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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.11 no.20 São João del Rei ene./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Transmissão psíquica em Freud, Lacan e René Kaës: aproximações e distanciamentos

 

Psychic Transmission in Freud, Lacan and René Kaës: Approximations and Distances

 

Transmission psychique chez Freud, Lacan et René Kaës: rapprochements et éloignements

 

Transmisión psíquica en Freud, Lacan y René Kaës: aproximaciones y distancias

 

 

Heitor Soares SanglardI*; Maria Gláucia Pires CalzavaraI**; José Roney de Freitas MachadoI***

IUniversidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo, buscou-se entender como o conceito de transmissão psíquica aparece nas obras de Freud, Lacan e René Kaës, de forma a encontrar, nesses três autores, aproximações e distanciamentos em suas formulações sobre o tema. A partir de uma pesquisa bibliográfica pelas principais obras de tais autores, é consensual a importância das identificações e das vias narcísicas como mecanismos privilegiados de transmissão psíquica. Do mesmo modo, verificou-se que a essência da condução do tratamento conduz para a mesma direção: a assunção de um desejo, nas palavras de Freud e Lacan, ou que o sujeito se torne beneficiário de suas heranças psíquicas, nas palavras de Kaës. Como distanciamentos, destacou-se que Freud e Lacan se debruçaram mais sobre os conteúdos integrativos da transmissão, enquanto Kaës propôs avanços sobre os conteúdos negativos, bem como refinamentos sobre alguns conceitos. Considerou-se, enfim, a transmissão psíquica um importante operador facilitador da clínica psicanalítica contemporânea.

Palavras-chave: Transmissão psíquica, Psicanálise, Freud, Lacan, Kaës.


ABSTRACT

In this article, we aimed to understand how the concept of psychic transmission appears in the works of Freud, Lacan and René Kaës in order to find, in these three authors, approximations and distances in their formulations on the theme. Based on a bibliographic research by the main works of such authors, there is a consensus on the importance of the identifications and of the narcissistic pathways as privileged mechanisms of psychic transmission. In the same way, it was found that the essence of conducting treatment leads in the same direction: the assumption of a desire, in the words of Freud and Lacan, or that the subject becomes a beneficiary of his psychic inheritances, in the words of Kaës. As distances, it was highlighted that Freud and Lacan focused more on the integrative contents of the transmission, while Kaës proposed advances on the negative contents as well as on the refinements on some concepts. Finally, the psychic transmission was considered an important facilitator of the contemporary psychoanalytic clinic.

Keywords: Psychic transmission, Psychoanalysis, Freud, Lacan, Kaës.


RÉSUMÉ

Dans cet article, on a cherché de comprendre comment le concept de transmission psychique apparaître dans les œuvres de Freud, Lacan et René Kaës afin de retrouver, chez ces trois auteurs, rapprochements et éloignements entre ses formules sur le thème. En partant d'une recherche bibliographique par les principales œuvres de tels auteurs, c'est consensuelle l'importance des identifications et des voies narcissiques comme mécanismes privilégiés de transmission psychique. D'une même manière, on a vérifié que l'essence de conduite du traitement s'oriente par la même direction: l'assomption d'un désir, dans les paroles de Freud et Lacan, ou que le sujet devienne bénéficiaire de ses héritages psychiques, chez Kaës. On distingue, comme éloignements, que Freud et Lacan se penchent plus sur les contenus intégratifs de la transmission, alors que Kaës a proposé des avances sur les contenus négatifs ainsi que des affinements sur quelques concepts. On a considéré, finalement, la transmission psychique un important opérateur facilitateur de la clinique psychanalytique contemporaine.

Mots-clés: Transmission psychique, Psychanalyse, Freud, Lacan, Kaës.


RESUMEN

En este artículo buscamos comprender cómo aparece el concepto de transmisión psíquica en las obras de Freud, Lacan y René Kaës para encontrar, en estos tres autores, aproximaciones y distancias en sus formulaciones acerca del tema. Desde una búsqueda bibliográfica de las principales investigaciones de dichos autores, existe un consenso acerca de la importancia de las identificaciones y las vías narcisistas como mecanismos privilegiados de transmisión psíquica. Asimismo, se constató que la esencia de la conducción del tratamiento va en la misma dirección: la asunción de un deseo, en las palabras de Freud y Lacan, o que el sujeto se convierta en beneficiario de sus herencias psíquicas, en las palabras de Kaës. Como distancias, se destacó que Freud y Lacan se enfocaron más en los contenidos negativos, así como refinamientos sobre algunos conceptos. Por fin, la transmisión psíquica fue considerada un importante operador facilitador de la clínica psicoanalítica contemporánea.

Palabras claves: Transmisión psíquica, Psicoanálisis, Freud, Lacan, Kaës.


 

 

1 Introdução

Este artigo se inscreve como comunicação preliminar de uma pesquisa realizada sobre o conceito de transmissão psíquica na Psicanálise, o que levou a algumas interrogações: como se pode delimitar o que é da ordem da transmissão? Quais são as aproximações e distanciamentos sobre a transmissão psíquica que se pode encontrar nas obras de Freud, Lacan e René Kaës? Com Freud, pode-se destacar, desde suas primeiras observações clínicas sobre a histeria até os dias atuais, que a Psicanálise sempre se desenvolveu em sua teoria e prática tendo como principal eixo de trabalho a escuta do sujeito do inconsciente (Jorge, 2008). Esse sujeito, para advir, necessita do atravessamento de uma rede de significantes que o precedem, estruturando e fornecendo os substratos psíquicos necessários para se localizar nos laços social e familiar como sujeito de desejo.

