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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dez. 2021

 

Metapsicologia do capital1

 

Metapsycohology of Capital

 

Métapsychologie du capital

 

Metapsicología del capital

 

 

David Pavón-CuéllarI; Tradução: Thales FonsecaII

IDoutor em Filosofia pela Universidade de Rouen. Doutor em Psicologia pela Universidade de Santiago de Compostela. Docente da Faculdade de Psicologia da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo (México). Reconhecido por suas investigações e reflexões na interseção entre o marxismo, a Psicologia Crítica, a Análise do Discurso e a Psicanálise de Jacques Lacan
IIPsicólogo. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: thalesalberto94@gmail.com

 

 


RESUMO

Ao observar que existem configurações psíquicas inerentes ao sistema capitalista, aceita-se a tese geral de que o capitalismo é também uma determinada forma de psiquismo. Essa ideia justifica não só a análise direta do capitalismo pelos estudiosos do psiquismo, mas também a elaborada teoria do psiquismo vislumbrada na teoria do capitalismo que Marx nos oferece. Ao examinar as elaborações teóricas de Marx em torno do psiquismo, consegue-se distinguir dois níveis, um psicológico e outro que se denominará metapsicológico, para precisar que se estende mais além do psicológico, transbordando-o, transcendendo-o, constituindo-o e explicando-o. É assim que se pode chegar a enunciar a existência de uma metapsicologia do capital, na qual se encontram alguns dos principais aspectos definidores do âmbito metapsicológico em Freud, entre eles o fato de constituir um inconsciente concebido como sistema psíquico e localização lógica no psiquismo. Perceber-se-á como esse âmbito metapsicológico do inconsciente pode servir, tanto em Marx como em Freud, para explicar e demarcar a esfera psicológica da consciência e, por meio dela, de modo indireto, elucidar o que ocorre nos cumes metafísicos da religião e da mitologia.

Palavras-chave: Metapsicologia. Capitalismo. Psicanálise. Freud. Marx.


ABSTRACT

Upon observing that there are psychic or mental configurations inherent to the capitalist system, the general thesis that capitalism is also a state of mind is accepted. This idea justifies not only the direct analysis of capitalism by students of the psyche, but also the elaborate theory of the capitalist mind foreshadowed in the theory of capitalism that Marx presents. By examining Marx's theoretical elaborations concerning the psyche it becomes possible to distinguish two levels, one psychological, the other that we shall call metapsychological, to indicate that it goes beyond the psychological, overflows it, transcends it, constitutes it and explains it. Thus it is that one can announce the existence of a metapsychology of capital, in which some of the principal defining aspects of Freud's metapsychological domain are found, including the fact that it constitutes an unconscious conceived as a mental system and a logical localization in the psyche. This article will show how this metapsychological domain of the unconscious can serve to explain, in Marx and Freud, the psychological sphere of consciousness, and through it, though indirectly, elucidate that which occurs at the metaphysical summits of religion and mythology.

Keywords: Metapsychology. Capitalism. Psychoanalysis. Freud. Marx.


RÉSUMÉ

Après avoir observé qu'il existe des configurations psychiques inhérentes au système capitaliste, la thèse générale selon laquelle le capitalisme est aussi une certaine forme de psychisme est acceptée. Cette idée justifie non seulement l'analyse directe du capitalisme par les étudiants de la psyché, mais aussi la théorie élaborée de la psyché envisagée dans la théorie du capitalisme que Marx nous propose. Lorsqu'on examine les élaborations théoriques de Marx sur la psyché, on distingue deux niveaux, l'un psychologique et l'autre que l'on appellera métapsychologique pour préciser qu'il dépasse le psychologique, le déborde, le transcende, le constitue et l'explique. C'est ainsi qu'on peut énoncer l'existence d'une métapsychologie du capital dans laquelle se retrouvent certains des principaux aspects définissant le champ métapsychologique chez Freud, parmi lesquels le fait de constituer un inconscient conçu comme système psychique et lieu logique dans le psychisme. On verra comment ce domaine métapsychologique de l'inconscient peut servir, chez Marx comme chez Freud, à expliquer et à cadrer la sphère psychologique de la conscience, et à travers elle, indirectement, à élucider ce qui se passe aux sommets métaphysiques de la religion et de la mythologie.

