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Clínica & Cultura

versión On-line ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão ene./jun. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Feminismos, psicanálise e política1

 

Feminisms, psychoanalysis and politics

 

Feminismos, psicoanálisis y política

 

 

Silvia Leonor Alonso

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde sua fundação e professora e supervisora no curso Psicanálise do mesmo Instituto. Desde 1996, coordena o grupo de pesquisa "O feminino e o imaginário cultural contemporâneo". Foi coordenadora e professora na área de psicanálise do curso de formação em psicoterapia lato sensu da PUC-SP em 1997-1980. Integrou a equipe docente da Escuela de Psicoanálisis Freudiana y Socioanálisis (EPFSO), em Buenos Aires, bem como o grupo fundador da revista Percurso, inclusive como parte de seu primeiro conselho editorial. É autora de O tempo, a escuta, o feminino e, com Mário P. Fuks, autora em parceria de Histeria, ambos publicados pela Casa do Psicólogo. Finalmente, pela editora Escuta, é co-organizadora dos livros: Freud: um ciclo de leituras, Psicanálise em trabalho, Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, Interlocuções sobre o feminino na teoria, na clínica, na cultura e Corpos, sexualidades, diversidade

 

 


RESUMO

O artigo procura examinar as inter-relações entre Psicanálise e feminismos. Afirma a importância de falar em feminismos, reconhecendo essa pluralidade tanto ao longo do tempo quanto na atualidade. Uma síntese da história das “ondas” feministas permite situar o momento a partir do qual se torna possível a conversa entre Psicanálise e feminismos. O texto avança mostrando essa conversa de ambas as perspectivas. Ao mesmo tempo, vai apontando algumas articulações com o campo político. Termina levantando algumas interrogações sobre o tema no momento atual, alertando para a possibilidade de retorno a uma “substancializacão” ou “naturalização” no que se refere às mulheres, o que poderia deixá-las novamente no lugar de frágeis, desprotegidas e sem desejo.

Palavras-chave: Feminismos, psicanálise, naturalização, gênero, política.


ABSTRACT

This article seeks to examine the interface between Psychoanalysis and feminisms. It states the importance of talking about feminisms, acknowledging this pluralism, both overtime as well as nowadays. A historical synthesis of the “waves” of feminism enables to locate at what point did the conversation between Psychoanalysis and feminism become possible. The text goes on to show this conversation on both sides. At the same times it establishes some linkages with the political field. At the end it raises some issues about the matter at the present moment, highlighting the possibility of the return to an “essencialization” or a “naturalization” as regards women, which could leave them again as the fragile, the unprotected, and the desireless.

Keywords: Feminisms, psychoanalysis, naturalization, gender, politics.


RESUMEN

El artículo pretende examinar las interrelaciones entre el psicoanálisis y los feminismos. Afirma la importancia de hablar de los feminismos, reconociendo esta pluralidad tanto en el tiempo como en el presente. Una síntesis de la historia de las "olas" feministas permite situar el momento a partir del cual se hace posible la conversación entre el Psicoanálisis y los feminismos. El texto avanza mostrando esta conversación desde ambas perspectivas. Al mismo tiempo, señala algunas articulaciones con el ámbito político. Termina planteando algunos interrogantes sobre el tema en el momento actual, alertando sobre la posibilidad de volver a una "sustancialización" o "naturalización" en lo que se refiere a las mujeres, lo que podría dejarlas nuevamente en el lugar de frágiles, desprotegidas y sin deseo.

Palabras clave: Feminismos, psicoanálisis, naturalización, género, política.


 

 

Feminismos

Feminista é toda pessoa que toma consciência da opressão que atinge as mulheres e procura melhorar essa condição. O feminismo é um movimento social emancipatório e o conjunto de teorias que visa à liberação das mulheres e a conquista dos direitos que lhes retirou a organização patriarcal, política, econômica e social.