Esse conteúdo psíquico, tal como postula Lacan (1969/2003), inscreve a família conjugal em sua função de resíduo, que perpassa a evolução das sociedades, destacando, assim, "a irredutibilidade de uma transmissão - que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, e sim de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo" (p. 369). Esse resíduo, situado por Lacan na família, atravessa gerações mais próximas ou mais distantes por meio de uma transmissão daquilo que não se traduz em palavras, haja vista ser eminentemente inconsciente.

Com efeito, a transmissão psíquica está inscrita no processo de assunção do infans à categoria de sujeito, posto que, além de nutrição física, o grupo familiar nutre, psiquicamente, esse novo membro com um "banho de linguagem [...] diversos significantes que serão transmitidos pelos pais e pelas pessoas que estarão ao redor da criança" (Santos & Ghazzi, 2012, p. 639). Com efeito, antes que haja um sujeito que se diz, há um sujeito que foi dito, que foi adiantado em um discurso de desejo parental (Lacan, 1964/1988). A transmissão opera-se, portanto, para além do dito, do enunciado das palavras, isso porque ela se dá, também, pelo não dito, pelo que não se expressa como enunciado, mas que se manifesta por um retorno de algo não simbolizado, como uma repetição, por exemplo.

A partir dessa nomeação, buscou-se entender como o conceito de transmissão psíquica aparece nas obras de Freud, Lacan e René Kaës. Para tal intento, realizou-se uma pesquisa bibliográfica - consonante com os estudos em Psicanálise -, passando pelas principais obras desses autores, de modo a encontrar esclarecimentos sobre tal conceito, bem como aproximações e distanciamentos em suas formulações sobre o tema, apontando para a transmissão psíquica como um importante operador facilitador na escuta do sujeito na clínica psicanalítica contemporânea. Em verdade, apesar da ampliação de estudos sobre a transmissão psíquica desde o final da década de 1960 (Paiva, 2009) e da crescente literatura nacional sobre tal conceito (Abdala, 2013; Azevedo, 2015; Feres-Carneiro, 2005; Castanho, 2018), atestou-se, no decorrer desta pesquisa, a carência de produções que buscassem tratar das consonâncias e dissonâncias da transmissão psíquica nas obras de Freud, Lacan e René Kaës. Com efeito, na maior parte dos estudos sobre o tema em âmbito nacional, há um predomínio de trabalhos que tratam da transmissão psíquica de modo circunscrito à teoria de um desses autores.

Nesse sentido, fez-se, em um primeiro momento, um breve resgate do conceito de transmissão psíquica nas obras de Freud, Lacan e Kaës, para, em seguida, serem discutidas algumas aproximações e distanciamentos que se pode encontrar nas obras dos mesmos autores acerca da transmissão, as quais podem contribuir com a prática clínica contemporânea.

 

2 Transmissão psíquica na obra freudiana

Ao longo de sua obra, Freud não define com exatidão o que seria a transmissão psíquica, mas apresenta alguns apontamentos que indicam, gradativamente, seu ponto de vista teórico sobre o que estaria relacionado com o processo de transmissão na constituição psíquica do sujeito. A transmissibilidade de conteúdos de ordem psíquica, para Freud, envolve tanto o atravessamento entre sujeito e herança psíquica, religiosa, social e cultural quanto a descoberta do complexo de Édipo e seus destinos. Há registros de reflexões sobre o que viria a se tornar o conceito de transmissão psíquica desde os primórdios da Psicanálise. Com efeito, nos primeiros escritos freudianos, observa-se o predomínio de uma concepção orgânica do psiquismo, a qual foi sendo paulatinamente abandonada à medida que avançaram seus estudos psicanalíticos (Azevedo, 2015).

Freud (1888/1990), no verbete que compõe o texto "Histeria", relatou uma passagem em que ele reconhece que há uma "transmissão hereditária direta [orgânica]" (p. 43) como causa facilitadora de manifestações histéricas, mas não descartou que há, também, excitações de "natureza diretamente psíquica" (p. 50) como causas incidentais desse fenômeno patológico. No ano de 1897, no "Rascunho L", de cartas endereçadas ao amigo Fliess, Freud (1892-1899/1950) revelou a importância das fantasias, afirmando que estas seriam formadas por "coisas que são ouvidas e posteriormente utilizadas; assim, combinam coisas que foram experimentadas e coisas que foram ouvidas, acontecimentos passados (da história dos pais e dos ancestrais) e coisas que a própria pessoa viu" (p. 186), esboçando já uma dimensão inconsciente de conteúdos herdados psiquicamente entre as gerações.

No "Rascunho K", Freud (1892-1899/1950) revela que o fator hereditariedade não seria algo tão determinante para a fixação em alguma estrutura clínica, tal como sugerido por Charcot, sendo apenas um fator a mais que contribuiria para o agravamento da intensidade sintomática. No entanto, no pós-escrito do texto " Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia", Freud (1912/1990) afirma que, brevemente, vai chegar "a hora propícia para efetuarmos a ampliação de uma tese que há muito tempo foi sustentada por psicanalistas, e completar o que até aqui teve apenas aplicação individual e ontogenética" (p. 51), sendo esta a da existência de conteúdos e forças criadoras de mitos que têm um caráter selvagem, filogenético e proveniente do homem primitivo. Assim, ele alude a um tipo de transmissão psíquica que perpassaria não somente as gerações próximas, mas a espécie humana como um todo.

No ano de 1913, em "Totem e Tabu", o mestre vienense iniciou um distanciamento de uma concepção calcada no orgânico, dirigindo-se para uma compreensão psíquica do que se é transmitido. Pode-se encontrar nos quatro ensaios dessa obra, em que Freud (1913-1914/1990) faz uma releitura do complexo de Édipo a partir de uma acepção metapsicológica da antropologia dos povos primitivos, uma alusão forte à transmissão de traços mnêmicos que são herdados e têm uma origem primitiva na história da humanidade.

