursault, que matou um árabe. No processo do julgamento, o juiz perguntou por que cometera tal ato e ele respondeu que viu a "praia avermelhada e sentiu a testa ardendo do sol", ou seja, não soube explicar coerentemente, não soube dizer aquilo que, na verdade, o outro esperava ouvir. Ele não tinha arrependimento, mas um aborrecimento. E essa falta de culpa fez o juiz chamá-lo de "Anticristo". No júri, Meursault foi acusado de ter premeditado o crime e de que, no enterro de sua mãe, já tinha a mente de criminoso.

Meursault, o francês, não admitia verdades e sentidos postulados pelo outro e não se angustiava com seu lugar de estrangeiro. Ele havia assassinado o árabe porque este era um estranho para ele. Ambos se estranham, não sendo possível saber, efetivamente, quem é o estrangeiro/inquietante. Nesse caso, o próprio personagem, um estrangeiro, incorpora o Unheimlich. Os momentos de estranhamento e assassinato estão conectados ao processo de alienação ao Outro, isto é, naquele momento, não houve nenhuma delimitação simbólica entre eu e outro. Cabe ressaltar que se sentir estranho ou estranhar o outro ao perceber a alteridade não é atributo nem de uma determinada classe social, nem de nacionalidade, nem de religião específica. O outro, que não sou eu, com o qual não me identifico, é produto de formações ideológicas, isto é, a criação de um imaginário, cuja eficácia se ratifica ao ser materializado no discurso.

Nesse sentido, existe uma antecipação imaginária dos lugares ocupados pelos sujeitos, os quais se referem às posições que o sujeito atribui a si e ao outro no processo discursivo. Essas atribuições ocorrem em "uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro" ( Pêcheux, 1969/1997, p. 82). Notem que o discurso se produz no entrecruzamento de dois imaginários que foram constituídos de formas diferentes, uma vez que esses discursos tornam o sujeito singular em seu percurso constitutivo.

Portanto, trata-se nesse romance do entrelaçamento de imaginários: do Juiz, que interpreta Meursault como um assassino por natureza; de Meursault, que mata o árabe devido ao sol que o cega; e do Padre, que deseja converter o assassino em um crente em Deus. Todos são interpelados por ideologias diferentes que interferem na suposição da posição de si mesmo e do outro. Meursault não se identificava nem ao discurso do Juiz nem ao discurso do Padre, pois o sujeito do discurso, quando toma determinada posição, se contrapõe a forma-sujeito que organiza as formações discursivas com as quais o sujeito se contraidentifica.

Outra obra literária clássica que ilustra a sensação de Unheimlich que pode ser aqui mencionada é de Bartleby, o escrivão (Melville, 1856/2007). O narrador, um advogado, chamado Adão, que administra seus negócios de hipotecas e títulos de propriedade, relata a história de uma contingência que lhe causou profunda estranheza.

Bartleby, cuja função era meramente de copista, se mostrava eficiente e realizava suas tarefas com extrema rapidez. Certo dia Adão, seu chefe, lhe pediu que revisasse um documento e ele responde que preferiria não fazer ("I would prefer not to"). Assim, sucede-se uma sequência desse enunciado diante das demandas do chefe; o jovem passou insistentemente a repetir tal enunciado e a executar cada vez menos seus serviços. Chegou um momento em que ele se recusava a realizar qualquer tarefa, passando a não fazer nada. O advogado o demitiu diversas vezes, mas ele insistia em dizer que "preferiria não fazer", passando dia e noite no escritório imóvel. Devido a tal situação, o narrador muda o escritório de endereço e, para sua surpresa (contingente, uma manifestação do real), Bartleby continua no lugar, mesmo vazio. Depois de um tempo, o jovem foi preso e lá ele continuava a se recusar radicalmente a tudo; até que morreu de fome.

No caso de Bartleby, há uma naturalização da frase, mas estranhada por outro, no caso, o narrador. Trata-se de uma frase que oculta (ou silencia) a possibilidade do contrário, uma vez que Bartleby se identifica e se assujeita a um enunciado fixo, que o faz acreditar que é a única possibilidade de estar no mundo. Torna-se, assim, um enunciado invariável e inquestionável. Portanto, a formação discursiva com a qual se identifica Adão, a de chefe, o faz estranhar a posição de recusa do funcionário. Podemos observar que a figura de algo estranho pode levar à irrupção do Unheimlich, que desestabiliza o sujeito (um desenlace do real, do simbólico e do imaginário, criando um buraco de sentido que exige uma interpretação.