Nessa definição básica, o feminismo parece ser um, mas sabemos que é bom falar em feminismos no plural, posto que, ao longo do tempo e ainda hoje, há diversas correntes feministas.

Para situar o momento em que feminismos e psicanálise começam a se articular, cito LUCE IRIGARAY (2017, p. 148):

[...] o modelo historicamente estabelecido privilegia a simetria como condição de possibilidade de mestria no não reconhecimento do outro

[...]. O privilégio da simetria é correlativo ao do espelho plano: que pode servir para a auto-reflexão do sujeito masculino na linguagem e à sua constituição como sujeito do discurso. Ora, a mulher, a partir desse espelho plano, somente, não pode suceder a não ser como o outro invertido do sujeito masculino, ou como lugar de surgimento e de velamento da causa de seu desejo (fálico), ou ainda como falta, já que o seu sexo, em sua maior parte é a única historicamente valorizada, não especularizável. Portanto, no advento de um desejo "feminino", esse espelho plano não pode ser privilegiado e a simetria não pode nele funcionar como na lógica e no discurso de um sujeito masculino.

Irigaray é uma pensadora interdisciplinar com formação em filosofia e psicanálise e foi membro da Escola Freudiana de Paris e professora da Universidade de Vincennes, desligada após a publicação de seu livro Speculum, onde faz críticas ao pensamento falocentrista. Foi uma importante referência para os movimentos feministas italianos e franceses e teve grande influência no desenvolvimento das teorias de gênero de Judith Butler. Entre as correntes do feminismo, situa-se no chamado "feminismo das diferenças", e, com Annie Leclerc e Hélène Cixous, criou o grupo Psicanálise e Política, que reivindica igualdade entre homens e mulheres e não igualdade com os homens, e propõe a "outridade", ou seja, a mulher como absolutamente outro, defendendo um erotismo feminino, um saber feminino e um "falar mulher", que não é um falar da mulher, e sim uma proposta de mudança na própria estrutura discursiva.

Esse feminismo das diferenças surgiu na década de 1970, mas foi precedido por outras "ondas feministas", como têm sido chamadas (não sei se é um bom nome). Nas ondas anteriores, o princípio central era o da "igualdade" - igualdade de direitos -, de que podemos dizer ser um princípio do campo jurídico. A "diferença", no entanto, é uma realidade existencial, um campo que inclui subjetividade, sujeitos, construção de identidades e reconhecimento do outro, e é aí que a psicanálise se cruza com os feminismos. (Não penso, com isso, que a luta pela igualdade de direitos tenha acabado; muito pelo contrário, ela está muito longe de acabar.)

Voltando à História, podemos dizer que o movimento feminista surge no fim do século XVIII, pela influência da Revolução Francesa e da igualdade de direitos proclamada por ela, mas que não incluía as mulheres.2 As mulheres participaram ativamente na Revolução Francesa, mas, depois dela, continuaram a ser consideradas "naturalmente" inferiores e restritas a atividades domésticas e funções maternais: "a idade das luzes deixou as mulheres às escuras" (GOLDMAN, 2014, p. 39).

Algumas vozes se levantaram em defesa dos direitos das mulheres, como a de Mary Wollstonecraft, que, em 1792, na vanguarda da sociedade inglesa, publicou A reivindicação dos direitos da mulher, denunciando o enclausuramento das mulheres no lar e a proibição de acederem à educação formal, que as deixava em total dependência dos homens; o livro é considerado o primeiro documento feminista. Ressalte-se que, além da defesa das mulheres, ela participou também de movimentos antiescravagistas. Os movimentos de defesa das minorias caminham juntos.

Destaco também o lugar infantilizado das mulheres na concepção da época, que não podiam administrar seus bens nem trabalhar, desapropriadas de seu corpo e de seu lugar de cidadãs, desigualdade encoberta por uma suposta proteção. Na mesma época, na França, Olympe de Gouges publicou A declaração dos direitos da mulher e da cidadã. Esta é considerada a primeira onda do feminismo. Depois da Revolução, algumas mulheres foram para a guilhotina e outras para o exílio, sob a acusação de transgredir as "leis da natureza".