Nesse texto, a transmissão psíquica é explanada em sua relação à morte do pai totêmico, pela qual todos os filhos herdariam um sentimento de culpa, além de um ideal, tendo em vista que a entrada no processo civilizatório e a saída da trama edípica imporiam a prescrição da proibição do incesto, que deveria ser seguida como modelo por sua posteridade na forma de um tabu. Em outros termos, essa herança se repetiria tanto na filogenia, na organização das relações sociais humanas, quanto na ontogenia dos sujeitos, nos desfechos de suas vivências edípicas.

Nessa mesma obra, Freud (1913-1914/1990) coloca as seguintes questões: "Quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na sequência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?" (p. 121). A tais questionamentos, ele responde afirmando que há entre gerações a herança de disposições psíquicas que necessitam ser despertadas pelo sujeito para encontrar um lugar em sua história, além de estender essa transmissibilidade de alguns conteúdos para uma dimensão intersubjetiva da vida psíquica, que estaria ancorada em um apparatus mental inconsciente, partilhado entre gerações, que lhe permitiria a interpretação dos processos mentais mais importantes uns dos outros. Esse suporte psíquico aparece, pela primeira vez, totalmente relacionado a uma realidade psíquica, e não orgânica, sendo da ordem de uma neurose. Haveria, onto e filogeneticamente, o retorno entre gerações mais próximas de traços mnêmicos recalcados que, segundo Freud, não poderiam ser esquecidos.

Em "Introdução ao narcisismo", Freud (1914/1990) aponta que não havia chegado a uma conclusão em relação ao fundamento de uma transmissão psíquica e defende que o "indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra - ou, de todo modo, sem - a sua vontade" (p. 14). Nesse texto, porém, nota-se um esforço interpretativo ainda muito ligado ao evolucionismo e às bases biológicas de uma transmissão. Todavia, até aquele momento, o inventor da Psicanálise adverte que essas pontuações tinham apenas um caráter especulativo e que não descartavam outras possibilidades de interpretação.

No que concerne, ainda, a questões que perpassam o orgânico, Freud (1917/1996), na conferência "Os caminhos da formação dos sintomas", aborda essa questão pontuando a existência de "tendências instintuais que a criança herdou com sua disposição inata" (p. 81), apontando para uma concepção organicista de transmissão psíquica.

No entanto, foi a partir da chamada virada epistemológica de 1920 que o pai da Psicanálise avançou com as reflexões sobre a transmissão psíquica ao estudar questões grupais sob uma interpretação psicanalítica. Nesse ínterim, destacam-se as obras "Psicologia das Massas e Análise do Eu" (1921/1990) e "Moisés e o monoteísmo" (1939/1990). Na primeira obra, na qual Freud faz uma análise de fenômenos de grupo e sua influência na subjetividade dos sujeitos, ele afirma que "cada indivíduo é um componente de muitos grupos, têm múltiplos laços por identificação, e construiu seu ideal do Eu segundo os mais diversos modelos [...] e pode também erguer-se além disso, atingindo um quê de independência e originalidade" (Freud, 1921/1990, pp. 71-72), de modo que seja inviável pensar a Psicologia individual sem levar em conta seu aspecto social identificatório ocasionado por uma transmissão psíquica. Com efeito, o mestre de Viena tinha certa ressalva sobre o grupo e os processos mentais dele decorrentes, pois, a seu ver, o sujeito, em contexto grupal, seria refém de todo tipo de sugestão, submissão e alterações mentais, numa tendência à constante isomorfia, isto é, a uma identificação patológica dessubjetivante.

Já em seu texto princeps "Moisés e o monoteísmo", Freud (1939/1990) faz uma retomada de "Totem e Tabu" para mostrar que o parricídio deixa marcas no psiquismo, como um trauma, sendo estas reatualizadas de geração em geração. Dito de outro modo, ele fala de uma transmissão grupal de conteúdos psíquicos que mantêm sua força de continuidade na vivência de um "trauma primitivo" (p. 67). Do mesmo modo, ao tratar da experiência traumática do assassinato de Moisés - que mostra seu efeito de transmissão ao retornar de diversos modos na história do povo judaico-cristão -, indica uma tentativa não bem-sucedida de recalque de materiais psíquicos que não advêm da experiência direta do sujeito, mas da repetição de acontecimentos traumáticos ao longo de tempos. Nesse ponto, cabe a cada sujeito, diante de tal fato, tomar seu lugar de herdeiro por meio de um processo analítico de integração e reelaboração em suas vidas desses conteúdos de caráter traumático (Silva & Lo Bianco, 2009, p. 228).

Nessa mesma obra, o mestre vienense estabelece uma correlação de processos de transmissão psíquica existentes tanto para o sujeito quanto para o grupo. Assim, para ele, "existe, a esse respeito, uma conformidade quase completa entre o indivíduo e o grupo: também no grupo uma impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes" (Freud, 1939/1990, p. 65). Ademais, Freud acrescenta que esses traços, que estão presentes na vida de uma pessoa desde seu nascimento, como elementos de uma origem filogenética de heranças arcaicas, operam na vida psíquica de um sujeito, constituem-no, ainda que ele não os tenha experimentado de modo direto. Outrossim, essa constatação levaria a trespassar, em Psicanálise, "o abismo existente entre psicologia individual e de grupo" (p. 69).