Mots-clés: Métapsychologie. Capitalism. Psychanalyse. Freud. Marx.


RESUMEN

Tras observar que hay configuraciones psíquicas inherentes al sistema capitalista, se acepta la tesis general de que el capitalismo es también una determinada forma de psiquismo. Esta idea justifica, no sólo el análisis directo del capitalismo por los estudiosos del psiquismo, sino también la elaborada teoría del psiquismo vislumbrada en la teoría del capitalismo que Marx nos ofrece. Al examinar las elaboraciones teóricas de Marx en torno al psiquismo, se alcanzan a distinguir dos niveles, uno psicológico y otro que se denominará metapsicológico para precisar que se extiende más allá de lo psicológico, desbordándolo, trascendiéndolo, constituyéndolo y explicándolo. Es así como puede llegarse a enunciar la existencia de una metapsicología del capital en la que se encuentran algunos de los principales aspectos definitorios del ámbito metapsicológico en Freud, entre ellos el hecho de constituir un inconsciente concebido como sistema psíquico y localización lógica en el psiquismo. Se verá cómo este ámbito metapsicológico del inconsciente puede servir, tanto en Marx como en Freud, para explicar y enmarcar la esfera psicológica de la conciencia, y a través de ella, de modo indirecto, elucidar lo que ocurre en las cumbres metafísicas de la religión y la mitología.

Palabras clave: Metapsicología. Capitalismo. Psicoanálisis. Freud. Marx.


 

 

Introdução

Assim como uma metafísica marxista seria manifestamente aberrante, há também uma evidente aberração na Psicologia marxista, que não questiona, critica e transcende reflexivamente a si mesma. Essa relação reflexiva da Psicologia consigo mesma é uma das mais importantes lições que recebemos da aproximação ao psiquismo em Karl Marx (1818-1883). O que Marx nos ensina é a aprofundar no psiquismo até o ponto de atravessar a Psicologia. Seu gesto epistemológico radical é de ruptura com o psicológico e não só com o metafísico. Mais aquém do metafísico e mais além do psicológico, a abordagem marxiana é essencialmente metapsicológica.

Consideramos que Marx incursiona na metapsicologia porque não abandona o psíquico nem cai no metafísico ao ir mais além de uma Psicologia que aqui entendemos como geralmente é entendido desde o século XIX, a saber, como esfera e ciência de um psiquismo subjetivo e objetivável, isolável e compreensível, imanente aos sujeitos individuais ou sociais e relegado a sua consciência e vida mental, suas cognições e condutas, seus comportamentos, pensamentos e sentimentos, personalidades e traços de caráter, sensações e motivações, ações e interações etc. Assim como Sigmund Freud (1856-1939), Marx transcende a tudo isso; transcende ao aprofundar no psiquismo até o seu fundo econômico e histórico, transindividual ou supraindividual, cultural e não simplesmente social, assim como inconsciente e necessariamente exterior ao sujeito e a sua esfera psicológica. É assim que surge uma teoria metapsicológica marxiana, cujas inumeráveis e insondáveis coincidências com a metapsicologia freudiana bastariam por si mesma, mesmo que em ausência de outros fatores decisivos para entender a insistência e perseverança dessas explorações que remontam ao trabalho pioneiro de Reich (1923/1989), Bernfeld (1926/1972) e Fenichel (1934/1972), e que prosseguem na atual esquerda lacaniana (boa revisão em Stravakakis, 2007), depois de cruzar a Escola de Frankfurt (cf. Marcuse, 1953/1983), o estruturalismo francês (cf. Althusser, 1964-1969/1993) e muitas outras perspectivas, algumas delas praticamente esquecidas, como a de Bleger (1958/1988) e Caruso (1974/1985).