Em Bartleby, o advogado procurava um sentido que explicasse a passividade absurda do personagem, permanecendo, porém, no vazio e sem resposta. Agamben (1995) afirma que a frase desconcertante de Bartleby não escreve nada além do que o seu poder de não escrever, seu término (not to) deixa indeterminado o ato ao qual se referiria, resultando num sem movimento. Parece que há no personagem uma decisão em não decidir devido ao tempo verbal que utiliza (I would prefer), o ato se estanca ao nível de potência, mas nunca de modo efetivo, deixando em aberto a possibilidade de realizar ou não o ato. Deixar sua atitude ao nível da potência faz de Bartleby um excluído que não pode ser situado em lugar nenhum quando se trata do laço social. Ele se faz fora do laço ou se recusa a entrar no discurso, tornando-se um sujeito à margem do mundo, ele é e não é. Segundo Agamben (1995), um ser que pode ser e não ser ao mesmo tempo é denominado experiência de contingência, e Bartleby é a experiência da contingência pura.

Esse personagem, devido a sua forma enigmática, torna-se fora de qualquer particularidade que o faz referência em alguma universalidade identificável. No entanto, Adão se identifica, a meu ver, a um vazio que evoca a presença do personagem. Nesse vazio, o outro (na figura do advogado) o interpreta ao lhe oferecer significantes e predicados, numa tentativa de dar um lugar a partir da nomeação. Trata-se de um traço de um conjunto com o qual o sujeito possa ser identificado, um modo de incluir aquilo que está excluído do discurso por meio da nomeação.

Diante do não sentido, como ocorre num primeiro momento com a foto de Aylan na mídia, o sujeito busca no imaginário (estabilização) os elementos com os quais possa compará-lo. Assim, é possível atribuir um sentido com a nomeação, a descrição, a explicação etc. para o real que irrompe. A tendência é expulsar ou apagar aquilo que não é familiar (Unheimlich) ou aquilo para o qual não se consegue atribuir um sentido. Concebo, portanto, a foto como uma espécie de alteridade, o lugar onde o sujeito se constituiu, mas recalca. No momento em que o sujeito se depara com uma imagem que lhe causa inquietação, ele pode se associar inconscientemente à cena infantil traumática,3 como vimos no caso de Nathaniel em O homem de Areia. Situo juntamente dessa série a foto de Aylan morto como um despertador do Unheimlich, uma imagem que causou um mal-estar coletivo.

 

5 Unheimlich na realidade da mídia

Uma foto pode causar estranheza para uns, e não para outros. A causa desse mal-estar vai depender da fantasia constitutiva do sujeito e da interpelação ideológica. Consequentemente, uma imagem não repercute de modo igual para todos os sujeitos, em todos os lugares e em todos os momentos. Entretanto, a foto de Aylan teve grande repercussão na mídia mundial (ao menos nos países ocidentais), de modo a chocar imensamente seus espectadores.

A mídia aqui é utilizada no sentido de imprensa, jornalismo, meio de comunicação, veículo. Noto que, muitas vezes, é citada no plural (mídias) num esquecimento de sua origem latina (medium), que tem como significado "meio" ou "forma". No dicionário de português encontramos a seguinte definição:

Toda estrutura de difusão de informações, notícias, mensagens e entretenimento que estabelece um canal intermediário de comunicação não pessoal, de comunicação de massa, utilizando-se de vários meios, entre eles jornais, revistas, rádio, televisão, cinema, mala direta, outdoors, informativos, telefone, internet etc. (Michaelis, 2020).