No ano de 1923, no texto "O Ego e o Id", Freud (1923/1990) abordou a transmissão psíquica quando apresentou os conceitos de Supereu, Eu Ideal e Ideal do Eu. O Supereu é definido como a instância formada pelas proibições e coerções herdadas pela criança do Supereu de seus pais. Ele "reteve características essenciais das pessoas introjetadas - a sua força, a sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir" (p. 99), que têm origem na cultura e na pré-história em que os pais estão inseridos, pela sucessiva repetição de experiências de incontáveis gerações, que deixam resíduos psíquicos mantidos pela ação de uma transmissão psíquica. Quando do Id emerge o Supereu, há a revivescência desses conteúdos transmitidos geracionalmente no sujeito que os herdou.

O Eu Ideal, por outro lado, diz respeito a uma imagem idealizada do Eu projetada pelos pais nos filhos, mas que teve de ser abandonada em função das exigências da realidade. Impelido a corresponder ao ideal paterno, o filho busca em vão alcançar um suposto estado de completude. Por fim, o Ideal do Eu lança "o sujeito para o futuro em busca de uma completude narcísica" (Santos & Ghazzi, 2012, p. 635) inatingível. Sendo assim, haverá sempre uma distância entre Eu Ideal e Ideal do Eu, porque, à medida que se alcança uma imaginária correlação com o Eu Ideal, depara-se com a falta inerente da constituição subjetiva e a certeza de que há ainda algo a se alcançar. Desse modo, sempre se buscarão referências simbólicas provenientes do Ideal do Eu dos membros do grupo familiar para projetar a busca ilusória de onipotência.

Por esse breve percurso às destacadas obras de Freud, abre-se a possibilidade de afirmar que ele vai atribuindo uma importância crescente às heranças psíquicas arcaicas como malha psíquica constitutiva que dialoga, ininterruptamente, com as experiências atuais do sujeito. Viu-se que o fenômeno da transmissão psíquica comporta muitos aspectos e foi, gradativamente, estruturando-se na obra freudiana, saindo de uma concepção organicista em direção a uma concepção de transmissibilidade psíquica, designando um processo inconsciente de transmissão de conteúdos psíquicos entre gerações mais próximas ou mais distantes. A transmissão psíquica pode, por um lado, auxiliar a estruturação psíquica promovendo um melhor modo de garantir a manutenção dos vínculos intersubjetivos ou, por outro lado, trazer impasses para o infans quanto a tomar o seu lugar de sujeito perante sua herança e desejo. Caso assim se manifeste - como um impasse -, ela retornaria no psiquismo de gerações posteriores ou na história de um povo como revivescência traumática. Não obstante, a transmissão psíquica em Freud designa, também, uma transmissão de interditos e ideais, que permitem a entrada na cultura e na estrutura simbólica que rege a sociedade.

 

3 Transmissão psíquica na obra lacaniana

Conforme pontua Dor (1989), adentrar a obra lacaniana é, necessariamente, transitar no campo freudiano. Na verdade, o que Lacan (1964/1988) propõe, nos primeiros 10 anos de sua obra, é um retorno a Freud, aos fundamentos epistemológicos freudianos que ele julgava "engavetados" (p. 18) por parte da sociedade psicanalítica de sua época. A transmissão psíquica aparece, a partir dessa releitura, na forma de uma difusão de sentido que se dá com a entrada na linguagem, na cadeia de significantes, que se produz na dialética entre sujeito de desejo e o Outro, bem como no posicionamento desse sujeito na estrutura de relações que o constituem.

No texto " Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em Psicologia", Lacan (1938/2003) assevera que não há somente uma transmissão particularizada no interior da família, cabendo, igualmente, a ela a "transmissão da cultura" (p. 30), tão importante para a inserção do sujeito na dimensão da realidade social. Miller (2005), ao propor uma leitura crítica, afirma que, nesse texto, Lacan, ainda sem todas as ferramentas teóricas que formulou ao longo de sua obra, trabalha a relação entre corpo, constituição psíquica do sujeito e cultura, mediando-as pelo simbólico da linguagem.

Lacan (1964/1988), ao postular a máxima de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (p. 25), toma algumas referências freudianas sobre a estrutura dos sonhos, fazendo uma analogia entre "o funcionamento dos processos inconscientes e o funcionamento de certos aspectos da linguagem" (Dor, 1989, p. 20), pensando-os sempre como uma estrutura. De igual modo, a família é organizada como uma estrutura que porta uma gama de significantes, uma linguagem própria, adquiridos pela partilha de uma ordem cultural simbólica. Destarte, esses significantes vão se articulando e produzindo um significado que se liga ao desejo do sujeito. Assim o é, pois o sujeito recebe determinado significante do grupo familiar, mas produz um significado próprio que lhe faça sentido. Nesses termos, a transmissão operar-se-ia de modo "particular, de acordo com o que o sujeito interpreta e elabora dos significantes transmitidos, e de acordo com aqueles que recalca" (Santos & Ghazzi, 2012, p. 637).

Em "Nota sobre a criança", Lacan (1969/2003) acrescenta que a continuidade da família conjugal, não obstante as constantes transformações e formatações ao longo da história humana, se justifica pelo seu amparo na transmissão de um resíduo no processo de constituição subjetiva de seus membros. Sem esse resíduo, que é da ordem de uma transmissão, não haveria ordem social e nem a ascensão do infans à categoria de sujeito.