Na segunda metade do século XIX e no início do XX, a partir da inclusão maciça das mulheres na produção pelo capitalismo industrial, se organizou um forte movimento em defesa dos direitos das mulheres que resultou no movimento sufragista (considerado a segunda onda), que, a partir do liberalismo clássico, defendia a igualdade em relação aos homens, sem questionar a origem da dominação masculina - era um movimento de mulheres burguesas de classe média. Ao lado desse movimento liberal, surgiu na Europa um feminismo ligado aos partidos socialistas.

Durante as Guerras Mundiais, as mulheres foram incorporadas ao mercado de trabalho, instalando-se um certo silêncio de suas reivindicações, mas, terminada a Guerra, foram novamente enviadas ao lar. Nos anos 1950, o livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1949/1998), mostra a construção social da mulher, apontando como preconceitos, expectativas e costumes a colocaram num lugar de subordinação. Esse tema volta com força nas décadas de 1960-70.

Aos poucos, vão se fazendo conexões entre os âmbitos político e pessoal, se recolocam os limites do político mostrando que o pessoal é político, visto que o aspecto político inclui o doméstico e o privado. O feminismo começa então a defender interesses de gênero, surgindo uma nova onda, que questiona a opressão patriarcal sobre a sexualidade das mulheres. O movimento hippie nos EUA e maio de 68 na França mostram uma revolta contra os valores conservadores e desafiam as estruturas normalizadoras do social do pós-Guerra. Os movimentos feministas vão introduzindo temas como a sexualidade e a reprodução - a respeito das quais a psicanálise tem muito a dizer -, e psicanálise e feminismos vão fazendo seus cruzamentos. A partir dos anos 1980, a diversidade das mulheres aparece com força, o que obriga a se incluírem gênero, classe, raça e etnia. No século XXI, a violência de gêneros e a discriminação sexista sofrem um forte questionamento, e, na contramão, se intensificam também os movimentos de grupos conservadores, que se opõem a mudanças (MORIM, 2013; GARCIA, 2011; GOMIDE, 2016).

Em publicação anterior, escrevemos:

As análises críticas, desenvolvidas, tendo como marco o movimento feminista, fizeram implodir, no discurso ocidental, uma concepção presente desde a antiguidade para a qual predominaria a subordinação ao masculino, apesar do reconhecimento de dois sexos diferentes. [...] Essas análises críticas que mencionamos denunciaram as formas hierárquicas e de subordinação existentes entre homens e mulheres e permitiram desamarrar as representações da masculinidade e da feminilidade do corpo biológico, mostrando que são construções culturais que mudam com a história e a cultura (ALONSO & FUKS, 2014, p. 245/246).

 

Conversa entre psicanálise e feminismos

O que os grupos feministas pensam da psicanálise?

Como dissemos, os feminismos são numerosos, e os diferentes coletivos feministas divergem, entre outras coisas, em seu posicionamento em relação à psicanálise. Para alguns, as conceptualizações psicanalíticas são meras afirmações misóginas depreendidas do patriarcalismo. Outros, pelo contrário, veem na psicanálise uma possibilidade de análise da sexualidade e da diferença e entendem que não podem prescindir de seus aportes.

E do lado da psicanálise?

É bom destacar os grandes aportes da psicanálise que trouxeram ao primeiro plano o tema da diferença sexual. Até o século XVIII, imperava o modelo de um único sexo: o masculino. A partir da modernidade e da Revolução Francesa, tornou-se mais difícil para a filosofia justificar a superioridade masculina.