Levando em consideração que se trata de um meio de transmissão em massa, compreendo que a mídia de modo geral exerce um poder imaginário e simbólico sobre o sujeito, interpelando-o a acreditar em um determinado sentido, que se torna o único possível por efeito da ideologia. Bucci e Khel (2004) afirmam que a mídia na contemporaneidade é produtora de "mitos", pois é um discurso multifacetado de informações. O espetáculo do consumo das imagens (Debord, 1997) visa absorver a visão e nos poupar - ou até mesmo impedir - do estranhamento subjetivo causado pelo desejo de olhar ou pelo olhar do desejo. Para Bettis (2007), existem dois modos de espetacularização: um da ordem do ver, que fascina e acalma (dimensão imaginária), e o outro da ordem do olhar, que causa estranhamento (dimensão simbólica) e interroga o sujeito a respeito da causa do mal-estar na cultura (dimensão real).

Desse ângulo, a mídia tornou-se um elemento fundamental da engrenagem da globalização econômica, simbólica e cultural no mundo contemporâneo (Lima, 2003), sendo veiculadora e produtora de discursividades e de ideologias. Castells (1992) e Jameson (1991) afirmam que atualmente vivemos uma terceira fase do capitalismo, em que a informação/imagem se transforma num produto valioso. As redes midiáticas estão cada vez mais rápidas e dinâmicas, sua quase imaterialidade e invisibilidade buscam garantir velocidade e instantaneidade da suposta "verdade" sobre a informação por intermédio das imagens (fotos e vídeos). Observo que na atualidade a mídia não se restringe apenas a transmitir informações, mas, principalmente, a controlar o comportamento e a subjetividade da população, um exercício de poder.

A supressão do espaço e do tempo caracteriza uma nova forma da relação do sujeito com o grande Outro, o pequeno outro e o objeto. Trata-se de uma nova maneira de constituição dos laços sociais, apesar da existência de uma estrutura no sujeito (do inconsciente) que não se altera no tempo. Desse modo, volto a questionar, a partir do poder da mídia, o que da foto de Aylan desperta o Unheimlich? Como a imagem produz um inquietante efeito no sujeito que a olha? Como o sujeito é olhado pela foto?

Nesse contexto, vale destacar que os dispositivos midiáticos têm o poder de proliferar e pulverizar imagens e enunciados. Porém, o compartilhamento em massa não depende somente desses dispositivos, uma vez que nem todas as imagens têm o poder de afetar um coletivo com tamanha intensidade. No caso da foto de Aylan, antes mesmo de se saber quem era, houve um impacto causado por algo que não se queria ver. O poder oriundo da possibilidade de permitir o compartilhamento em larga escala inúmeras vezes, incessantemente, fez a foto ser difundida de modo viral nas redes sociais e na mídia jornalística. Esse acontecimento fez com que a Reuters ( a maior agência internacional de notícias do mundo, com sede em Londres) anunciasse o seu poder de viralização: " Troubling image of drowned boy captivates, horrifies"4 (Reuters, 2015, on-line).

Apreendo, portanto, que, para que a foto de Aylan se reproduzisse de forma repetitiva (ora replicada, ora transformada), deve haver algum elemento que desperta uma identificação em massa e uma rede associativa de memórias discursivas. Esse processo de despertar é inconsciente, correlato ao retorno do recalcado. O recalque é uma operação que apaga algo anterior (a morte de uma criança) e outro significante vem nesse lugar (a problemática do refúgio e do refugiado, o significado que os jornais deram à foto). Trata-se em última instância de encobrir o vazio. Um dos vazios de sentido é a morte, e na foto olhamos para a imagem de uma criança morta.

A morte, enquanto pertencente à estrutura ontológica, é, paradoxalmente, por um lado, algo que destitui a eternidade da existência humana e, por outro, oferece-lhe a condição de possibilidade de se fazer ser perante a essa consciência de finitude; consciência que é própria do ser humano. O sujeito se defronta com a (in)sistência da pergunta pelo sentido do ser e pelo sentido da morte. Essa questão passa a ter o estatuto mais esvaziado com a inauguração do homem moderno (Descartes) e, de certa forma, com a inauguração do sujeito do inconsciente (Freud e Lacan).

Para Freud (1926/1996), toda angústia se remete à angústia de morte, e a castração é uma espécie de simulacro da morte. A castração e a lei simbólica são materialidades da impossibilidade de saber sobre o que é a morte, sendo a angústia o sinal da castração, e o eu se antecipa ao recalcá-la. Lacan (1959-60/2008) propõe duas facetas da morte: a primeira é a morte real, e a segunda é a morte do sujeito do desejo, que se constitui a partir dos significantes cedidos pelo Outro. Para a primeira, não há o que fazer diante dela, uma vez concretizada; a segunda tem relação com a angústia de castração.