Todavia, o estudo da transmissão traz em seu âmago um discurso no interior da família tanto do que é dito como do que não é dito e que une os pais e a criança pela via do sintoma. Como resultado da passagem edipiana e dos efeitos das relações intrínsecas a ela, a transmissão do que não é dito na família se inscreve na subjetividade da criança por meio das identificações ao casal parental. Ao não dizer, como pontua Rosa (2001), os pais não calculam os riscos. Dessa forma, "calar pode ter função de dupla alienação: mantendo o sujeito no refúgio narcísico e mantendo-o suspenso a um significante próprio e submetido a uma ordem instituída como condição para pertencer ao grupo familiar ou social" (p. 128). Por outro lado, o que não está dito, mas recoberto por algo dito, permite o movimento da cadeia significante na produção de novos sentidos que irão responder à história de cada um (Rosa, 2001).

Ainda nesse texto, Lacan (1969/2003) assinala três funções que são irredutíveis no grupo familiar: a materna, a paterna e a do filho. À primeira, cabe a função de cuidado, de maternagem, que leve a marca de um desejo que não seja anônimo, ainda que esse desejo seja orientado pela busca narcísica de uma completude em um primeiro momento. É o portador dessa função quem vai ocupar um lugar de Outro materno, inserindo o infans no simbólico da linguagem. Ao portador da função paterna, cabe interditar a relação gozosa da mãe com o filho, levar a mãe a desejar algo para além do infans e ser "vetor de uma encarnação da Lei no desejo" (p. 3) do filho. Ele não é a lei, apenas o representante dela, na medida em que faz circular o significante Nome-do-Pai nas vivências edípicas familiares. Ao filho, cabe um posicionamento subjetivo nessa estrutura, na forma de uma resposta, primeiro, como sintoma e objeto do desejo parental, para, posteriormente, operar como sujeito.

Desse modo, ao se falar de família, está-se dizendo de uma estrutura que permite ao sujeito se constituir diante do desamparo de sua condição primeva, pois ele não se faz sem a presença do Outro, sem os agentes da transmissão de uma linguagem que lhe direcionam demandas de amor e lhe nutram com um desejo que não seja anônimo, alavancando seu desenvolvimento. Sendo assim, o que determina o surgimento do sujeito é um encontro entre duas estruturas: uma estrutura biológica e uma estrutura familiar responsável pela função de transmitir um sistema simbólico.

No que concerne à estrutura familiar, Lacan (1938/2003) propõe o édipo freudiano não mais como mito, mas sim como estrutura, que "marca todos os níveis do psiquismo" (p. 55). Para além de uma relação entre os personagens da tríade edípica, em um primeiro momento de sua obra, Lacan aponta a Lei Paterna como reguladora dessa relação. Ele salienta duas funções importantes do Nome-do-Pai na trama edípica: a transmissão psíquica do "não" da interdição do incesto e a introdução do filho em uma cadeia geracional pela sua nomeação, tornando-se o representante por excelência da Lei simbólica. Elas se correlacionam com a transmissão psíquica, porque dizem de uma herança de conteúdos entre gerações que mantêm um elo de identidades narcísicas e das posições do sujeito na estrutura de relações. Essas funções possibilitam, além disso, a satisfação do corpo pulsional na cultura em que ele está inserido, que dependem da transmissão de uma Lei organizadora e limitadora do gozo do sujeito (Azevedo, 2015). A criança percebe que há algo que interdita, na forma de uma primeira Lei, a relação com a mãe e que esse outro paterno tem algo que orienta o desejo materno para si. Desse modo, a saída mais provável encontrada pela criança é se referenciar com esse significante paterno, almejando obter para si o mesmo atributo de sentido, que supostamente o pai possui, o falo (Dor, 1989).

Em 1964, Lacan avançou no que concerne à constituição psíquica do sujeito quando propôs duas operações lógicas: alienação e separação como operadores importantes na constituição psíquica do sujeito. Enquanto o bebê não encontra um sentido próprio para si, resta-lhe corresponder ao sentido que lhe é dado pelos seus predecessores, pois, sem essa ancoragem, não conseguirá encontrar subsídios psíquicos para elaborar, posteriormente, seu próprio sentido. Esse primeiro momento, chamado de alienação, é um "alienar-se aos desejos e às palavras de outro humano para ter existência simbólica" (Santos & Ghazzi, 2012, p. 640), um Outro primordial, que o enlace a uma ordem simbólica que o antecede, o determina e o posiciona no mundo. Nele, a criança, em face do Outro, abre mão do ser para se sujeitar à linguagem, ao sentido que ela transmite perante o desamparo simbólico em que nasce (Fink, 1998).

Já o segundo momento, a separação, segunda operação lógica para a constituição do sujeito, "envolve o confronto do sujeito alienado com o Outro, dessa vez não mais como linguagem" (Fink, 1998, p. 72, grifos do autor), e sim como desejo. Agora, a criança percebe que ela não é mais o único objeto de desejo da mãe e passa a se indagar o que esse Outro materno deseja além dela. Aquilo que, na mãe, lhe parecia pleno, agora, mostra-se, também, portando um vazio, assim como ela, ou seja, não toda. Nesse momento, exatamente por se demonstrar faltante, é que esse Outro se mostra desejante. Sendo assim, se a criança se identifica com esse Outro marcado por um desejo, por uma falta, ela passa, também, a ser um sujeito de desejo. Concomitante a esse momento de reconhecimento da falta, há a entrada de um terceiro na relação mãe-bebê, que a interdita, a metáfora do Nome-do-Pai, portadora da Lei e do falo. A partir desse momento, o sujeito, diante do real da falta de complementaridade do significante materno, se dirige em busca de uma referência ao significante Nome-do-Pai e às significações dele decorrentes. Estabelecida a identificação com a função paterna e introjetada a Lei que orienta o sujeito em sua busca de satisfação pulsional, ele passa a se fazer, cada vez mais, na dialética entre o desejo e a lei.