De acordo com Regina Neri (2005), a modernidade operou deslocamentos das representações tidas como universais para o campo da história, colocando ao pensamento a tarefa de problematizar a questão da alteridade e da diferença dos sexos. Para a autora, é a primeira vez que um discurso científico se opõe à racionalidade filosófica e se inaugura, sob a égide do feminino, numa dupla perspectiva: de um lado, é enunciado a partir da fala das mulheres (histéricas tratadas por Freud), de outro, constitui o feminino como interrogação fundante do seu aparelho psíquico: "A histeria subverte a ordem da razão com um corpo encarnado" (NERI, 2005, p. 95).

Ao escutar as histéricas, Freud reconhece a divisão do sujeito e, a partir de seus sintomas, a multiplicidade identificatória. Assim, põe em questão a identidade fixa e permanente e diferencia sexo e sexualidade, ampliando o conceito de sexualidade, que não se restringe à genitalidade ou à procriação, mas inclui a pulsionalidade parcial e a pregenitalidade, que sabemos ser polimorfa. Diferencia a pulsão do instinto e o sexual do sexuado, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de um corpo erógeno diferente do corpo anatômico; a multiplicidade pulsional e seu objeto vicariante o separam de qualquer endogenismo biologizante, reintroduzindo em algum momento o incerto na questão identificatória. Freud (1925/1992a, p. 273, tradução nossa) afirma: "As reações dos indivíduos de ambos sexos combinam traços masculinos e femininos". Desse modo, a masculinidade e a feminidade puras não passam de ser construções teóricas de conteúdo incerto. E, nos melhores momentos, considera mais os processos do que a ontologia: o devir mulher. Assim, Freud (1932/1992b, p. 108, tradução nossa) afirma: "A psicanálise [] não pretende descrever o que é a mulher [] mas indagar como advém, como se desenvolve a partir da criança polimorfa". Ou seja, trata-se mais de processos que de identidades.

A partir do excesso presente na histeria, o discurso psicanalítico se desloca do campo da representação para o campo pulsional. E, apesar de não estar na sua época formulado o conceito de gênero, em várias ocasiões aponta o social como determinante de restrições e investimentos, da forma de ser mãe, do narcisismo das mulheres e da heroicidade dos homens.

Mas todo esse avanço disruptivo ainda não abrange tudo o que a psicanálise diz a respeito das mulheres ou sobre a diferença entre os sexos. Temos de reconhecer também que o pensamento falocêntrico e o discurso masculino sobre as mulheres se impõem em muitos de seus enunciados e têm suscitado críticas importantes. De um lado, a psicanálise abre lugar para o feminino e, de outro, reinstaura o discurso masculino como universal. Para Irigaray (2017, p. 172), Freud tomou a sexualidade feminina como objeto do seu discurso, mas não analisou os pressupostos de produção desse discurso: "Faltando essa interpretação, o discurso de Freud permanece preso em uma economia meta-psíquica".

A partir da década de 1960, a inclusão do conceito de gêneros na psicanálise ensejou importantes questionamentos dos essencialismos sobre os sexos e da naturalização dos corpos, mostrando como as ideologias haviam penetrado a própria teoria e permitindo retrabalhar conceitos como o da inveja do pênis, do instinto materno ou das zonas erógenas femininas, entre outros, descartando alguns e redimensionando o alcance de outros. Como afirma J. Mitchel, a psicanálise não é uma prescrição de uma sociedade patriarcal, mas, em todo caso, a análise dos efeitos subjetivos de uma sociedade patriarcal. No entanto, precisamos reconhecer que, como todo produto intelectual, a psicanálise conversa com sua época. É certo que, em alguns momentos, consegue falar mais que sua época, produzindo teoria, mas, em outros, é falada por ela e produz sintomas, de modo que é necessário um trabalho de discriminação, de separar o joio do trigo, trabalho sobre o qual muitos psicanalistas nos temos debruçado nas últimas décadas.