No momento em que o sujeito se depara com a imagem de Aylan, as duas mortes se fazem presentes, causando incômodo diante de um perigo, seja imaginário, seja real. Desse ponto de vista, a angústia de morte se instala quando o sujeito olha para a criança morta. Nessa perspectiva, "o objeto Unheimlich está diante de nós como se nos dominasse, e por isso nos mantém em respeito diante de sua lei visual. Ele nos puxa para a obsessão" (Didi-Huberman, 1998, p. 228), assim como a foto de Aylan, que nos empuxa a compartilhá-la a ponto de viralizar nas mídias.

O duplo na foto de Aylan se produz na dimensão do olhar, sendo possível estabelecer uma relação entre memória, desejo e repetição. O duplo sobrevém condensado no desejo e no gozo do sujeito. Para Garcia-Roza (1986, p. 26) "o absolutamente novo, o que jamais se deu na experiência, não pode ser temido. Só há Unheimlich se houver a repetição". Por isso, entendemos que a foto de Aylan faz retornar algo do trauma psíquico, algo percebido como trágico pelo sujeito que precisou ser recalcado, mas que num súbito olhar vem à tona. Há algo de insuportável e trágico na imagem de uma criança morta, sozinha numa praia, sendo que a "[...] a experiência do Unheimlich equivale a entrar na experiência visual e arriscar-se a não ver mais..." (Didi-Huberman, 1998, p. 226).

Na atualidade da sociedade ocidental, segundo Quinet (2002), existem diversas formas dos imperativos do ver: fabricação de celebridades, câmeras espalhadas por todo lugar, mídias que ditam regras na televisão e internet, olhares e espionagens dos sistemas das redes sociais em cima de seus usuários etc. Podemos realizar uma substituição lógica: em vez do "penso, logo existo" tem-se "sou visto, logo existo". De modo similar ocorreu com a foto de Aylan: vejo a imagem do menino morto, logo o reconheço como um refugiado. Esse poder de viralização possibilitou que o mundo se voltasse para uma questão política, uma espécie de tomada de consciência coletiva da guerra que assola a Síria e outros países do Oriente, porém, a questão da morte vem à tona e logo é recalcada novamente. Trata-se aqui de uma forma de se defender da angústia da castração, ou seja, o significante refugiado vem para apagar/recalcar a morte. Para além da tomada de consciência de algo de ordem política, temos aí, de modo concomitante, uma imagem que toca na relação do sujeito com o trauma pulsional. O sujeito ao se defrontar com imagens de barbárie na mídia atualiza o trauma psíquico: renúncia da satisfação pulsional para entrar na ordem do simbólico.

 

6 Considerações finais

A partir da teoria do Unheimlich e da identificação proposta por Freud (1921/1996) e avançada por Lacan (1963-64/2005), compreendo que as obras literárias analisadas e a foto de Aylan tornam presente algo estranho, causando um mal-estar subjetivo e coletivo. O Unheimlich, segundo Didi-Huberman (1998, p. 227), "é o lugar onde o que vemos aponta para além do princípio de prazer; é o lugar onde ver é perder, e onde o objeto da perda sem recursos nos olha. É o lugar da inquietante estranheza".

O Unheimlich está intimamente ligado à identificação e à ideologia; assim, extraio das análises realizadas neste texto que o Unheimlich emerge na relação do sujeito com o Outro/outro. Esse Outro/outro pode ser encarnado em imagens, cenas, personagens etc., sendo familiar e estranho ao mesmo tempo, sendo que esse estranhamento/familiaridade vai depender da identificação e da interpelação ideológica.