Outrossim, a partir das operações lógicas da alienação e separação, infere-se que a transmissão psíquica está presente, na obra lacaniana, desde a herança de traços mnêmicos, que fornecem sentido para o infans acessar a estrutura simbólica da qual se torna herdeiro pela linguagem, até o momento em que lhe é constantemente requerido fazer-se sujeito de desejo, a partir da separação operada pela metáfora Nome-do-Pai, na relação gozosa primeira com o portador da função materna.

 

4 Transmissão psíquica em René Kaës

René Kaës é internacionalmente conhecido pela envergadura teórica produzida na Psicanálise de modo geral e em especial sobre as questões de grupo e da transmissão psíquica. Sobre as questões da transmissão psíquica, ele propõe pensá-las a partir de uma nova metapsicologia, que remete não somente ao enquadre individual, mas também ao enquadre de grupo e que concebe o inconsciente como parte de uma dinâmica entre espaços intra, inter e transubjetivos. Além disso, ele contribui com a sistematização de alguns conceitos que serão importantes para a compreensão de diversos processos envolvidos na transmissão psíquica sem perder uma constante referência às obras de Freud (Kaës, 2017).

Para Kaës (2005, p. 128, grifo do autor), o que se transmite são "configurações de objetos psíquicos", isto é, conteúdos que carregam em si resíduos de vínculos, que têm origem em materiais psíquicos advindos das gerações que precedem cada sujeito. Ele afirma que, no processo dessa transmissão psíquica, há duas possibilidades de heranças de conteúdos de cunhos positivo e negativo. As primeiras, marcadas por uma positividade, relacionadas com a transmissão intergeracional, são conteúdos organizadores do psiquismo, sendo estes "as continuidades narcísicas e objetais, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, as formas e os processos de conservação e complexidade da vida: ideais, mecanismos de defesa neuróticos, identificações, pensamentos de certeza" (p. 128). São esses conteúdos positivos que fornecem ao sujeito um substrato para encontrar seu lugar na cultura e na linguagem, formar vínculos, encontrar modos de lidar com o desamparo e se estabelecer como sujeito de desejo. Em outros termos, a transmissão intergeracional é aquela em que houve capacidade de simbolização e singularização do material herdado. Sobre eles, Freud e Lacan fizeram uma exaustiva incursão.

As do segundo tipo, heranças de cunho negativo, relacionadas à transmissão transgeracional, são aquelas cujo conteúdo revela em sua presença certo estado original, um estado bruto de representantes da vida psíquica, não podendo ser, segundo Kaës (2005, p. 128), "contido, retido, aquilo que não pode ser lembrado, que não encontra inscrição na psique dos pais e vem depositar-se ou enquistar-se na psique de uma criança: a falta, a doença, o crime, os objetos desaparecidos sem traço nem memória; para os quais um trabalho de luto não pôde ser realizado".

Esse tipo de transmissão é aquele no qual ocorre a passagem de conteúdos de um psiquismo ao outro, sem um trabalho simbólico por parte do agente da transmissão, tampouco por parte daquele que recebe tais conteúdos. Kaës (2005) reitera que a transmissão transgeracional é marcada pelo "enquistamento, no inconsciente de um sujeito, de uma parte das formações inconscientes de um outro que vem, então, assombrá-lo, como um fantasma" (p. 134). Esse tipo de transmissão tem como peculiaridade fazer transitar tais conteúdos a "céu aberto" (Soler, 2007) pelas gerações, de modo que seu retorno é acompanhado de um estranhamento, que se traduz em certo desencaixe na história do sujeito afetado.

As incursões sobre a transgeracionalidade foram um dos principais avanços feitos por Kaës (2005) sobre as questões da transmissão psíquica. Em sua perspectiva, a pesquisa freudiana sobre a transmissão psíquica circunscreveu-se em uma concepção marcada por uma positividade do processo de transmissão, explorando pouco os aspectos negativos ou desintegrativos desta. De acordo com Kaës, o que interessa a Freud é, antes de tudo, "uma continuidade na transmissão e, acessoriamente, as rupturas; mesmo depois de Mal-estar, mesmo depois de Moisés" (p. 127, grifos do autor). Segundo ele, Freud limitou seu estudo à compreensão "da trama diacrônica e sincrônica, na qual o indivíduo singular é mantido, para não dizer tecido" (p. 127). De igual modo, continua Kaës, a forma como Freud propõe pensar a transmissão se ateve na esfera das observações empíricas e da especulação, tendo em vista que os dispositivos analíticos de grupo ainda não lhe eram acessíveis como hoje. De fato, apesar de essas ferramentas grupais buscarem referência, em um primeiro momento, na clínica individual, tiveram suas particularidades e contribuições para diversos campos do conhecimento.

Contudo, diante do impacto causado pelas duas grandes guerras mundiais, a forma de tratamento das questões geracionais se ampliou para outros debates. O primeiro avanço teórico foi com "Além do Princípio do Prazer", texto no qual Freud (1920/1996) traz um avanço teórico no que concerne à introdução da pulsão de morte e à questão do traumatismo sem possibilidade da elaboração e da repetição. O segundo avanço ocorreu paralelamente às descobertas no âmbito do tratamento e clínica das psicoses, nas particularidades introduzidas pela clínica infantil e pelas doenças psicossomáticas. Essas mudanças, segundo Kaës (2005), introduziram os conceitos do "negativo, do irrepresentável e do intransmissível" (p. 127), abrindo espaço para outras possibilidades e exigências do trabalho no dispositivo psicanalítico sobre a transmissibilidade de conteúdos psíquicos. A partir dessas considerações tecidas por Kaës (2017), ele traz suas contribuições no que diz respeito às formas de sofrimento psíquico contemporâneas, reiterando que o sofrimento precisa ser compreendido e manejado, também, em contextos grupais como família, casal e demais grupos existentes.

