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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dic. 2021

 

"Reconhecer é amar"?: Algumas reflexões psicanalíticas sobre o reconhecimento de paternidade no Brasil

 

To Recognize is to Love?: Some Psychoanalytic Reflections on the Recognition of Paternity in Brazil

 

"Reconnaître est amour"?: Quelques réflexions psychanalytiques sur la reconnaissance de la paternité au Brésil

 

¿"Reconocer es amar"?: Algunas reflexiones psicoanalíticas sobre el reconocimiento de paternidad en Brasil

 

 

Isadora Elaine Sales NunesI; Isalena Santos CarvalhoII

IPsicóloga pela Faculdade Pitágoras de São Luís. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atual residente do programa de Residência Multiprofissional da Secretaria de Saúde do Maranhão (SES)
IIProfessora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UNB). Membro da Associação Escola de Psicanálise do Maranhão (AEPM)

 

 


RESUMO

No Brasil, há muitas crianças e adolescentes sem o sobrenome do pai, levando o campo do Direito a fomentar campanhas sobre a importância do registro paterno, como o "Reconhecer é Amar!". Para o Direito, o reconhecimento paterno ocorre a partir da inscrição do sobrenome do pai na certidão de nascimento do filho. Contudo, reconhecer um filho envolve questões inconscientes sobre a filiação, não sendo possível pensá-lo de maneira prescritiva, pois será vivenciado de maneira diferente para cada sujeito. Este artigo busca discutir o reconhecimento de paternidade a partir da Psicanálise, em articulação com o conceito de função paterna em Lacan. Foi realizada uma pesquisa teórica de obras e legislações do Direito brasileiro sobre o reconhecimento paterno, bem como de textos de Freud e Lacan que abordam a temática do pai e sua função. Segundo Lacan, a função paterna está para além de buscar se o pai esteve presente de forma concreta ou não na vida de alguém. É o pai enquanto função que encarna um lugar de interdição da mãe para a criança, instaurando a Lei. Assim, esse conceito envolve a constituição do sujeito do desejo, que traz consigo a falta, e é por meio desta que se posicionará diante da vida. O conceito de função paterna mostra que o reconhecimento de paternidade não se trata de algo prescrito. A obtenção do direito ao registro do sobrenome paterno na certidão não garante a formação do laço de amor entre pai e filho, o que requer a escuta acerca do que implica para cada pai e para cada filho a inscrição desse nome.

Palavras-chave: Reconhecimento judicial. Paternidade. Direito. Psicanálise.


ABSTRACT

Data presented by the 2011 School Census showed that 5,494,267 children and adolescents live without their father's surname, leading to the right to promote campaigns to raise awareness of the importance of parental registration, such as the "Recognize is Love!" from Maranhão (Brazil). Although the Law understands that parental recognition occurs from the inscription of the father's surname on the son, recognizing a child involves unconscious questions about the sonship, and it is not possible to think it in a prescriptive way, since it will be experienced differently for each subject. This article seeks to discuss the recognition of paternity from psychoanalysis, in articulation with the concept of paternal function in Lacan. According to Lacan, the paternal function is beyond searching whether the father was present or not in the person's life, but in thinking of the father as a function that embodies a place of interdiction from the mother to the child, establishing a Law.

Keywords: Law recognition. Paternity. Law. Psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Au Brésil Il y a beaucoup d'enfants et adolescents qui n'ont pas le nom de famille de son pére et cette réalité fait que le droit ait que promouvoire des campaignes qui s'agit de l'importance du registre paterne avec le pretext: reconnaitre c'est aimer. Suivant la loi, la reconnaissance paternel advient a partir du moment qu'un enfant reçu le nom de famille de son pére sur son enregistrement de naissance. Cependant, l'action de reconnaitre un fils ou une fille possède des implications inconscientes que rendent impossible penser cette reconnaissance d'une manière prescritive parce cet experience doit en general être vécu d'une façon trop particulière. Donc, cet article s'agit d'une discussion sur cette reconnaissance paternel a partir de la psychanalyse, sourtout, en considerant l'idée de fonction paternel citée par Lacan. On a fait une recherche théorique avec la legislation brésilienne que parle de la reconnaissance paternel et aussi un tas de livres, entre eux: écrits de Freud et Lacan que s'agit de cet thème. D'après Lacan, la fonction paternel est au-delà de la simple recherche de savoir si un pére était present d'une façon concrète ou non dans la vie de quelqu'un. Selon Lacan, le pére doit être vu comme fonction qui occupe un lieu d'interdiction de la mère à son fils ou filles, en installant une loi. Cette idée est donc associée à la constitution du sujet du désir constitué par un manque qui le fait tenir une place sur le monde. L'idée de foncton paternel montre que la reconnaissance de la paternité n'est pas préscrite. Le droit d'avoir un nom de famille enregistré dans un papier officiel ne garantit pas la création d'un lien d'amour entre un fils ou une fille et son père. Cela confirme la nécessité d'une écoute particulière pour savoir ce que signifie pour chaque pére et fils ou fille l'engregistrement d'un nom.

Mots-clés: Reconnaissance judiciaire. Paternité. Loi. Psychanalyse.