Em continuidade com as recém-mencionadas explorações, o presente artigo está situado em um campo epistemológico diferente daquele no qual encontramos as diversas doutrinas psicológicas marxistas que se desenvolvem no século XX e que geralmente limitam-se, precisamente, ao que foi transcendido pela metapsicologia marxiana. A perspectiva metapsicológica situa-nos não na tradição da Psicologia marxista, mas na tradição paralela ao freudomarxismo, à Psicanálise marxista, à esquerda freudiana e às demais aproximações entre Marx e Freud. Ainda que não seja o momento de expor essas correntes, tentaremos explicá-las e justificá-las, de um modo básico e elementar, ao detectar alguns elementos coincidentes com Freud na base mesma das investigações metapsicológicas de Marx em torno do capitalismo.

 

Psiquismo e capitalismo

O capitalismo não é tão somente, como reza o dicionário, um "regime econômico fundado no predomínio do capital como elemento de produção e criador de riqueza"2 (Real Academia Española, 2001, p. 438). No capitalismo, para começar, o capital não somente reina como elemento de produção e criador de riqueza, mas também como usuário da produção e destruidor de riqueza, quer dizer, em definitivo, como elemento de exploração e criador de miséria. O capital exerce, desse modo, seu poder como gestor da produção e fator determinante da distribuição e representação da riqueza, produtor de necessidades e dispositivo de organização e dominação da sociedade, forma de relação e interação entre os homens, estilo de vida e visão de mundo. O capital é tudo isso e, portanto, o capitalismo, fundado no predomínio do capital, não pode ser unicamente um regime econômico.

Além de ser um regime econômico, o capitalismo é uma realidade social, uma opção política, um horizonte histórico, um modelo cultural, uma matriz ideológica, um sistema simbólico. E, como se não bastasse, podemos estar seguros de que tudo isso deve ter elementos, aspectos e efeitos psíquicos e, inclusive, configurar certo psiquismo adequado ao seu contexto e necessário para o bom funcionamento do sistema capitalista. O capitalismo não poderia prescindir, com efeito, de um complexo composto de concepções e representações, expectativas e temores, motivações e emoções, desejos e pulsões, atitudes e comportamentos, interações e relações, construções da identidade e estruturações da personalidade. Esses dispositivos nervosos são imprescindíveis para o organismo econômico. O corpo capitalista não poderia funcionar sem o desempenho medular de uma disposição anímica na qual encontramos, por exemplo, formas particularíssimas de troca e de interesse, de ganância e de insatisfação, de ambição e de apropriação, de individuação retentiva e de socialização competitiva.

Sustentamos que há um psiquismo inseparável do capitalismo, atado a ele, moldado por ele e inclusive inerente a ele. De fato, de certo ponto de vista, sequer é possível distinguir a alma do corpo capitalista. Como distinguir o capitalismo de certos cálculos mentais de industriais, comerciantes e banqueiros? Por acaso a compulsão acumuladora do capitalista não se confunde com a propensão acumulativa do capital? E como se poderia sequer conceber o capitalismo sem pensar na cobiça e intenção de lucro daqueles que o encarnam? Sem o psiquismo do sistema capitalista, o que ficaria do sistema?

 

Capitalismo como psiquismo

Cabe afirmar categoricamente que o capitalismo é também um psiquismo. Semelhante afirmação tem duas importantes consequências para nós que seguimos Marx ao estudar o psiquismo:

  • Se o capitalismo é também um psiquismo, então nós, estudiosos do psiquismo, temos o direito de estudar o capitalismo como tal e não somente sua incidência no psiquismo.

  • Se o capitalismo é também um psiquismo, então nós, seguidores de Marx, poderemos desentranhar uma teoria do psiquismo dentro da teoria do capitalismo que Marx nos oferece.