Também devemos dizer que, se a inclusão do conceito de gênero permitiu reconhecer na teoria pontos de "naturalização" ou de reprodução da ideologia, o próprio conceito de gênero vem sendo posto em questão. Se para Money (1955) o conceito de gênero estava ligado às ideias de uniformidade, unidade e persistência, no interior da própria psicanálise desenvolvimentos como o de Jean Laplanche mostram que esse conceito não pode ser incorporado à psicanálise sem antes ser re-trabalhado para reincluir o inconsciente e o conflito. O autor pensa a atribuição de gênero como uma mensagem enigmática transmitida pelo inconsciente do adulto que a criança deve decifrar. Entendendo que a atribuição de gênero é plural e que a designação é um conjunto complexo de atos que se prolongam na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno - uma designação contínua, ou um verdadeiro bombardeio de mensagens -, Laplanche (2006) reformula o conceito de gênero desde o seu modelo tradutivo do inconsciente, reincluindo o inconsciente e o conflito e considerando que é o plano da cultura que oferece códigos de tradução.

Por outro lado, autores como Butler (2003) questionam o fixo da identidade de gênero e seu binarismo, que oprimem a singularidade, e procura superar a ideia de representação pela teoria performática do sexual, na qual a repetição reiterada de múltiplos discursos vai construindo corpos e identidades.

As psicanalistas do feminismo pós-moderno questionam a concepção binária dos opostos sujeito/objeto, assim como a idéia de complementaridade que dela se depreende, entendendo que sua manutenção não deixaria saída possível, a não ser a da inversão. Ou seja, para a mulher ser sujeito, se deveria colocar o homem como objeto, e certamente não é isso o que se pretende. Muitos dos trabalhos dos diferentes grupos de psicanalistas feministas, sejam lacanianos ou relacionais, vêm elaborando formas de pensar os processos de construção de subjetividades com equações mais complexas, tentando transcender a lógica das identidades excludentes e polarizadas.

No ordenamento moderno, as lógicas sexuais coletivas fizeram uma amálgama total entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais, criando pares de opostos - homem/mulher, masculino/feminino, ativo/passivo, heterossexual/homossexual - e mantendo lógicas identitárias, binárias e hierarquizadas que Ana Maria Fernández (2017) chama de "lógicas desigualadas". As mudanças do imaginário cultural vão configurando novas lógicas sexuais, e outros jogos eróticos , quebram as amálgamas modernas que se vão desnodando e dando visibilidade a novas configurações: da diferença, passa-se à diversidade. A binariedade está em questão, mas a própria construção de identidades também está. Por que passar do traço ao ser? Por que a prática erótica define uma identidade? Pesquisas realizadas entre jovens mostram um certo inconformismo quando perguntados pela identidade e respondem que preferem falar em estou do que em sou.

Diante de tanta mudança das lógicas sexuais coletivas, cabe-nos perguntar como re-trabalhar as lógicas da sexuação? A partir dessas mudanças, como pensar a diferença?

Por exemplo, Jacques Derrida critica a forma de construir a diferença ordenada por um único significante, o fálico, que coloca a diferença sexual numa oposição binária feminino/masculino, afirmando que o feminino se apresenta como um outro que desconstrói a lógica do logofalocentrismo, e não como um outro em oposição ao masculino (Derrida & Roudinesco, 2004), e substitui o termo diferença por différence, como aquilo que escapa à representação é portador da negatividade, da alteridade que escapa incessantemente do idêntico. Não é uma essência nem uma oposição, mas uma reafirmação do mesmo que não é idêntico e, portanto, não é necessário fixá-lo em oposições duais.

Mas se, de um lado, todos esses questionamentos das categorias identitárias levam a perguntar pelas lógicas da sexuação e pela formação de subjetividades, também, por outro, leva a questões no campo político.