RESUMEN

Los datos presentados por el Censo Escolar de 2011 mostraron que 5.494.267 niños y adolescentes viven sin el apellido del padre, llevando el Derecho a fomentar campañas de concientización de la importancia del registro paterno, como el "Reconocer es Amar!", de Maranhão (Brasil). Aunque el Derecho comprenda que el reconocimiento paterno se da a partir de la inscripción del apellido del padre en el hijo, reconocer un hijo involucra cuestiones inconscientes sobre la filiación, no siendo posible pensarlo de manera prescriptiva, pues será vivenciado de manera diferente para cada uno Sujeto. Este artículo busca discutir el reconocimiento de paternidad a partir del psicoanálisis, en articulación con el concepto de función paterna en Lacan. Según Lacan, la función paterna está más allá de buscar si el padre estuvo presente o no en la vida de la persona, sino en pensar en el padre como una función que encarna un lugar de interdicción de la madre para el niño, instaurando la Ley.

Palabras clave: Reconocimiento. Paternidad. Derecho. Psicoanálisis.


 

 

Introdução

No campo do Direito, as questões sobre a paternidade vêm passando por modificações ao longo dos anos, a partir das transformações que acontecem na sociedade. Como exemplo, podemos pensar no aperfeiçoamento de tecnologias que deram origem ao exame de DNA, considerado atualmente como o principal elemento de prova em uma investigação de paternidade, ou, em contrapartida, no aparecimento de discussões sobre o valor do afeto nas relações de parentesco, para além do vínculo consanguíneo (Pereira, 2015).

O reconhecimento de paternidade remete ao conceito de filiação, ou seja, ao princípio de que todos têm um pai e uma mãe. O que ratifica, juridicamente, a filiação de alguém? Para o Direito, a ratificação se dá pela inscrição dos sobrenomes paterno e materno no registro de nascimento da pessoa. Nesse registro, será averbado o nome completo do filho e emitida sua certidão de nascimento, comprovando sua existência para o Estado e inserindo-o numa relação de direitos e deveres. É o sobrenome da pessoa que indica sua filiação e que, quando registrado, comprova sua ligação filial materna ou paterna. Este trabalho discute, especificamente, a filiação paterna, ou seja, os casos de pessoas que não têm o registro do sobrenome paterno em sua certidão. A presença desse sobrenome na certidão do filho representa que o pai se dirigiu ao cartório e reconheceu o filho como seu.

Ao longo desta pesquisa, não foram encontrados dados recentes sobre o índice de pessoas sem o sobrenome paterno. O único encontrado foi o do Censo Escolar de 2011, que indicou haver mais de 5.494.267 crianças e adolescentes sem o sobrenome do pai em sua certidão. Essa informação está presente na cartilha do Programa "Pai Presente" do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Programa entra em contato com as famílias das crianças e adolescentes de todo país, por intermédio das informações reunidas pelo Censo, com o intuito de averiguar se tinham interesse em dar entrada no processo para aquisição do sobrenome. Atuante até os dias de hoje, o "Pai Presente" já resultou em 14.603 reconhecimentos voluntários - quando o pai assume a paternidade e permite que seja feito o registro de seu sobrenome, não havendo a necessidade de investigação judicial de paternidade -, 22.9013 aberturas de processo de investigação de paternidade e 11.892 exames de DNA realizados (CNJ, 2015).

Outros programas vinculados ao Pai Presente têm aparecido nos estados brasileiros, dentre eles destacamos o projeto "Reconhecer é Amar!", criado em 2012 no estado do Maranhão pela Corregedoria-Geral da Justiça do Maranhão (CGJ-MA]). Ainda em vigência, objetiva incentivar o reconhecimento de paternidade voluntário, sem a necessidade de processo judicial. Entretanto, a ideia do reconhecimento como um ato de amor precisa ser problematizada, pois a aquisição do sobrenome do pai, embora confirme juridicamente a filiação e garanta ao filho direitos patrimoniais de herança ou pensão alimentícia, não consiste em uma garantia de que haverá a formação de um laço de amor entre o pai e o filho. Diante do exposto, o presente trabalho parte da afirmação colocada pela campanha, buscando a partir da Psicanálise, com base em textos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan, questionar e discutir: reconhecer é amar?

A noção de pai em Psicanálise foi discutida neste artigo com base nos conceitos de função paterna e lei simbólica. Com o conceito de função paterna, Lacan mostrou que a noção de pai está para além de sua presença concreta ou não na vida do filho e, com isso, de ser qualificado como "bom", "ruim", etc. No Seminário 5, "As formações do inconsciente", Lacan teorizou o pai como uma metáfora, apontando sua relação com a cadeia discursiva e com o funcionamento do neurótico. A metáfora se dá pela operação desenvolvida por Lacan (1957-58/1999) em três tempos lógicos (castração, frustração e privação) da travessia edipiana, nos quais o pai comparece, para a criança, como aquele que priva a mãe de seu objeto do desejo, o que interdita o desejo incestuoso do filho pela mãe. É a interdição que mostra a submissão à lei simbólica, com a constituição do sujeito desejante.

Nessa perspectiva, apresentamos transformações no campo jurídico que, ao longo dos anos, contribuíram para que todos os filhos, independentemente da origem de sua filiação, alcançassem o direito ao reconhecimento paterno, bem como transformações que contribuíram para facilitar o reconhecimento em caso de registro apenas do sobrenome da mãe. Em seguida, contextualizamos o projeto "Reconhecer é Amar!", suas características e repercussões. Por fim, discutimos o projeto a partir da Psicanálise de modo a questionar a ideia de que com o reconhecimento haverá a presença de um pai na vida de um filho ou a formação de um laço de amor.