 

4.1 Modos privilegiados da transmissão da vida psíquica entre gerações: as alianças inconscientes

Kaës (2005) afirma, em seu livro Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade, que existem duas grandes modalidades da transmissão da vida psíquica entre as gerações: as alianças inconscientes e as identificações.1 As alianças inconscientes são todas as formações psíquicas intersubjetivas "construídas pelo sujeito de um vínculo para reforçar, em cada um deles, certos processos, certas funções ou certas estruturas vindas do recalque, ou da recusa, ou do desmentido" (p. 133), que os beneficia dentro do vínculo estabelecido em sua vida psíquica. Elas trabalham o tempo todo para garantir que os pactos no interior do grupo, que afiançam a manutenção de vínculos necessários: tanto entre sujeitos ou entre o sujeito e o grupo, do qual fazem parte, assim como os investimentos mútuos, os ideais narcísicos, as identificações comuns e as modalidades de realização do desejo. Elas têm como substrato conteúdos psíquicos inconscientes de caráter grupal, que nos foram transmitidos por aqueles que nos precedem, e são esses conteúdos que acessamos quando entramos em um processo de configuração vincular (Kaës, 2017).

Essas alianças só fazem sentido se se tomar como certo que ninguém se constitui e vive sozinho. Sempre há movimentos de vinculação que o sujeito realiza ao longo de sua vida, e estes só são possíveis graças à instituição de pactos inconscientes, que exigem concessões tanto do sujeito quanto do grupo. Assim como a entrada na cultura produz um mal-estar diante do princípio do prazer na economia da libido, a entrada e a permanência em um vínculo produzem um desencontro de necessidades entre sujeito e grupo, que urge ser recalcado, recusado ou desmentido pelo bem maior dos benefícios, que esse conluio grupal produz na subjetividade dos sujeitos que dele fazem parte (Kaës, 2017). Por esse motivo, essas alianças se sustentam em uma negatividade, ou seja, na subtração de conteúdos que não contribuem com a dinâmica dos processos primários e secundários que regem o vínculo.

A partir das construções sobre as alianças inconscientes propostas pelo autor grupalista, há duas grandes subdivisões destas: o contrato narcísico e os pactos denegativos. O primeiro é um tipo de acordo inconsciente, quando há o investimento narcísico dos pais nos filhos, na expectativa de que estes deem continuidade ao legado familiar e que possam ocupar, na família, um lugar "ideal" na estrutura de parentesco a eles transmitida Nesse momento, o infans é colocado como "objeto do desejo e como fantasia inconsciente do outro" (Kaës, 2005, p. 131), sendo uma passagem obrigatória para adentrar em um vínculo geracional. Essas alianças são "a matéria-prima do vínculo, organizam-se numa grande diversidade de formas" (p. 131).

O contrato narcísico, também, pode ser secundário no sentido de que a entrada em grupos e instituições pelo sujeito, ao longo da vida, exige dele um processo de adequação a uma estrutura de valores, crenças e ideais que identificam esse grupo. Nesse momento, o sujeito se defronta com a tarefa de construir organizadores sociais de representação do grupo, valendo-se das transmissões narcísicas advindas de seu primeiro grupo, a família. Eles são "figurações de modelos, práticos ou teóricos, de relações grupais e coletivas. Essas figurações têm valor de referência nas relações sociais" (Kaës, 2017, p. 70) e têm origem na transmissão das identificações narcísicas do grupo familiar.

São essas representações grupais que definem lugares e direcionamentos imagéticos do grupo ideal dentro de dada sociedade, que norteiam os grupos na construção particular que cada um faz, além de influenciarem na construção de modelos ideais do objeto-grupo no psiquismo. Eles, também, são representações que organizam relações psicossociais, uma vez que, para o sujeito, sempre será necessária uma apropriação desses conteúdos grupais herdados para se localizar, se inserir e construir suas representações grupais particulares ou ser alienado em um modelo ideal de grupo. Sendo assim, o grupo tem uma imagem social identificatória, tal como o corpo se vale, para a sua constituição, de uma dimensão especular, de modo que essa relação com a imagem herdada narcisicamente constitui o "elemento [...] da identificação ao grupo" (Kaës, 2017, p. 72).

Por outro lado, os pactos denegativos são uma "aliança defensiva de amplo espectro" (Castanho, 2015, p. 106), ou seja, de variados mecanismos de defesa que podem ser agenciados frente ao que ameaça desestruturar o vínculo grupal entre os sujeitos que dele fazem parte. Podem ser homogêneos, quando os sujeitos utilizam os mesmos mecanismos de defesa para se afastarem da consciência e do vínculo, ou heterogêneos, quando as pessoas pertencentes a determinado grupo utilizam diferentes defesas psíquicas para o mesmo propósito de rechaço. Seus efeitos podem ser percebidos nos sintomas, repetições, transferências e contratransferências comuns e partilhadas pela grupalidade.

 

5 Aproximações e distanciamentos: todos os caminhos levam ao sujeito

Os apontamentos sobre a transmissão psíquica na obra de Freud, Lacan e René Kaës mostraram como o tema foi tratado sob diversas perspectivas, mas que convergem para caminhos similares, qual seja, as de que o sujeito se constitui a partir de uma rede de significados e significantes advindos de um mundo simbólico que o antecede, que fornecem as estruturas elementares para que ele possa ou não construir uma história que lhe seja própria a partir da escuta de seu próprio desejo. Esse momento depende, em certa medida, da capacidade de elaboração dessas heranças psíquicas transmitidas ao sujeito face à realidade que o cerca e o constitui.