Derrida (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 34-35) articula identitário, comunitário e narcisismo das minorias e se pergunta: como não converter os feminismos num narcisismo das minorias? E prossegue: politicamente, é importante apoiar as minorias marginalizadas, mas há que desconfiar da reivindicação identitária como tal, para não fazer uma lógica perversa. Em conversa com Roudinesco e referindo-se ao que pode ou não ser mudado por meio de leis, Derrida mostra como cada situação implica uma reflexão sutil (Derrida & Roudinesco, 2004). Por exemplo, o autor se pergunta, quando se trata da legalização do aborto, não há muita dúvida: trata-se do direito a decidir sobre o próprio corpo, mas, quando se trata da lei de paridade, com a determinação de cotas para a ocupação de cargos públicos, há, de fato, um direito à igualdade, mas, imposto por lei, não fixa numa rigidez do traço identitário único? Enfim, temas delicados. Quanto a essa situação específica, Derrida afirma que votaria favoravelmente, mas depois a questionaria (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 36/37): "Me preocupo com a inscrição da diferença sexual na Constituição [...] talvez se devesse refletir na maneira como progride a luta contra as desigualdades e por que, em certos setores, existe tal disparidade entre homens e mulheres".

 

A interrogação feminista

A partir de que posição é possível respeitar a diferença, inclusive as múltiplas diferenças? Isso se liga à pergunta psicanalítica: Como reconhecer o outro? Ou, nas palavras de J. Benjamim (2013, p. 177):

A pergunta "pode um sujeito relacionar-se com o outro sem assimilá-lo no self pela identificação?" se conecta com a questão política: pode uma comunidade admitir o Outro sem que ela ou ele tenha que chegar a ser o mesmo?. Portanto, o que a psicanálise considera o problema de superar a onipotência está ligado à questão ética do respeito e à questão política da não violência (tradução nossa).

 

Psicanálise e política

Às vezes, os direcionamentos políticos aproveitam as teorias em seu benefício. Por exemplo, depois das guerras em que as mulheres substituíram os homens ausentes no mercado de trabalho, era necessário enviá-las de volta para casa, e - insidiosamente - se utilizaram os desenvolvimentos de Spitz (1961) sobre "hospitalismo" e sobre a importância da presença materna nos primeiros tempos da vida do bebê para a construção de pulsão de vida. No entanto, não se dava nenhuma importância aos estudos de Bettelheim (1974) nos kibutzim, onde as crianças separadas das mães eram criadas em pequenos grupos e nem por isso adoeciam (Langer, Palácio, & Guinbsberg, 1986). Era preferível ficar na concretude da presença materna, e não considerar que se trata de uma função, para justificar a necessidade de manter as mulheres confinadas ao lar.