 

Transformações jurídicas e seus efeitos no reconhecimento de paternidade no Brasil

Segundo Almeida (1999), os primeiros textos jurídicos no Brasil do século XIX que tratavam de questões relativas à família e à filiação mostravam enorme influência do direito português. Ao mesmo tempo, as questões jurídicas relativas à constituição da família e do casamento participavam essencialmente da área eclesiástica. A instituição familiar só poderia advir por meio do casamento, sendo esse de natureza sacramental.

O matrimônio era uma instituição regulada pela igreja católica, que estendia suas influências até os textos jurídicos da época, tamanha era a sua importância na sociedade. Ainda podemos encontrar resquícios de suas influências no Direito brasileiro, quando observamos que, mesmo com o reconhecimento da união estável como entidade familiar (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 226, §3º), a importância do vínculo matrimonial entre o homem e a mulher ainda se faz presente no contexto do reconhecimento de paternidade. Foi durante o período da República, com a promulgação do Decreto n. 181, em 24 de janeiro de 1890, que o matrimônio passou a valer como contrato civil e marcou o início da regulação pelo Estado. O art. 1º do Decreto determinava que aqueles que tinham o interesse em se casar deveriam habilitar-se perante o oficial do cartório de registro civil (Decreto-Lei n. 181, 1890).

Para o Código Civil brasileiro de 1916, os filhos havidos da relação matrimonial eram considerados legítimos (art. 337) ou poderiam ser legitimados casos os pais se casassem entre si (art. 353). Aqueles filhos havidos de pais que não eram casados entre si eram denominados como ilegítimos.

Os filhos recebiam ainda outras classificações no Direito, como a de filhos adulterinos e filhos incestuosos. Os filhos adulterinos eram aqueles nascidos de pais que se encontravam impedidos de se casarem entre si na época da concepção, por serem ambos, ou um deles, já casados com outrem. Poderiam ser unilateral ou bilateralmente adulterinos - quando apenas um dos pais é casado com outra pessoa ou ambos - ou adulterinos a patre ou a matre, em referência ao vínculo só da parte do pai ou da mãe. Os filhos incestuosos eram aqueles cujos pais são vinculados por consanguinidade em grau que impede o matrimônio (Pereira, 2015). Os filhos considerados adulterinos ou incestuosos, segundo o art. 358 do Código Civil (1916), não poderiam ser reconhecidos.

Anos depois, com a Lei n. 883/1949, os filhos ilegítimos, ao serem reconhecidos, passaram a ter direito à metade da herança que viesse a receber o filho legítimo (Lei n. 883, 1949, art. 2°). Entretanto, apesar de essa lei buscar reconhecer em igualdade de condições, para ambos os filhos, o direito à herança, a discriminação para com os filhos havidos fora da relação do casamento perdurava, especialmente na maneira vexatória que o Direito os classificava (ilegítimos, adulterinos, incestuosos). Ao mesmo tempo, segundo Pereira (2015), durante esse período, anterior ao surgimento do exame de DNA, a apresentação de provas na investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento era extremamente difícil, em decorrência do preconceito que existia contra os relacionamentos extramatrimoniais.

Em 31 de dezembro de 1973, é instituída a Lei n. 6.015, ou Lei de Registros Públicos, que regulamenta o serviço de Registro Civil de Pessoas Naturais, no qual é feito o registro de nascimento. O pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto, devem fazer a declaração de nascimento do filho (Lei n. 6.015, 1973, art. 52, item 1º). Durante o registro, os pais enunciarão o prenome e o sobrenome que escolheram para o filho, para serem registrados na certidão de nascimento. É o que atesta juridicamente o reconhecimento voluntário de paternidade. O art. 54, item 7º, da Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/1973) afirma que, no assento de nascimento do recém-nascido, deve constar o lugar e cartório onde os pais se casaram, ou seja, mais uma vez fazendo alusão à origem filial do recém-nascido, se "legítima" ou "ilegítima".

A criação da Lei de Registros Públicos é importante para o reconhecimento da paternidade no Brasil, pois se trata da única lei brasileira que regula a inscrição do prenome e sobrenome do filho e indica a importância da presença do pai no registro para a transmissão de seu sobrenome ao filho, conforme nos mostra o que se segue.

Art. 59. Quando se tratar de filho ilegítimo, não será declarado o nome do pai sem que este expressamente o autorize e compareça, por si ou por procurador especial, para, reconhecendo-o, assinar, ou não sabendo ou não podendo, mandar assinar a seu rogo o respectivo assento com duas testemunhas. (Lei n. 6.015, 1973).

Segundo Pereira (2015), permanece no Direito brasileiro uma diferença no estabelecimento da filiação dentro e fora do casamento, havendo uma divisão dos filhos em duas categorias para a determinação da paternidade: filhos matrimoniais e filhos extramatrimoniais. Se os pais são casados, do casamento a lei presume a coabitação dos cônjuges, e da coabitação presumida, a paternidade. Ou seja, a presunção de paternidade parte do princípio de que, se os cônjuges se casaram, em dado momento houve uma relação sexual que comprova a paternidade do cônjuge. Pater is est quem nuptiae demonstrant (É pai aquele que as núpcias indicam). O marido da mãe é considerado o pai. Assim, quando se fala em reconhecimento de paternidade no Direito, geralmente está-se referindo aos filhos havidos de pais que não são casados entre si.