Não há de se esforçar muito para descobrir os primeiros indícios da teoria marxiana do psiquismo capitalista. A discernimos facilmente, por exemplo, na profunda caracterização que Marx (1867/2008) nos oferece do capitalista como um sujeito "cujo coração reside na bolsa" (p. 173), um ente cuja "alma é a alma do capital" (pp. 178-179), um "agente consciente" do "movimento do capital", um "capital personificado, dotado de consciência e de vontade, na medida em que suas operações não têm outro motivo propulsor do que a apropriação progressiva de riqueza abstrata" (pp. 108-109). Se o capitalista se distingue assim por seu "afã absoluto de enriquecimento", por seu "apetite insaciável por ganhar" e por sua "corrida desenfreada em prol do valor" (p. 109), isso se deve a sua alma ser "a alma do capital", e "o capital não tem outro instinto que: o instinto de crescer, de criar mais-valia" (p. 179). Esse instinto é o que se expressa no "instinto absoluto de enriquecer" do capitalista, que não é uma "mania individual", como a do "acumulador", mas o "mecanismo social" de um capital do qual nosso capitalista "não é mais que um recurso" (p. 499).

O instinto de crescimento do capital é o que se manifesta no afã de enriquecimento do capitalista. Quando o capitalista enriquece, obedece ao capital que cresce. Porém, ao obedecê-lo, acrescendo-o e assim enriquecendo-se, nosso capitalista não só incrementa o que tem, mas também dilata o que é, amplia o que personifica, desenvolve sua personalidade, sua alma, o capital. Trata-se então de um assunto de identidade e não só de propriedade. E ainda que a propriedade seja precisamente aquilo em que se enraíza a identidade, há aqui uma inversão de papéis de proprietário e propriedade, já que ao ser o que tem, o capitalista se vê possuído por sua posse, obedece-a, personifica-a e adquire sua alma, sua consciência e sua vontade. O psicológico provém e depende, assim, do econômico, o qual, por sua vez, se vê mediado e realizado pelo psicológico.

No extremo de um economicismo ao qual não se reduz a teoria materialista de Marx, o fato econômico é aquele material que dá o perfil psicológico ao sujeito. O espírito profissional do rico banqueiro tende a ser tão duro, frio e insensível como a materialidade metálica da riqueza que o possui. A expansão imparável do capital se torna a ambição insaciável do capitalista. A mesquinha reciprocidade burguesa reflete a equidade puramente formal nas trocas comerciais. O fetichismo da mercadoria está na origem do idealismo dos comerciantes. Afirmações como essas não são mais que diversas formulações de um mesmo postulado central da teoria marxiana do psiquismo capitalista. Porém, a teoria tem outros postulados, assim como uma densa constelação de conceituações, deduções, demonstrações, argumentações e elucubrações.

 

Psicologia e metapsicologia

Na complexa teoria que Marx elabora em torno do psiquismo, conseguimos discernir dois níveis: um superficial, estritamente psicológico, e outro mais profundo, que nos atrevemos a denominar metapsicológico. Esse nível não é metapsicológico só porque se localiza mais além do nível psicológico, transbordando-o e transcendendo-o, mas também porque está implicado nele e se expressa por meio dele, porque o constitui e o explica. Na seção anterior, por exemplo, demonstramos como o perfil psicológico do possuidor se constitui e se explica pelo fato econômico da posse, o qual, precisamente por ser constitutivo e explicativo do psicológico, merece o nome de metapsicológico. Encontramos outro fator metapsicológico na tendência intrínseca do capital ao crescimento, uma propensão econômica e não psicológica, mas implicada e expressa no nível psicológico do impulso consciente ao enriquecimento, constituindo-o e explicando-o, de modo que aqui também temos um fenômeno metapsicológico e não somente econômico.

Ao centrar sua atenção no econômico, Marx a centra no metapsicológico, no entanto, para isso, deve retirá-la do psicológico. É como se a superfície psicológica revelasse o fundo metapsicológico ao se mostrar fora de foco, borrada, esfumaçada, para enfim tornar-se transparente na teoria marxiana. Em Marx, o psicológico se borra, desvanece, desaparece. E desaparece porque é negligenciado, mostra-se secundário e parece inclusive irrelevante. A Psicologia é simplesmente ignorada e serve somente para ser perpassada e nos permitir aceder à metapsicologia.