A meu ver, a foto de Aylan Kurdi morto produziu grande impacto social justamente por ser a imagem de uma criança que "poderia ser meu filho" (identificação). Isso quer dizer que permanecemos sem olhar para aquilo que está ali na praia: Aylan. Ao olharmos a imagem, vemos a nossa própria projeção. Mesmo diante dos nossos olhos e de todo o mundo, a criança morta permanece irremediavelmente sozinha. Não a vemos. Vemos o horror da nossa própria infância, vemos o horror da perda dos nossos próprios filhos. E não há outro jeito, sempre olhamos para o mundo por meio do filtro de nossa fantasia, ou seja, olhamos/lemos/escutamos de forma sempre reeditada pelo que (não) queremos ver. Nesse sentido, a imagem de Aylan, Nathaniel, Mersault, Bartleby é abismo, uma vertigem.

Em suma, apreendo que a foto de Aylan e as obras literárias analisadas resistem à significação, uma vez que toca algo do trauma psíquico, condição existencial de todos. As obras literárias evocam o Unheimlich de modo mais particular, ao passo que a imagem de Aylan provocou o desejo de consumi-la (em massa) e de exercer algum poder de produção de sentido sobre ela. A imagem do menino sírio evoca algo da ordem do real (a própria morte) ao horrorizar e petrificar o sujeito que olha. Não se trata somente da problemática do refúgio, nem da crise imigratória, nem de crise humanitária (interpretações possíveis), mas da própria imagem de uma criança morta. Desse modo, concluo que o Unheimlich é um elemento que emerge no particular, mas, também, numa dimensão coletiva ou entre a realidade particular/subjetiva e a virtual/social.

 

 

Referências

Althusser, L (1983). Aparelhos ideológicos do Estado (W. J. Evangelista & M. L. V. Castro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Graal. (Trabalho original publicado em 1970).         [ Links ]

Agamben, G. (1995). Bartleby ou la création. Saulxures, França: Éditions Circé.         [ Links ]

Bettis, J. (2007). A pulsão escópica na contemporaneidade. Rev. Assoc. Psicanal., Porto Alegre, RS, 32, 49-65.

Bucci, E., & Khel, M. R. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo, SP: Boitempo.

Camus, A. (2009). O estrangeiro. Rio de Janeiro, RJ: Record. (Obra originalmente publicada em 1942).         [ Links ]

Castells, M. (1999). A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura (Vol. 1) São Paulo, SP: Paz e Terra.

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. D. (2010). O que vemos, o que nos olha (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.

Freud, S. (1996). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. III, pp. 37-47, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1893).

Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a sexualidade. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, pp. 119-217, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1905).

Freud, S. (1996). Sobre o narcisismo. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIV, pp. 77-110, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1914).

Freud, S. (1996). Repressão. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1915).

Freud, S. (1996). O estranho. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1919).

Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1921).

Freud, S. (1996). O ego e o id. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp. 13-86, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1923).

Freud, S. (1996). A negativa. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1925).

Freud, S. (1996). Inibições, sintomas e ansiedade. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XX, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1926).

Freud, S. (2019). O infamiliar. In S. Freud. Obras psicológicas incompletas de Sigmund Freud (E. Chaves & P. H. Tavares, Trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Obra originalmente publicada em 1919).

G1. (2015). "Fiquei petrificada", diz fotógrafa que fez imagem de menino morto na Síria. G1 on-line. [São Paulo, BR]. Seção Mundo. Recuperado em 15 outubro, 2015, de <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/fiquei-petrificada-diz-fotografa-que-fez-imagem-de-menino-sirio-morto.html>.

Garcia-Roza, L. A. (1986). Acaso e repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.

Hanns, L. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Hoffman, E. T. A. (2010). O Homem de Areia. In E. T. A. Hoffman. Contos fantásticos. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra originalmente publicada em 1817).         [ Links ]

Iannini, G., & Tavares, P. H. (2019). Freud e o Infamiliar. In S. Freud. Obras incompletas de Sigmund Freud. (E. Chaves & P. H. Tavares, Trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Obra originalmente publicada em 1919).

Jameson, F. (1993). Pós-modernismo e a sociedade de consumo. In A. Kaplan. (Org.). O mal-estar no pós-modernismo: teorias, práticas. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). O Estádio do Espelho como formador da função do eu. In J. Lacan. Escritos (pp. 96-103, V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1949).

Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan. Escritos (pp. 537-590, V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, R.J: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1955-1956).