Contudo, se os pais não são casados entre si, a lei não dispõe de elementos para identificar o genitor. É o que comparece na máxima romana: Mater semper certa est, pater semper incertus este ("A mãe é sempre certa, o pai, sempre incerto"). Não se sabe quem é o pai, pois não há o vínculo matrimonial entre os genitores, que é o que comprovava a existência do ato sexual entre eles; situação em que a presença do pai no registro, ou sua autorização, faz-se necessária para que ocorra o reconhecimento e a transmissão do sobrenome.

Foi com a promulgação da Constituição de 1988 que as classificações de filhos ilegítimos, adulterinos e incestuosos caíram em desuso, em decorrência do que expõe o art. 227, §6º: "todos os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". A criação da Constituição aconteceu em um período de redemocratização do país e acentuação dos princípios fundamentais da dignidade humana. Dessa forma, a ideia de igualdade de direitos, sem restrições, apareceu no contexto da filiação. Um ano depois, a Lei n. 7.841, de 17 de dezembro de 1989, revogou o art. 358 do Código Civil (1916), até então vigente, que proibia o reconhecimento dos filhos ditos adulterinos e incestuosos.

Em 29 de dezembro de 1992, foi instituída a Lei n. 8.560, que visou regular a investigação de paternidade no Brasil. Ela autoriza o oficial do registro civil a, em situação de registro de nascimento apenas com a maternidade estabelecida, ou seja, somente com o sobrenome materno, encaminhar ao juiz informações sobre o suposto pai - recolhidas com a mãe - como o nome e sobrenome, profissão, identidade e residência, a fim de ser averiguada oficiosamente a paternidade alegada (art. 2º). Caso o suposto pai confirme expressamente a paternidade, será redigido o termo de reconhecimento e encaminhado ao oficial de registro, para a devida averbação (art. 2º, §3º). Contudo, se o suposto pai não atender no prazo de trinta dias a notificação judicial ou negar a alegada paternidade, o juiz encaminhará os autos ao representante do Ministério Público para que dê abertura, havendo elementos suficientes, à ação de investigação de paternidade (art. 2º, §4º). Nesse caso, tem-se o reconhecimento de paternidade na modalidade compulsória, na qual há a presença de um conflito entre o investigante (suposto filho) e o investigado (suposto pai).

A Lei n. 8.560/1992 determina que a recusa do suposto pai em se submeter ao exame de DNA gerará a presunção da paternidade, que será apreciada em conjunto com o contexto probatório (art. 2°-A, parágrafo único). Se comprovada a filiação, o reconhecimento será imposto pelo juiz. Essa lei afirma ainda que no registro de nascimento não deverá ser feita qualquer referência à natureza da filiação da pessoa ou ao lugar e cartório do casamento dos pais e ao seu estado civil (art. 5º), revogando o exposto no art. 54, item 7º, da Lei de Registros Públicos.

Por fim, o Código Civil de 1916 é revogado em 10 de janeiro de 2002, na forma da Lei n. 10.406, reproduzindo integralmente no art. 1.596 o exposto no §6º, art. 226 da Constituição, que afirma que todos os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibida qualquer discriminação. O Código Civil determinou que a filiação é comprovada por meio da certidão de nascimento registrada no Registro Civil (art. 1.603) e que o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável (art. 1.609).

 

O projeto "Reconhecer é amar!": suas características e alguns comentários

O projeto "Reconhecer é Amar!" foi criado em 2012 pela CGJ-MA e é inspirado no programa "Pai Presente" do CNJ. O projeto objetiva incentivar o reconhecimento de paternidade voluntário, sem a necessidade de processo judicial. O interessado - que pode ser a mãe, o filho maior de 18 anos ou o suposto pai - deve dirigir-se ao Centro de Conciliação, localizado no Fórum da capital do estado, São Luís, munido de documentos de identificação, incluindo a certidão de nascimento. A mãe ou o filho maior de 18 anos deve preencher o Termo de Indicação de Paternidade. No caso de reconhecimento paterno voluntário, o pai deve preencher o Termo de Reconhecimento de Paternidade. Nos demais municípios do estado, o procedimento pode ser realizado no fórum das comarcas de cada cidade. O projeto "Reconhecer é Amar!" já soma 453 reconhecimentos voluntários e 432 indicações de paternidade (Tribunal de Justiça do Maranhão [TJMA], 2012; Tribunal de Justiça do Maranhão [TJMA], 2016).

Caso o suposto pai não compareça à audiência de conciliação ou negue a alegada paternidade, os autos são encaminhados ao Ministério Público para análise da possibilidade de abertura do processo de investigação de paternidade, nos termos da Lei n. 8.560/1992. A comprovação da paternidade é realizada por meio de exame de DNA no Laboratório Forense de Biologia Molecular, localizado no Fórum. O exame é gratuito (TJMA, 2012).

 

 

A ideia do reconhecimento de paternidade como um ato de amor precisa ser problematizada. O ato de reconhecer um filho envolve questões de ordem inconsciente sobre a filiação; como tal, não obedece a uma lógica prescritiva, em que haveria uma determinação daquilo que cada um supostamente deve ou não sentir. A asserção de amor vinculada ao reconhecimento paterno via judicial pode acarretar sofrimento àqueles que anseiam pelo reconhecimento de paternidade, visto que a aquisição do sobrenome do pai não é uma garantia de que haverá a formação de um laço afetivo entre pai e filho. O discurso jurídico que comparece em campanhas como "Pai Presente" e "Reconhecer é Amar!" está relacionado às concepções jurídicas sobre a ideia de paternidade. Dentre elas, encontra-se o princípio constitucional de paternidade responsável, presente no art. 226, §7º, da Constituição Federal (1988).