Viu-se que Freud inaugura a discussão sobre a transmissão psíquica ao atribuir uma importância crescente às heranças psíquicas arcaicas, desde os primevos apontamentos sobre conteúdos psíquicos intra e intersubjetivos familiares até questões de identificação grupal e do apparatus mental que garantiria a manutenção do laço social. Com Lacan, a transmissão psíquica estaria localizada, assim como na obra freudiana, anteriormente à constituição psíquica do sujeito, uma vez que há um discurso que o antecede e o determina, advindo de um Outro simbólico, além de estar presente nos processos de alienação e separação e no complexo de Édipo. Já em René Kaës, o que seria transmitido são configurações de objetos psíquicos, advindos de um vínculo que perpassa gerações e que pode trazer, para o psiquismo do herdeiro, tanto conteúdos integrativos quanto negativos.

Nos três autores, há um consenso sobre a importância das identificações como mecanismo privilegiado de transmissão psíquica e das vias narcísicas da transmissão de conteúdos psíquicos entre gerações. Por outro lado, enquanto Freud e Lacan parecem ter se debruçado com maior tento sobre os conteúdos integrativos da transmissão psíquica e os espaços intra e intersubjetivos, Kaës propõe um terceiro espaço no qual esse fenômeno de herança pode ser evidenciado, o espaço transpsíquico e suas heranças marcadas por uma negatividade radical. Não obstante, esse último teórico propõe, ainda, ferramentas de manejo clínico desse material, em especial com o grupo familiar. Ademais, tanto Lacan como Kaës se reportam às reflexões freudianas para tratar da transmissibilidade mnêmica, ainda que contribuam com a reflexão posterior tomando eixos diferentes de interpretação.

Fazendo um paralelo entre a clínica freudiana e a lacaniana e a proposta grupalista de René Kaës, pode-se reiterar, a partir da práxis psicanalítica, que o objetivo da análise, seja ela, individual, grupal, de casal, seja de família, seria responder à questão que se coloca sobre a existência: "Que sou eu nisso?" (Lacan, 1998, p. 555). Esse questionamento, sobre a posição subjetiva no interior da família, se coaduna à pergunta necessária que o sujeito deve fazer sobre si diante das heranças advindas da transmissão psíquica familiar: sou eu servidor, beneficiário ou herdeiro? (Kaës, 2017). Essa resposta é um trabalho de vida, de reconhecimento de sua história em processo analítico.

 

Considerações finais

As palavras, neste trabalho apresentadas como reflexão teórica, ainda reverberam em forma de passos distantes de uma possível conclusão, pois fazem parte de um desassossego alinhavado por um projeto de pesquisa em construção. São, de toda forma, um convite ao diálogo. Acredita-se que esses autores, Freud, Lacan e Kaës, ao versarem cada um ao seu modo sobre a transmissão psíquica, abriram caminhos no sentido de trazer para a prática terapêutica, individual ou grupal, modos particulares de manejo com esse conteúdo psíquico. Porém, a essência da condução do tratamento parece ser a mesma: fazer emergir um desejo, nas palavras de Lacan, que o sujeito se torne um herdeiro e beneficiário das suas heranças, nas palavras de Kaës.

Destarte, diante das possibilidades e impasses, que podem se apresentar para o sujeito, oriundo das diversas modalidades de transmissão psíquica, o trabalho psicanalítico se beneficia grandemente quando toma a transmissão psíquica como um importante operador facilitador da escuta do sujeito contemporâneo do grupo ou no grupo (Kaës, 2017). A título de elucidação, o aprofundamento sobre essa temática auxilia na compreensão sobre como é possível articular atravessamentos simbólicos, posicionamentos nas estruturas familiar e grupal, e transmissões intergeracionais e transgeracionais, que tecem o sujeito com seu processo de construir uma história a partir de seu desejo.

Além disso, atesta-se a carência de maiores investimentos de pesquisas nas questões da transmissão psíquica no contexto nacional. Nesse sentido, a pesquisa alcançou alguns resultados, mas incitou para posteriores práticas investigativas e extensionistas possíveis a partir de tal pesquisa, levando em consideração a importância da transmissão psíquica nas constituições subjetiva e social. Entre as questões que ficaram em aberto, interroga-se: seria a clínica psicanalítica sempre uma clínica do familiar?

Ao longo deste percurso, fica patente que o sujeito não se apresenta como tal por meio de sua história particular, mas sim é marcado e estruturado por certa anterioridade em sua história, que, ao ser transmitida de forma transversal entre as gerações, torna-se condição essencial para a sua estruturação como sujeito. Por outro lado, atentar-se à transmissão psíquica no processo de escuta do sujeito em processo analítico faz-se mister, no sentido de abrir-se à possibilidade de ajudá-lo a se posicionar perante a história dos seus, de modo que se torne protagonista da trama, na qual está simbolicamente inserido. Dito de outro modo, é dar um sentido singular às palavras que lhe constituem a partir da escuta de seu desejo.

 

 

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*Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Estagiário da Apac-Feminina em São João del-Rei. Bolsista de Iniciação Científica do Pibic UFSJ. Participa do Grupo de Estudos em Clínica Psicanalítica do Autismo, vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise (Nupep).
**Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG). Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. Membro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI/UFSJ).
***Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Bolsista da CAPES.
1Em obra posterior, Kaës (2017) não utiliza mais as identificações como algo separado das alianças inconscientes, mas amplia o conceito de contrato narcísico de Piera Alaugnier, pelo qual trabalha as questões das identificações. Optou-se por deixar identificações, mas trabalhá-las dentro do conceito de contrato narcísico.

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