Outro exemplo: os estudos de reavaliação de Gilligan (1985) sobre as pesquisas empíricas referidas ao julgamento moral de púberes de ambos sexos - que mostraram a ética do cuidado nas meninas - foram de grande utilidade no re-trabalho que algumas analistas fizeram das afirmações freudianas do superego nas mulheres. Mas, aos poucos, essa lógica do cuidado foi sofrendo uma certa substancialização do lado das mulheres, sem considerar que, como a dominação dos homens, ela também deve ser pensada a partir das posições ocupadas por cada um durante séculos e dos efeitos da cultura nas subjetividades. "A liberação das mulheres precisa de uma mudança no âmbito econômico, mas deverá passar também pela mudança da cultura e de sua instância operante, a linguagem" (Irigaray, 2017, p. 174). Vemos que a questão da essencialização e naturalização no campo do feminino/masculino tem uma presença forte ao longo de toda a história, desde as mulheres que a Revolução Francesa mandou para a guilhotina por terem contrariado a "natureza" feminina até hoje. Alguns autores vêm alertando sobre a possibilidade de uma nova naturalização no momento atual, assinalando a possibilidade de melancolização da figuração da mulher e a paranoização da sociedade com o esvaziamento da sexualidade e a reafirmação das lógicas identitárias. Desde a década de 1970, muito se avançou: as mulheres conquistaram lugares de trabalho e a consequente independência financeira, a possibilidade do divórcio, os métodos anticoncepcionais separaram a sexualidade da procriação e, em alguns países, o aborto é legalizado. Com essas mudanças, as mulheres ficaram mais donas de si. No entanto, ao mesmo tempo em que continuam as lutas e as conquistas, desde o final da década de 1980, acentuam-se na sociedade certa vitimização e a volta a uma idiossincrasia tradicional com efeitos de censura na sexualidade das mulheres. A antropóloga E. Badinter (2005) levanta uma questão: será que esses direcionamentos podem estar entrando em alguns discursos feministas? Em alguns, porque lembremos que eles são muitos. As mulheres na nossa sociedade são vítimas de terríveis violências, basta ver as estatísticas dos casos de abuso, estupro e feminicídio, e é necessário protegê-las. No entanto, às vezes, parece ir-se construindo um "vitimismo" (termo da autora) que é muito diferente do reconhecimento da vítima, parece ir-se criando uma nova substancialização da mulher, materializada na figura da frágil, da infantil e da despossuída de desejo, sem fazer as diferenciações necessárias de territórios, classes ou etnias, que permitam mostrar que, se são vítimas de violência, é por efeitos da cultura e da sociedade, e não por causa de uma essência feminina fragilizada. Lembremos que, na época da Revolução Francesa, a "proteção masculina" às mulheres se apoiava em sua suposta fragilidade e infantilidade, não era mais que algo que encobria as desigualdades. Hoje em dia, as mulheres precisam de leis que as protejam, mas não porque sejam crianças ou frágeis na sua essência, e sim pelos absurdos produtos da cultura patriarcal... até que esta se transforme.

No campo da sexualidade, Badinter (2005) alerta para a retomada de expressões como instinto materno, que já estava em desuso, o que fala de um retorno do biologismo, superado pelo próprio saber da psicanálise sobre a sexualidade e pelos trabalhos de historização que mostraram a maternidade como uma construção histórica instaurada na modernidade. Vários autores têm alertado também para uma judicialização abusiva, que não distinguiria o objetivo do subjetivo, o real do imaginário, a violência da intenção sexual, uma extrema regulação das relações humanas que, na verdade, procura eliminar a sexualidade, dada aí como perigosa. Por esses caminhos, podemos voltar ao âmbito biológico e ao silenciamento da mulher: duas formas de retrocesso.

Em suma, duas questões se mantêm: como não naturalizar a vitimização feminina nem a dominação masculina? Como pensar esta última na interseção entre as questões intrapsíquicas do reconhecimento do outro e os efeitos dos mecanismos de poder? Dito de outro modo, como não naturalizar a sexualidade nem tentar eliminá-la?

Termino levantando duas questões. Freud escutou as histéricas e lhes permitiu falar da sexualidade; tirou-lhes o peso do imaginário feminino da época, esvaziado de erotismo. Como não retroceder a isso? Como protegê-las naquilo em que são vítimas de violência e, ao mesmo tempo, reconhecê-las como sujeitos desejantes?

Como levar em conta que as categorias binárias apagam a complexidade do real e, ao mesmo tempo, reconhecer que o apoio à luta das mulheres - como de outras minorias - segue sendo politicamente fundamental, ao menos neste momento civilizatório?

 

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1 Este texto foi apresentado no Encontro Preparatório do I Congresso Interamericano de Pesquisa em Psicanálise e Política (REDIPPOL), no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 13 set. 2018.
2 Poderíamos voltar mais ainda no tempo para apontar o que seria o feminismo pré-moderno: mulheres de família de humanistas que perceberam que o ideal universal dos humanistas não incluía as mulheres e se rebelaram contra essa ideia criando o movimento chamado Querelle de Femmes, que durou vários séculos a partir do XlV e desembocou na França, no Movimento das Preciosas, no XVII, reunindo uma corrente literária com um modelo de comportamento e questionando o lugar masculino.

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