Na teoria marxiana do psiquismo, o enfrentamento interpsicológico entre capitalistas e trabalhadores, entre seus respectivos comportamentos, pensamentos e sentimentos, não serve para nada além de desentranhar a contradição metapsicológica entre a existência e a essência alienada (Marx, 1844/1968), entre a dissolução e a consolidação das classes sociais, entre a verdade e a ideologia, entre o sujeito e o objeto (1847/1968, 1858/2009), entre o "trabalho vivo" e um "trabalho morto" que se alimenta, como um "vampiro", ao "chupar trabalho vivo" (1867/2008, p. 179). O desenvolvimento do capital às custas do trabalho, do morto às expensas do vivo, do ideológico a partir do verdadeiro, é o que importa no resultante conflito entre capitalistas e trabalhadores. O importante não é a trama psicológica de papéis e interações de personagens no iluminado cenário da sociedade, mas a sombria fábrica metapsicológica em que se tece a trama e onde podemos explorar, nos bastidores, as posições e relações estruturais que subjazem aos papéis e interações interpersonagens (1858/2009). Em outras palavras, o importante são "as categorias econômicas" personificadas e não "as personas" que surgem da "personificação"; os "interesses" de que é "representante" e não a representação desta, as "relações das quais o indivíduo é socialmente criatura" e não o indivíduo que "subjetivamente se considera muito acima delas" (1867/2008, p. XV). O que interessa, em suma, não é a Psicologia dos "papéis econômicos representados pelos homens", mas a metapsicologia das "relações econômicas em representação das quais se enfrentam os homens uns com os outros" (p. 48).

 

Inconsciente do capital

Em sua ênfase da metapsicologia, a teoria marxiana coincide com a freudiana, a qual também transcende a esfera psicológica e procura sua elucidação no âmbito metapsicológico. Marx também concebe esse âmbito exatamente como faz Freud (1898/1998, 1901/1998), como algo "por trás da consciência" (1898/1998, p. 316) e como espaço lógico do "inconsciente" (1901/1998, p. 251), quer dizer, definitivamente, como "o inconsciente" no sentido tópico do termo, como "localidade psíquica", não "anatômica", situada em um "lugar" diferente que "a consciência" (1915/1998, pp. 170-171). A "consciência" dos capitalistas, com efeito, se encontra em outro lugar para além do capital que "personificam", e esse capital, que adquire consciência por eles e neles, naturalmente não tem consciência de si mesmo, nem tampouco pode adquiri-la por si mesmo (Marx, 1867/2008, p. 109). De modo semelhante, na representação marxiana do psiquismo, a tendência do capital ao crescimento se faz em uma região metapsicológica recôndita, enigmática e paradoxal, íntima, porém alienada, essencialmente inconsciente e topicamente diferente da região psicológica do impulso consciente ao enriquecimento. Há aqui, nos termos de Freud (1915/1998), um "divórcio tópico" entre duas "regiões do aparato psíquico" (p. 170).

Na tópica marxiana, assim como na freudiana, a região metapsicológica inconsciente é mais básica, fundamental, "profunda" que a região psicológica da consciência (Freud, 1915/1998, pp. 169-170). Isso justifica, em Marx, a distinção vertical entre a "superestrutura" ideológica-psicológica da consciência e a "base" ou infraestrutura material-econômica inconsciente na qual situamos a metapsicologia (Marx, 1859/1997). Cabe postular, em geral, que o metapsicológico é a "base" do psicológico, e esse postulado é válido tanto para a representação do psiquismo quanto para as elaborações teóricas em torno dessa representação, o mesmo na teoria de Freud (1917/1998, p. 221, nota 1) e na de Marx (1867/2008, pp. 44, 410).