Lacan, J. (2008). O seminário livro 7: a ética da Psicanálise (2a ed., V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1959-1960).         [ Links ]

Lacan, J. (1998). A ciência e verdade. In J. Lacan. Escritos (pp. 869-891, V. Ribeiro, Trad. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1966).

Lacan, J. (2005). O seminário livro 10: a angústia (2a ed., V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1962-1963).         [ Links ]

Lacan, J. (2011). O seminário: livro 9: a identificação (I. Corrêa, Trad.). Recife, PE: Centros de Estudos Freudianos (CEF). Circulação interna. (Trabalho original publicado em 1961-1962).

Laurent, R. (1995). Sobre a entrada em análise. Rev. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. 12, 5-24

Lima, V. A. (2003). Sete teses sobre a relação Mídia e Política. São Paulo: Mimeo.

Mantovani, F. (2015). Pai de menino sírio morto em praia fala a brasileiro sobre tragédia familiar. G1 on-line. [São Paulo, BR]. Seção Mundo. Recuperado em 15 outubro, 2015, de <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/pai-de-menino-sirio-morto-em-praia-fala-brasileiro-sobre-tragedia-familiar.html>.

Melville, H. (2007). Bartleby, o escrivão. São Paulo, SP: José Olympio. (Obra publicada originalmente em 1856).

Michaelis. (2019). Dicionário de língua portuguesa (on-line). São Paulo, SP: Melhoramentos. Recuperado em 18 agosto, 2019, de <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=QlOO>.

Pêcheux, M. (1997). Análise Automática do Discurso. In: F. Gadet & T. Hak (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux (pp. 61-161). Campinas: Editora da Unicamp. (Original publicado em 1969).

Pêcheux, M. (1988). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (E. P. Orlandi, Trad.). Campinas, SP: Pontes. (Original publicado em 1975).

Quinet, A. (2002). Um olhar a mais: ver e ser visto na Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

Reuters. (2015). Troubling image of drowned boy captivates, horrifies. Reuters [Ankara, Turquia]. Retrieved October 15, 2019, from <https://uk.reuters.com/article/us-europe-migrants-turkey/troubling-image-of-drowned-boy-captivates-horrifies-idUSKCN0R20IJ20150902>         [ Links ].

 

Endereço para correspondência
Juliana Bartijotto
E-mail: jubartijotto@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Psicóloga. Doutora em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP - USP) e pela Université Paris 8 (França) em regime de Cotutela. Membro do laboratório de pesquisa AD-Interfaces (CNPq). Realiza formação em Psicanálise, coordena e participa de seminários e grupos de pesquisa em Psicanálise Freudiana/Lacaniana e Análise do Discurso (AD). Membro cooperado da Unipsico (Cooperativa de Trabalho de Psicólogos de Ribeirão Preto).
1Artigo extraído da minha pesquisa de doutorado, intitulada Da imagem de uma criança morta ao "Unheimlich". Pesquisa financiada pela Capes.
2Um personagem de que os adultos se servem para assustar as crianças: ele jogava areia nos olhos daquelas que não obedeciam, fazia os olhos saltarem para fora, colocava num saco e levava para alimentar seus filhos.
3O trauma, segundo Freud (1893/1996, 1905/1996), é estruturado por duas cenas: a cena primordial é recalcada e a segunda remonta à primeira, por meio dos traços mnêmicos que foram inscritos no momento da primeira cena (ocorrida na infância). Desse modo, o episódio contemporâneo reconduz ao primeiro trauma, mas sem que o sujeito a saiba conscientemente. Portanto, uma cena traumática é um acontecimento psíquico combinado a outros eventos da história do sujeito que não são necessariamente fatos reais, podem ter sidos imaginados. Na verdade, um trauma sempre se refere ao traço mnêmico recalcado que permanece de modo inconsciente no psiquismo. Na maior parte dos casos, o elemento desencadeante do trauma são situações ordinárias vividas ou fantasiadas no cotidiano. Em suma, o autor considera o trauma como um excesso pulsional, um além das possibilidades simbólicas do sujeito em lidar com o circuito associativo, uma energia que se repete e não cessa de exigir descarga.
4A imagem perturbadora de uma criança capta o olhar, horroriza (tradução livre).

Creative Commons License