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 226).

O planejamento familiar é definido como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garante direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal (Lei n. 9.263, 1996, art. 2º). Ou seja, trata-se dos direitos do casal em escolher, sem a interferência do Estado, se terão filhos ou não, ou quantos filhos haverão de ter. Segundo Cardin (2009), a paternidade responsável envolve os deveres que os pais têm de assegurar a assistência moral, afetiva e material aos filhos. É um princípio constitucional assegurado também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma ser um dever da família, da comunidade, da sociedade e do poder público, assegurar à criança e ao adolescente a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4º). O Código Civil (2002) determina que é um dever de ambos os cônjuges o sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, inc. IV).

O princípio constitucional de paternidade responsável vem sendo utilizado como norteador de campanhas sobre o reconhecimento de paternidade, haja vista que a ausência do reconhecimento costuma ser associada, no Direito, à ausência da figura paterna na vida da pessoa. Ao mesmo tempo, o termo "Paternidade Responsável" é utilizado também, largamente, na oferta de "cursos" de paternidade. Tais iniciativas começaram a surgir a partir da Lei n. 13.257/2016, que estendeu a licença-paternidade de 5 para 20 dias (art. 38, inc. II).

A partir dessa mudança, instituições privadas e órgãos públicos começaram a oferecer cursos ou oficinas de curta duração - presencial ou on-line - para instruir os futuros pais sobre a paternidade, organizados em módulos temáticos como: a importância da presença do pai na gestação e no parto; os cuidados com o bebê, como o banho, a troca de fraldas, a amamentação; e, ainda, o vínculo pai-filho e o papel do pai na formação do caráter.

A Escola de Governo do Maranhão (EGMA) tem organizado, anualmente, a oficina "Paternidade Responsável", ministrada aos servidores públicos do estado do Maranhão. A primeira oficina ocorreu em 2017 e consistiu na exibição de vídeo explicando a gestação do bebê, alterações recentes sobre a licença-paternidade, a importância do papel do pai na educação do filho e do convívio familiar e exposição acerca da forma como o pai pode ajudar no parto e na volta com o bebê para casa (EGMA, 2017).

A paternidade parece ser assim compreendida em nossa sociedade, o que se revela no campo do Direito, de maneira prescritiva e passível de ser ensinada. No entanto, em seu trabalho sobre a função paterna, Lacan mostrou que para além de pensar características do pai ou em como ele supostamente deveria ser para o filho (bom, gentil, mau etc.), a questão é pensar o seu lugar no complexo Édipo-Castração.

 

A paternidade pelo olhar da Psicanálise

Em "A metáfora paterna", lição presente no "Seminário livro 5: As formações do inconsciente", Lacan (1957-58/1999) nos chama atenção para a forma como vinha sendo investigada a questão do pai na Psicanálise. O interesse no pai, por parte dos analistas, fazia-se presente nas perguntas: "Mas, e o pai? Que estava fazendo enquanto isso?" (p. 172), bem como das assertivas: "Mas os pais não se entendiam, havia um desentendimento conjugal, isso explica tudo" (p. 172). Havia uma preocupação em investigar se o pai esteve presente ou ausente na vida de uma pessoa, ou ainda, se ele foi um pai bom, ruim etc. "As perguntas acumulam-se no registro biográfico. O pai estava ou não estava presente? Será que viajava, que se ausentava, será que voltava com frequência?" (p. 172).

O debate sobre a presença do pai na vida da criança e de como aí ele se mostrou em termos de características de sua pessoa é questionado por Lacan no citado Seminário, ao mostrar que o pai se faz presente mesmo em sua ausência concreta. É no discurso da mãe que o pai comparece para a criança.

A ideia de paternidade como uma presença concreta persiste em nossa sociedade, comparecendo, inclusive, no discurso jurídico de campanhas sobre o reconhecimento de paternidade. Não é só o título do programa "Pai Presente", pioneiro e talvez o mais conhecido, que nos chama atenção nesse ponto. O reconhecimento paterno e a inscrição do sobrenome do pai na certidão costumam estar relacionados à ideia de uma presença concreta do pai na vida do filho.

 

 

A função paterna não se restringe à presença ou à ausência física do pai, o qual pode se fazer presente mesmo em sua ausência. Trata-se de algo que comparecerá para a criança como proibidor da mãe e instaurador da lei simbólica.

Em "Os três tempos do Édipo" (Lacan, 1957-58/1999), a função paterna é articulada em três tempos lógicos: o da castração, o da frustração e o da privação.

Em sua teorização, Lacan refere-se à noção de Outro como o lugar encarnado por alguém - geralmente a mãe - que se ocupa da criança. É em relação ao enigma que há para a criança quanto às idas e vindas da mãe que a criança fará sua primeira simbolização.

É a mãe que vai e vem. É por eu ser um serzinho já tomado pelo simbólico, e por haver aprendido a simbolizar, que podem dizer que ela vai e vem. Em outras palavras, eu a sinto ou não sinto, o mundo varia com sua chegada e pode desaparecer. A pergunta é: qual é o significado? O que quer essa mulher aí? Eu bem que gostaria que fosse a mim que ela quer, mas está muito claro que não é só a mim que ela quer. Há outra coisa que mexe com ela - é o x, o significado. E o significado das idas e vindas da mãe é o falo. (Lacan, 1957-58/1999, pp. 180-181).