No psiquismo tal como o concebe Marx (1867/2008; 1885/2006; 1894/2009), a superestrutura psicológica da consciência do capitalista se fundamenta na base metapsicológica de um capital cujo funcionamento psíquico é "inapreensível" (1867/2008, p. 14), "invisível" (pp. 57, 452), "carente de sentido" (1885/2006, p. 47), "inexplicável" (1894/2009, p. 461), "inconsciente" (p. 614). No entanto, tudo isso não significa simplesmente que o capital escapa à consciência, pois, além de ser inconsciente, o capital corresponde aqui ao que chamamos o inconsciente na terminologia freudiana. Trata-se, em outras palavras, de "um sistema psíquico", nesse caso, o sistema capitalista, cujo caráter inconsciente não é unicamente um estado, situação ou atributo do sistema, mas sua existência mesma, sua localização lógica, sua estrutura distintiva, sua atividade imanente e sua "dotação com certas propriedades" (Freud, 1915/1998, p. 168).

 

A consciência do inconsciente

Digamos que o inconsciente é a única forma na qual o capital pode existir plenamente, como sistema, no psiquismo. Na alma possuída pelo sistema capitalista, ele só pode consistir n'o inconsciente como forma positiva, substancial e substantiva, de ser, de organizar-se e de operar, e não somente como qualidade negativa que indicaria falta de consciência. Sequer seria correto afirmar que falta consciência no sistema capitalista. Esse inconsciente não deixa de transpirar eflúvios conscientes. A consciência parte de um sistema cujos "autômatas mecânicos", por exemplo, não só possuem "órgãos inconscientes", como também esses "órgãos conscientes" que denominamos "operários" (Marx, 1867/2008, p. 347). A consciência trabalhadora é tão crucial como a acumuladora, a especuladora, a consumidora, e muitas outras. Por meio de todas elas, o capital adquire as faculdades conscientes que necessita para funcionar.

O sistema possui nossas consciências, mas nem por isso deixa de ser o inconsciente que é. Toda sua consciência é a nossa e está pulverizada entre nós, e em cada um de nós está incompleta e incomunicada, truncada e limitada, focada e confinada exclusivamente a uma tarefa específica e a um ponto preciso do próprio sistema. Nossa consciência é consciência do inconsciente e daquilo que o inconsciente faz com que sejamos conscientes. Essa determinação da consciência pelo inconsciente é o que se formula, em termos aparentemente simplistas, como determinação da superestrutura ideal pela base material, das formas de pensamento pelos modos de produção, dos conteúdos ideológicos da consciência pelo sistema capitalista que assimilamos ao inconsciente.

Posto que o inconsciente do sistema capitalista determina os conteúdos ideológicos da consciência, entendemos que a metapsicologia do capital pode servir a Marx para explicar a Psicologia dos capitalistas. Recordemos que estes não são mais que a "personificação" de um capital que depende deles para "dotar-se de consciência e de vontade" (Marx, 1867/2008, p. 109). O psiquismo consciente e voluntarista do capitalista pertence e obedece ao sistema inconsciente do capitalismo. Ainda que o funcionamento sistêmico possa certamente ser perturbado e transformado por certas formas insubmissas e incontroláveis de movimento psíquico, estas brotam e se chocam daquilo e contra aquilo mesmo que perturbam e transformam. É então na metapsicologia do sistema que devemos resolver a Psicologia do indivíduo com sua consciência e sua vontade, com seu espírito de luta e sua capacidade de resistência, entretanto, também, com seus impulsos, apetites, representações, cognições, comportamentos, pensamentos e sentimentos. Essa Psicologia, a mais estudada nas faculdades de Psicologia em todo o mundo, tem seu fundo, fundamento e explicação naquilo do que se ocupam a Economia, a História, a Antropologia, a Etnologia e outros campos de saber nos quais Marx e Freud penetraram ao aprofundar na Psicologia até o ponto de atravessá-la, porém sem cair na metafísica.