A criança irá simbolizar as idas e vindas da mãe, colocando algo no lugar desse enigma, o x da questão, um significado. O que faz sua mãe estar ora presente ora ausente? Lacan (1957-58/1998) articula que o desejo da criança é o desejo do desejo da mãe. O que deseja o Outro? O que acontece com essa mãe que vai e vem e "que é chamada quando não está presente e que, quando está presente, é repelida para que seja possível chamá-la?" (p. 189). Para a criança, é o falo que está nesse lugar.

Essa simbolização primeira realizada pela criança abre para ela a dimensão daquilo que a mãe pode desejar de diferente, o desejo de Outra coisa, no plano imaginário. "Há nela o desejo de Outra coisa que não o satisfazer meu próprio desejo, que começa a palpitar para a vida" (Lacan, 1957-58/1999, p. 188). Ou seja, a criança se dá conta de que não existe só ela na vida de sua mãe, de que não é possível a ela satisfazer completamente a mãe.

Em "A Organização Genital Infantil", Freud (1923/1996) aponta que na organização genital infantil somente um genital pode entrar em consideração para ambos os sexos: o genital masculino. O que comparece é a primazia do falo, pois tanto os meninos quanto as meninas acreditam que todos têm um pênis. A visão do órgão genital feminino, pelo menino, leva-o a constatar a falta de pênis na menina. Inicialmente, o menino acredita que o pênis ainda é pequeno e irá crescer. Depois, lentamente chega à conclusão de que o pênis estivera lá antes e fora retirado. Dessa forma, a falta de um pênis na menina é visto como resultado da castração.

A ameaça de castração também aparece de outras maneiras para o menino. A masturbação e a enurese na cama, por exemplo, ambas expressões do interesse sexual masculino nos próprios genitais, costumam ser reprovados pelas pessoas que cuidam da criança. Pronunciam uma ameaça de que essa parte de seu corpo, que o menino tanto valoriza, lhe será tirada. Geralmente, é de mulheres que vem tal ameaça, fala em que a figura do pai ou do médico aparecem como aqueles que levarão a cabo a castração. O menino não acredita em absoluto na possibilidade de perda de seus órgãos, mas a visão dos órgãos genitais femininos rompe sua descrença (Freud, 1924/1996).

Somente aquelas mulheres desprezíveis "que, com toda probabilidade, foram culpadas de impulsos inadmissíveis semelhantes ao seu próprio", o menino acredita serem castradas (Freud, 1923/1996, p. 160). Mulheres a quem ele respeita, como sua mãe, retêm o pênis por longo tempo. Somente quando o menino se vê diante da questão da origem e do nascimento dos bebês e adivinha que somente as mulheres podem gerá-los, é que então a mãe perde o pênis (Freud, 1923/1996).

No primeiro tempo do Édipo em Lacan (1957-58/1999), o da castração, a questão que se colocará para a criança é ser ou não ser (to be or not to be) o falo - o objeto de desejo da mãe. A criança buscará fazer-se de falo com o intuito de satisfazer o desejo da mãe.

A partir do momento em que alguma coisa começa a se remexer em seu baixo-ventre, ela começa a mostrá-la à mãe, no intuito de saber se sou mesmo capaz de alguma coisa, com as decepções que se seguem. Ela a procura e a encontra na medida em que a mãe é interrogada pela demanda da criança. Também a mãe, por sua vez, está em busca de seu próprio desejo, e em algum lugar por aí situam-se os componentes deste. (Lacan, 1957-58/1999, p. 198).

No segundo tempo, o da frustração, o pai é instaurado como aquele que priva a mãe de seu objeto de desejo - o falo. Segundo Lacan (1957-58/1999), o sujeito se posicionará de uma certa maneira, em sua infância, quanto ao papel desempenhado pelo pai no fato de a mãe não ter falo. O pai intervém como privador da mãe. A demanda endereçada ao Outro se encontrará diante de uma lei, a lei do pai, imaginariamente concebida como privadora da mãe. Dessa forma, a mãe revela-se dependente de um objeto que já não é mais apenas o objeto de seu desejo, mas um objeto que ela pode ter ou não.

Em seu desejo de satisfazer a mãe, a criança encontra um Outro do Outro, um terceiro que barra esse seu desejo. O pai encarna um lugar terceiro na relação mãe-criança, instituindo para a criança que sua mãe está interditada, que possui um Outro terceiro que a atravessa e, dessa forma, não poderá satisfazer todos os desejos da criança. Esse Outro terceiro retorna para a criança como uma lei.

Eis um outro patamar, o da frustração. Nesse, o pai intervém como detentor de um direito, e não como personagem real. Mesmo que não esteja presente, mesmo que telefone para a mãe, o resultado é idêntico. Nesse ponto, é o pai como simbólico que intervém numa frustração, ato imaginário concernente a um objeto muito real, que é a mãe... (Lacan, 1957-58/1998, p. 178).

O pai pode não estar presente concretamente para a criança, mas se fazer presente, na medida em que alguém comparecerá para a criança como detentor da mãe, sendo aquilo que a faz não estar sempre ali para atender aos chamados da criança, ou mesmo estando, que há algo nela da ordem da falta que não pode ser preenchido. O parágrafo citado mostra também que o pai se faz presente no discurso da mãe, mostrando para a criança que há um para-além em sua vida, a quem ela se dirige.

Lacan (1957-58/1998), no Seminário 5, apresenta o pai como uma metáfora: o pai é um significante que surge no lugar de outro significante. A função do pai é ser um significante, significante Nome-do-Pai, que substitui o primeiro significante, o significante do desejo materno. A operação da metáfora paterna, que atesta a travessia edipiana, é o que permite a constituição do sujeito do desejo, da neurose.

A ligação desse remeter a mãe a uma lei que não é dela, mas do pai, com o fato de seu objeto de desejo ser soberanamente possuído pelo pai, fornece a chave da relação do Édipo. Seu caráter decisivo está não nessa relação, mas na palavra do pai (Lacan, 1957-58/1999). A palavra do pai precisa ter um efeito de Lei para a criança, embora esse efeito não se dê sem a mãe. A mãe até pode enunciar proibições para a criança que lhe suscite o medo da castração; contudo, o pai precisa estar encarnado em um lugar, para a mãe.

O pai é tudo o que há de mais agradável, é tudo o que há de mais presente, [...] é tudo o que há de mais amistoso para Hans, não parece ser nem um pouco imbecil e leva o Pequeno Hans a Freud - o que, afinal, na época, era dar mostras de um espírito esclarecido: mas, com tudo isso, ele é totalmente inoperante, na medida em que aquilo que diz é precisamente sem efeito - junto à mãe, quero dizer. (Lacan, 1957-58/1999, p. 199).

Essa citação mostra também que a função paterna está para além de buscar qualificações para o pai. A função paterna tem relação também com o lugar que o pai encarna para a mãe, um lugar faltoso.

Na medida em que no segundo tempo o pai comparece como detentor do objeto de desejo da mãe, no terceiro - o da privação -, ele precisa dar provas de sua posse. O pai se revela onipotente, como aquele que possui o falo. É preciso a assunção de que o pai é aquele que tem. É nesse tempo que se dá a saída do complexo de Édipo para o menino e sua identificação com o pai, visto que o pai é aquele que tem a posse do falo (Lacan, 1957-58/1999). Tem-se a identificação com o pai como portador do falo, que denota ao menino a assunção de posição diante do sexual.

Sobre a saída do complexo de Édipo, Freud (1924/1996) assinala que os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por identificações, e as tendências libidinais que aparecem na criança durante o complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas, em parte inibidas em seu objetivo. Ao mesmo tempo, a autoridade do pai ou dos pais é introjetada no eu, que forma aí o núcleo do supereu, em que a severidade do pai é assumida e se dá a perpetuação da proibição do incesto, que defende o eu do retorno do investimento libidinal. Para Freud (1924/1996), o afastamento do eu diante do complexo de Édipo diz de um recalque, ou mais do que isso, leva à destruição ou abolição do complexo. No entanto, mesmo o eu tendo realizado o recalque do complexo, este persiste em estado inconsciente no isso e, mais tarde, manifestará seu efeito patogênico.

Com essa elaboração, Freud (1924/1996) mostra pontos principais do seu trabalho de pesquisa sobre a constituição da neurose e de como, em suas palavras: "chegamos aqui à linha fronteiriça - nunca bem nitidamente traçada - entre o normal e o patológico" (p. 197). A ideia referente à "normalidade humana" é questionada, pois o sujeito da neurose tem em seu funcionamento a marca da castração, o que comparece em seu sintoma. Na análise, a fala do analisante mostra os efeitos da submissão à lei do pai em sua vida e o que lhe é possível a partir disso.

Em "Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor", Freud (1912/1996) fala de duas correntes que atuam na história do desenvolvimento da libido: a corrente afetiva e a corrente sensual. A primeira corresponde à escolha de objeto primária, a mais antiga; é dirigida aos membros da família e aos que cuidam da criança. A afeição demonstrada pelos pais da criança e pelos que cuidam dela, afeição essa que é de natureza erótica, contribui para o erotismo dos investimentos da pulsão no eu da criança e desempenha um papel em seu desenvolvimento ulterior. Com a puberdade, a corrente afetiva se une com a corrente sensual, que nessa união jamais deixa de investir nos objetos da escolha infantil primária. No entanto, nesse momento, vê-se diante de obstáculos para alcançar sua satisfação, obstáculos que foram erigidos pela barreira contra o incesto. Assim, a corrente sensual se voltará para outros objetos que serão escolhidos, conforme o modelo ou imago daqueles objetos primeiros da infância e, com o passar do tempo, a mesma afeição dirigida àqueles se ligará aos novos.

A interdição do desejo incestuoso implicará na submissão à lei simbólica para o neurótico. Essa lei rege a neurose e, conforme mostrado por Lacan (1957-58/1999), é instituída quando o pai aparece ao filho como detentor do objeto do desejo materno - o falo -, mostrando que a mãe tem falta. O pai interdita a mãe para a criança. Ele se liga à lei primordial de interdição do incesto. A submissão à lei simbólica mostra que houve uma renúncia pulsional, renúncia que torna possível o laço social, ainda que sempre evidencie um desencontro nas relações cotidianas.

O conceito de função paterna dialoga com a temática do reconhecimento de paternidade, pois mostra que essa função não é passível de ser ensinada. O investimento por trás do reconhecimento paterno envolve questões inconscientes, que estão à revelia da vontade do sujeito. Não é por não se encontrar concretamente presente que o pai, enquanto o que marca a lei simbólica, deixa de existir. Ele se faz presente mesmo na ausência de uma figura concreta. Está presente no discurso.