 

Metafísica e metapsicologia

A metafísica é a grande tentação a qual Freud e Marx resistem ao ir mais além da Psicologia. Mais além, para eles, não há nada sutil e etéreo, espiritual ou celestial, pois só há o que há, matéria e corpo, vida e desejo, necessidades e pulsões, histórias individuais e coletivas, configurações familiares e culturais, relações simbólicas e econômicas. Esse mais aquém é todo o mais além do marxismo e da Psicanálise. A Psicologia é, assim, superada por dentro. Contém seu horizonte. É transcendida ao ser aprofundada. Esse aprofundamento é o que nos conduz ao âmbito metapsicológico, mais além da esfera psicológica, porém não mais além do psíquico. Simplesmente chegamos à "dimensão do psíquico profundo" (Freud, 1915/1998, p. 170). O psíquico profundo não deixa de ser estritamente psíquico por ser econômico ou histórico. A História e a Economia são metapsicologia. No entanto, nessa metapsicologia, transcendemos à Psicologia e dissipamos suas ilusões, entre elas, a metafísica, a mitologia e a religião, que Marx e Freud concebem de maneira consonante e complementar:

  • Como "reflexo religioso do mundo real", "onde produtos da mente humana assemelham-se a seres dotados de vida própria, de existência independente" (Marx, 1867/2008, pp. 38, 44).

  • Como "Psicologia projetada ao mundo exterior", em que "se espelha" o "discernimento obscuro" de "fatores psíquicos e constelações do inconsciente" (Freud, 1901/1998, p. 251).

Em ambas as concepções, a metafísica se vê reduzida a uma Psicologia que não só é ilusória e difere do mundo real ou exterior, como entranha uma verdade psiquicamente reduzida ou projetada que nos remete à mente humana, a fatores psíquicos e constelações do inconsciente. Marx e Freud tentam desentranhar essa verdade metapsicológica na ilusão psicológico-metafísica. Ambos querem, como diria Freud (1901/1998), "transpor à metafísica a metapsicologia" (p. 251). Ambos desejam chegar a uma metapsicologia ao se aprofundar na Psicologia da metafísica. É exatamente o que faz Marx (1867/2008), por exemplo, ao mergulhar na Psicologia da "timidez real" que "se reflete" metafisicamente "de um modo ideal nas religiões naturais e populares", o que o permite propor a teoria metapsicológica do "cordão umbilical", do "enlace natural" na "falta de desenvolvimento do homem dentro de seu processo material de produção de vida" (p. 44). Essa circunstância histórico-econômica é o fator metapsicológico pelo qual se explica o traço psicológico manifestado nas criações metafísicas. Já não basta, como na velha ciência moderna, dissolver a metafísica na Psicologia, pois agora deve-se dissolver a Psicologia na metapsicologia. Esse segundo gesto crítico-reflexivo é o representado por Marx, e não somente por Freud, na crise da modernidade e de seu conceito de cientificidade.

 

Considerações finais

Quando Marx e Freud vão mais além da esfera psicológica e penetram no âmbito metapsicológico, o que presenciamos é um retorno crítico-reflexivo da cultura sobre si mesma em uma etapa histórica de crise cultural que, contudo, não superamos. Essa crise da modernidade faz com que o patente caia na categoria do ideológico e que a ciência entenda que não pode subsistir como tal sem extrair o latente que subjaz a seu objeto patente. É então que o psicológico deixa de ser convincente e de bastar-se a si mesmo, torna-se suspeito e nos exige atravessá-lo e ir mais além dele. Esse ir mais além é o princípio fundamental de toda crítica radical em nossa época.

A crítica radical de Marx e Freud vai mais além da ideologia psicológica e desenvolve uma ciência metapsicológica desideologizadora que apenas vislumbramos no interior do Capital. É preciso adentrar nessa ciência, continuar explorando-a e seguir encontrando as coincidências entre Marx e Freud que há em seu interior. As coincidências estão ali entre as divergências. Sequer é preciso buscá-las. Basta seguir encontrando-as ao explorar uma metapsicologia que não é, na realidade, nem de Marx nem de Freud, mas da cultura na etapa histórica na qual Marx e Freud coincidem e na qual encontramos as coincidências entre eles. Cada coincidência encontrada justifica nossa exploração, assim como as explorações que a precedem.

 

Referências

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1 Originalmente publicado em 2016 no periódico Teoría y Crítica de la Psicología.
2 Optou-se por manter as edições utilizadas pelo autor, traduzindo-se livremente esta e as demais citações diretas (N. T.).

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