Embora a campanha "Reconhecer é amar!" seja de incentivo ao reconhecimento voluntário de paternidade, nem sempre o reconhecimento ocorrerá dessa maneira. É o caso do reconhecimento compulsório de paternidade, que está de acordo com o princípio da paternidade responsável e com o que afirma o Estatuto da Criança e do Adolescente ao dispor que o reconhecimento do estado de filiação é um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição (art. 27). Segundo Madaleno (1998), deixar de contribuir, de maneira injustificada, para o reconhecimento voluntário ou judicial de um filho é não só negligenciá-lo, como também violentá-lo moralmente, com reflexos no campo da responsabilidade civil.

Em contrapartida à imposição jurídica da responsabilidade parental, que é o que se mostra no reconhecimento compulsório de paternidade, surge a problemática quanto à possibilidade de vínculo com o filho não poder ser prescrita. Dessa forma, para além da imposição do reconhecimento, é importante que esse pai seja escutado em sua relação com o suposto filho e com a ideia de se responsabilizar enquanto pai. É importante a escuta acerca do lugar que tem para ele reconhecer um filho em seu desejo.

Se de um lado temos a questão sobre o que é reconhecer um filho, de outro temos aquela sobre o pedido pelo reconhecimento. A ausência do sobrenome paterno pode trazer intenso sofrimento para o sujeito, conforme o lugar que o pai encarna em sua vida. A vontade de ter o nome do pai na certidão envolve o anseio de que, com a aquisição desse nome, algo relativo ao pai em questão, que fora perdido, será recuperado por direito. A campanha "Reconhecer é amar!", em seu título, compreende o reconhecimento como um ato de amor. O filho que busca o nome do pai em sua certidão pode estar à espera de que, a partir do reconhecimento, haverá a formação de um laço de amor com o pai. No entanto, a promessa desse laço, que está implícita no título dessa campanha, contrapõe-se ao que Freud e Lacan mostraram em seu trabalho com a Psicanálise. A noção de pai se articula à falta e ao desejo para o neurótico; articulação que, ao mesmo tempo que se manifesta nas questões de cada um, é também o que lhe permite de alguma forma se mover em sua vida.

 

Considerações finais

Articular o campo jurídico com a Psicanálise não é uma tarefa fácil, devido às diferenças na concepção de sujeito que permeiam essas duas áreas. No Direito, temos o sujeito da objetividade, regido pela consciência e, consequentemente, pelo controle voluntário de seus atos. Mas Freud trouxe, com a noção de inconsciente, que há algo que sempre nos escapa. Entretanto, em ambos os campos o sujeito é discutido em sua relação com a lei, sendo jurídica para o Direito e simbólica para a Psicanálise. Segundo Duarte (2011), existe a possibilidade de interlocução entre os referidos campos, especialmente na questão paterna, pois o ordenamento advindo do poder paterno está no eixo central do ordenamento jurídico. Nesse sentido, uma mesma questão pode se configurar em ambos os campos, ainda que por meios diferentes.

Há inúmeras iniciativas jurídicas que visam divulgar a importância do registro paterno na certidão de nascimento, e projetos como o "Pai Presente" contribuem para a diminuição do índice de pessoas no Brasil sem o sobrenome paterno (CNJ, 2015). Mas há questões muito mais complexas que denotam não haver nada de simples na inscrição do nome do pai na certidão de nascimento.

Ao pedir à Justiça que dê abertura à investigação de paternidade, são atualizadas questões inconscientes para a pessoa que fez o pedido. O questionamento - "Quem é meu pai?" - envolve uma questão sobre a origem. Reconhecer um filho perpassa o que há da ordem do desejo de cada um sobre a noção de pai e da possibilidade, a partir disso, de se fazer pai para alguém, sendo que não haverá um "como ser" nesse contexto. Ser pai é algo que, cada sujeito, irá viver à sua maneira, o que faz com que pensar a paternidade de maneira prescritiva resulte na impossibilidade de escuta e acolhimento àqueles que desejam ou não reconhecer o filho e, do lado do filho, de escuta e acolhimento aos ideais que permeiam a busca pela inscrição do sobrenome paterno em sua certidão e do que esse nome lhe representa.

O reconhecimento terá efeitos para aqueles que estão envolvidos, efeitos esses que poderão não corresponder àquilo que haviam idealizado. Para a Psicanálise, a função paterna independe se o pai estava presente ou não fisicamente ou de como se mostrou em qualidades (bom, mau etc.). O pai se faz presente mesmo em sua ausência física, na medida em que é na fala da mãe que comparecerá ou não, tendo efeitos na constituição da criança. O pai é aquele que encarna um lugar de interdição da mãe, ele proíbe a mãe para a criança. Ao mesmo tempo, é a partir do momento em que comparece como detentor do objeto do desejo materno que a mãe mostrará que tem falta e que seu filho não a completa. Ao passo que o lugar que o pai encarna se dá à sua revelia, de maneira inconsciente, não há um padrão ou perfil de exercício da paternidade. Cada um mostrará como pôde se haver com o fato de ter um filho. O reconhecimento envolve as possibilidades de cada homem se ver como pai de alguém, e o que "ser pai" remete a cada homem. Assim, faz-se necessário um constante estudo sobre a paternidade, sem negligenciar os efeitos que as mudanças sociais e culturais que vêm ocorrendo na sociedade e na família implicam na maneira como é idealizado o ser pai e de como é possível para cada homem encarnar esse lugar.

 

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